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Capa da revista

EDITORIAL

Pensando em dar autonomia à sua versão online e diversificar suas intenções editoriais, ao longo do último ano a Tatuí convidou colaboradores das mais diversas áreas de atuação, que escreveram acerca de suas pesquisas recentes.

Artistas, críticos, pesquisadores, curadores, jornalistas e outros profissionais publicaram reflexões sobre o campo da arte, considerações sobre linguagem, análises da produção de alguns artistas, depoimentos a respeito de projetos curatoriais/experiências artísticas e entrevistas que, em seu conjunto, apontam a pluralidade de interesses e preocupações da arte brasileira.

A fim de costurar as colaborações, a Tatuí convidou o artista Rafael Campos Rocha. Suas intervenções comentam alguns dos temas presentes entre os 30 textos especialmente produzidos para este projeto – disponibilizados também em inglês na sua versão virtual.A Tatuí n o 8, edição especial de compilação deste conteúdo, consolida uma nova empreitada da revista e comemora a adesão de um sempre maior número de parceiros e interlocutores, todos comprometidos com o debate crítico.

Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz, editoras.

Colaboradores

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Conteúdo

Índice
  1. O começo pelo meio - Escrito por Jorge Mena Barreto
  2. ? - Escrito por Daniela Castro
  3. Monocromia amarela - Escrito por Clarissa Diniz
  4. Contradição e ambivalência: Algumas ideias sobre arte e esfera pública no Brasil - Escrito por Vitor Cesar
  5. Vamos sambar no GIA? - Escrito por Maicyra Leão
  6. COTIDIANO reflexões atuais e (in)oportunas - Escrito por Marcus Vinícius
  7. Usei meu corpo: das vísceras fiz sopa, dos membros fiz pontes [1] - Escrito por Oriana Duarte
  8. Arte+publicidade = Arte[na]cidade - Escrito por Dally Schwarz
  9. Fanzines: produção de mundos na tangente - Escrito por Demetrios Gomes Galvão
  10. O poder de afetação do Don Quijotena experiência de arte urbana - Escrito por Cristiana Cavalcanti
  11. Ponderações em torno das intervenções urbanas de Paulo Bruscky - Escrito por Fabrícia Jordão e Sicilia Freitas
  12. “Pixar é art, correr faz parte” ou quando os corres são outros. - Escrito por Nicole Cosh
  13. Monumetria: pequeno relato de uma medição pública - Escrito por Gilberto Mariotti
  14. Não julgue o público. Você também é. - Escrito por Olívia Mindêlo
  15. SITUAÇÃO _ Glossário - Escrito por Manuel Segade
  16. Sobre o risco no trabalho de arte - Escrito por Felipe Scovino
  17. Corpo e arte contemporânea – elementos para análise da obra ‘Galinhas de Gala’. - Escrito por Ana Bastos e Kadma Rodrigues
  18. Reflexões de uma artista-turista na Palestina - Escrito por Isabela Prado
  19. Renato Valle: Sobre política de excesso e a reinvenção do demasiado - Escrito por Ana Luisa Lima
  20. Sobre Fabinho - Escrito por Cristhiano Aguiar
  21. “Você é Macunaíma Colorau?”: um debate ético-estético - Escrito por Ana Luisa Lima
  22. Eu gosto de arte - Escrito por Paulo Whitaker
  23. Uma certa produção de pintura - Escrito por Daniela Labra
  24. O SPA e a sua crise - Escrito por Raíza Cavalcanti
  25. Aos leitores - Escrito por Clarissa Diniz
  26. Um gosto de desgosto - Escrito por Gabriela Motta
  27. NOTAS SOBRE CURADORIA E “CURADORISMOS” - Escrito por Guy Amado
  28. Hélio Oiticica em cinza e carvão - Escrito por Fabiana Éboli Santos
  29. Tá tudo dominado: ENTREVISTA COM FRANCISCO ALEMBERT - Escrito por Francisco Alembert e Tatuí
  30. sem título #9 (da série Inquietações) - Escrito por Beco da Arte

O começo pelo meio

O começo pelo meio [1] Este texto pertence originalmente à dissertação de mestrado “Lugares Moles”, de minha autoria, defendida em 2007 no Programa de Pós-Graduação da ECA-USP.

 

   

Não buscaríamos origens, mesmo perdidas ou rasuradas, mas pegaríamos as coisas onde elas crescem, pelo meio: rachar as coisas, rachar as palavras. [2] DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro. editora 34, 1992, p. 108.

Gilles Deleuze

 

A palavra não tem a menor possibilidade de

e x p r e s s a r alguma coisa. Tão logo começamos

a pôr nossos pensamentos em palavras e frases,

tudo sai  errado.[3] THOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp. Ed. CosacNaify, São Paulo, SP, 2005, p.77 (grifos meus).

Marcel Duchamp

Já de início, temos uma citação de Marcel Duchamp, desconfiando do poder das palavras de

expressarem algo. E faço minhas as suas palavras, pois também

 

 

des

E quando se desconfia, se analisa, perscruta, investiga. Quebra, estica, desconstrói, reconstrói. Macera, pulveriza, arrasta e tensiona. Joga, queima, funde, forja.E se você desconfiar em português, na primeira pessoa, pode encontrar o

 

 

 

E tecer. E emaranhar. E desafiar. E riscar.

A citação acima, se tivesse sido dita por outra pessoa, talvez fosse entendida como mero descaso ou desprezo pelas palavras. Talvez por alguém que tenha sido mal-entendido com demasiada freqüência. No entanto, foi dita por Marcel Duchamp, alguém extremamente atento às relações entre palavras e coisas; linguagem e tradução; e suas ligações, sempre problematizadas, com os modos de significar.

Desconfiemos, então, da aparente simplicidade da sua citação, rachando-a.

A palavra não tem a menor possibilidade de expressar alguma coisa.

Para os poetas concretos brasileiros[4] Entre eles, Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos. Uma das críticas da poesia., por exemplo, assim como para Mallarmé, ou Joyce (vizinhos de Duchamp?), o interesse na palavra não residia na sua possibilidade de  expressar alguma coisa posta por um sujeito. Para eles, a palavra é a própria coisa, em seu aspecto material: “Tudo isto nãoindica outra coisa senão que: a vontade de construir superou a vontade de expressar, ou de se expressar.”[5] CAMPOS, Haroldo e Augusto de; PIGNATARI, Décio. Teoria da Poesia Concreta: Textos Críticos e Manifestos 1950-1960. Ed. Livraria Duas Cidades, 1975, p. 125.

Tão logo começamos a pôr nossos pensamentos em palavras e frases,

As palavras e frases não são um suporte neutro, onde podemos simplesmente pôr nossos pensamentos, um conteúdo que nelas irá residir em segurança enquanto aguarda alguém que venha lhes resgatar. Elas podem fazer com que o conteúdo que depositamos nelas seja flexionado, distorcido, deformado, remodelado. A palavra age e pulsa, e transforma. Por isso, para Duchamp, neste processo,

tudo sai errado.

Mas que idéia é essa de “errado”? O que sai errado? Talvez, errado possa ser lido como distante, referindo-se à distância do que foi posto em relação à sua suposta origem (no pensamento de um sujeito?), onde estaria o que é “certo”, o original.

Errado, em português, pode ter sido algo que errou. Errar também é movimentar-se por aí, vaguear, e distanciar-se de sua origem. Certamente essas palavras de Duchamp não foram pronunciadas em português. O jogo entre errar (errado) e errar (vaguear) é, neste caso, uma possibilidade de leitura que se gera na tradução para o português, obviamente imprevisto pelo autor. Neste caso, a tradução, ou o distanciamento do original, abre novas possibilidades de leitura (erradas?). Se Duchamp depositou algo nessas palavras e frases, por mais que possa ter sido ambíguo, não poderia prever todas as suas saídas, como a que faço agora no português.

Nesse sentido sair errado também nos dá outra dica de abordagem desta citação. O verbo sair está ligado a um movimento de exteriorização. Toda palavra pressupõe um leitor. É dele a responsabilidade sobre a “saída” do que nas palavras foi depositado, a exteriorização de um possível significado. Mas já não tem a menor possibilidade de que a coisa que foi depositada saia certo, ou, próxima da intenção de quem a colocou. Ela sai multiplicada pelo coeficiente artístico. [6] Marcel Duchamp discute a participação do público no processo de significação das obras de arte apresentando o conceito de coeficiente artístico. O coeficiente artístico, seria “uma relação aritmética entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não-intencionalmente”. Ver DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTCOCK, Gregory (edit.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 73.

É como este texto que você acabou de ler, tudo errado.


entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não-intencionalmente”. Ver DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTCOCK, Gregory (edit.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 73.

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Nem todos que olham o bebê atrás do vidro, nesta

mistura de bebês que os berçários friamente

proporcionam, têm noção de mais este clic! no mundo,

um algo a mais do que simplesmente o pequeno cuspe

da Natureza que os bebês costumam ser.

 

 E quando ele arregala os olhos ainda cinzentos e meio

cegos, mesmo que não enxergue quase nada (e nem

saiba ainda relacionar-se com o pouco que enxerga),

inaugura minimamente mais um olhar que de alguma forma

irá tocar para a frente as curiosidades e

desconfianças humanas sobre o mundo.

 

Prólogo, in OPerformer. Fabio Morais (ed.), 2009

livro-objeto, jato de tinta sobre papel e peça de jogo de xadrez (Rei). Tiragem de 100 exemplares

 

Foi-me encomendado um texto crítico sobre a série de performances realizadas pelo Performer em avenidas das cidades de São Paulo e Paris, em sua casa, palcos romanos, museus e galerias comerciais. Suas transcrições e instruções para que possivelmente as performances possam ser refeitas pelo público são apresentadas em forma de texto apenas – sem imagens – em vinil recortado e adesivado em painéis de instituições de arte contemporânea.

Não há imagens, pois o Performer entende que sempre nos valemos da linguagem para enquadrar qualquer noção de mundo que nos é oferecida (ou conquistada). Àquele dito popular que diz que um quadro vale mais do que mil palavras, o Performer, aplicando o vinil no espaço expositivo, diria: Mentira. O quadro (a fotografia, vídeo, escultura, objetos, fenomenologias, documentação de performances, a fruição da obra, o olhar) é texto, ficção.

Frente a essa condição, ofereci a elaboração de um desenho que interpretasse o trabalho desse artista para que o artigo a ser publicado numa revista que trata de artes visuais tivesse pelo menos uma imagem (a fim de salvar o conteúdo da revista, a arte contemporânea, talvez). Mas a coordenadoria editorial dessa publicação, nas pessoas da Clarissa Diniz e a Ana Luisa Lima, respondeu-me:

Daniela, você não sabe desenhar. Atenha-se ao mundo das letras. Vire-se.

Inquieta, propus uma conversa com o Performer no Café Suplicy, nos Jardins, na tentativa de emular o encontro de Christian Boltanski, Bertrand Lavier e Hans UlrichObrist no Café Select em Paris em 1993, onde eles elaboraram a proposta curatorial in progress de do it.

Só um parêntese. Essa é uma exposição que, segundo o curador, “observa os efeitos de tradução de um trabalho artístico ao circular em várias permutações de linguagem”[1] Hans Ulrich Obrist, “do it: the exhibition between actualization and virtualization, repetition and difference” http://www.e-flux.com/projects/do_it/itinerary/itinerary.html. Acessado em 30 de outubro de 2007., pois lhe interessa, como a Boltanski e a Lavier, a noção de interpretação como princípio artístico.   Hospedada até hoje no site e-flux.com, ela lista instruções individuais elaboradas por inúmeros artistas a serem realizadas pelo leitor-participante em qualquer parte do mundo. Posteriormente, imagens dessas ações podem ser postadas no site, que também conta com a do it TV, onde alguns artistas da exposição passam instruções em vídeo para a realização da ação. Yoko Ono sugere encenarmos um voo, decolando do topo de uma escada; Michelangelo Pistoletto nos instrui a criar uma escultura (uma bola) com os jornais impressos do dia e fazê-la circular empurrando-a pelas ruas de Viena, em seu caso, mas também poderia ser em João Pessoa, por exemplo. Alguns museus da Europa participaram do projeto abrigando as execuções de algumas dessas instruções artísticas. Porém, após o término da duração do programa, o curador demanda que os resultados sejam destruídos a fim de evitar o fetichismo dos objetos. Ou seja, o projeto só existe no mundo imaterial da web, um mundo subscrito por textos html. Fecha parêntese.

O Performer sugeriu pensarmos em outro lugar porque nos bairros da elite paulistana acontecem muitos imprevistos e ele seria incapaz de me mandar um milhão de mensagens de texto via celular para garantirmos o encontro, pois a escrita desses textos é muito tosca e imediatista.

— De fato, o são. A meu ver, elas são efetivas somente no caso de querer-se terminar uma relação amorosa que não abriga mais desejo, nem vulnerabilidade ao outro; quando se percebe que se está figurando como acessório para a composição anestesiada do projeto-de-si-mesmo do seu parceiro. Já que ser vulnerável ao outro significa ativar a capacidade do sensível, uma mensagem com um “Ñ te quero +. Fui. Bjs” é uma das mais bem elaboradas formas de comunicação da insensibilidade automatista e neoliberal que se instaurou nas vidas e mentes do indivíduo da passagem do século XX para o XXI.

— Mas eu sou preto, nega. E acho que hoje em dia, os sete astros estão alinhados em Escorpião como só no dia da Bomba de Hiroshima. Meus deuses são cabeças de bebês sem toca. Esse momento em que vivemos é um momento com muito medo e sem desejo, ou um desejo calculado a ponto de alimentar a sustentabilidade da economia do desejo. A grande diferença do XX pro XXI é que no XX nós éramos imortais, nos sentíamos imortais: morríamos pela revolução, pela utopia, por paixões, por amor; agora, morremos de medo de morrer, o que é uma forma de imortalidade mais contida, mais botox, mais cocaína. Mas por que forjar desprezo pelos vivos? E fomentar desejos reativos? A vida não é oca como a toca de um bebê sem cabeça. Uma das coisas mais cruéis e ao mesmo tempo mais redentoras que já me foi estabelecida foi a de imaginar o Sísifo – do Camus, e não o do mito – feliz.   

PS: minha primeira ideia de oferecer uma imagem à coordenadoria editorial como texto crítico era a de enviar via bluetooth ao computador da revista uma imagem criada com meu celular que ilustrasse o trabalho desse artista literário, porque eu não sei desenhar mesmo. Mas fiquei estranhamente constrangida em fazê-lo, frente à afirmação do Performer de não costumar passar a necessitar daquilo que o capital nos obriga, artificialmente, a necessitar.Ele ainda ressaltou que o encontro do trio no Café Select em Paris é mentira; que isso foi só uma frase de efeito para a introdução do conceito de do it. Por mais que se tente uma “radical experimentação de conceitos que enfatizem a livre interpretação que caminhem à liberdade” [2] Bruce Altshuler, “Art by Instruction and the Pré-History of do it”. http://www.e-flux.com/projects/do_it/notes/essay/e002_text.html. Acessado em 30 de outubro de 2007., o paradigma da produção de arte contemporânea europeia ocidental, sobretudo a da crítica,  ainda insiste em se manter em Montmartre. Concordei, pois parece-me contraditório exigir a destruição do objeto em nome da não fetichização da arte (ou exigir qualquer outra coisa) e caminhar em sentido à liberdade ao mesmo tempo.

— Porém, se se tratar da liberdade de consumo, o VISA e o Mastercard oferecem diferentes formas de exigências, personalizadas para cada tipo de fetiche sobre a noção de liberdade, de acordo com cada tipo de perfil do consumidor.

— Política é o fim. E a crítica que não toque na poesia!

Acabamos nos encontrando numa pizzaria na esquina da Rua Fernando Pessoa e Alberto Caeiro, na periferia de São Paulo. Ele me disse que sua série surgiu depois de ter assistido a todo o acervo de performances do Centre George Pompidou, em Paris, quando lá morou para realização de uma residência artística, em 2005.  Assistiu a tudo e, para sua surpresa, sentiu uma profunda decepção com as imagens dos registros de performances de Marina Abramovich, VitoAcconci, Chris Burden e todos os outros. Para ele, as imagens esmagaram as propostas e amoleceram o impacto que nele causou primeiramente a leitura da descrição dessas performances.

As imagens passam uma noção bizarra e conhecidamente problemática de “verdade”, de que aquilo aconteceu mesmo, daquele jeito. Enquanto que a leitura garante uma realidade verossímil, onde nela pode-se encarar o que há de verdadeiro na ficção. A pretensão de deter uma verdade absoluta é fonte de toda a violência, diz Muniz Sodré. E, talvez, as imagens criadas com dispositivos analógicos, eletrônicos e digitais, mesmo que experimentais, não deixem de ser afirmações de uma verdade qualquer, documentada ou atuada, da mídia ou da arte, não importa.Imagens são instrumentos de construção de camadas enganadoras, fictícias ou ficcionais da realidade?

 — Pergunta difícil essa – um clic!

— Sim. Na verdade, hoje em dia nem existe mais o real, e sim o uso que se faz do real para se criaruma cadeia de microrrealidades individuais, cujos desejos, vontades e pensamentos alimentam o capitalismo cognitivo, ou cultural, informacional, ou ainda neoliberal.

 –Mas eu concordo que a vida é boa. Embora seja apenas a coroa; a cara é o vazio.

 — Hahahaha. Basta de filosofia! Isso tudo é um antiacidente, como uma rima.

 — Você está triste? Teu nego te abandonou?

— Não é bem assim…

Pedimos outra pizza, dessa vez metade portuguesa, metade aliche e mais duas cervejas. Em seguida, o Performer relatou a simples equação de seu projeto: “Ficção +  vontade de subverter as linguagens + humor + puxar o tapete de quem lê + o território de verdade que há na ficção = ?. Esse ‘?’ é realmente um mistério. Acho que minha relação com a arte é e sempre será um pouco de diletantismo e brincadeira. Talvez tenha sido o André Gide que criou o conceito de falésia: textos, romances, poemas que vão levando o leitor e, de repente, largam-no não numa estrada, mas sim numa falésia. Gosto dessa ideia. É quase a mesma de tirar o tapete. É o “?”.

O “?” é o espaço indefinido e impreciso que se abre na ausência da imagem numa exposição de artes visuais, pois “?” não dita regras, não tira nada do lugar para se impor, não decreta a morte do autor, não inaugura um novo gênero nas artes e nem privilegia a ideia conceitual sobre o objeto físico. O “?” talvez seja uma das definições possíveis do artista-etc. do Ricardo Basbaum. Antes de se aproximar da proposta de Olbrist de tradução de um trabalho artístico ao circular em várias permutações de linguagem, há aqui uma negociação comum entre o proponente e o reativador do texto, uma vez que o projeto não necessita da realização da peça instruída para existir. Desse modo, questiona-se a natureza e a função de seu papel como artista e coloca sobre o público o critério de emancipador do projeto artístico.

Contrário à esfera imperativa, mesmo que lúdica, da arte como instrução – baseada na des-autorização do trabalho artístico ou numa redefinição ou desaparecimento do mesmo – o que aparece aqui é a economia invisível da interatividade da leitura, uma vez linear entre livro-leitor, e agora multidirecional entre espaço físico-leitor. Certamente as instruções de Duchamp, Yoko e Fluxus informam o raciocínio do Performer, mas ele tem o sol em Sagitário e a lua em Câncer e jamais diria “faça isso”, ele apenas faria. O público negocia na falésia e não na ideologia. O Performer é texto, o público é leitor e também editor. Como ele mesmo disse, “quem dá as instruções sabe muito bem fazer o que faz, ao contrário de mim. Eu jamais faria uma exposição chamada ‘Como viver junto’ e sim uma chamada ‘Já que eu não sei viver junto’, e com o charme desse ‘não’, sairia para a balada para exercitar a paquera”.

Paguei a conta e despedimo-nos. Peguei dois ônibus e o metrô e durante a viagem li a antologia de todas as performances já realizadas e/ou propostas pelo Performer, organizada por Fabio Morais.Confesso ter ficado um pouco encanada com o papo meio pessimista da apatia neoliberal, do mercado do desejo, da falta de vulnerabilidade ao outro e da crise do sensível na nossa geografia globalizada. Aliás, o pessimismo está super fora de moda hoje em dia, afinal de contas, há de se ver o lado bom das coisas. Ninguém está aí para acertar – como relatou a curadora da última bienal –, vamos logo tirando a pressão da ética do caminho. Os livros de auto-ajuda e os terapeutas dizem que o poder da mente positiva pode garantir a felicidade, tal e qual aquelas felicidades VIPs que vemos nas revistas, nos comerciais de TV e nos jornais que acabam por cunhar o novo gênero milionário e protocolar da “Arte vencedora” [3]  http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20091215/not_imp481956,0.php. Acessada em 18/12/2009, dia em que não se chegou a nenhum acordo sobre o futuro ambiental do planeta em Copenhague.

(O Estado de São Paulo, Caderno 2, 15/12/2009).

Não me interessa mais essa trip judaico-cristã de colonizado com complexo de inferioridade, cuja autoestima e sucesso são medidos pelo reconhecimento de aspirantes a intelectuais e pelos dólares ou euros do Outro – com ‘o’ maiúsculo – pra inglês ver. Fui eu que dei um fora nele, e ele nem sabe. Ai, que preguiça. Eu disse: estou muito ocupada estudando o Macunaíma – por mensagem de celular – e ele acreditou. Há um istmo entre meu deus, com ‘d’ minúsculo, e os Deuses dele.

— Sei.

O efeito inebriante da cerveja ia passando e me lembrei de ter lido no texto da Suely Rolnik (lindo, por sinal, chamado “A Geopolítica da Cafetinagem”, de onde foi tirada a ideia da crise do sensível) uma citação que ela faz da Lygia Clark, dita lá nos anos 70:

“No próprio momento em que digere o objeto, o artista é digerido pela sociedade, que já encontrou para ele um título e uma ocupação burocrática: ele será o engenheiro dos lazeres do futuro, atividade que em nada afeta o equilíbrio das estruturas sociais. A única maneira para o artista de escapar da recuperação é procurar desencadear a criatividade geral sem qualquer limite psicológico ou social. Sua criatividade se expressará no vivido.”

Mas depois relaxei, e imaginei-me expressando as seguintes instruções do Performer: há de se fazer um documentário sem dinheiro, que consiste somente dos créditos com os nomes dos amigos que participaram gratuitamente de sua produção, chamado Solidariedade (Já que eu não sei fazer documentário); há de se ligar caixas acústicas, uma por uma até a sexta, que gradativamente subtraiam o som do entorno, até chegar ao silêncio (Já que não sei fazer música); há de se salvar os objetos comuns de seu estado de ready-madee reinseri-los em seus circuitos familiares, os de mercado (Já que não sei fazer arte contemporânea).Depois disso, inspirada com as expressões criativas vividas, talvez escreva instruções de como escrever um texto crítico para o Performer realizar. Já que não sei escrever texto crítico. “?”

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Monocromia amarela

Assim como a geografia não se constitui apenas pela paisagem ou pelos objetos no espaço, também a arte não se faz somente de objetos-obras de arte. Como lembra Milton Santos, para uma análise mais complexa e generosa de ambos os campos, é preciso “realçar a inseparabilidade entre objeto e ação”, tomando-os em conjunto. É preciso, portanto, analisar as partes no contexto do todo; os vários todos diante das partes. É necessário situar, contextualizar, reconhecer especificidades e agir, simultaneamente, nelas e para além delas. Como afirma Edgar Morin, “a soma das partes é menor do que o todo”; e é cada vez mais válido o esforço de perceber essa “matéria invisível” que perpassa a matéria palpável, configurando um sistema que vai bem além de seus objetos ou partes contidas e aparentes, de modo a fazer a soma das partes não equivaler ao todo.

Como afirma Milton Santos, “no mundo de hoje, é frequentemente impossível ao homem distinguir claramente as obras da natureza e as obras dos homens e indicar onde termina o puramente técnico e começa o puramente social”. A pureza surge, portanto, unicamente como um constructo ideológico, notadamente de origem moderna. A autonomia plena, total, é irrealizável e, dentro de certos modelos ideológicos, pode ser até mesmo considerada como apolítica ou, numa leitura ainda mais contundente, como antiética. Supor que uma pintura, assim como uma praça, ou mesmo uma paisagem, têm existências autônomas absolutas seria fechar os olhos para os vários imbricamentos da vida em suas múltiplas conexões naturais, sociais, espaciais, cognitivas, semânticas – de modo geral, culturais.

Evidenciar os sentidos causais, relacionais e conteudísticos das formas surge, então, conforme argumentou Milton Santos, como plataforma de partida para pensar e agir no mundo. Na arte, tal premissa se enraíza com impactante força. Desde sempre agindo no âmbito da forma, o século XX trouxe à arte, contudo, uma intensa autocrítica sobre essa ação. Quais seriam, na atualidade, as formas possíveis para a arte?

E mais: como pensarmos tais ‘formas possíveis’ sem nos abrigarmos numa fácil permissividade do “tudo” – na parte do confortável “pré-projeto” pós-moderno, que comemora a reunião de todas as possibilidades ao fechar os olhos para os contextos (e possíveis impedimentos) das partes? Como manter em alerta, no discurso do possível, um caráter político – para usar os termos de Milton Santos – não fabulístico? É que, como aponta Milton sobre o discurso da globalização, também grande parte do discurso político da arte contemporânea pode ser considerada como fábula.

E a ação política da arte é, hoje, bastante diversa daquela que foi há 60 ou 50 anos. Se tal prática foi engajamento, depois tornando-se contracultura, ela hoje atua de modo mais micropolítico. Parece-me que grande parte do mundo ocidental percorreu o trajeto de um modelo de pensamento e ação mais filiado à ideia de contracultura para, mais recentemente, atuar de modo diverso – dialógico, relacional, micropolítico. Sendo bem generalizante, arrisco um exemplo: mesmo havendo Cildo Meireles queimado galinhas vivas em 1970 (Totem), num claro enfrentamento político-moral-etc., o artista logo opta por uma tática mais “subversiva” com suas Inserções em Circuitos Ideológicos.Agora, em sua mostra na Tate (entre 2008 e 2009), age de modo muito diverso: nem enfrenta, nem subverte – convida as pessoas a tomarem parte de sua obra (quarta versão de Malhas da Liberdade, inicialmente de 1977), que se torna, para repetir os termos que citei anteriormente, “dialógica, relacional, micropolítica”. Ainda que, obviamente, cada um dos trabalhos mencionados guarde especificidades de interesse e abordagem e ocorra em simultaneidade com outros (diferentes), acho que colocá-los lado a lado faz vislumbrar a enfática transformação percorrida por Cildo, pela arte, pela sociedade, em suas formas de existir e agir. Mudou o espaço: retroativamente, mudam também as estratégias de ação nesse espaço.

E me parece que, diante da diversificação do espaço comunicacional em suas incríveis novas tecnologias, vários artistas têm se aproximado desse espaço para, livrando-se do peso da ideologia da autonomia, pôr em contato, dialogar. Literalmente, dialogar. É cada vez menos presente o desejo de ruptura com o espaço social e mais enfática a necessidade de conversar, compartilhar. Não é à toa que, por exemplo, o Coletivo Mergulho, cujo trabalho está originalmente focado no corpo e sua relação física com o espaço, editou o Documento: A Zona, lançado aqui há dois dias, com “conversas e trocas do coletivo através de imagem, escrita e diálogos virtuais, escolhendo o desafio de tornar a experiência artística compartilhada”. E, numa das partes do documento, em letras maiúsculas e com uma exclamação, está lá estampado “E-U-PRE-CI-SO ME SEN-TI-R CON-EC-TA-DA!”.

O modelo de ação da contracultura não foi, contudo, totalmente substituído por um mais relacional e menos violentamente combativo. Ao que me parece, tais formas de ação têm estado mais ou menos associadas na arte. A ainda intensa valorização do caráter “subversivo” da produção artística me parece sintomática dessa não substituição de um modelo pelo outro. Não são poucos os artistas que trazem, no discurso sobre a obra, a ideia do trabalho como um elemento subversivo do sistema social. Também não são poucos os críticos e curadores que o evitam. Acredito que a contraculturacoabita nossa formação epistemológica. Estamos num momento de passagem, de trânsito. As formas da arte se modificam por meio de cada um de nós – agora, aqui e muito.

Dentro desse desejo de diálogo da arte que se atira, “de peito aberto”, no espaço social, existem desafios e formas de ação bastante diferenciados. Gostaria de trazer à tona alguns exemplos que, acredito, problematizam o lugar da arte diante do espaço social e, especificamente, comunicacional.

O primeiro atualiza certos preceitos da contracultura, cuja roupagem atual enfatiza não seu caráter eminentemente afrontador (como o Totem de Cildo Meireles), mas subversivo. Trata-se da “instalação” Ouvidoria, de Lourival Cuquinha, em parceria com a dupla Hrönir, e que mixa em tempo real, no ambiente expositivo, ligações telefônicas feitas fora dele. O projeto oferece a possibilidade de efetuar ligações gratuitas em troca do direito a desviá-las para o ambiente expositivo, espacializando sonoramente o conteúdo originariamente privativo das conversas.

 O trabalho elabora uma provocação no mesmo sentido daquilo que Hélio Oiticica chamou de convi-conivência[1] OITICICA, Hélio. Brasil Diarreia, in: Arte Brasileira Hoje. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1973., neologismo que evidencia uma superficial e contraproducente convivência social conivente, na qual distinções e trocas são abafadas em nome de uma “pureza abstrata”. A exemplo de Oiticica, os artistas estão conscientes de que “é preciso entender que uma posição crítica implica em inevitáveis ambivalências; estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto às ambivalências, já que valores absolutos tendem a castrar quaisquer dessas liberdades (…). Assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão. Eis a questão” [2] Idem. .

Colocar a questão coletivamente, por meio de uma relação de trocas, pode ser uma estratégia apropriada para pensar criticamente o espaço social e suas dinâmicas conviventes. Ao ofertar ligações telefônicas gratuitas em troca do direito à publicização daquele conteúdo telefônico particular, mais do que promover a “interação” do público, Ouvidoria o transforma em coautor e cúmplice da obra. Não há, contudo, uma versão ingênua da ideia de cumplicidade: aqueles que telefonam, apesar de secorresponsabilizarem pelo caráter aparentemente transgressor do trabalho diante dos tradicionais limites entre o público e o privado, não são os que o pautam em inteireza. Ainda que o público, por meio de suas ligações, sugira timbres, tempos e assuntos para Ouvidoria, são os artistas que, por meio de seu software e, portanto, sob a “proteção” da “aleatoriedade”, rearticulam essas informações de modo a pôr em negociação sua “autonomia” no seio da também suposta “autonomia” do trabalho. O centro de poder da obra é mantido com os artistas, que lançam uma ação no espaço social de modo a colocar todos nós, cidadãos, em xeque. Participar da obra? Ceder minhas informações particulares? Aceitar a troca? E por quê?

Outra forma possível de ação diante de preocupações similares é o trabalho da artista Jens Haaning que, segundo narra Nicolas Bourriaud em seu livro Estética Relacional, “transmite histórias engraçadas em turco, por alto-falante, numa praça de Copenhague (TurkishJokes, 1994), criando instantaneamente uma microcomunidade – a dos imigrantes unidos por um riso coletivo que subverte sua condição de exilados – formada na obra e em relação à obra.” Diferentemente do que ocorre em Ouvidoria, não há a manipulação relativamente autoritária (relativamente, porque autorizada) do diálogo do outro, mas se ativa uma condição comunicacional do sujeito que, naquele espaço social específico, encontra-se abafada por uma situação de imigração. Ainda que se negocie, na intervenção de Haaning, um espaço social – visto que seu trabalho invade continuamente, por meio do som, o espaço público –, seu caráter “subversivo” advém não da afronta combativa a esse espaço e suas configurações (como ocorre mais diretamente nas Inserções em Circuitos Ideológicos de Cildo Meireles, por exemplo), mas de uma estratégia que, em última instância, visa criar um subespaço diferenciado e “desterritorializado” (porque demarcado de outro modo que não pela geografia física).É uma ação que ativa heterogeneidades de forma coletiva e pública, mantendo em aberto uma possibilidade de compartilhamento de experiência inclusive com os não alfabetizados em turco, por meio do riso.

A consciência contextual dessa intervenção é imensa. O trabalho de Haaning não apenas considera as especificidades do local onde ocorre mas, muito mais profundamente, existe apenas por conta dessas especificidades, desprendendo-se do desejo de existir autonomamente e, inclusive, sequer existindo materialmente. Como diz Milton Santos, “quando a sociedade age sobre o espaço, ela não o faz sobre os objetos como realidade física, mas como realidade social, formas-conteúdo.” A arte, quando deliberadamente se constrói sobre os ambientes sociais, busca agir criticamente na forma-conteúdo deles, de modo a ambivalentemente lhes problematizar as configurações, agindo, como provoca Hélio Oiticica, na contramão daconvi-conivência. Conviver não significa ser cúmplice. Existe uma “terceira margem do rio”, da mesma forma como, para Milton Santos, existe a possibilidade de uma outraglobalização,diversa tanto do discurso-fábula, quanto daquela que se revela perversa. Por isso, o discurso da não autonomia da arte tem sido cada vez mais referenciado por artistas diversos, que paulatinamente investigam formas atuais de agir socialmente (politicamente), formas que, herdando as concepções de engajamento e contracultura, atualiza-as por meio do que me parece, como tem sido tão apontado, um ativo “desejo de viver junto”.

Ativo de verdade. Senão ficaremos à espera de uma alegre realidade amarela, como provoca o Grupo GIA em sua ação/vídeo Nobody!, no qual aparecem segurando placas amarelas numa estação de trem europeia, à espera de alguém que, porventura, se identifique com aquele chamado. Como já evidencia o título do vídeo, chegam vários trens, mas ninguém se sente ali representado, esperado, demandado. Os artistas que seguravam a placa ficaram claramente intimidados, constrangidos, naquela terra estrangeira.

As interfaces de contato estão aí, a todo momento sendo criadas e difundidas por instâncias diversas da sociedade – a tecnologia, a mídia, os esportes, a geografia… A boa e velha monocromia quadrada da arte, ao que parece, realmente não funciona mais. Mesmo quando amarela-cor-de-sol-da-Bahia em meio a um ambiente frio e alemão, onde quase todos vestem preto.

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Contradição e ambivalência: Algumas ideias sobre arte e esfera pública no Brasil

Em minha atividade artística procuro manter o esforço em ressaltar a importância da dimensão política da arte. Segundo a crítica americanade arte Chantal Mouffe [1] MOUFFE, Chantal. Practicas artísticas y democracia agonística. Barcelona: MACBA, 2008., a arte é uma atividade política, pois reproduz um sentido comum instituído ou contribui para desconstruções críticas.

Esta dimensão política da arte, em contato com diferentes dinâmicas sociais, é detonadora de processos críticos que podem produzir esferas públicas de discussão. Ao examinar a constituição de tais esferas públicas, é importante considerar as experiências artísticas que, ao longo do século XX, promoveram uma maior comunicação entre a arte e outros contextos sociais, atento ao processo de especialização dos campos simbólicos na modernidade que, segundo Nestor Garcia Canclini [2] Canclini, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2006. , acentuou as distâncias entre o meio artístico e seus públicos. Muitas experiências, que atuaram no sentido de reduzir estas distâncias, foram conduzidas por meio de uma aproximação de práticas artísticas com o espaço urbano. Deste modo, muitos artistas constituíram diferentes formas de atuação, ora reafirmando as maneiras instituídas de pensar a cidade, ora confrontando estas maneiras, que manifestaram implicitamente distintos entendimentos de espaço público e esfera pública – o lugar discursivo, onde indivíduos se engajam para realizar algum debate crítico.

Ao pensar tais questões no contexto brasileiro, não se pode deixar de lado o fato de que a ideia de espaço público é um elemento essencial do projeto de modernidade concebido no continente europeu. A modernidade é algo que se realiza de modo distinto no contexto latino-americano.Consequentemente, muitos de seus elementos, como a ideia de espaço público, também se tornam apenas parâmetros de um modelo que não se aplica em sua plenitude em nosso continente. Daí a questão: como entender espaço público no Brasil? Esta resposta está em constante transformação. Não se trata de tentar descobrir se os tipos de relações que culminaram no conceito de público são ou foram experimentados em algum momento no Brasil da maneira como aquele foi idealizado. Esta tarefa reafirmaria a suposta hierarquização que privilegia a cultura eurocêntrica. Talvez o esforço seja compreender como essas diferenças contribuíram para as nossas produções do conceito de espaço público.

A noção de espaço público, implicada na produção artística do início do século XX no Brasil é, principalmente, entendida como um lugar universal e acessível a todos e que, além disso, representaria uma identidade nacional ou uma cultura brasileira. Naquela época, sob o olhar da sociologia, alguns autores como Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, que contribuíram para a investigação sobre a formação do país e dos aspectos culturais brasileiros, abordaram a contradição como elemento para identificar alguma unidade sobre o que seria brasileiro. É como se todos compartilhassem as mesmas referências, pressupondo um modelo de esfera pública que também procura dar conta de uma totalidade.

Também na primeira metade do século XX, durante o governo autoritário e centralizador de Getúlio Vargas, foram construídos edifícios paradigmáticos da arquitetura moderna no Brasil, como o Ministério da Educação e Saúde (1937-1945), no Rio de Janeiro, no qual trabalharam Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Burle Marx e Portinari. Mas não seria justo dizer que artistas e arquitetos modernos trabalharam em obras oficiais do governo para afirmar o pensamento político autoritário vigente. O que se argumenta sobre a atuação destes é uma condição de troca, pois segundo Mario Pedrosa, poderiam “dispor de um espaço próprio de trabalho, a partir do qual poderiam divulgar o conteúdo revolucionário de que suas obras seriam portadores”[3] Pedrosa, Mário. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981 . Existe uma contradição que não se supera entre o entendimento de democracia contido na nova arquitetura moderna e o desejo de imponência da ditadura, embora os arquitetos continuassem sustentando que as inspirações eram completamente opostas.

Atualmente, se percebe que esta reflexão sobre o entendimento da cultura brasileira da época funcionou como elemento de integração. A contradição é identificada para, de alguma forma, ser conciliada, resolvida. Esta perspectiva visa sintetizar um padrão de cultura que supere as contradições.

Com o início da repressão no regime militar, se torna mais evidente, à sociedade e aos artistas, a necessidade de criação de outros espaços públicos, diferentes de um espaço oficial simbolicamente vinculado ao Estado, que representa uma só ideia de Brasil ou de cultura brasileira. A mídia, a sociedade civil e os espaços comunicativos primários – formas de interação mais simples da vida cotidiana – seriam as principais dinâmicas de construção destes espaços, segundo Sérgio Costa [4] Costa, Sérgio. As cores de Ercília: Esfera pública, democracia, configurações pós-nacionais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.. Como todo este processo não se dá de maneira evolutiva, é preciso compreender que essas distintas formas de entendimento do espaço público se sobrepõem entre si, numa operação de soma.

É preciso entender que uma posição crítica implica inevitáveis ambivalências; estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto às ambivalências, já valores absolutos tendem a castrar quaisquer liberdades; direi mesmo: pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente – envelhecer fatalmente; conduzir-se a uma posição conservadora (conformismos, paternalismos; etc.); o que não significa que não se deva optar com firmeza: a dificuldade de uma opção forte é sempre a de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço por pedaço cada problema. Assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão. Eis a questão. [5] Oiticica, Hélio. Brasil Diarréia, 1970. In: Ferreira, Glória (Org.). Crítica de arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.

Este trecho do texto “Brasil Diarreia” (1970), de Hélio Oiticica, revela uma outra abordagem da cultura brasileira, encarando de maneira distinta as contradições identificadas como um traço característico da sociedade. Esta outra forma de compreensão considera tais contradições como uma condição dada a priori.No entanto, não se empenha em conciliá-las, ou resolvê-las. Ocorre que as incoerências existentes passam a ser esgarçadas e provocam atuações realizadas de maneira ambivalente.

Se por um lado, a ideia de contradição não consegue mais resumir as características culturais do país, por outro, ela não é simplesmente abandonada, continua sendo reconhecida. O que se modifica é a postura diante dela, passando-se a assumir a contradição não somente como problema, mas como condição, levando a agir de maneira ambivalente. Em outras palavras, a ambivalência é necessária a fim de lidar com diferentes esferas públicas, numa constante negociação entre elas. Uma destas esferas é o contexto artístico, por isso tais condições são trazidas para o próprio processo de trabalho.

Ao longo de minha atuação artística, tento construir situações que procuram se inserir na dinâmica da vida cotidiana e em seus processos de constituição, sem enunciar imediatamente ao público que se trata de uma proposição artística. Estas atuações apontam em direção a um entendimento da arte na qual nem a forma da obra, nem seus públicos, são fixos, mas estabelecem uma constante negociação entre si. Compreendo que tais propostas investem na importância dos espaços comunicativos primários, citados antes,enquanto formadores de esferas públicas, simultaneamente aos espaços da mídia ou o Estado.

Embora me concentre na escala e na temporalidade dos espaços comunicativos primários, percebo que considerar as diferentes noções de público é mais adequado que incorrer no risco de assumir um sentido idealizado, entendê-lo como o único e forçar sua instituição. Mais interessante é manter o esforço em compreender diferentes noções, ainda que sejam contraditórias, e assumir uma postura ambivalente, que permita transitar entre elas não para amenizar suas diferenças, mas para abordá-las criticamente e constituir novas esferas públicas.

 

* Este texto apresenta ideias de um dos capítulos de minha dissertação de mestrado, chamada Artista é Público, defendida em novembro de 2009 (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo).

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Vamos sambar no GIA?

Desde março desse ano, passei a “frequentar” a cidade de Salvador semanalmente. Por questões que fogem ao interesse dessas breves considerações, a capital soteropolitana se apresentava a mim como alternativa de contato com engajamentos artísticos providos de discurso e ação legitimada.

Durante os primeiros meses, ainda afoita em meio à turbulência gerada pela opção por uma vida sem localização fixa, percorri as ladeiras da cidade lançando garras por sobre os dados concretos e invisíveis aos quais pude me apreender.

Aos poucos, o olhar estrangeiro se desmembrava dando lugar ao binocular. Além da contemplação, pude focar detalhes que realçavam contrastes e tensões entre a Salvador bela, instigante, exótica, de um lado; e, do outro, medíocre e prostituída.

Representante desse palco de tensões, o famoso Pelourinho ainda era (e é) um mistério desafiador, um misto oracular que ora se esvazia, ora se torna pleno em sua energia carregada de história e esconderijos. Foi lá, na Rua das Laranjeiras, n. 46, que me encontrei com o tão esperado QG do GIA (QG = Quartel General).

O GIA – Grupo de Interferência Ambiental, reunido em 2002 e formado por amigos oriundos da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, tornou-se um dos ícones dentre os diversos coletivos de artistas que se proliferaram no Brasil, desde fins do século XX.

Num contexto geral, enquanto movimento não nominado, mais de 50 coletivos de arte surgiram com uma postura de resistência, direta ou indireta, a um sistema de validação pautada num mercado de marchands, colecionadores e instituições, responsáveis pelo cerceamento da circulação e pela hipervalorização do artista como entidade em destaque na sociedade.

Movidos por uma prática de vida que vai além desse questionamento, grande parte desses coletivos elegeu a rua e o espaço público como meio eficaz de manifestação de seus anseios artísticos, éticos, poéticos e políticos, numa tentativa de também romper as barreiras da acessibilidade à qual a arte enquadrada havia se imposto.

Não me cabendo, por ora, aprofundar aspectos das contradições e paradoxos que permearam a sobrevivência dos coletivos, vale observar como a consolidação [1] Não quero com isso ignorar as diversas manifestações históricas anteriores, tanto de intervenções urbanas, quanto de coletivos, mas estou me focando nesse texto num momento específico da recente produção brasileira. Inclusive diálogos e trocas são sempre bem-vindos: maicyraleao@gmail.com . da intervenção urbana, enquanto linguagem artística assumida inclusive em editais de fomento e circulação, acompanhou o desenvolvimento desse movimento de apelo coletivo, viabilizando inclusive ações de grande escala a partir da participação de uma maior quantidade de agentes.

No entanto, a ação coletiva não necessariamente esteve associada à massa enquanto número participante na rua. Assumir-se enquanto coletivo era enxergar-se como grupo legitimador de seu próprio discurso/ação, permitindo-se uma certa autonomia e segurança de atitude, inclusive pela dissolução de uma autoria focada no indivíduo, cujo status quo é passível de ser medido e comparado. Estar em conjunto [2] Como praticante também solitária, reconheço com tranquilidade a possibilidade de se “estar em conjunto” mesmo a partir de um suporte/estímulo solo. Portanto, “coletivo” para mim é vivido a partir de um estado e não de números. e apresentar-se como tal, no espaço público, envolve então força e vontade de provocar uma energia desestabilizadora [3] Ver: ROLNIK, Suely. Inconsciente Antropofágico – ensaios sobre as subjetividades contemporâneas. São Paulo: Estação Liberdade, 1997. de um cotidiano homogêneo e hiper-sincrônico [4] Ver: STIEGLER, Bernard. Reflexões (não) contemporâneas. Maria Beatriz de Medeiros (trad. e org.) Chapecó: Argos, 2007., em que os contextos individuais se tornaram hiperorientados esteticamente.

Envolvidos nessa estética do cotidiano, termo também utilizado pelo GIA para caracterizar seus trabalhos, artivismoe espetacularidade [5] Ver: DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997  assumem uma nova tensão, reestabelecendo contradições dentro do próprio âmbito da intervenção e do coletivo. Um modismo se estabeleceu na intervenção urbana: qualquer estranhamento visual ou qualquer objeto/ação deslocalizado de seu contexto inicial passaram, a priori, a se conformar com a intervenção como sendo uma “pegadinha” no ritmo acelerado do olhar.

Pergunto-me: até que ponto essa estratégia não perdeu sua potência enquanto microrresistência [6] Ver: BERENSTEIN, Paola Jacques. Corpografias urbanas in: www.vitruvius.com.br/arquitextos/ que se banalizou? Como acontecimento efêmero, como perenizá-lo minimamente no íntimo dos cúmplices que compartilharam a ação? Como mobilizar um questionamento racional ou uma surpreensão [7] Ver: MEDEIROS, Maria Beatriz de. Aisthesis: estética, educação e comunidades. Chapecó: Argos, 2005. e um rebuliço inapreensível pelo discurso verbal? Como conquistar uma brecha no espaço sensorial para além do reconhecimento do estranhamento? Ganha um pirulito quem souber.

Não à toa, o GIA se denomina como um grupo de amigos. Não há garantias de sua persistência sem a afinidade por manter suas relações vivas e atualizadas. Convivem, se encontram e se desencontram com a generosidade de quem ama. Se a música percorre por alguns e grita a presença, assumem todos o samba.

Cheguei ao Pelourinho para o samba do GIA numa quinta, com a ansiedade gerada pela curiosidade e voltei para casa com a tranquilidade de quem caminha cantando.

O QG está situado numa rua que liga um grande estacionamento para carros a áreas mais badaladas daquele ponto turístico. A passagem é certa e a porta está sempre aberta. Àqueles com afinidade, o samba fuleiro logo se faz jogo de alegria, entrando na roda com tamborim na mão ou com um copo de cerveja ofertado por um desconhecido. Não há venda ou comércio lá dentro. Os músicos são rotativos, assim como a “vaquinha” para se comprar a bebida. Como no antigo samba-de-chave baiano, no qual os músicos e bailarinos fingiam procurar uma chave no meio da roda para que fossem substituídos, os agenciamentos vão se formando sem orientação pré-definida.

Para os mais próximos, algumas composições musicais do grupo já conhecidas, como “Cerveja Gia” e “Degrau”, são cantadas como estímulo agregador aos novatos no terreiro ou aos errantes que por ali passam. As poderosas letras das músicas, credibilizadas pela crença compartilhada, que em sua maioria retratam e registram ações de intervenção realizadas pelo GIA, mobilizam os ouvintes, se misturando a clássicos do samba brasileiro, sejam eles nascidos na Bahia ou no Rio de Janeiro.

Nunca havia me ocorrido a música como registro de uma ação. Fiquei intrigada com a capacidade de abrangência pós-evento com que ela se perpetuou em minha lida diária. Acordei cantando e até ensinei um samba: “Quem vive sonhando, pensando, matutando / tentando encontrar um jeito de mudar a situação / Aproveitando esse registro expandido, eu lhe digo, meu amigo, você muda opiniões / Modificando aquilo que está ao seu lado, você muda o mundo todo, acredite em suas ações!”[8] Trecho da Música “Acredite em suas ações”, do Samba GIA. Ver: www.giabahia.blospot.com.

Além de resistência enquanto identidade, local e nacional, o samba repercutia a intervenção urbana contaminada pelo suor da ginga. O ritmo da roda estava agora comprometido com a vivência na cidade, num misto de reflexão e experiência sensorial coletiva, tornando-se “condição para que o outro deixe de ser simplesmente objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência” [9] ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental – Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. Pág. 11 e 12..

***

Há controvérsias sobre a origem do nome samba. Alguns acreditam que tenha surgido com referência direta a alguma das muitas línguas africanas [10] Fonte: Wikipedia, possivelmente do quimbundo, onde sam significa dar, e ba, receber. No Brasil, acredita-se ainda que o termo “samba” tenha sido uma variação de semba (umbigada), dança na qual duas pessoas se chocam, saltando, encostando os umbigos no ar.

Me instiga imaginar a intervenção urbana correndo, ou melhor, se expandindo enquanto relato musicado por entre dois umbigos no ar. Talvez seja uma possibilidade em manter a potência da ação ligada ao poro e a esse contato invisível que nos apreende e nos mantém em suspensão.

Não saberia precisar quando começou exatamente o samba no QG, sei que aguardo o próximo. Vamos sambar no GIA?

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COTIDIANO reflexões atuais e (in)oportunas

Há algum tempo tenho pensado/realizado ações e projetos que colocam em questão uma relação peculiar com a experiência e a percepção da vida cotidiana, com aquilo que nos sucede e nos rodeia no transcurso das vivências e dos gestos mais próximos e comuns. Em consequência, o cotidiano nos remete à prodigiosa diversidade da vida diária e ordinária: os instantes e os acontecimentos, os seres, os lugares e os objetos. Um campo que oferece um amplo espectro de assuntos, sentidos, formas, atos possíveis e reconhecíveis. Neste contexto, podemos pensar no cotidiano como a medida de todas as coisas: do entendimento, ou melhor, do desentendimento das relações sociais, do uso do tempo vivido (banal, trivial, repetitivo). Como disse Henri Lefebvre em Crítica da vida cotidiana, “O mundo humano não está definido simplesmente pelo histórico, pela cultura, pela totalidade ou pela sociedade em seu conjunto, nem por superestruturas ideológicas e políticas. Está definido por um nível intermédio e mediador: a vida cotidiana”. [1] Henri Lefebvre, Fondements d’une sociologie de la quotidienneté, in Critique de la vie quotidienne, II, París, L’Arche, 1961; Foundations for a Sociology of the Everyday, in Critique of Everyday Life, II (John Moore, trad.), Londres / Nueva York, Verso, 2002, p. 45 [Fundamentos de una sociología de la cotidianidad, en Crítica de la vida cotidiana, Barcelona, Anagrama, 1973.]

O cotidiano é um terreno fértil para a reflexão, a percepção e a imaginação dos modos e experiências do real; um terreno repleto de microssaberes que permitem discernir tendências sociais, culturais e políticas. O cotidiano constitui o nível da realidade no qual se enfrentam, dialeticamente, a natureza e a cultura, a história e o presente. Também podemos dizer que constitui o âmbito das transições, das resistências e das fragmentações. Pensar e representar o cotidiano implica, por consequência, abordá-lo como um âmbito diverso e complexo, disponível a todo tipo de potencialidades, fraquezas e oportunidades. Um âmbito de práticas, combinações e (re)invenções que tendem a escapar às lógicas de categorização e cuja compreensão exige uma análise muito particular, porque implica saberes e qualidades encontradas fora dos contextos institucionais e especializados, das pré-qualificações e das classificações uniformizadoras.

A partir de uma investigação na qual o cotidiano nos fez encontrar reflexões atuais e (in)oportunas de artistas que produzem obras convergentes/divergentes em relação a algumas das questões mais decisivas de nossa época, apresentamos este texto como um espaço aberto às sensibilidades, motivações e comportamentos, compondo um breve panorama atual das práticas da imagem. O interesse pela cotidianidade requer adequar-se à convocação de um conjunto de propostas visuais que, por suas qualidades estéticas, perceptivas e especulativas, permitem definir uma cultura particular de representar e analisar o real.

Com o dossiê COTIDIANO, refletimos sobre essas imagens que reproduzem e reconfiguram a vida cotidiana. De fato, nos últimos anos se pode constatar na fotografia, no cine documental, na videoarte, uma proliferação tanto de propostas, quanto de objetos visuais que focalizam e exploram o movimento banal das situações do dia a dia. Em certo sentido, podemos dizer que estamos diante de sintomas de um novo apego por algo genuinamente trivial, reconhecível e verdadeiro.

Num mundo inevitavelmente marcado (e homogeneizado) pelos efeitos da globalização econômica e cultural, assim como por formas avançadas de comunicação espetacular, resulta significativo e revelador assistir à crescente presença de artistas que optam por recorrer a linguagens simples e imediatas para abordar a realidade. É um forte discurso que se baseia na experiência individual, na capacidade do artista de compartilhar situações, vivências e relações concretas. Deste modo, tal discurso pode ser abordado como um canal privilegiado de investigação, ou reinvenção, de alternativas de estar e viver. Trata-se de potencializar aquilo que Maurice Blanchot sugeriu em La parole quotidienne: “Todo indivíduo leva em si um conjunto de reflexões, de intenções, isto é, de reticências, que o aproximam de uma existência oblíqua”. [2] Maurice Blanchot, «La parole quotidienne», La Nouvelle Revue Française, n.º 114, París, 1969; publicado posteriormente em inglês: «The Everyday Speech» (Susan Hanson, trad.), in Yale French Studies, n.º 73, Yale University Press, 1987, p. 12.

O oblíquo é o espaço, o intervalo por onde o indivíduo escapa do lado (auto)controlado da vida.

As poéticas estudadas procuram revisitar as histórias e reconstruí-las para claramente se distanciarem de narrações extraordinárias, heróicas e espetaculares, que se encontram veiculadas de forma persistente pelo discurso televisivo, publicitário e político. Do mesmo modo, prescindem das lógicas da cultura contemporânea, determinadas pela autonomia virtual e pela imaterialidade da tecnologia digital. Daí surge certo ímpeto de despertar uma sensibilidade, em realidade uma afetividade, que se defina a partir das práticas e das ideias do cotidiano, com o objetivo de (re)presentar um mundo acessível e comum, às vezes monótono e trivial, mas apesar de tudo profundamente impregnante. Isso quer dizer que a expressividade e os conhecimentos que emanam do banal não produzem de forma inevitável obras banais. Ao contrário, este retorno ao básico e ao essencial parece surgir do seguinte desafio: o cotidiano constitui o terreno primordial e legítimo à construção de um imaginário extraordinário, necessariamente elaborado a partir do comum. As imagens dirigem nossa atenção a uma subjetividade baseada em gestos simples, comuns e familiares, que refletem impulsos, idiossincrasias e relações de proximidade com o devir cotidiano.

Hoje parece claro que, para muitos artistas, o cotidiano éum terreno suficientemente autêntico e democrático (além de libertador), pois propiciaria uma criatividade espontânea e genuína, sem limitações disciplinares ou institucionais. Neste contexto, o cotidiano se (re)configura a partir da ideia de que a arte pode ser iluminadora. Ela também teria o potencial de revelar formas de vivência e convivência mais livres e simples, porém fortemente significativas. É o cotidiano que proporciona esse nível básico de efervescências e derivações originais, intuitivas, motivo pelo qual constitui um âmbito tão atrativo – tão natural –aos artistas.

A vida cotidiana é um território aberto a todo tipo de incursão, que permite todo tipo de gestos suscetíveis a analisar e reconverter o sentido e o papel das artes visuais. Dentro deste contexto, nossa incursão aqui procura reunir autores e imagens de diferentes gerações, procedências geográficas, tendências estéticas e conceituais. Uma plataforma aberta sobre as imagens do cotidiano, através de um conjunto heterogêneo de práticas que se ramificam por diferentes identidades e formas: as poéticas próximas ao realismo crítico; as reformulações e atualizações das estratégias e estilos documentais; dos modos confessionais às estéticas informais; obras em cine/vídeo, com ênfase no recurso de planos-sequência e a imagens em tempo real.

Artistas voltados ao cotidiano estão implicados na reformulação e (re)invenção de poéticas, cujas obras possam se inserir em um contexto de renovada fé numa arte contemporânea que reflita a realidade e se comprometa com ela. Práticas de imagem que examinem as convenções da história da arte, enquanto abrem espaço e dirigem a atenção à experiência individual, afirmando suas diferenças, singularidades e idiossincrasias.

No cotidiano tudo se expressa e se reinventa, até a própria cotidianidade.

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Usei meu corpo: das vísceras fiz sopa, dos membros fiz pontes [1]

As imagens que aqui irei relatar me ocupam há alguns anos. Em grande parte, elas emergiram na vivência de uma performance que acabou por virar duas, ou até mais, ainda não sei – e será possível saber o que pode vir a ser uma performance para um performer?

Faz tempo que nos falamos, mas chego veloz para te contar que resolvi arriscar um relato de memórias. Temo ter adentrado, com barulho, em partes de mim que dormiam em sono prazeroso, mas não se preocupe, pois se acordei meus monstros, voltarei a brincar com eles. 

Uma década é o período que tanto distancia, quanto aproxima, as propostas das “operações artístico-performáticas”[1] Esta nomeação decorre de, na minha produção em artes plásticas, as performances operarem um input criativo gerador de séries de obras em linguagens diversas (fotografia, desenhos, objetos, pinturas, instalações, vídeos, livros de artista, etc.). de A Coisa em Si – realizada entre os anos de 1997 e 2002 –, e Plus Ultra – iniciada em 2007 sem previsão de finalização –, cujos acontecimentos são, respectivamente, a ingestão de uma sopa (de pedras) e o remar por entre rios (urbanos).

Antes de apresentar, parcialmente, as especificidades (estruturais e imagéticas) das propostas, chamo atenção à tessitura de suas relações, através deste evidente jogo de semelhanças:

  1. O elemento “água” – amorfo, fluido, deslizante e indeterminado – é determinante na constituição dos acontecimentos antes, durante e depois das performances;
  2. O atravessar espaço-temporal potencializa o recriar contínuo de paisagens e inscreve o desejo de viver a incomensurabilidade do mundo: as performances são experiências corpóreas dadas em idas e vindas, em percursos e derivas pelo Brasil;
  3. O corpo-artista adere territórios e os toma enquanto campo de ação: máquina que desdobra acontecimentos em diferenciadas ordens das relações corpo-ambiente;
  4.  Como estratégias de registros das performances, são feitas operações cartográficas conduzidas pelas diferenças dos “locais” do corpo em sua experiência territorial. Em A Coisa em Si prevalecem mapas internos, viscerais; em Plus Ultra, são superficiais, epiteliais. À cartografia se soma o registro em vídeo que juntos, buscam dar conta de levar aos espaços físicos-fixos das artes plásticas as malemolências territoriais vividas. Os registros são também performances – outras – e não somente videoperformances.

Insisto que não se preocupe. Passei muito tempo longe, eu sei, as coisas mudaram de lugar, eu sei, mas agora adquiri a agilidade do deslocar, por exemplo: sentada sobre a flecha, percebo a distância percorrida, mas aqui, onde o fora e o dentro se encontram, o tempo é outro: sinto o líquido quente tomando o corpo e por cima avisto-me numa face lisa e encarnada.

 

 

  1. A Coisa em Si (1997 – 2002)

A ingestão de uma “sopa de pedras” é o acontecimento da performance, que ocorre sempre numa instalação denominada Barco, onde a repetição do gestual de refeição (sentar a uma mesa, servir-se em um prato, usar talheres) se alterna a outros que, por sua vez, relocam diversos objetos no ambiente [2] As ações ocorrem sem sequência pré-determinada e se limitam a: sentar-se à mesa; colocar as mãos sobre a mesa e olhar para os objetos; destampar o caldeirão; levantar da cadeira e ir até “fogão” (TV passando imagem de uma pedra em chamas que, dentro de uma gaiola de pássaros, realiza contínuo movimento pendular; sobre o aparelho de TV, um caldeirão contendo a sopa de pedras.); dispor a tampa do caldeirão sobre a mesa; pôr concha no interior do caldeirão; pegar o prato que está sobre a mesa e encher com sopa; ingerir a sopa; pegar o prato sobre a mesa e despejar o resto de sopa no “filtro”(gaiola de codornas contendo reprodutor de áudio. Em cima dela, um aquário de vidro onde é despejada a sobra da sopa); embrulhar o prato em folhas de papel carbono; embrulhar colher em folhas de papel carbono; pôr prato embrulhado em papel carbono no “filtro”; pegar pedra no interior do caldeirão e colocar sobre a mesa. .

A “sopa de pedras” é a resultante de uma “mistura” de pedras pertencentes ao local onde a performance se realiza e de pedras recolhidas do local da apresentação anterior [3] . O tempo de seu cozimento é por volta de meia hora (antes da apresentação), sendo exposta na instalação no grande caldeirão da sua preparação.

Concebido como um locus ritualístico, Barco lida com a mediação do público, permanecendo como obra em exposição, e com as alterações ocorridas após a apresentação. Obra multimídia, que explora distintamente o potencial hipnótico do audiovisual ao repetir, de maneira contínua, um mesmo conteúdo. O áudio é uma leitura, feita por uma hora, do seguinte texto de minha autoria:

“Levar de um lugar ao outro e depositar uma coisa em um lugar. O lugar onde esta coisa ficará já não é mais o lugar – é a coisa. Metamorfose de espaço em matéria? O lugar deixa de ser puro? As coisas não são puras. O lugar para existir depende do gesto que o aponte, da linha que o delimite, de uma coisa que o preencha? A coisa, por sua vez, necessita do lugar que a receba, que a torne necessária, que a identifique entre tantas outras coisas? Há um espaço a ser preenchido? Há um vasto espaço. E as coisas são ocupações de espaços… E gestos locam-deslocam-relocam coisas no espaço. Neste lugar, esta coisa, neste gesto? Lugar persegue coisa e gesto; coisa persegue gesto e lugar; gesto persegue lugar e coisa… Uns e outros, por vezes, completam-se e anulam-se? Há um registro da transposição de informações: um entreposto – lugar sem perguntas e respostas; ocupado pelo incerto, por manuseios e superações. E a coisa está num lugar que não se preencheu? É possível que reste um lugar… Outra coisa-lugar. É dado um encontro e repito e repito e repito – persigo: um mesmo outro gesto que se transmuda em coisa, que se transmuda em lugar, que se transmuda em encontro. Informo: por simbioses, por desdobramentos. Não faço nada, coisas estão feitas, estão no mundo – é reduplicar-se”.

O girar da leitura transforma o gestual da performance em ritornelo imagético de simples ações, produzindo no público uma incômoda expectativa por algo: estranhamento diante da aparente repetição do mesmo, que fui apreendendo nos diferentes olhares por onde tomava a sopa. Passei a chamar o público de “paisagem móvel” por não saber onde iria atravessar – enigmáticas gargalhadas em Fortaleza, discussões políticas em Belém, espetacularização em São Paulo e outras reações em diferentes lugares. A última sopa fiz para amigos, trancafiada no frio de uma pequena casa no Paraná. Não sabiam ser a última. Todos acharam que eu estava estranha demais, talvez porque tenha pedido para conversarem e esquecerem que eu estava ali, que algo acontecia.

Ainda não é total a recuperação das ranhuras causadas pela última infecção. Mas os músculos estão mais evidentes. Certo dia me surpreendi diante de um gigantesco espelho de rebuscada moldura em jacarandá – haviam veias saltando do meu braço direito. Quase beijei o que via, mas preferi lançar um balde de chumbo contra o reflexo e sentir o que é potência muscular.

  1. Plus Ultra (2007) [4] Entre os anos de 2007 e 2009 Plus Ultra aconteceu no Rio Capibaribe (Recife, 2007); Baía de Vitória (Vitória, ES, 2008 – por ocasião de premiação no VII Salão Bienal do Mar); Baía do Guajá (Belém, PA, 2009 – por ocasião de premiação no Prêmio SIM de Artes Visuais-2008); e, ao longo do primeiro semestre de 2009, como realização do projeto premiado no programa “Bolsa de Incentivo à Produção Artística – FUNARTE- Minc- Artes Visuais: região sudeste, 2008”, em cinco locais/águas, nas cinco regiões do país, sendo estas: Rio Negro (Manaus, AM), Lago Paranoá (Brasília-DF), Rio (Lago) Guaíba (Porto Alegre, RS), Lagoa Rodrigo de Freitas (Rio de Janeiro, RJ), Baía de Todos os Santos (Salvador, SP).

Estar no meio da umidade exige equilíbrio e força – esta é a experiência do rio. Plus Ultra propõem uma experiência geovirtual, conduzida pela minha imagem remando por rios diversos. A ideia é constituir imbricações de paisagens diferenciadas ao longo do fluir constante do remar entre rios, conectando imageticamente territórios fisicamente distantes, justapondo paisagens de outros rios, de outras remadas, à remada mais recente. Fluir de águas, nuvens, vegetações, pessoas, animais, constructos urbanos, enfim, tudo que se passa diante de um barco que passa. Trata-se de operação acumulativa: uma próxima cidade-águas imbrica-se a esta e assim ad infinitum.

Do que realizo remando, uma câmera capta o que desconheço – minha face posterior: cabelo-linha-trança; musculatura das costas em esforço; abrir e fechar de braços, manejando pás de remo. O exercício técnico é repetição do mesmo, imagem cristalizada em silêncio minimal, não fosse esta imagem imbricada ao seu oposto – a paisagem em mutação.

Cinco anos após ter ingerido a última sopa, adentrei em uma estreita caixa para deslizar por águas turvas. Processo de escape da invisibilidade interior, exposta no exterior – corpo revirado, das vísceras aos membros. Levei um susto ao perceber o que havia ocorrido ao longo dos anos exposta aos variados públicos de arte – me contaminei com a dúvida do outro sobre a pertinência da ação e do corpo-artista: o que eu fazia ali, simplesmente tomando uma sopa inexistente?  E fiz este agora: o que faço ali, transfigurada de atleta, riscando rios? Fui sopa e sou ponte – e ao inverso. O cansaço muscular lembra o estômago largo e, por vezes, pesado, após tensas apresentações. Não sei por quanto tempo meu corpo suportará rasgar paisagens e intuo ser este o motivo de estar aqui. Sim, é por essa questão – quanto tempo mais? –, que assumo este breve relato. Exercendo a intenção dos memorandos vim evitar o iminente desaparecimento do que foi e é vivido. Pois aqui, no campo das artes, dessas artes do corpo, o vivido tanto se revela, quanto se esconde, na mágica precariedade que se faz potência no curto espaço-tempo de uma performance.

Pensei que fui tola não ouvindo o mestre alertar da minha fragilidade e que precisava proteger meu corpo. Será necessário, de fato, proteger o corpo? Mas como? Preferi arriscar, ou arrisquei sem dar conta do risco? Pensei haver morrido e que não mais sentiria paisagens entre mim. Até que, na minha cegueira comecei a dançar e perceber que outros dançavam comigo. Nada tão bonito como as paisagens peliculares de corpos no escuro.

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Arte+publicidade = Arte[na]cidade

Falar do corpo contemporâneo é falar de um organismo ou de um sistema de informações. Uma rede de negociações que são traçadas virtualmente no nosso cotidiano. Os corpos rapidamente se conectam e desconectam dos territórios.Através das novas tecnologias — como as câmeras dos celulares, GPS e i-pods — interagimos com o ambiente compondo-o no cenário tecnocidade ideal.

Construímos esse tipo de cidade, com suas tecnologias específicas em que as propagandas ganham corpo e flutuam sobre nossas cabeças, isso quando não se impregnam ou se inserem nos nossos próprios corpos. Somos interpelados por elas a todo o momento. As publicidades estão cada vez mais sedutoras, criativas e convincentes… E, por que não, artísticas?

O que notamos mesmo é que a arte e a propaganda conseguem se unir e criar campanhas publicitárias fantásticas, nas quais a imagem do produto e a sua trajetória no mercado importam mais do que o produto em si. Mas o que se torna “fantástico”, no sentido literário da palavra, é que muitas destas estratégias são conhecidas e se autodenominam, no mercado publicitário, como “marketing de guerrilha”.

 

Guerrilha.s.f. Bando armado de voluntários, que combatem o inimigo fora do campo ou por emboscadas; tropa indisciplinada; quadrilha de ladrões; facção política que não chega a constituir partido disciplinado.

Dicionário Brasileiro Globo, Francisco Fernandes, Celso Pedro Luft e F. Marques Guimarães

 

Esse tipo de estratégia de marketing, que está se desenvolvendo cada vez mais na nossa sociedade tecnocientífica, valoriza muito a “interatividade” e a estética da hiper-realidade, que faz uma ponte entre o mundo encantado da propaganda e a vida cotidiana cinza e banal. E, na maioria das vezes, essas ações são realizadas no espaço público das ruas, em forma de intervenção urbana.

Uma das campanhas mais conhecidas de “guerrilha” é a que convoca um grupo de pessoas e as contrata, em nome de uma empresa, para tatuarem em seus corpos os símbolos de uma marca comercial. De uma maneira engraçada, ou por mera coincidência, ou quem sabe em resposta a esse tipo de ação publicitária, um artista do Rio de Janeiro, Ducha, fez um trabalho no ano de 2002 chamado Tatuagem sobre homem mal remunerado. A obra foi realizada graças a um edital do Itaú Cultural: o artista contratou um homem, que tatuou na própria cabeça a logomarca do Itaú, levando essa ação à galeria de arte do próprio banco, plasmada no corpo do sujeito como seu trabalho de arte.

Atualmente, existem diversas agências publicitárias que se dedicam somente a esse segmento de propaganda e que se diferenciam por criarem tais mídias mirabolantes. Organizam campanhas de marketing com direito a passeatas, amostras grátis de produtos e muita, mais muita “interatividade”. Nesses casos fica difícil identificar o que é entretenimento e o que é propaganda e, nessa mistura “genial”, o produto em si torna-se mero fim. Mas esse fim não parece mais interessante em nossa sociedade do “quero sempre mais”. O desejo hoje é direcionado para os interstícios do novo, ele se projeta no futuro em devir constante de mais desejo, numa espiral do prazer, na qual este nunca é alcançável, logo, não parece finito.

Deixando de lado as possíveis análises sociocomportamentais dos indivíduos envolvidos neste tipo de ações, estamos interessados em discutir aqui a relação entre arte, propaganda e corpo: a arte no âmbito das suas expressões mais críticas ou que possuem uma verve de negação; a propaganda atuante nos corpos contemporâneos e no cotidiano das pessoas em forma de entretenimento.

É interessante notar como a arte, que muitas vezes quer debochar da vida medíocre que levamos, age aqui conjuntamente à propaganda, muitas vezes não conseguindo escapar das armadilhas dessa junção. Obviamente, se pensarmos que uma mesma ação tem seu sentido completamente diferente dependendo dos espaços em que ela for realizada, seja na galeria ou nas ruas, e dentro de um sistema de compartilhamento de signos diferentes, enxergaremos a diferença entre a arte e a propaganda, como também os efeitos midiáticos que cada uma delas repercutirá.

Contudo, a questão aqui colocada é a seguinte: a arte, se deparando com as novas estratégias da propaganda, traz uma ação crítica ou simplesmente faz um retrato estetizado dessa realidade e, portanto, torna-se uma propaganda de si mesma?

 

Publicidade. s.f. Qualidade do que é público; vulgarização; divulgação; propaganda por anúncios, cartazes; reclamo.

Dicionário Brasileiro Globo, Francisco Fernandes, Celso Pedro Luft e F. Marques Guimarães

 

Seria uma perda de tempo discutir se os artistas estão interessados em fazer publicidade de seus próprios trabalhos.Por serem sujeitos públicos, já estão inseridos no sistema midiático da nossa sociedade, e necessitam dele para articular o que eles fazem em algum mercado ou circuito artístico. A discussão deve se concentrar em outro plano: no tipo de trabalho e de sistemas de arte em que o artista se articula e circula.

Esse debate se aplica também às propagandas e é uma discussão ética, não moral, acerca da arte e das suas aplicações sociais. Se a arte fosse uma mera expressão subjetiva, que não contivesse em si qualquer status ou valor, não teria se construído em torno dela um mercado tão lucrativo e repleto de investimentos.

Essa discussão se torna ética, uma vez que invade o espaço público da cidade, tatuando seus tecidos, comprimindo os corpos dos sujeitos e deixando-os quase sem brecha para respirar. E, por último, o que insere essa questão num debate de tipo ético é que a propaganda não só reprime, impõe ou obriga, mas muitas vezes é prazerosa e extremamente aceita pelo público no que se refere a mobilizar desejos e moralidades.

[Outro dia, eu estava andando pela Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, e no meio de diversos trabalhadores que me ofereciam papeizinhos de “compramos ouro” e “ganhe dinheiro fácil”, vi outro sujeito que tinha nas mãos uma bandeja com uma espécie de copinho. Parecia gostoso e saía fumaça. Cheguei perto e perguntei se era de graça, ele me deu um dos copinhos e disse que era icecoffe. Nesse momento, eu agradeci pela campanha de marketing. Ah, claro! Era apenas uma propaganda de uma cafeteria com internet que tinha aberto no Center à frente. A ideia era fazer uma degustação ao ar livre e distribuir uma filipeta junto ao “souvenir”, que valia 10% de desconto em algum produto da loja.]

A resposta da arte vem em forma de performances no espaço público, happenings, arte pública, intervenções e interferências urbanas. Na maioria das vezes são respostas estéticas relacionais, que convidam e apelam às sensorialidades múltiplas dos passantes. Diversos trabalhos artísticos se utilizam desse lugar público a fim de propiciar uma maior circulação da arte e construí-la realmente pública, no sentido de arte como produção cultural disponível para qualquer sujeito.

É difícil escapar da tramoia do mercado [é possível?], sobretudo agora que a criatividade está por aí, em forma de arte-produto disponível a todos, talvez desempenhando um papel que a arte pública queria ter consumado, atingindo mais pessoas e de forma mais “eficaz”. Porém, a grande questão seria a seguinte:

A arte pretendia não só alcançar esse público, como fazê-lo pensar e sentir no corpo aquilo a que ele é exposto todos os dias. Criticar, não apenas comunicar em meio a tanta comunicação. Remover sentidos dos lugares demasiadamente saturados de sentidos, deixar relaxar, distensionar e fascinar sem fins lucrativos.

[Produto à venda! Arte à venda! Des-frute! De-guste!Não pague nada e não leve para casa!]

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Fanzines: produção de mundos na tangente

Em muitas das minhas caminhadas noturnas pelos bares do Recife Antigo, Bairro de São José e Boa Vista, sempre tenho encontrado um poeta na sua peregrinação diária, tentando vender seus livretos de poesia. No movimento que ele realiza de mesa em mesa pela Rua da Moeda ou pelo Burburinho, outras pessoas também estão de mesa em mesa, circulando entre os clientes dos bares oferecendo seus produtos: alguns homens tentam vender amendoins e castanhas, uma senhorinha seus caldinhos e uns meninos oferecem chicletes e pastilhas. Mas o poeta está vendendo e divulgando sua produção poética de modo alternativo e essa é uma questão que me instiga (intriga) toda vez que o vejo. Esse poeta me faz refletir não apenas sobre o papel da poesia e dos poetas na sociedade, mas, sobretudo, sobre uma produção alternativa e uma atitude: “o faça você mesmo”, o desejo de pôr em circulação ideias (produções alternativas), de não se conformar com a falta de espaço para publicação, de se colocar contra a imobilidade e a captura.

Comecei com os atravessamentos de um poeta urbano e anônimo das noites e ruas do Recife, para pensar sobre as possibilidades que podem ser criadas transitando pelo universo alternativo. Desse modo, tomo os fanzines e a atitude que perpassa essas produções como práticas que constituem microrresistências no cotidiano.

Um conjunto de vários fanzines consegue criar um circuito, onde as ideias são livres e variadas, independente do conteúdo ou da forma de cada um.Arquitetura móvel, fluida, geografias traçadas ao gosto do seu fanzineiro, ou seja,do sujeito que produzo fanzine.Assim, essas geografias, compostas por escolhas, apontam seus percursos existenciais e os percalços para produzir um material que expressa o que pensa. Independente das “grandes avenidas”, os fanzines transitam nas “veredas”, criando sua própria cartografia, seus próprios itinerários.

Assim, o que de mais importante os fanzines carregam em sua mochila é a sua liberdade de criação e de expressão, como também a paixão que o amadorismo preserva. Essas publicações resistem contra a imobilidade e o silêncio. Articulam-se de modo a produzir espaços de diálogo por meio de astúcias e artimanhas, deslocando as concepções convencionais de autor, editoração e distribuição do próprio material. O que pode ser percebido através do fanzine Área de Mancha: “Pior ainda, são os artistas brasileiros não possuírem meios de publicarem com dignidade seus quadrinhos, muitos aderindo aos fanzines que resistem contra a invasão norte-americana e japonesa em nossas bancas”.  De modo a complementar essa discussão, o editorial do Balaio de Gato acrescenta: “As edições se sofisticaram e vão desde o off-set até o computador, ou mesmo alguma grande editora, uma vez que o conteúdo e o tráfico de ideias são encarados como mais importantes que o veículo, desde que não haja cortes ou modificações nos textos. Mas muitos poetas ainda preferem uma edição barata e a venda de mão em mão”. Um aspecto muito forte presente nessas citações é a invenção das próprias possibilidades de ação, uma movimentação que provoca os acontecimentos, os encontros, compondo uma rede de relações e de atravessamentos.

Diante dessas questões, penso que temos, nessaspublicações, um exemplo bem diferente dos grandes instrumentos de codificação convencionais, porque esses dessacralizam os espaços de significados formais construindo seus próprios códigos e significados. O contrato que eles estabelecem entre si é o da amizade, da fidelidade e da honestidade contra as instituições. Na lógica dos fanzines, “eu te dou ou troco, e tu fazes o que quiseres com ele”. No seu circuito, o autor não é um escravo da editora, pois ele nem mesmo é um autor, no sentido literal do termo. Além disso, independente da posição por ele ocupada, a produção do seu material se dá de forma autônoma e é repassada ao leitor, na maioria das vezes, sem que haja lucros. Porém, há os casos de muitos poetas e quadrinistas que atuam junto ao universo dos fanzines vendendo seus trabalhos.

Um outro ponto importante diz respeito à autoria e à ideia moderna de obra. Um bom exemplo está no editorial d’O Idealista,que desconstrói qualquer agenciamento da cultura de equivalência, especialmente no que diz respeito àconcepção moderna de obra e autoria: “Ajudemos a propagar o idealismo. Se você gostou deste zine, recomende-o a alguém, divulgue este endereço, empreste ou copie este zine pra quem você quiser. Como sempre, este zine é 100% livre de direitos autorais. Copie, inteiro ou em partes, tudo o que achar útil ou interessante”.

Pensando a composição dos fanzines através das montagens com colagens, desenhos e sobreposição de textos, a sua prática e de quem os produz é uma prática infame, ou seja, uma ação de se colocar onde não é permitido, de roubar informações, imagens e construir um corpo híbrido, uma cartografia clandestina que contenha uma subjetividade singular.

Em alguns casos esses trabalhos tornam-se uma produção compartilhada feita a muitas mãos, com pessoas de vários lugares diferentes participando como colaboradores, enviando imagens e textos. Como exemplo, podemos citar o Tom Zine, que se constitui através de uma grande rede de leitores e colaboradores. Podemos observar o que está sendo dito através do editorial do Tom Zine: “Acreditei que fosse fácil: bastaria juntar um monte de histórias em quadrinhos, alguns autores de talento, umas referências, acrescentar um toque de gente da terra e pronto! Ledo engano. Nossa redação foi abalroada por dezenas de contribuições, tudo da melhor qualidade. Tanta coisa boa, que nem o TZ, que se gaba de ter um número razoável de páginas, seria capaz de enquadrá-las.”

Ziguezagueando pelos corredores da cultura, os fanzines se apresentam como (um elemento) capaz de dar a ver um conjunto de práticas entrelaçadas por existências diversas, práticas essas que transitam nos microespaços. Assim, lá onde os olhares vigilantes procuram os grandes acontecimentos, os fanzines circulam pelo cotidiano das ruas, nos shows de rock, nos encontro de amigos em bares e em rodas de poesia. Lá onde o olhar domesticado não alcança as nuances dos detalhes e se perde na dispersão do múltiplo, estão as práticas deslizantes dos sujeitos que se multiplicam inventando mundos microscópicos. Em consonância com o que está sendo discutido o editorial do Balaio de Gato monta a seguinte paisagem: “Com os poetas marginais, o que vai acontecer é um mergulho no cotidiano, na vida mesmo, com toda sua ferocidade. Na linguagem coloquial. Em algum tipo de antiarte. Na deshierarquização estética. Na eroticidade explícita. Na coragem para expor as tripas da condição humana, nua e crua. Daí que muitos flashes do dia-a-dia, flertes com letras de música, notas de intuições; e a obra, um registro de processo vital”.

Essa passagem do Balaio de Gato é muito esclarecedora, pois expressa bem o que via de regra circula pelos fanzines enquanto assunto e abordagens. Contemplando não só o universo dos que trabalham com poesia, perpassa também o universo das letras de música de boa parte das bandas que se utilizam desses espaços para divulgação dos seus trabalhos, bem como o mundo das HQs. É bem verdade que o cotidiano é a matéria-prima da produção de muitas pessoas do mundo underground e alternativo, principalmente pelo campo das invenções através da linguagem e pela atitude de produzir deslocamentos naquilo que é formal ou instituído. O cotidiano é apropriado, por essas pessoas, para ser ressignificado.

Transando vários elementos heterogêneos, os fanzines apresentam-se como multirreferenciais. São influências tais como o Dadaísmo, com sua proposta de antiarte, a Geração Beat e principalmente Bukowski e sua linguagem coloquial e chula. As produções da década de 70, no Brasil, são outra referência aos fanzineiros, marcadas pela produção em mimeógrafo, pequenos livretos e uma poesia irreverente e irônica, como a escrita de Chacal e Cacaso. Porém, uma das influências mais fortesà constituição existencial dos fanzines é o punk com sua atitude do “faça você mesmo” e a sua estética do grotesco e do absurdo, que desconstrói as formalidades e os padrões editoriais.

Desse modo, os fanzines não ocupam um lugar fixo de fala, de acumulação de ganhos e emanação de discurso através de meios de comunicação convencionais, tais como revistas periódicas e jornais semanais. Na maioria das vezes os fanzineiros, consomem essa imprensa para dela fazer recortes e realizar colagens. Um consumo que deforma e ressignifica, na condição de produzir uma diferença. Além do mais, por não funcionarem a partir de uma noção estável de acumulação de dados, como as publicações convencionais do mercado editorial, os vestígios e “arquivos” gerados a partir dessas publicações são sempre pessoais, pertencendo a alguém que coleciona. Dessa forma, não ficam instituídos os lugares da memória enquanto fixidez, como lugares de visitação pública que podem ser acessados e consultados por todos de uma comunidade.Ou seja, esse material é ausente do circuito dos arquivos públicos. Justamente, porque não pertencem ao universo dos monumentos, das grandes marcas ou das grandes narrativas. No entanto, os fanzines são um lugar de acontecimento e de produção de sentidos, como forma de se colocar no mundo e de interpretá-lo.

 

 

 

Referências:

 

_Área de Mancha. São Luis-MA, sd.

_Balaio de Gato. Recife-PE, nº 12, 1999.

_O Idealista. Belo Horizonte-MG,sd.

_Tom Zine. Frei Gaspar-MG, sd.

 

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O poder de afetação do Don Quijotena experiência de arte urbana

Em São Paulo, no final de 2005, algo que pode ter soado como um detalhe em meio ao turbilhão do fim de ano e ao próprio ritmo acelerado da cidade, me chamaria atenção anos mais tarde. Pois voltada nesse momento de minha graduação em ciências sociais, a pensar questões acerca da arte, deparei-me com a atuação de um grupo sem rosto, preservado pelo anonimato de seus integrantes, autointitulado: Don Quijote. Comecei uma pesquisa para entender em que consistia a atuação desse grupo de nome sugestivo e tive, em suma, o conhecimento de que estes praticaram, durante poucos meses, uma série de adulterações nas sinalizações de trânsito em partes específicas da cidade de São Paulo, espalhando ao longo de ruas e avenidas adesivos com figuras variadas coladas sobre as placas. Mas em quê isso me interessava?

“A mesmice da normalização provoca um olhar saturado de aceitações. Somos obrigados a nos guiar por setas e direções alheias. Tudo muito claro, tudo muito reto, tudo muito certo. Certo como uma placa proibindo de se estacionar escondida atrás de uma árvore e tomar uma multa por isso (…). A automação dos cidadãos normalizados imputa um olhar adestrado e amputa a subjetividade e a surrealidade inerente à nossa complexibilidade”[1] Depoimento extraído do blog do grupo “Don Quijote”: http://permitidopermitir.blogspot.com.

 

A modificação das placas de trânsito fez com que o grupo Don Quijote construísse uma forma de dialogar com o espaço urbano: “A escolha das placas não se deu por motivos anárquicos, com o intuito de aumentar o caos que há no trânsito. A escolha nasceu quando passamos a encarar as placas como uma mídia de alcance direto ao cidadão, altamente disponível e sem intervalos comerciais.”²Através dessa linguagem, suas intervenções apontaram-me a necessidade da discussão sobre a recriação de um imaginário simbólico contemporâneo. Tal intervenção urbana, desdobrando-se enquanto experiência artística, gerou-me uma avalanche de questionamentos sobre a interação dos indivíduos com o ambiente ao seu redor, assim como a participação da sociedade no processo de recriação do espaço público.

O símbolo aqui é um elemento importante na tentativa de pensar tais questões, pois será empregado a partir da ideia de sua utilização como código que traduz e unifica, por convenção, percepções acerca do real. Um tipo de generalização que conceitua diversos elementos em uma única categoria cuja função é a mediação das nossas relações com os outros e com o meio, dando sentido à forma de perceber o mundo e agir sobre ele. Havendo, no caso específico da sinalização de trânsito, a redução da polissemia a partir de convenções estatais e a sistematização da informação simbólica. Dessa forma, as placas de trânsito são consideradas pelo grupo informações que configuram uma forma de “controle do pensamento” e das ações dos indivíduos. Tais intervenções despertam questionamentos sobre “a automação dos cidadãos e as infinitas proibições impostas sem qualquer discussão sobre espaço público”[2] Idem. .

Na alteração das placas percebe-se uma sátira bem-humorada das instituições e estabelecimentos localizados, geralmente, nas redondezas das sinalizações. As figuras são confeccionadas pelo grupo nas cores preto e branco, possuindo um design semelhante aos sinais vistos no trânsito, entretanto o que desperta atenção é a multiplicidade de imagens inesperadas.Depois das noites de ação dos interventores, as ruas e avenidas da capital paulista amanheciam com várias figuras cobrindo principalmente as sinalizações arredondadas: “É uma interferência parecida com o grafite, mas tem outra linguagem. Ao invés de depredação, é uma retomada do espaço público. Aparentemente é predatória; mas não é. Essas imagens grudadas servem para discutir o espaço público.”[3] Depoimento do Professor de Comunicação da PUC-SP, Sílvio Miele, em entrevista ao Diário de São Paulo em dezembro de 2005 na matéria intitulada “Novo Vandalismo?” Impulsiona-se a necessidade de participação dos indivíduos na criação e organização desse espaço. Caso contrário, este tende a sofrer um processo de total regulação seja estatal ou privada, que bloqueia o reconhecimento do espaço público como um local de vivência e criação coletiva. A intervenção do grupo Don Quijote é uma tentativa de ação que se configura na retomada desses espaços pelos indivíduos. O próprio grupo declara: “A cidade é o espaço para nossas ideias e ideais, e sua porosidade legalmente protegida tem de ser estuprada para receber novas visões. É certo que foram estes questionamentos e percepções que motivaram o senhor ‘Don Quijote’ a intervir em placas que possuem setas a apontar, proibir e permitir caminhos um tanto incertos” [4] http://permitidopermitir.blogspot.com . Ou seja, dar-se a criação de novos símbolos e significados que virão a argüir os anteriores e, de uma forma mais geral, o aprisionamento do olhar no condicionamento cotidiano.

O problema da automação dos indivíduos está diretamente ligado à internalização dos sistemas simbólicos, sem que haja o questionamento da legitimidade destes. Portanto, a ação de colagem das novas imagens ressignifica os sinais de trânsito, pois é uma maneira de deixar as pessoas perplexas com o encontro de um símbolo ao qual não estão acostumadas, causando não somente um estranhamento, como indiretamente provocando a reflexão sobre a validade ou legitimidade dos sinais internalizados por ‘imposição social’.

Apenas três exemplos serão satisfatórios à ilustração do caráter interventivo das obras. O primeiro é um adesivo intitulado Um Buda negro na Cruz de Exu posicionado nas sinalizações em frente às igrejas evangélicas e católicas. Com um ótimo e claro trabalho visual gráfico podíamos perceber no adesivo uma fusão de doutrinas religiosas, abrindo uma fértil discussão sobre o sincretismo.A temática retornana placa intitulada pelo grupo: Jesus também meditava rapaz. Já em frente a instituições culturais renomadas da cidade a referência é a alteração denominada pelos interventores: Duchamp: do Museu para as Ruas. O adesivo criado remete a uma das obras mais famosas e polêmicas do sempre citado Marcel Duchamp.Não reverenciado à toa. A influência do dadaísta pode ser percebida na filosofia do Don Quijote, pois para além da placa citada o grupo possui uma inspiração duchampiana que converge na criação de alternativas de expressão que fogem das categorias tradicionais e dos hábitos arraigados de consumir arte e cultura. Inventando novas formas de expressão artística que desperta o olhar de outros espectadores dentro dos antigos.

É nesse sentido que entendo o movimento do qual trata o filósofo Espinosa diante do poder de um corpo de afetar e ser afetado pelos outros corpos, sendo este definido pelos afetos de que é capaz. No caso do grupo, podemos dizer que isso irá se traduzir na pulsão lírica que as obras adesivadas transmitirão aos corpos afetados. Através da potência criativa, o poder de afetação se faz constante, causando desorganizações no código individual pré-estabelecido no sistema, podendo ser traduzido talvez pelo conceito deleuziano de “desterritorialização”. Na recepção de informações não programadas, se dá a reorganização do pensamento do indivíduo, que terá como referência a quebra do pensamento adestrado causando, por vezes, a organização do novo. Ar essignificação do espaço público recria os sistemas simbólicos internalizados por cada um de nós, como diria uma citação do filósofo Gilles Deleuze: “o interior é somente um exterior selecionado; o exterior, um interior projetado”. Partindo dessa perspectiva, o espaço nada mais é que uma projeção de nossos sistemas simbólicos internalizados. A partir do momento que o indivíduo atua de maneira a transformar o externo, ressignificando-o, também transforma e recria a si mesmo: o espaço público precisa ser problematizado e utilizado como lugar de emancipação e diversidade.

Escolhido por claras motivações, o nome do grupo se entrelaça a suas práticas casando a ideia da potência criativa como fonte de afetação dos corpos. Segundo o próprio grupo: “Ele (Dom Quixote) é um lutador da metáfora, um lutador do imaginário, ele é um poeta visual. As palavras dele são pura imagem, ele é um militante lírico”. A arte abre assim uma lacuna para pensar essas questões, como descreve Deleuze: “O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e também é um ato artístico. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de obra de arte, seja sob a forma de uma luta dos homens”.Desse modo, longe de serem esgotados nessas linhas, tais questionamentos se traduzem aqui no esforço de interagir com os desdobramentos das ações do grupo Don Quijote.Não como porto de chegada das ideias, mas sim ponto de partida, um trampolim imaginário que dará sustentação à tentativa de refletir através da arte problemáticas contemporâneas como a recriação e construção do espaço público e dos sistemas simbólicos bem como o condicionamento do conteúdo sociocultural dos indivíduos na mediação das nossas relações com o meio.

 

Referências

DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia da prática. São Paulo: Editora Escuta, 2002.

GUATARRI, Félix (1992). Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992.

http://www.permitidopermitir.blogspot.com/

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Ponderações em torno das intervenções urbanas de Paulo Bruscky

A cidade como objeto artístico e não apenas enquanto mero suporte para intervenções é questão recorrente na obra do artista pernambucano Paulo Bruscky. Artista multimídia, foi precursor das artes Xerox e Postal no Brasil. Com atuação marcante na arte conceitual brasileira, desenvolveu uma vasta e múltipla produção artística, contribuindo significativamente para a definição dos rumos que a arte contemporânea brasileira iria tomar a partir da década de 1960, período em que inicia sua trajetória artística.

As intervenções urbanas elaboradas por Paulo Bruscky têm o cotidiano urbano e as ruas como matéria-prima. Não somente em seu aspecto “físico”, mas também “imaterial”, entendendo que o conceito “rua” também é formado por situações históricas, políticas, sociais e estéticas, elementos a partir dos quais o artista realiza investigações e (re)elaborações.

Buscando compreender as relações entre as errâncias, o jogo e a subversão que o artista pernambucano constitui em suas intervenções urbanas, realizamos uma análise acerca dos trabalhos produzidos na década de 1970 pelo artista, desenvolvidos na capital pernambucana e que apresentam a transgressão, a transitoriedade e o lúdico como conceitos fundamentais. Diante dessas perspectivas, este texto tem como objetivo analisar e descrever as principais estruturas estéticas e conceituais das intervenções urbanas de Paulo Bruscky, refletindo sobre como o espaço público, com suas funções habituais e citadinas, se articula com as questões estéticas provocadas por estes trabalhos.

 As errâncias, o jogo e a subversão, em maior ou menor dimensão, vão se articulando nos processos de construção das proposições de Bruscky, sendo apresentados em soluções inéditas e provocativas, tendo como foco a rua –em suas funções e dimensões possíveis: simbólicas, estéticas, utilitárias, etc. Por se tratarem de ações na cidade, as propostas do artista têm ainda como foco a coletividade, representada pelo espaço público da cidade e pelos sujeitos que ali interagem cotidianamente. Suas proposições, dessa forma, são abertas à experimentação coletiva tanto dos artistas que participam, quanto de quem passa, frequenta mora e/ou usa a cidade no momento da intervenção.

Percebemos, ainda, na base de suas propostas de intervenção urbana a prática da errância, que está presente, ao longo da história das cidades, nas deambulações dos surrealistas e dadaístas, nas derivas dos situacionistas e, mais diretamente, nas propostas artísticas do grupo Fluxus.

Dos situacionistas e surrealistas podemos observar, nas intervenções de Bruscky, errâncias urbanas por lugares banais, como também a criação de situações e ambientes que possibilitam uma fuga e uma (re)significação crítica da apatia cotidiana, dos lugares-comuns e das determinações do uso do espaço urbano.Do Fluxus, temos a concepção da cidade como um campo aberto às investigações artísticas: local onde a arte e a vida se unem numa experiência integral e sinestésica.

As perambulações propostas nas intervenções de Bruscky apropriam o espaço urbano – subvertendo o local ou uma situação cotidiana –,inferindo-lhe outros sentidos, muitas vezes impregnados de uma forte crítica ao sistema vigente da arte e à difícil situação política vivida na década de 70.

Em trabalhos como Recife em Recife, no qual o centro da cidade do Recife é apropriado por Paulo Bruscky e transformado numa imensa galeria, os transeuntes são convidados a visitar uma “exposição” em que vários pontos da cidade são indicados como “obras de arte” a serem contempladas: “a Avenida Guararapes à noite”; “o Rio Capibaribe visto do quinto andar do Edifício Tereza Cristina”; “a madrugada na Avenida Conde da Boa Vista”.

Destaca-se nestas propostas a intensa relação do artista com determinados pontos da cidade: lugares que ele vivencia desde sua infância e com os quais possui forte relação poética e emotiva. Para Bruscky, o rio Capibaribe, as pontes, as praças, os lugares tradicionais e marginalizados do centro do Recife, são matéria-prima de sua arte. Percursos banais e lugares praticamente invisíveis pela rotina urbana diária são (re)significados em proposições lúdicas, interativas e subversivas, constituídas a partir do olhar estético e crítico de Bruscky sobre sua cidade natal.

O elemento jogo, presente em articulação com as errâncias nas intervenções do artista, ganha uma dimensão ampliada, não estando necessariamente vinculado à competição ou submetido a um sistema de regras. Nesse sentido, em suas proposições, o jogo muitas vezes caracteriza-se pela ausência da carga competitiva, onde a tensão decorrente entre o ganhar ou o perder é anulada. Dessa forma, o lúdico do jogar se aproxima, assim como nas errâncias, da definição situacionista de jogo, segundo a qual: […] o elemento de competição deve desaparecer em favor de um conceito mais realmente coletivo de jogo: a criação comum de ambiências lúdicas escolhidas.” (Internacional Situacionista IS nº 1, junho de 1958).

Em Artemcágado (1972), proposta desenvolvida por Paulo Bruscky em parceria com Daniel Santiago, na Praça do Diário, no centro do Recife, a população é convidada a participar de uma exposição/concurso de cágado, através da distribuição de convites e de um anúncio no jornal. O convite indicava o que era necessário à participação: trazer um cágado ornamentado para ser selecionado por uma comissão de artistas. O concurso/exposição inusitada ganha um sentido irônico de jogo, discutindo a temporalidade da cidade contemporânea e propondo uma intervenção no ritmo acelerado para que ela seja vista de outra forma, esteticamente.

No projeto Mala, de 1974/2001, jogo, errância e subversão se articulam como nas demais intervenções analisadas. Os transeuntes são convidados a explorar a cidade a partir da provocação de um objeto banal: uma mala. Nesta proposta, a mala é abandonada ao acaso no “espaço expositivo” (cidade) e o visitante é convidado a transportá-la aleatoriamente. Entram nesse “jogo”, como regras e provocações, a curiosidade provocada pelo objeto, o acaso, o inesperado e a ação do transeunte, que também é apropriado ao processo poético da intervenção.

As intervenções nas pontes utilizam um marco referencial da cidade do Recife: o rio Capibaribe, cuja apropriação, no momento da intervenção, subverte e cria novos sentidos como ocorre em Arteaerobis (1973). A presença do jogo e do lúdico revela mais uma vez o caráter irônico, coletivo e transgressor das intervenções do artista, que propõe uma troca de aviõezinhos de papel entre transeuntes, artistas desconhecidos e amigos, durante a Semana da Aviação. Cria-se um ambiente insólito e provocativo, alterando os circuitos habituais e instigando a curiosidade de quem passa e vê aquela situação incomum.

Todas as proposições citadas e analisadas são transitórias e únicas enquanto experiência partilhada pelo artista, por quem passa nas ruas e por aqueles que participam das propostas. No entanto, Paulo Bruscky cria formas de registro dessas proposições, utilizando e organizando fotografias, filmagens, montagens e arquivos.

Sem a pretensão de chegarmos a uma análise mais aprofundada, apontamos aspectos fundamentais a serem observados nas intervenções urbanas de Bruscky. As abordagens apresentadas neste texto enfatizam, de forma sintética, a multiplicidade de questões que permeiam a concepção artística do artista pernambucano e sua relação com a cidade do Recife. Enfatizamos, sobretudo, a importância da cidade na sua obra, assim como o processo poético que incorpora as dimensões lúdicas, simbólicas e funcionais da geografia urbana. O resultado torna-se fruto da inter-relação do urbano com o jogo, a subversão e as errâncias, elementos que processam e determinam valores, significados e expressões do universo artístico, social e cultural da cidade do Recife.

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“Pixar é art, correr faz parte” ou quando os corres são outros.

“Run, baby, run” (Jim Morrison, Roadhouse Blues)

 

As imbricações entre pichação e grafiti são várias. Aqui no Brasil parece haver uma diferenciação entre ambas as linguagens que se configura como distinção, o que busco esmiuçar a seguir. Em outros lugares, tudo é ação sobre a cidade, com múltiplos tipos, motivações, técnicas e temas. Não há um verbete específico: é graffiti, graf, grafito… Tais ações são principalmente intervenção urbana – seja ela escrita, desenhada, colada, feita com molde…

Quando o escritor anônimo escreve no muro “pixar é art”, insere neste ato, através de seu texto, uma atribuição estética (no sentido lato de estética –“sentir”) que também é própria da arte. E, se “correr faz parte”, isso ocorre devido a uma consequência inerente à pichação: correr, pois a sua ação não é autorizada pelo dono da parede. O “corre”, para o pichador, é a fuga: da polícia, do cachorro, do dono do muro.Atualmente, os “corres” são outros, como reunir documentos de um edital ou ser “artista-produtor” de sua própria exposição… Os corres são muitos e permanecem, talvez, como atividades inerentes não apenas à pichação, mas à realização da arte: não como fuga, mas para enfim realizar. Trata-se mesmo de correr para tudo: esta é uma atividade intrinsecamente relacionada à existência humana na já tão abordada contemporaneidade.

Aqui farei algumas pontuações sobre o “pixar é art”, suas relações com o grafiti e os “corres” referentes à sua inclusão em algumas instituições museais do Recife. O texto se baseia em pesquisa de campo que realizei entre agosto de 2008 e março de 2009. O espaço é curto, então centrarei as observações em algumas das inserções do grafiti em instituições.

 

“Pixar é art”

Não apenas nos muros a afirmação é visível, mas também nas atitudes de quem faz pichação. Para muitos pichadores, conforme pesquisa de campo e o que tenho ouvido conversando com quem a faz, a ação de escrever monocromaticamente com tipografia específica (sua ou de seu grupo) contém os elementos fundamentais da arte: é estética (pois as letras têm este objetivo), é ação sobre a cidade – logo é arte.

Para alguns teóricos do campo da arte, no entanto, permanece a diferenciação: pichação vem da escrita e grafiti vem da arte [1] Ver por exemplo, AGUIAR DE SOUZA, David da Costa. Graffiti, Pichação e Outras Modalidades de Intervenção Urbana: caminhos e destinos da arte de rua brasileira. Rio de Janeiro: Revista Enfoques, vol. 7, no. 1, março, 2008. Disponível em: http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/marco08/05.htm, acesso em 20/08/08. e GITAHY, Celso. O que é graffiti. São Paulo: Brasiliense, 1999.. Ambos são feitos nos muros da cidade. Pichação não é autorizada, muitas vezes tem cunho político. Grafiti geralmente é autorizado e pode também ter conteúdo político. A verdade é que, legalmente, quando não autorizados por escrito pelos proprietários do muro, ou pelos responsáveis pelo patrimônio público, ambos são crime.

Galo de Souza, artista pernambucano em atuação desde a década de 1990, contou-me em entrevista (realizada em 05/12/08) que, já na segunda metade da década de 1980, havia pichações na cidade do Recife. Antes disso, as escritas políticas ou de escárnio permearam não só esta cidade, mas várias outras pelo mundo. Nesta década,a cidade possuía uma demarcação territorial definida a partir das “gangues”. Estas gangues possuíam integrantes variáveis, agregados segundo a lógica da ocupação do espaço – quando eram do mesmo bairro – ou da frequência em bailes funk. As gangues, por sua vez, possuíam siglas que eram assinadas pela cidade, como D.P.S. – “Demônios da Pichação de Setúbal”.

Do período da década de 1980 para cá, a pichação permanece como afirmação territorial e identitária – e/ou como simples “mania” de assinar por onde se passa o próprio nome, mesmo que com “pilot”. Ementrevista com Boony [2] Note-se aí outra imbricação entre graffiti e pichação: os codinomes que são utilizados como forma de identificação perante um grupo – o que tanto é o caso dos grafiteiros como dos pichadores. na abertura de sua exposição – integrante da série de mostrasLado B Arrudeia, realizada em 2008 pelo Museu Murillo La Greca – é possível perceber as imbricações entre grafiti e pichação. Quando perguntei sobre sua trajetória, o artista me respondeu:

“Eu não sabia que eu fazia graffiti, mas eu imaginava que era pichação, ou se eu fazia graffiti. Porque são parecidos, é como se fosse primo de primeiro grau a pichação e o graffiti. Andava com pichadores, mas ao mesmo tempo era excluído, porque gostava de desenhar, minha influência era o desenho e a influência do pichador era fazer letra.” (Boony, entrevista à autora, 12/08/08).

Como se vê,não apenas para os teóricos, mas também na fala dos artistas háuma diferenciação entre pichação e grafiti. Esta diferenciaçãotambém confere uma distinção [3] Cf. BOURDIEU, Pierre A Distinção: Crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp & Porto Alegre: Zouk, 2008. . Na hierarquia de legitimidades que Bourdieu (2003) [4] BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. Trad. Sergio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 2003. Para o autor, há no campo da arte uma hierarquia de legitimidades na qual coabitam instituições com maior ou menor poder de legitimar a produção artística, tais como museus, galerias e crítica de arte. afirma existir no campo da arte, a pichação não tem os sinais distintivos do grafiti. Assim, a pichação não advém da arte legitimada como tal, não é autorizada e não entrou nos ambientes da mais alta consagração da arte, os museus – portanto não possui a distinção que o grafiti tem.

Até aqui temos, como visto na frase que dá título a este texto, que pichador e grafiteiro se consideram artistas: ambos realizam esteticamente intervenções urbanas.Mas a diferença está em quão legitimadas são suas ações para o campo da arte. E tem sido em busca de outros tipos de legitimação que se vê há algum tempo a inserção de pichadores e grafiteiros no campo da arte institucionalizada. Não mais com os marcadores de identidade “pichadores” e “grafiteiros”, mas como artistas.

 

“Correr faz parte”

Na segunda metade de 2002, acontecia o 45º. Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, na Fábrica Tacaruna, com curadoria de Paulo Bruscky. O coletivo Subgraf – formado por Moacir Lago, José Rodrigues, Osman Frazão e Guga Cavalcanti– teve espaço no Panorama das Artes Plásticas Pernambucanas, proposto pela curadoria como representante, na década de 1990, do grafiti pernambucano. O Subgraf, por sua vez, chamou pichadores para participar, preenchendo com escritos toda uma parede da exposição. Galo também expôs neste Salão em telas de compensado, onde realizou suas obras.

Excetuando inserções em instituições de menor porte no campo da arte, ou menos legitimadoras na hierarquia que Bourdieu (ver nota 4) indica, o 45º Salão foi, então, a primeira vez que o grafiti ocupou instituições museais no Recife.De lá para cá, entre um corre e outro, exposições institucionais aconteceram, como em 2007 no Mamam – Estética da Periferia, e em 2008 no já citado Lado B Arrudeia. Na primeira, entre os grafitis no térreo da instituição, estava a frase “eu pixo e você?” – como que para lembrar as imbricações entre pichação e grafiti que abordei acima. Tudo junto, escritas e desenhos, sem qualquer identificação, o que foi uma das críticas que ouvi de públicos do Estética da Periferia. A mediação procurava dar conta dessa falta, inserindo em suas provocações reflexões sobre intervenção urbana. Por outro lado, a exposição trouxe ao Mamam um público diferente, oriundo sobretudo das comunidades pesquisadas pela equipe de criação da exposição – que atuou em parceria com a curadoria.Creio que este foi um de seus méritos.

No caso do Lado B Arrudeia, houve a busca por um diálogo entre os artistas, pois as exposições eram sempre em duplas. Das seis exposições, com a articulação da então gestora da instituição, Beth da Matta, participaram: o grupo paulista SHN (que realizou uma oficina na primeira das exposições do Lado B), a Livrinho de Papel Finíssimo Editora e Diogo Todé, Galo e Moa Lago, Elaine e Derlon Almeida, Arbus e Boony, Caju e Evil. Tais artistas e coletivos estão em diferentes situações de exibição institucional. Enquanto alguns já alcançaram certa projeção, outros – conforme a pesquisa acima abordada – sequer haviam entrado num museu antes, o que certamente foi um dos aspectos positivos das exposições do Lado B. Também houve uma maior proximidade dos artistas com o educativo da instituição, que realizou oficinas com a comunidade do entorno – a Vila Vintém.

Dentre outras inserções do grafiti em instituições no campo da arte pernambucano, no período que se segue ao 45º Salão, destaco as que aconteceram no SPA das Artes. Em consonância com sua proposta de fomentar intervenções artísticas nas ruas recifenses, em diferentes ocasiões o SPA proporcionou a realização de trabalhos de e sobre grafiti. Em 2008,o SPA – com a coordenação geral de Márcio Almeida – realizou as Exposições Descentralizadas, cuja proposta foi realizar mostras em seis diferentes regiões do Recife, descentralizando o SPA.

Dentre outros artistas e linguagens, participantes das Descentralizadas, ressalto aqueles que se utilizaram da linguagem do grafiti: Evil, Elaine, Anêmico, Zone e Caju (sob a articulação de Galo, no Nascedouro de Peixinhos); Boony (com a articulação do líder comunitário e ator Edson Fly, no Centro Social Urbano da Ilha de Deus, na Imbiribeira) e Pretto (no Sítio da Trindade, com articulação do músico Neilton).Com as Descentralizadas, houve grande repercussão das exposições nas comunidades que as receberam, o que pôde ser visto na frequência do público – majoritariamente moradores do entorno dos locais das exposições – e que nunca haviam estado em uma exposição.Além disso foi possível,a partir da proposta de expor em um local fechado (ainda que não fosse propriamente um museu), que os grafiteiros experimentassem outros suportes, criando objetos – como eletrodomésticos, quadros e roupas.

Para finalizar, gostaria de tratar de outra recente inserção do grafiti, desta vez no 47ºSalão de Artes Plásticas de Pernambuco. Na primeira exposição de artistas convidados deste salão, realizada no Museu do Estado com curadoria de Adriana Dória Matos, o grafiti parece ter consolidado um lugar protagonista no campo da arte local. Derlon e Gilvan Samico dispunham cada um de uma sala, com projeto de montagem que identificava as obras e as fotografias – caso de Derlon, que além de uma intervenção no local, também expôs registros de alguns de seus grafitis na cidade. O público pôde conferir o diálogo entre dois artistas de diferentes orientações, provocado tanto pela curadoria, como pela própria montagem da mostra.

No entanto, este protagonismo pode ser questionado a partir do edital do salão. Ao contemplar esta linguagem, separou-a das artes visuais, colocando-a na categoria “Prêmio para Projetos de Grafitagem”. É necessário refletir sobre esta especificidade. Se havia um prêmio para “Projetos de Pesquisa e Produção em Artes Visuais” e outro para “Projetos para Residências Artísticas no Estado de Pernambuco”, então o grafiti não é arte visual? Ou a intenção do edital era contemplar especificidades dos “artistas grafiteiros”, que muitas vezes não dispõem de meios (técnicos e financeiros) para realizar as exigências dos editais? (E se a intenção era esta, exigências como projeto com justificativa, objetivo, documentação de autorização do uso dos espaços urbanos, entre outros itens, foram solicitados tanto para os artistas que se utilizam do grafiti como para os “artistas visuais”).

Além destes questionamentos, que requerem maior debate entre os gestores do 47ºSalão e os artistas, ressalto o aspecto positivo desta inserção: fazer circular entre curadores e pesquisadores convidados para a seleção os projetos realizados pelos grafiteiros, abrindo caminho para que seus trabalhos sejam mais conhecidos. Outro aspecto refere-se à profissionalização desta linguagem, por meio do apoio institucional às intervenções urbanas. Mas o fato é que com o 47º Salão (ainda que com estes percalços do edital – o que não impediu o envio de vários projetos) o grafiti parece ter conseguido se consolidar no campo institucionalizado da arte pernambucana.

Paralelamente a este percurso de inserções institucionais, muitos artistas que se utilizam da linguagem do grafiti têm se articulado em coletivos, trazendo desta maneira uma permanente circulação, nas ruas, deste tipo de produção. Um desses coletivos, ligado não só ao grafiti, mas também à música e à dança – sobretudo advindas do universo hip-hop [5] Surgido em meados da década de 1960 como afirmação política de populações marginalizadas – notadamente os negros – frente aos poderes públicos nos Estados Unidos, o hip-hop conjuga quatro elementos: o graffiti, o DJ (disc-jockey), o MC (master of cerimony) e a break dance.  – é a Rede da Resistência Solidária. Segundo Galo, “a Rede da Resistência Solidária é uma rede afetiva e solidária, um espaço para o diálogo provocativo e surgimento de práticas positivas nas comunidades. […] Propomos novas relações de trabalho, mais solidárias; novas relações sociais, mais igualitárias; e novas relações entre os indivíduos, mais humanas.”

A Rede, dentre outras ações, promove mensalmente o Mutirão de Grafiti. Este mutirão, que reúne grafiteiros oriundos de diversas comunidades do Recife e adjacências, já aconteceu, desde sua criação, em meados de 2006, em mais de sessenta localidades. Note-se que, independentemente de sua exibição institucional, o grafiti tem circulado nas ruas e tem sido visto por públicos aos quais o acesso às instituições museais de diversos tipos ainda não acontece. Certamente, esta circulação em ambientes não institucionalizados da arte, como é o caso do Mutirão, proporciona uma visibilidade permanente ao público – diferente de outras linguagens artísticas, o que agrega significados que podem ser apropriados pelas instituições que fomentam as novas linguagens voltadas à intervenção urbana.

Como se vê, a escolha das instituições museais por uma identidade mais relacionada à sociedade e suas diferenças parece se configurar nas ações recentes onde elas incluem o grafiti. Enquanto a escrita urbana confere ao grafiteiro o contato imediato com o público, o museu faz com que este contato seja mediado por uma instituição – constituída enquanto instância legitimadora no campo da arte. Portanto, se por um lado, o grafiteiro almeja um lugar nestas instâncias para legitimar sua produção como arte visual, por outro, também as instituições procuram incluir o grafiti como forma de agregar públicos às suas ações. É necessário “correr”, portanto, com o objetivo de tornar o campo da arte menos mercantilizado, porém cada vez mais contextualizado, fazendo com que os agentes que operam neste campo o conheçam e o problematizem, ampliando os significados que o grafiti já tem no contexto urbano e agregando outras significações, com sua inserção em contextos museais.

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Monumetria: pequeno relato de uma medição pública

Em retrospecto, posso entender que Monumetriapudesse ser visto como um projeto pretensioso. Não porque buscasse resultar em obra grandiosa, mas por tratar de tema tão em voga hoje, a especificidade, de um ponto de vista problematizador.

Como ponto de partida, se apropriava de um fato peculiar:a desmontagem do Monumento a Ramos de Azevedo e sua retirada da Avenida Tiradentes em 1968, assim como sua remontagem na Cidade Universitária em 1974,(incluso o período em que esteve desmontado no Parque da Luz).Tal deslocamento revelava a tensão entre os significados que o monumento carregava para a elite que o havia patrocinado e as necessidades de reestruturação urbana que levaram à sua remoção. De seu deslocamento inicial e seus consequentes desdobramentosse colocava a questão: o que e o quanto pode este processo de transferência revelar sobre a condição de adaptabilidade requerida à produção artística contemporânea, que se encontra fortemente orientada para a especificidade?

Tendo essa questão como guia, Monumetria se estruturava a partir de algumas intervenções volta das diretamente à estrutura arquitetônica e museológica da Pinacoteca do Estado de São Paulo (projeto arquitetônico de Ramos de Azevedo, em relação próxima, em termos urbanísticos, com o monumento em questão, erguido em frente ao prédio, em 1932).Pretendia apropriar-se de procedimentos curatoriais e museológicos, a ponto de confundir o espectador sobre a origem de seus resultados. Por isso dependia de um intercâmbio intenso entre a curadoria e a atividade dos artistas. Além da curadoria, propunha desenvolver parcerias com quase todas as frentes de trabalho da Pinacoteca:o setor educativo, o de restauro, o centro de arquivo, na intenção de que estes setores chegassem a contribuir diretamente com o processo de criação, tanto quanto a curadoria e os artistas.Previa ainda uma publicação que se descolava do padrão das editadas pela Pinacoteca. Realizada paralelamente à exposição, ela pretende user não um catálogo para registro das ações ou intervenções, mas um desdobramento gráfico destas, em diálogo com um estudo histórico relacionado a seu contexto.Tudo isso sem contar com um único patrocínio externo ao orçamento da Pinacoteca.

Bem ou mal, acabamos por realizar boa parte de nossas pretensões. Éramos (e ainda somos, de vez em quando) um grupo de três artistas, o Delenguamano. O nome, que não soava estranho só a mim, mas também a todos os nossos colaboradores, significa “De língua à mão”num espanhol comprimido, invenção de meus colegas colombianosNéstor Gutiérrez e Santiago Reyes.Um ano após a primeira conversa com Ivo Mesquita, que acolheu o projeto – vão aqui, mais uma vez, nossos agradecimentos pela coragem e paciência –, lá estávamos abrindo a exposição em março de 2009.

Mas qual a razão deste pequeno relato agora? Talvez a menção do caso contribua para uma discussão que reaparece, aqui e ali, a respeito das fronteiras entre o trabalho ou atuação nas artes visuais, o trabalho “artístico”, e a atuação curatorial. Melhor dizendo, sobre a apropriação da prática curatorial como possibilidade de criação artística.

Nossa proposta era criar um campo de ação no qual as práticas curatoriais mais reconhecíveis pelo público da Pinacoteca, a estética e os procedimentos de organização museológica seguissem como possibilidades para nossas intervenções.

Já não é raro que artistas realizem curadorias, nem que se admita que a função de curador esteja fundada em um exercício criativo. No entanto, havia um movimento adicional importante em relação ao projeto.Monumetriase propunha a interagir simultaneamente com dois campos de atuação: o da arte contemporânea, enquanto espaço pré-delimitado para intervenções que se querem críticas em relação à instituição, e a museologia, enquanto campo dos procedimentos relativos ao arquivo, exposição e registro.

Claro, este tipo de operação também já não representa novidade. Muito do que se faz na “categoria intervenção” passa por apropriações de procedimentos ou características que remetem ao ambiente do museu, muitas vezes na tentativa de subvertê-las. Um tipo de “engana-olho” que seduz o espectador com a possibilidade de revelar-se ali a estrutura ideológica da instituição, que neste jogo aparece involuntariamente como representante particular do conceito de poder.

Contudo, embora estes dois campos pareçam ter trocado questionamentos e modos de operar entre si, ficava a impressão de que também cuidaram de preservar seus limites de atuação em grande parte das situações, a fim de manter seu status no funcionamento cultural: a museologia resguarda sua posição técnica para que prevaleça a influência que exerce na estrutura do museu, ao passo que a produção artística contemporânea muitas vezes se contenta em exercer pontualmente a função de elaborar ironias que nem sempre revelam as contradições das estruturas nas quais intervêm. Deste intercâmbio tenso entre saberes vinha nosso interesse: melhor usá-lo enquanto potencial enriquecimento das possibilidades de intervenção, do que simplesmente acusar seu aspecto cínico.

Era preciso, portanto, intervir em meio àquilo que geralmente é considerado secundário ou cenográfico. Entender os meandros da instituição como um lugar em si. Entender todos os elementos do patrimônio e instâncias envolvidas no projeto (monumento, documento, museu, projeto arquitetônico, obra de arte) em uma concepção própria de espaço público. Propor, enquanto espaço de encontro entre múltiplas noções do público, a discussão fundamentada no choque de fluxos provenientes de âmbitos e níveis heterogêneos, colocando os atores deste espaço no centro do conflito, como seus ativadores. Intervir, desde que se pudesse manter a tensão própria das relações que edificam o espaço institucional. Desde que, de alguma forma, se revelassem contradições entre estes campos, por meio de sua contraposição.

Era preciso, portanto, errar o alvo comum às práticas de intervenção. Errar o lugar e o público-alvo prévio das exposições de arte contemporânea em São Paulo.Desta percepção resultou a opção de evitar o espaço que geralmente acolhe as exposições de arte contemporânea na Pinacoteca, ou seja, o programa de exposições do Octógono, e em seu lugar, focalizar os espaços do museu que pudessem representar uma relação mais cristalizada entre arte e memória, e que por isso oferecessem maior possibilidade de deslocamento.

Disso também resultou uma acolhida ambígua da exposição pelo meio. Sem os signos habituais utilizados pelas intervenções de arte contemporânea, nem a reafirmação dos códigos museológicos típicos das exposições chamadas “históricas”, a abstração que geralmente recebe a denominação de “público” teve de rearticular-se em novos grupos para lidar com o que via, em reações das mais diversas. As muitas que presenciei formam um conjunto de possibilidades imprevistas que ainda agora tento digerir. Mas justamente a visão do imprevisto constituiu a riqueza da experiência.

Enfim, pretensões são quase sempre ridículas. Mas há aquelas que valem apenas por manterem aberta a possibilidade de pretendermos algo que não nos seja oferecido como já pronto, ou como disponível ao bom andamento institucional e mercadológico. Num circuito onde boa parte dos produtos é pensada para lugares específicos, quase sempre na tentativa de atender às suas demandas, a possibilidade de errar acabou associada à não entrega do produto esperado.E se tivermos a pretensão de produzir algum tipo de deslocamento ou estranhamento na relação com a produção artística, me parece correto que mantenhamos aberto o caminho para o erro.

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Não julgue o público. Você também é.

Tive um professor na universidade que, bem no comecinho de minhas andanças acadêmicas, falou um negócio que nunca mais me saiu da cabeça. Ele disse que existe no meio teatral uma certa premissa para perceber se uma peça vai bem ou mal: a quantidade de rangidos nas cadeiras durante o espetáculo. Parece besta, mas depois disso nunca mais deixei de prestar atenção naquilo que quase ninguém percebe depois que as cortinas se abrem: o público. A não ser que a plateia seja barulhenta ou alguém bata os pés na sua poltrona, é difícil achar quem se interesse por essa história de virar o pescoço pro lado só para espiar, na escuridão, o que fala o corpo vizinho. A não ser que a peça também seja chata – aí vem a tal coreografia dos assentos…

Seja como for, o fato é que eu peguei essa mania. Em espetáculos de teatro, de dança, em exposições… E foi com esse mesmo professor (Luís Reis, um dos maiores curiosos e conhecedores do fazer cênico do qual tenho notícia) que aprendi a ver o espectador de uma obra de arte sempre como um sintoma. Uma pista riquíssima de como uma obra opera seu diálogo quando sai da imersão individual e alcança um sentido – concedido pelos seus pares. Não existe arte sem sociedade. Seja a partir da legitimação de um grupo de pessoas especializadas em reconhecê-la como tal – dentro do chamado art world de Howard Becker, ou campo artístico de Pierre Bourdieu; seja a partir do ângulo de reconhecimento dos “reles mortais”. E é até pecado dizer que não existe arte sem público, de tão óbvia que é a coisa. Mas quem de fato se dedica a prestar atenção em como se comporta o espectador, em se perguntar quem é ele, no lugar de contar números de ingressos vendidos ou de assinaturas no livro de visitas? Quem ainda se arrisca a olhar o público sem um tantinho de pré-julgamento?

Plateia é isso que todos nós somos quando saímos do salto e nos misturamos à multidão. Na arte, ela é talvez a ponta principal, mas quase sempre é lembrada para reforçar um discurso dominante (a partir da “ignorância” alheia) ou medir o “sucesso” de algum trabalho, enquanto a crítica vai na direção contrária. No caso da arte contemporânea, o público virou uma espécie de bomba-relógio, cuja regulagem do ponteiro fica na mão dos arte-educadores. São eles que, diferente dos curadores e diretores das instituições, lidam corpo a corpo com cada uma das presenças e reações. Quase sempre na tarefa de tentar “adestrá-las”, persuadi-las de uma verdade. É praticamente deles a missão de, em nome de um discurso curatorial onipotente, atrair o público à mostra e prepará-lo para enfrentar os trabalhos. Ou ainda evitar que, quando finalmente alguém chegue até eles, rompendo a fronteira entre a porta de entrada e a rua, solte (de novo!) mais uma daquelas frases que já ouvimos – ou já dissemos…

“Afe Maria, até meu filho faz igual”… “Então aprenda com ele”, uma vez aconselhou como resposta a escritora Márcia Tiburi. “É isso que chamam de arte?”, “Isso é arte?”… Quem frequenta exposições do tipo já deve ter ouvido alguma coisa parecida. E virou até lugar comum no meio artístico esperar do público não especializado essas reações de estranhamento, quando instalações, vídeos, performances e outras experiências visuais entram em cena e adquirem seu status social. É quase um cinismo declarado. Tudo leva a crer que há mais rangedeira nas “poltronas” desse teatro do que imaginamos.

Em 2006, a publicação do livro e do vídeo Quem tem medo da arte contemporânea?, a partir de aulas ministradas pelo crítico Fernando Cocchiarale na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, só veio reforçar essa premissa. “…A incompreensão parece crescente”, sentenciou Cocchiarale, que acabou virando referência quando o tema é a relação entre público e arte contemporânea. Este ano foi a vez de o Itaú Cultural, através da revista Continuum [1] Edição 19. Capa O que é isto? O estranho na arte e na vida, botar mais caldo no assunto, numa edição quase inteiramente voltada a debater a questão. E lá está o livrinho de Cocchiarale sendo citado, fora uma boa parcela de depoimentos de peso, aliás, bem menos preocupados em entender o público a partir dele mesmo (não do que supomos que seja), e mais empenhados em fazer uma defesa da arte contemporânea.

Geralmente é assim que acontece: todo mundo quer admitir que há um ruído, mas o “problema” não é dos artistas, das instituições ou dos curadores. É do público que ainda não captou qual é a da arte contemporânea. E lá se vão explicações sobre o que rege a lógica desse “novo” fazer artístico, acompanhadas de uma série de investimentos nos setores educativos dos museus. “Hoje em dia a formação de público tornou-se uma preocupação essencial. O público passou a ser visto como algo a ser permanentemente formado”, comenta Cocchiarale no mesmoQuem tem medo… É louvável e coerente que iniciativas às quais se refere existam – cada vez mais. O papel institucional passa por aí e amadurece nesse sentido. É a sua função no campo.

No entanto, há algo para refletirmos nos discursos de formação. São extremamente didáticos e relevantes como pistas ao entendimento de uma outra lógica da arte? Sim, pois há de se reconhecer que a dita produção de artes visuais contemporânea opera “convenções” (ou “contratos de leitura”) diferentes daquelas utilizadas entre o Renascimento e o Modernismo, por exemplo. Mas, de outra ponta, os mesmos discursos reforçam uma certa prepotência inconveniente, na qual os especialistas insistem ao se colocarem na posição de donos de uma “verdade” – às vezes tão carregada de preconceitos como as opiniões que o público, bem genericamente falando, tece a respeito das obras.

A socióloga Vera Zolberg diz que “os profissionais da arte em geral dão pouco crédito à capacidade do público leigo em fazer um juízo de valor artístico”. Na realidade, dão pouco crédito ao público. Então, se consideramos que o espectador não tem o olhar do esteta, também temos que considerar que os ditos profissionais da arte não parecem respeitar (ou reconhecer como legítima) a formação do público – que, convenhamos, nós ocidentais tivemos –, a respeito do que seja arte. Em vez de entender o que está por trás de seus julgamentos, acabam por julgá-los. Nas entrelinhas, parece haver nos projetos de formação uma necessidade de “catequese” tremenda. De baixo pra cima, de uma hora pra outra.

Não há nada de errado em processos de socialização. Não há nada de mal em querer unir esforços com o setor educativo. Aliás, essas questões nem passam por um juízo de valor. Mas até que ponto essas estratégias de formação não são desiguais? Até onde vamos achar que a arte contemporânea pode muito (e às vezes, tudo) porque simplesmente está mais próxima do nosso cotidiano, ou dialoga com o “espírito” de nosso tempo? A arte contemporânea pode até nos fornecer novas percepções da realidade, mas vai dizer para todo mundo que é o mesmo vaso sanitário do armazém de construção que vai fazer você perceber isso…

Sem folclorices, é preciso lembrar: faltam pesquisas sobre consumo cultural na América Latina, como já ressaltou o argentino Nestor García Canclini. No Brasil, pouquíssimas instituições de arte investem em pesquisa com o público. Mal conhecem quem as visita para além da cidade de origem ou do e-mail no livro de assinaturas. Quando vamos olhar um pouquinho a poltrona do lado? Quando vamos entender que o público precisa ser observado e não apenas “preparado” para interagir com as obras? Antes de colocarmos todo mundo num mesmo saco de gato, poderíamos olhar um pouco em direção à plateia no sentido de, com alguma generosidade, tentar compreender os séculos de formação que conduzem as suas chaves de leitura da arte. Entender não necessariamente para converter, ou cooptar. Entender para se colocar no lugar, em vez de julgar. Um setor educativo não precisa ter a onipotência do convencimento goela abaixo. Nem a curadoria.

Mapear e problematizar o público (ou os públicos) e sua formação; descobrir quais variáveis operam as diferenciações de gosto e julgamento. Tudo isso já seria um bom começo. Somos um país no qual, segundo pesquisa recente do IBGE, mais de 90% da população nunca entrou em um museu. Somos um país onde a televisão formou muita gente. Somos um país em que o parco ensino de arte praticamente só passou por cânones, reforçando o discurso do belo e do deleite visual extremamente tributário da matriz cultural do romantismo. Numa bem visão panorâmica, esta mesma que está na base do hedonismo e, para Collin Campbell, do fenômeno do consumismo moderno. A mesma que faz a gente sentir o amor como um sentimento natural.

Não há mal nisso. Mas o nosso olhar não vê tudo. Só enxerga o que aprendemos. E muito nos foi ensinado sobre o gostar, antes mesmo de nascermos. O gosto por uma forma de arte que tem “essência”, é sublime e acima de tudo, por exemplo. O discurso da estética pura correndo nas veias. Todos nós, especialistas ou não, temos, em graus diferentes, esses legados culturais de longas datas. São os nossos valores, que se expressam na dita subjetividade. Para a filósofa francesa Anne Cauquelin, a herança de uma visão essencialista, promovida “pelas teorias do século XVIII (Kant, Hegel e o romantismo)” – e por sua vez reforçada na autonomização do campo artístico – “está solidamente enraizada e forma uma tela, uma máscara através da qual tentamos apreender em vão a contemporaneidade”.

Pode ser que ela tenha razão. Mas antes de chegarmos a uma resposta apressada, poderíamos entender que essa é uma suposição. Assim como é uma suposição acharmos que a maioria das pessoas tem medo da arte contemporânea. Se procurarmos sair um pouco mais dessas especulações, que de certa forma são utilizadas na legitimação dos profissionais da arte, em sua paradoxal vontade de distanciamento (olha aí nossa herança vindo à tona), poderemos talvez sair do terreno frágil do senso comum e avançar em conclusões mais consistentes e interessantes sobre nós mesmos.

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SITUAÇÃO _ Glossário

Nota: As definições abaixo, ainda que provisórias, têm sido motivadas desde o interior do projeto situação e não pretendem nada além de permitir outro canal de atrito consigo mesmas. Agradeço a base proporcionada pelo Dicionário da ERA para esse trabalho e a leitura atenta de Anxela Caramés, Antonio Díaz Correa, Christina Ferreira e María Álvarez-Cebrián.

 Acidente

  1. Trata-sede um acontecimento que altera a previsão regular das coisas. A possibilidade de recuperação é uma suposição das consequências de um acidente como uma nova ordem; outra possibilidade é a reconstrução literal da ordem anterior.
  2. Partindo de uma determinada situação, o elemento que permite articular um princípio de casualidade.

 

Ação

  1.  Legítimo exercício da possibilidade de atuar. Carrega uma intenção e um gesto implícitos, quer dizer, um movimento necessário. Do ponto de vista normal, as ações são boas ou más, dependendo de como elas são produzidas: em benefício ou detrimento do próximo.
  2. Efeito que um autor causa sobre alguma coisa. Segundo a crítica de arte, uma ação artística é boa ou ruim, atendendo a seu valor ou sua qualidade.
  3. Trata-se da sucessão de acontecimentos e acidentes que durante o seu desenrolar revelam uma condição de trama construída.

 

Ator

  1. Aquele que interpreta um papel público ou privado.
  2. Sujeito de uma ação ou ato.
  3. Sinônimo de autor enquanto ator de uma produção intelectual concreta, quer dizer, uma convenção, uma marca, ou uma máscara, um fingimento.

 

Agente

  1. Quem faz ou tem a virtude de fazer.
  2. Pessoa ou coisa que produz um efeito relativo a uma atividade anterior seja de índole ambiental ou de ordem direta.
  3. Pessoa que cria o cenário onde os acontecimentos ocorrem e onde os acidentes estão suscetíveis a acontecer.

 

Ambiguidade

  1. Qualidade que toda linguagem possui de dar lugar à dúvida, que nos impossibilita de deixar tudo às claras e torna cada comunicação um risco.
  2. Qualidade que toda pessoa possui de dar lugar às duvidas.

 

Aniversário: acontecimento

  1. Acontecimento, evento repetitivo no tempo, que comemora o passar de um período concreto relativo a outro acontecimento ocorrido anteriormente.
  2. Mecanismo através do qual os relatos historiográficos são publicamente legitimados.
  3. Mecanismo institucional que legitima relatos próprios, quer dizer, engrenagem central da máquina da institucionalização.

 

Artista

  1. Ator fundamental na produção de qualquer arte e que apesar disso ocupa um lugar marginal no sistema que o precede.

 

Autorreferencialidade

  1. Aquela propriedade do exercício intelectual, tradicional da modernidade, que permite falar de si mesmo bem como comunicar o assunto a ser tratado.

 

Cena

  1. Tudo aquilo que é representado perante um público.
  2. Sucesso que se considera digno de atenção.
  3. Atuação espetacular e fingida com a intenção de comover.
  4. Usa-se a palavra ‘cena’ ao falar da comunidade de sentidos gerada em torno da arte contemporânea e que participa ativamente de seu próprio desenvolvimento.

 

Curador

  1. Modalidade de agente que provoca ações artísticas e um polo de discursividade ao redor. Por definição, suas práticas são ao mesmo tempo exercícios ambíguos e auto-referenciais.
  2. Ator que articula uma narrativa, não necessariamente escrita.

 

Complexo

  1. Conjunto ou união de duas ou mais coisas que implicam num grau maior de dificuldade do que apenas uma.
  2. Qualidade básica de todo sistema.
  3. Conjunto de ideias, emoções e tendências geralmente reprimidas e associadas a experiências do sujeito ou coletivas que perturbam seu comportamento. Quando afetam um grupo, são suscetíveis a consolidar-se como uma representação.

 

Comunidade

  1. Qualidade do que, não sendo privativo de ninguém, pertence e se estende a vários.
  2. Grupo de pessoas que compartilham um espaço físico, político ou mental.
  3. Grupo de pessoas que compartilham um interesse, um complexo, um trauma ou um agente provocador.
  4. Grupo de pessoas que vivem unidas sob determinadas regras – como as monásticas.

 

Comunhão

  1. Participação no comum, quer dizer, aceitação incondicional de pertencer a uma comunidade.
  2. A partir do sentido religioso, diz-se da participação não ativa na manobra de redistribuição material.
  3. Descaracterização do um para o efeito do comum: serialização, padronização.

 

Conceitualismo

  1. Diz-se da arte que precisa apenas ser algo e não qualquer coisa.

 

Conhecimento

  1. Imaterial que incrementa o valor das coisas dentro de economias sociais diversas.
  2. Capital fundamental de qualquer agente.
  3. Núcleo central da produção institucional cuja razão de ser ésua própria comunicação.

 

Consenso

  1. Acordo produzido através do consentimento entre todos os membros de uma comunidade. A existência ou não do consenso é determinada pela concorrência ou por sua ausência.

 

Contexto

  1. Conjunto de condições materiais e imateriais que tornam possível a realização de uma ação.
  2. Espaço de leitura de qualquer acidente.
  3. Matéria, ambiente ou clima, que participam no êxito de uma ação ou produto.

 

Contradição

  1. Ação e efeito de contradizer.
  2. Ação e efeito de contradizer-se.
  3. Metodologia básica de todo sistema complexo não regulamentado.

 

Convenção

  1. Norma ou prática admitida tacitamente, que responde a precedentes ou ao costume. Em um sistema como o artístico, do mesmo modo que na astrofísica, as convenções são pressões estabelecidas sobre um saber comum super especializado.

 

Crise

  1. Situação de um assunto ou de um processo quando é colocada em dúvida sua continuação, modificação ou suspensão.
  2. Diz-se da situação motivada por um acontecimento ou uma série de acontecimentos, em que um sistema torna sua complexidade mais acentuada para que ocorra uma possível transformação.
  3. Dentre os tipos de conceitos possíveis, uma crise é aquela que com mais intensidade determina a leitura de uma representação.

 

Crítica

  1. Conjunto de julgamentos públicos sobre uma obra, um concerto, um espetáculo, etc.
  2. Espaço onde se atualizam virtualmente as contradições potenciais inerentes a todo sistema complexo.

 

Crítico

  1. Pertencente ou relativo à crítica.
  2. Pertencente ou relativo à crise, sujeito do desconforto deslocalizado.
  3. Decisivo, determinante.
  4. Diz-se do agente detonador da crítica.

 

Cultura

  1. Vínculo imaterial que produz sentido na sociedade. É o local de um tipo de dificuldade, de uma luta específica que implica desafios para determinados regimes de sentido e ordens de representação.

 

Diagnóstico

  1. Análise motivada pela possibilidade ou efeito de uma crise ou de um acidente que determina certas medidas de prevenção e/ou de cura.

 

Dispositivo

  1. Mecanismo ou artifício preparado para produzir uma ação prevista.
  2. O que permite também a articulação, o canal e a reprodução de acidentes.
  3. Também, aquela ação artística ou comissária que gera estrutura. Neste sentido, o sistema estrutural da arte é como um papelão, com muitos pontos de apoio que a tornam rígida, dobra contra dobra, uma estrutura que não existia anteriormente.

 

Dobra

  1. As dobras são o contrário da protuberância. Uma cadeia de dobras e contra-dobras é semelhante à estrutura de interpretação posta em questão quando é reconstruída. Ainda, é uma textura habitual em qualquer trabalho comunitário, com tensões e distensões, com argumentos e clímax.

 

Fascículo

  1. Entrega.
  2. Maço de fibras musculares.

 

Emergente 

  1. O que nasce, surge e tem seu princípio em outra coisa. Neste sentido os artistas emergentes são, na atualidade, os frutos de um sistema, integrados na base de um contexto produtivo que os define como agentes.

 

Entrevista

  1. Interlocução entre duas ou mais pessoas em um lugar concreto para tratar ou solucionar um assunto.
  2. Lugar para o diálogo, o intercâmbio, o questionamento e a consolidação comunitária.

 

Especificidade

  1. Adequação de algo para o fim a que se destina.

 

Estrutura

  1. Distribuição e ordem das partes de alguma coisa.
  2. Determinado conjunto de elementos que permitem a formação de uma complexidade e a articulam. O trabalho com a representação é eminentemente estrutural: em um sistema como o artístico, as ações são interdependentes e configuram e constroem a estrutura a cada movimento.

 

Expectativa

  1. Entusiasmo para conseguir algo.
  2. Possibilidade razoável de que algo ocorra.

 

Experiência

  1. Conjunto de acontecimentos, acidentes e intercâmbios gerados durante uma vida.
  2. Diz-se daquilo que se adquire uma vez que se tenha passado por um acontecimento, acidente ou crise.
  3. Diz-se daquela situação quando uma pessoa passa por um acontecimento, enfrenta uma crise ou sofre um acidente.

 

Ficção

  1. Tradicionalmente, o oposto da realidade.
  2. Construção narrativa que é fruto de um processo ou de uma comunidade. A ficcionalização pode ser tão intensa como experiência que permita substituir a realidade pela ficção.

 

Glossário

  1. Catálogo de palavras obscuras e desusadas, com a definição ou explicação de cada uma delas.
  2. Catálogo de palavras de uma mesma disciplina e de um mesmo campo de estudo definidas ou comentadas.

 

Imagem

  1. Formalização de uma representação.
  2. O desencadeante da subjetividade: uma figura que na experiência de sua decodificação fundamenta um processo de identificação ou o seu contrário pelo qual se trata a subjetividade.

 

Interferência

  1. Ação ou efeito de interferir, quer dizer, de modificar o curso normal das coisas.
  2. Agência acidental.

 

Interstício

  1. Fresta ou espaço, normalmente pequeno, que se localiza entre dois corpos ou entre duas partes de um mesmo corpo. Não se trata de um lugar oco, de um vazio sem função, senão de uma divisão com conteúdo, com uma função estrutural elementar: sem tecidos intersticiais, os órgãos não teriam limites e, portanto, não poderiam cumprir sua função.

 

Instituição

  1. Organismo que desempenha uma função de interesse público.
  2. Complexo relativo ao poder governamental.

 

Institucionalização

  1. Ação encaminhada ao interesse público.
  2. Acidente que converte o interesse público em governamental.

 

Investigar

  1. Realizar ações intelectuais e experimentais com o propósito de aumentar os conhecimentos sobre uma determinada matéria.
  2. Realizar ações intelectuais e experimentais para descobrir algo sobre o que se tem uma intuição prévia.

 

Jogo

  1. Exercício recreativo submetido a regras, e no qual se ganha ou se perde.
  2. Habilidade ou astúcia para conseguir algo.

 

Labirinto

  1. Algo confuso e enredado, difícil de entender, mas que a vontade de resolver pode converter em jogo e em prazer.

 

Leitura  

  1. Ato de ler.
  2. Interpretação do sentido de um texto que gera um novo texto. Exatamente porque nunca é igual ao original, uma leitura sempre será uma má interpretação e é essa diferença que produz efeitos de subjetividade.

 

Legitimação

  1. Processo de aquisição do poder coercivo sobre a comunidade e seus atores por parte de um agente.
  2. Chegar ao consenso de que algo menor é revisto como fundamental.
  3. Dinâmica de territorialização das ações em um determinado contexto.

 

Literalidade

  1. Reprodução do que foi dito ou escrito, como um ato de cópia que só produz a si mesma.

 

Máquina

  1. Um artifício desenhado para aproveitar, dirigir ou regular a ação de uma força.

 

Micropolítica

  1. Modalidade da política que se aplica ao pequeno, aos sistemas pessoais e ao próprio governo.

 

Narração

  1. Ação ou efeito de narrar.
  2. Relato, fórmula em que se expressa tudo o que é suscetível de leitura:uma exposição, uma obra de arte, uma edição.
  3. Processo estrutural da representação.

  

Naturalização

  1. Admitir em um sistema algo estranho como se dele fosse consubstancial.
  2. Fazer com que uma espécie adquira as condições necessárias para viver e perpetuar-se em um ambiente distinto daquele de onde procede.

 

Negociação

  1. Ajuste contínuo entre dois aspectos nos quais ambos os elementos buscam o mais favorável.

 

Opacidade

  1. O que impede a passagem da luz, o oposto de diáfano. Metaforicamente, diz-se das obras de arte atuais que incluem mecanismos para impedir o acesso a uma leitura que não seja arqueada, labiríntica, dificultosa.

 

Patético/a

  1. Qualidade de coisas, ações e pessoas que restaura a provisionalidade da construção individual.

 

Pathos

  1. O que é capaz de mover e agitar o ânimo infundindo-lhe afetos veementes, como o humor ou a tristeza.

 

Performatividade

  1. Propriedade de toda interpretação de sentido de um texto, produzido no leitor no ato da leitura.

 

Política

  1. Arte, doutrina ou opinião referente ao governo.
  2. Atividade dos que regem ou aspiram a reger os assuntos públicos.
  3. Atividade do cidadão quando intervém nos assuntos públicos ou privados da sociedade. O exercício de uma opinião ou a atividade de uma leitura pode ser política. Todo o ato sobre a representação o é.
  4. Conjunto de práticas que determinam as estratégias para estruturar ou reformular as problemáticas de um determinado jogo.

 

Problema

  1. Conjunto de circunstâncias que dificultam a realização de um fim.
  2. Uma forma de nomear os nós principais de uma trama pela qual se atravessa uma crise ou sofre um acidente.

 

Produção

  1. Processo pelo qual a partir de uma inversão prévia se obterá um resultado.
  2. Total dos resultados de um processo. A produção pode ser material ou imaterial. Juntamente com a investigação, os imateriais são impossíveis de serem quantificados.

 

Profissional

  1. Pessoa que exerce sua profissão com capacidade e aplicação relevantes.

 

Profissionalismo

  1. Diz-se do regime que é o efeito da eficácia profissional que legitima o trabalho realizado ou a se realizar. Trata-se de um sistema reprodutivo contrário ao patético.

 

Programação

  1. Inventar as estratégias necessárias que permitirão a execução de um projeto.
  2. Plano ou escritura de uma narrativa base para uma instituição.

 

Projeto

  1. Design ou pensamento para se executar algo.
  2. Criação prévia, expressão dos tempos e processos de produção daquilo que se pretende realizar a médio ou longo prazo em função de uma realidade material.

 

Públicos

  1. Conjunto de pessoas com as mesmas afinidades ou preferências que participam em um determinado lugar onde se supõem suscetíveis a reação ou que sejam os sujeitos suscetíveis a acidentes.
  2. Comunidades debaixo índice intelectual, organizadas de acordo com suas relações, objetos dos esforços da instituição para veicular ou canalizar.

 

Questionário

  1. Lugar onde se permite questionar ou se colocar em dúvida o que foi afirmado por alguém.

 

Relação

  1. Conexão ou correspondência de uma coisa com outra.
  2. Conexão ou comunicação de alguém com outra pessoa.
  3. O vínculo afetivo baseado na duração que suporta uma cadeia de significados.

 

Representação

  1. Ação e efeito de representar.
  2. Ser imagem ou símbolo de algo, ou imitá-lo perfeitamente.
  3. Diz-se da realidade tal e qual é lida e experimentada.

 

Situar

  1. Transportar de uma posição para outra, deslocalizar, desestabilizar.

 

Sujeito 

  1. Exposto ou propenso a algo.
  2. O agente que não enuncia, mas que é objeto de um predicado.
  3. Diz-se de quem é desempenhado por um ato de linguagem.

 

Sujeição

  1. Ação de sujeitar.

 

Território

  1. Porção da superfície terrestre com um nível de riqueza maior que outras.
  2. Terreno abstrato ou lugar concreto onde um determinado agente ou um grupo de agentes relacionados através de vínculos profissionais atuam e que é defendido contra invasão de outros.

 

Texto

  1. Enunciado ou conjuntos coerentes de enunciados orais ou escritos, bem como a complexidade resultante de sua superposição.
  2. Qualquer organização de signos suscetíveis de leitura.

 

Textura

  1. Disposição dos elementos de um complexo.
  2. Operação de tecer.

 

Transgressão

  1. Violação de um preceito, lei ou estatuto que mina os princípios pertencentes a uma determinada comunidade.
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Sobre o risco no trabalho de arte

Apesar das mortes anunciadas de corpos que ninguém viu o cadáver (como é a pintura) e de práticas (ou ações experimentais) que estão se comprometendo com a nulidade (intervenções urbanas), nunca fui um pessimista. Volta e meia, meus alunos me perguntam o que considero um bom trabalho de arte. Desviando-me desse papel de julgador – apesar de saber, como diz Paulo Sergio Duarte, que é o juízo de valor que coloca o pão sob minha mesa -, posso enumerar um pequeno corpo de qualidades para esse trabalho de arte ser considerado como bom. Um deles é o risco. Não estou falando exatamente de risco de morte, mas de situações-limite que são elaboradas, desafiadas e proporcionadas pelo artista ao circuito de arte. Trabalhos que operam numa fronteira onde o estranhamento, o imprevisível e o acaso podem se configurar numa potência com a qual é impossível medir. Os trabalhos comentados nesse ensaio transmitem à arte uma potência capaz de influenciar o comportamento e desafiar, por meios de dispositivos que dialogam com a ironia e o risco em suas diversas circunstâncias, um modo de vida, administrando doses de espetacularização, precariedade e estranhamento.

Um cruzamento movimentado no Centro da cidade de Fortaleza. No pequeno intervalo entre o fechamento de um dos sinais de trânsito e a abertura do outro, os artistas disputam uma partida do jogo que dá nome à obra. Aproveitando o próprio diagrama matemático que a cidade oferece ao cidadão, a dupla Barbosa e Ricalde constrói um organograma que se mantém reatualizado a cada ação do jogo: é um trabalho “entre-tempos”. Tudo gira em torno do tempo, desse momento de parada no tráfego. Operam, portanto, no vermelho, no débito, na falta… de tempo. Arriscando suas vidas e a dos motoristas, essa tática irônica não significa divertimento, mas recusa ao cotidiano usufruto e justificável daquele espaço, reconhecendo-o como terreno de vivência móvel, volátil, na cidade. A marcação à tinta das cruzes e círculos feita pela dupla no asfalto faz um mapeamento negativo do espaço, indica tudo aquilo que ele não é, que não se pode ver. A situação aqui não interessa tanto como uma simples demarcação, mas como deslocamento, um transitar entre as coisas, mas no sentido em que Guimarães Rosa afirmava: “Os lugares não desaparecem, tornam-se encantados”. Tudo o que temos é uma zona sem traçado nem fronteiras. Não se trata de simplesmente jogar (ou criar um percurso de um lugar a outro), mas de produzir um movimento que afete simultaneamente todo o espaço.

O estranhamento pode ser confundido com contradições como em Des-limite (2006) de Waléria Américo. Movimentando-se entre os andares de uma torre, por meio de uma escada, e tendo as janelas como espaço de circulação entre o dentro e o fora, observamos os seus procedimentos bem demarcados mas não os aproximamos de um término ou finalidade. Risco e segurança estão agora aproximados, apesar do primeiro significar um rumo a um lugar que não se conhece ainda. Em outro trabalho de 2005 – Para ver o céu mudar de cor–, é apresentada uma série de cinco fotografias, que exibe a imagem da artista caminhando sobre a mureta do topo de um edifício, vizinho a outros arranha-céus que na sua malha de concreto quase encobrem a vista do horizonte. Como afirma Moacir dos Anjos, “o perigo de queda implícito na caminhada parece estar justificado na última das imagens mostradas, em que a artista alcança posição que a permite testemunhar o crepúsculo para além da barreira que os edifícios formam, bem como no título-motivo dado ao trabalho” [1] DOS ANJOS, Moacir. Rumo a um lugar que não se conhece ainda. In: AMÉRICO, Waléria. Contínuo transitório. Fortaleza: Centro Cultural Banco do Nordeste, 2008. (catálogo de exposição).. Risco que se afirma na inquietude de uma cidade que está se desrealizando: ela é um horizonte, não pertence mais ao cidadão, e nem este a ela. Demasiado extensa e complexa, escapou da medida humana, tornou-se um patchwork, na expressão de Félix Guattari, no qual vão se justapondo desordenadamente fragmentos disparatados. Descentrada e excessiva, nem comporta mais planejamento integrado. O habitante se transforma no espectador-consumidor que sucumbe às imagens da estetização generalizada e vive na ansiedade de uma demanda insaciável.

Nesse risco contemporâneo de se enxergar uma proximidade cada vez maior entre arte e vida (como se esse diálogo não fosse um vivo contato estabelecido desde que alguém nomeou tal experiência como obra de arte), Ronald Duarte executa em 2002, no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, a intervenção Fogo cruzado. No entroncamento de 3 vias dos trilhos do bonde, um tridente é formado. A cidade está dividida. O artista espalha estopa e derrama querosene. Duarte utiliza aproximadamente uma extensão de 500 metros de cada via. Organiza 13 duplas de amigos que são incumbidos de espalhar a estopa e em seguida jogar o querosene sobre os trilhos. Talvez o risco não esteja no fogo – já que o mesmo não atinge uma altura que possa provocar maiores perigos – mas na possibilidade de ser preso [2] “No momento, em que o fogo é aceso, a polícia procura pelo ‘culpado’ e começa a perguntar ao público: ‘Quem é Ronald Duarte?’. Eu havia espalhado entre o público que caso alguém perguntasse quem era Ronald Duarte, que dissessem que era uma pessoa vestida com uma camisa estampada com os dizeres: ‘Fogo cruzado’. Havia 26 pessoas vestidas assim. Então, Ronald Duarte poderia ser qualquer um deles” (In Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro, 03 de maio de 2006)..

Se deslocarmos para um diálogo entre o discurso (político) e a intervenção aliado a esse processo de risco, chegamos a Shibboleth, a intervenção apresentada por DorisSalcedo no Turbine Hall da Tate Modern em 2007. O trabalho dessa artista, quase sempre permeado por um discurso autobiográfico e político, tende a correr menos riscos quando essa associação é produzida. É o momento em que intencionalidade e discurso do artista se misturam na construção de uma possível inteligibilidade ou história dessa obra. Para Salcedo, a obra se endereçou a um longo legado de racismo e colonialismo que assola o mundo moderno. O termo que dá título ao trabalho é uma frase ou uso de linguagem que funciona como uma chave de pertencimento a um grupo social particular. Ela é usada para excluir aqueles indesejáveis a esse grupo. O discurso de Salcedo continua revelando que ela teve a intenção de expor a fratura que a própria modernidade atravessa. Portanto, não estamos mais falando do risco que delineia, atravessa e rasga o espaço físico da Tate nem do risco real de uma pessoa cair no buraco, mas no risco de o discurso da artista corromper a possibilidade da obra se tornar mais potente do que ela imagina que o trabalho seja.

A cidade também é investigação de espaços em Falante (2007), performance executada por Romano. Munido de uma mochila que emite sons e de uma câmera de vídeo, o artista perambula pelas calçadas da cidade, espalhando (des)informação, solicitando comunicação e muitas vezes “ouvindo o vazio” como retorno. Romano não espera por nada; ele na realidade não quer efetivamente conversar. Ele não é um João do Rio contemporâneo. Não está interessado em pesquisar os sons, odores, paisagens e espaço nem mapear as maravilhas da cidade. Com antecedentes em 4 Dias e 4 Noites (1970) de Barrio, Romano avalia, questiona e expõe o lado mais degradante e individualista da cidade. Durante sua performance, o artista poucas vezes é incomodado ou questionado pelo público, seu passeio com uma pesada mochila/equipamento de som grudada em seu corpo, emitindo aos berros a frase “Não preste atenção”, nem desperta tanta atenção e é visto como algo normal. O risco cai no vazio. A incomunicabilidade e o estranho tornam-se frequentes e cômodos na cidade. Nada desestabilizadores, são situações normais, onde as pessoas não se deixam mais afetar pelo outro.

Afirmam que a interferência (ou intervenção) urbana é um trabalho que dialoga com a subversão. Falsa analogia. Todo trabalho de arte é subversivo em menor ou maior grau. E a suposta subversão que a interferência urbana carrega é quase sempre acompanhada de uma autorização do órgão competente do Estado (como foi o caso de todas as ações descritas nesse ensaio). Devemos ter cuidado ao analisar um suposto drible do artista ao Estado na produção dessa “interferência”. Não podemos confundir uma prática artística altamente emanadora de potência com um discurso tendencioso ao simples ato de “cometer um crime” em nome da arte. Nos trabalhos aqui comentados não há um discurso de euforia ao drible mas um fecundo diálogo entre espaço, arquitetura e vivências.

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Corpo e arte contemporânea – elementos para análise da obra &Galinhas de Gala&.

O prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça é promovido por essas instituições da Indústria que têm o interesse de incentivar a cultura no Brasil. É um prêmio voltado para as artes plásticas, no qual normalmente cinco brasileiros ganham uma bolsa durante um ano para desenvolverem seus trabalhos com acompanhamento de críticos e profissionais da área de Arte Contemporânea. Os trabalhos finalizados são organizados em uma exposição itinerante que percorre seis capitais do Brasil divulgando as obras dos artistas selecionados.

A segunda edição do prêmio, 2006/2008, teve entre seus ganhadores a artista mineira Laura Lima (L.L.) que desenvolveu as obras ‘Galinhas de Gala’ e ‘Nômades’. No Museu de Arte Contemporânea que se localiza no Dragão do Mar em Fortaleza a obra ‘Galinhas de Gala’ suscitou muitos questionamentos, estranhamento e contestação pelo uso dos animais, que é sempre recorrente no trabalho de Lima.

Perceber o trabalho de Laura Lima em Galinhas de Gala e Nômades, as questões que lhe dão suporte e as polêmicas por ela provocadas, é também pensar a relação travada entre o ser humano e a natureza, com seus desdobramentos, sua ética e a falta dela, sua convergência e disparidade. O gênero humano integra a natureza e de forma alguma está dissociado dela, por mais que nossa busca por uma racionalidade que nos distinga e afirme no mundo tente suprimir nossa dimensão biológica, animal e instintiva. O fato é que o ser humano interage e modifica o meio-ambiente como nenhum outro animal o faz.

Em Galinhas de Gala, Laura Lima pensa e expõe a questão da ornamentação, com uma plumagem colorida nas galinhas, causa estranhamento, admiração e/ou contestação. Pensar em animais por si só como performers já suscita uma necessidade de revisão de conceitos ou mesmo de criação de nomes para se falar sobre as obras de Lima, como conta Luis Camilo Osório que acompanhou o desenvolvimento do trabalho da artista no prêmio Marcantonio Vilaça.

Além disso, ainda encontramos questionamentos sobre a ética na relação com os animais. Há quem conteste o fato dela trabalhar com seres vivos, colando plumas nas penas originais das galinhas, o que caracterizaria maus-tratos, além do fato de estarem expostas em um museu que não é originariamente seu habitat. Porém na questão do processo de colagem das penas não existe dor, pois os nervos não estão presentes nas penas. A artista relatou que normalmente elas ficam muito calmas. Embora algumas vozes tenham se levantado contra o uso da galinha neste trabalho, em geral não se questiona se é cruel colocar uma galinha em um galinheiro onde esta servirá para a alimentação. Por que se julga que a uma galinha é possível o destino da cozinha e não os espaços de galerias e museus, se estas podem trazer muitas discussões e perspectivas que nenhum objeto inanimado seria capaz de produzir?

O trabalho de Lima não suscita apenas os questionamentos acima citados, a partir dele podemos, além da percepção estética e de uma possível experiência artística por parte do observador ou admirador da obra, também discutir e pensar a questão da ornamentação.

Aos nossos olhos as galinhas não se distinguem umas das outras, porém as disposições das cores e penas que Laura L. põe nas galinhas introduzem nesse contexto um elemento de diferenciação. O fato de que para o mundo animal a plumagem também tem um caráter estimulante na busca do parceiro para o acasalamento, converte-se em fato interessante no processo de construção da obra de L. L.

Quando uma galinha com penas coloridas e, por isso diferente das demais, era colocada em meio àquelas “galinhas normais”, ocorria um isolamento. Mas à medida que as outras galinhas iam ganhando penas novas e coloridas, o elemento recorrente recaía sobre as penas coloridas e diferentes. Ocorria então um isolamento o qual seguia o mesmo princípio, mas de forma invertida: a minoria distanciada da maioria, mas nesse caso as sem penas coloridas eram as diferentes e excluídas. Houve ainda outra mudança evidente no comportamento das galinhas – o galo manifestou mais interesse pelas galinhas com penas coloridas, assim como as galinhas sem esse tipo de pena, interessaram-se pelas ‘galinhas de gala’, como as denomina a artista.

Guardadas as devidas proporções, a observação destas mudanças no âmbito do comportamento animal pode nos levar a uma reflexão sobre o universo das atitudes humanas. Os adereços, roupas, ornamentos em geral e o uso do corpo como suporte de intervenções de objetos, assim como a transformação do mesmo, fazem parte da nossa vida cotidiana e são construtores da nossa ‘imagem social corporal’ [1] Referência ao texto Sociologia da Imagem Corporalde Pedro Peixoto Ferreira. Doutorando em Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Desenvolve atualmente pesquisa sobre as relações entre as técnicas do êxtase na música eletrônica e no xamanismo (apoio FAPESP), dezembro, 2003.. Em cada época da humanidade foram desenvolvidos roupas, usos e costumes diferenciados que foram construções históricas, ou seja, manifestam valores não de maneira essencialista, mas de modo relacional, a partir do olhar de quem observa e de quem se utiliza ou pratica os mesmos. Em um processo dialético em que cada ser humano faz parte da construção imagética do outro.

A importância desta dinâmica fluida dos limites da imagem corporal para uma sociologia da imagem corporal se evidencia quando percebemos que, para seres sociais, um objeto nunca é apenas um objeto, mas sempre também o mediador de uma relação. O processo de atribuição de sentido aos objetos e às ações é justamente o processo de socialização destes objetos e ações, o processo através do qual eles emergem enquanto propriamente sociais. Por isso a incorporação de roupas e objetos e o vínculo duradouro de excreções corporais à imagem corporal é sociologicamente relevante: pelo fato de que roupas e objetos nunca são apenas pedaços de matéria, e excreções nunca são apenas nossa biologia, mas sempre também demonstrações de statuse poder, opções estéticas, capacidades, condições para certas atividades, enfim, mediadores de inúmeras relações. [2] Ferreira, Pedro Peixoto.  Sociologia da Imagem Corporal.2003. p.  9.

Pensar no chapéu tão usado no início do século XX, como adereço indispensável ao “bom chefe de família”, as pinturas indígenas ou mesmo os adereços no corpo mediante os quais cada um representava ocasiões e status diferenciados, as pulseiras de ouro no antigo Egito, as perucas do século XVI que demonstravam nobreza. Enfim são inúmeros os exemplos os quais apontam que o ornamento é um forte mediador de relações políticas, religiosas, sociais, pessoais.

No estudo dos índios Kayapó [3] S/autor.A ornamentação corporal como representação social dentro do contexto indígena. Os índios Kayapó: um estudo de caso. PUC-RIO – certificação digital 0410910/CB. é possível perceber como os objetos e adereços utilizados por estes têm um caráter bastante ritualístico e mitológico como, por exemplo, o “Botoque é o termo que designa os discos de cerâmica, madeira ou conchas que os Kayapó (…)usam encaixados nos lóbulos das orelhas ou do lábio inferior. (…) são usados para representar a autoridade e maturidade de um homem kayapó. Eles têm como função enfatizar os sentidos a que estes órgãos se referem” [4] Idem; ibidem, p. 49..

Quanto às pinturas, este estudo de caso mostra que:

A pintura de jenipapo é uma atividade contínua e um hábito do cotidiano Kayapó intrinsecamente relacionado com a concepção de um ser Kayapó e com sua compreensão de um ciclo de vida, idade, sexo e relações sociais. É uma pintura essencialmente informativa e está relacionada aos processos de socialização. A palavra que se refere à cor preta na língua kayapó é a mesma usada para se referir à morte e à área da floresta que circunda a aldeia. Isto demonstra a relevância da presença da pintura de jenipapo para sua própria condição humana. As estampas de jenipapo são numerosas e obedecem regras estéticas como simetria, linhas paralelas, finas e regulares, textura fechada e proporções harmônicas entre si. É aplicada ao longo do corpo. [5] Idem; ibidem, p. 60.

Mesmo em nossa sociedade moderna é possível perceber de que modo a forma como nos vestimos, nossos usos e costumes criam círculos de inclusão e exclusão social. Tecemos relações de estranhamento e identificações também a partir dos ornamentos e das roupas. Reproduzir ou contestar os padrões de beleza ou dos usos de adereços perpassam a dimensão psicológica de cada ser humano, trabalhando conceitos de aceitação, identificação, diferenciação, individualidade e coletividade. Os grupos urbanos são grandes exemplos disso. Cada estética assumida por estes grupos é porta-voz da ideologia, a aparência destes vem cheia de conceitos, condutas e revela a vida dos mesmos.

Este trabalho de Lima evoca um livro de Leonardo Boff, A Águia e a Galinha no qual ele faz uma belíssima metáfora sobre a condição humana dentro destas duas perspectivas. E sobre a galinha, ele fala de como essa cria raízes, ela se coloca no galinheiro e vive aquele mundo, diferentemente da águia que não cria raízes e está sempre voando e fazendo ninhos, e assim metaforiza a excelência da condição humana. Aqui levantamos como possibilidade interpretativa um paralelo entre Boff e Lima.

Quando o ser humano vai fincar raízes e construir seu lugar social (assemelhando com o que a galinha faz no galinheiro), ele se utiliza de ornamentos. O político, por exemplo, tem que ter seu paletó para passar uma “boa imagem”; quando se busca um emprego, se veste as “roupas mais adequadas”, nas comemorações de fim de ano da mesma forma; então pensar o indivíduo que se insere na sociedade é também pensar em como sua imagem tem de se enquadrar nos padrões estabelecidos por este grupo, perante o qual ele está se propondo pertencer. E da mesma forma aquele que se propõe a questionar e não reproduzir, vai buscar roupas e adereços que contrastem com os paradigmas imagéticos do espaço social em que ele se insere. Seja pela aceitação ou diferenciação que constrói os grupos e os indivíduos, assim como nas desigualdades sociais, a vestimenta está presente. Os estereótipos falam. Não quero aqui ser simplista em relação à importância das roupas, adereços e ornamentos e pensar que somente estas, por uma espécie de automatismo, determinam a composição de nossas personalidades e sociabilidades. De fato, esta discussão é bem mais complexa. Nossa intenção é tão somente a de dar início a uma discussão a partir de uma obra atual e tão instigante como Galinhas de Gala e pensar acerca dessa nossa ‘imagem corporal social’, e seu papel nas relações que estabelecemos dentro de nosso cotidiano.

Schilder (1999:266-7) citado por Ferreira [6] Ferreira, Pedro Peixoto. Sociologia da Imagem Corporal.2003. p. 11. enumera questões muito relevantes acerca deste processo de construção imagética pessoal:

1 – As imagens corporais nunca estão isoladas. Estão sempre cercadas pelas imagens corporais dos outros.

2 – A relação com as imagens corporais alheias é determinada pelo fator de proximidade ou

afastamento espacial e pelo fator de proximidade ou afastamento emocional.

3 – As imagens corporais encontram-se mais próximas e mais intimamente ligadas nas zonas

erógenas.

4 – A transferência de zonas erógenas também se refletirá na relação social com as outras imagens corporais.

5 – As alterações eróticas da imagem corporal são sempre fenômenos sociais e são acompanhadas por fenômenos correspondentes na imagem corporal dos outros.

6 – As imagens corporais são, em princípio, sociais. Nossa própria imagem corporal nunca está isolada. Pelo contrário, está sempre acompanhada pelas imagens corporais dos outros.

7 – Nossa imagem corporal e a imagem corporal dos outros não dependem primariamente uma da outra. Têm a mesma importância e uma não pode ser explicada pela outra.

8 – Há um intercâmbio contínuo entre partes de nossa imagem corporal e das imagens corporais dos outros. Há projeção e personificação. Mas, além disto, podemos nos apoderar de toda a imagem corporal de outra pessoa (identificação) ou entregar nossa imagem corporal como um todo.

9 – As imagens corporais das outras pessoas e suas partes podem ser inteiramente integradas na nossa e formar uma unidade, ou podem ser simplesmente adicionadas à nossa imagem corporal, formando uma mera somatória.

10 – Estamos sempre enfatizando que o modelo postural do corpo não é estático e está sempre se modificando segundo as circunstâncias da vida. Encaramo-lo como uma construção criativa. É construído, desmanchado e reconstruído. […] Quando criamos uma imagem corporal adequada a nossas necessidades e tendências, esta não permanece inalterada – há um fluxo contínuo, e cada cristalização é imediatamente seguida por um estágio plástico, em que são possíveis novas construções e esforços, de acordo com a situação emocional do indivíduo.

Todas essas questões acerca das experiências estéticas na construção das já tão citadas ‘imagens sociais corporais’ trazem questionamentos sobre a elaboração ética na sociedade contemporânea, pois a partir da segregação entre os indivíduos que se reconhecem ou não, reafirma-se então este distanciamento social que muitas vezes culmina em desigualdade e hierarquia cultural, cada grupo se percebendo no topo desta linha social que abarca as diferentes culturas. Pensamos que as diferenças não devem motivar a segregação, mas sim o diálogo e o respeito dentro desta diversidade social de realidades e verdades. Essa obra de Laura Lima, não tem como elemento central a questão do mal ou bem-estar das galinhas, como foi ressaltado pela mídia local e por determinados grupos sociais. Ao contrário, seu cerne reside em seu potencial reflexivo acerca da condição humana, a qual evidencia o modo como, muitas vezes, estamos tão inseridos em nossos ‘galinheiros’, repetindo discursos e visões de mundo arraigadas, que não nos permitimos repensar o que nos rodeia a partir de Galinhas de gala.

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Reflexões de uma artista-turista na Palestina

A experiência de temporariamente habitar uma nova cidade tem sido para mim recorrente nos últimos anos, quando da participação em residências artísticas no exterior[1] A primeira experiência nesse sentido foi em Berlim, em 2006, quando apresentei uma intervenção urbana chamada Estrangeiro, e se repetiu em residências em Shatana, Jordânia (2007) e em Córdoba, Argentina (2008).. Estas situações sempre despertam a percepção de um elemento que se faz muito forte em minha produção como artista: a constatação de ocupar um lugar de artista-turista, em que meu olhar sobre a cidade incorpora a ingenuidade de quem não a conhece.

Fui convidada para uma residência em Birzeit, na Cisjordânia, em setembro de 2009. Este convite mais uma vez acionou a percepção de minhas experiências anteriores como uma estrangeira em um lugar desconhecido. No entanto, esta viagem tinha características muito específicas e marcantes, que a diferenciavam do perfil mais “suave”, quase romântico, de outras viagens a residências. A delicada situação política e social da Palestina, juntamente com todas as restrições em meu processo de entrada e circulação no país, geravam uma situação de alerta, uma expectativa em relação à viagem, que se refletia também nos comentários das pessoas em reação à notícia: “mas não é perigoso?”, “não tinha um outro lugar pra você ir?”, “como assim, Palestina?!”.

Frente a toda essa situação – aos possíveis riscos e a certo grau de incerteza quanto à possibilidade ou não de entrar no território palestino, de ser capaz ou não de retornar de lá, à vulnerabilidade a situações fora de meu controle – o mero fato de estar na Palestina, de viver lá por um período, e de ser capaz de retornar, torna-se para mim uma performance. Decidi, a partir disso, manter um diário aberto. Convidei um grupo de pessoas para acompanhar minha trajetória e minhas percepções, abrindo a possibilidade de estabelecer um relato mais aberto para pessoas da minha cultura e de manter um canal de comunicação com um grupo que fosse neutro em relação às minhas experiências. Tratava-se também de uma estratégia de segurança, de acompanhamento, como se eu estivesse sendo monitorada à distância.

Chego então à Palestina inevitavelmente ocupando o lugar de artista-turista – pelo deslocamento geográfico, pelo desconhecimento do local, pelas diferenças de cultura e de idioma – e me proponho uma aproximação com a região a partir desse ponto de vista. Permito, assim, que meu olhar e minha percepção sejam construídos com os elementos, as imagens e as situações que de imediato me impactam mais fortemente.

A intensidade da experiência acabou tornando inevitável o desejo de executar outros projetos, além do diário e da performance pensados inicialmente. E, como se poderia esperar, aquelas impressões iniciais foram influência decisiva nos demais trabalhos que eu viria a planejar ou executar durante o período da residência.

Após algum tempo, percebi que minha atenção se voltava sempre para a complexa relação que se estabelecia entre duas culturas, entre dois povos em permanente conflito – muito embora eu estivesse claramente vivendo em apenas um dos lados da estória. E, nesse lado, é como se a vida estivesse constantemente em suspensão, em transição. Cada dia era vivido com intensidade, como se o dia seguinte nunca pudesse ser previsto ou planejado com muita certeza. Ao mesmo tempo, e talvez como consequência disso, eu percebia uma sensação de grande desapego e de tolerância a situações adversas.

Todos esses aspectos se refletiam nas relações que se estabeleciam entre os participantes da residência e, em última instância, nos trabalhos produzidos. A residência voltou-se muito à experiência de viver o cotidiano da Palestina e minha percepção é de que a produção dos trabalhos permeou essas questões. A intensidade da experiência gerou trabalhos fortes e com muito envolvimento em relação à situação local.

Com o passar do tempo, percebi que pouco a pouco eu passava de artista-turista a artista-política. A pesquisa desenvolvida durante a residência ficou fortemente associada a minhas percepções quanto ao ambiente a meu redor e quanto a alguns aspectos centrais do cotidiano dos palestinos. Em meu caderno de anotações, apareciam focos de interesse e possibilidades de pesquisa, quase como uma lista de desejos, e sempre existia alguma conotação política ou social. Desejos de alterar o mapa da região, de criar passaportes palestinos, de repensar a função do muro e dos checkpoints[2] Checkpoints são postos de controle presentes no território da Palestina e controlados pelo exército israelense, cuja função é controlar e restringir a circulação de palestinos em seu próprio território, bem como sua entrada e saída em território israelense., de gerar novas formas de distribuição de água, de trocar os fuzis M-16 do exército israelense por espingardas de bolhas de sabão, de coletar uma nova série de resoluções – como as da ONU – propostas por cidadãos palestinos. Eu, “a última das românticas” …

Dois trabalhos foram enfim executados a partir dessa perspectiva de artista-política, abordando duas questões cruciais na região: primeiro, a presença do muro e dos checkpoints e as limitações à liberdade de movimento no território; segundo, as restrições no abastecimento de água na Palestina, que se reflete na presença maciça de caixas d’água, em grande número, nos telhados.

O primeiro desses trabalhos – um vídeo intitulado Vanishing Point (Ponto de Fuga) – captura o fluxo de veículos e pedestres no checkpoint de Qalandia, perto de Ramallah. Filmado do alto de um prédio próximo ao local, com um enquadramento fixo, o vídeo mostra o movimento em Qalandia durante um dia inteiro. O título traz um jogo de palavras, pois Vanishing Point também significa “ponto de desaparecimento” e o trabalho propõe uma reflexão sobre desaparecimento da cultura, perda de identidade e restrições à liberdade.

As caixas d’água – massivamente presentes nos telhados da Palestina e tão visualmente marcantes na paisagem – são o elemento central em WaterSkyline, uma instalação composta por uma série de fotografias em preto e branco. Com fotografias coladas diretamente sobre as paredes, uma ao lado da outra, formando uma linha do horizonte imaginária, a instalação cria uma nova paisagem e ressalta as restrições do abastecimento de água na região[3] Na Cisjordânia, o abastecimento de água é controlado por Israel, que só libera seu fornecimento durante alguns dias da semana. Daí a necessidade de inúmeras caixas d’água em cada edifício, para estocagem..

Continuo andando com minha lista de desejos e ainda me sinto impregnada pela luminosidade, pela poeira e pelo som das mesquitas na Palestina. Estar lá foi uma experiência importante e intensa, que influenciou fortemente os trabalhos produzidos durante a residência. Em última instância, minha produção refletiu a intensidade das relações, o envolvimento com a situação local e o desejo de mudança.

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Renato Valle: Sobre política de excesso e a reinvenção do demasiado

Em razão da política de excesso que levamos na vida contemporânea, um punhado de palavras não basta – tampouco uma ou outra imagem que se embaralha em meio a tantas outras – para nos fazer brotar pensamentos reflexivos (tanto quanto as sensações de afeto). Essas passam despercebidas em nossas leituras diárias – cegas (e os sentimentos anestesiados) pelo demasiado. É como se um argumento, sob forma de palavra ou imagem, solto, estivesse destinado a um abismo irresoluto do imperceptível, promovido pelo sobejo. É (também) por isso que a arte se faz, hoje, tão necessária. Entendida não apenas enquanto obra-objeto, mas a partir daquilo no qual está fundada e instituída: consenso, dissenso, política, ambiente, cultura, economia, espaço, tempo… A imagem e o discurso na arte estão indissociáveis. Imbricados, podem ser como um soco, de punho bem fechado, na boca de nossos estômagos – que cada vez mais adquirem tolerância ao que por natureza deveria permanecer intolerável.

Embora a instituição arte já apresente sinais de muito desgaste, sobretudo no que se refere à sua complicada relação com o mercado, é (ainda) naquela que podemos vislumbrar uma potencialidade de diálogo emancipador. Refiro-me ao complexo processo de subjetivação possível na simples relação artista – obra – público. Subjetivação: palavra que soa espalhafatosa, mas a única que me pareceu melhor expressar aquilo que acredito ser a mais nobre camada da arte: tornar-se pedaço de alguém.

A obra que se deixa subjetivar cria, para além de si, uma rede de significados capaz de redimensionar as formas de olhar, até que finalmente se mudem também as formas de agir. Nesse caminho é que procuro percorrer as obras de Renato Valle. Um artista extremamente metódico quanto à forma, sensivelmente afetado pelos assuntos transformados conteúdos de seus trabalhos.

Intrigado pela estética abaulada recorrente na própria maneira de compor seus desenhos e pinturas, assemelhada aos ex-votos, lançou-se numa jornada investigativa daquilo que estaria por detrás da forma que lhe era tão familiar: apesar do artista já usar semelhante linguagem, não o fazia por conhecer profundamente os significados. Premiado com a Bolsa de Pesquisa em Artes Visuais no 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, foi à Santa Quitéria, um distrito do município de Garanhuns – abrigado no interior do estado pernambucano –, inteirar-se do universo dos ex-votos. Propôs-se a observar todo tipo de relações sociais e culturais que aconteciam em um santuário daquele lugar.

Uma vez lá, não poderia ter imaginado realidade mais agônica. Diante da miséria daquelas pessoas – munidas para enfrentar a vida, de múltiplas privações, com muito pouco além de uma imensa fé –, viu-se atormentado, entre tantas questões, pela mercantilização das coisas espirituais. Os ex-votos são objetos revestidos de uma dimensão fantástica aos olhos daquele que tem fé. Na certeza inabalável de ter conseguido uma dádiva alcançada por meio de sua crença, em um ato de gratidão, o crente devolve no ex-voto a magia que “transformou” em realidade o sonhado.

Poderosa, essa fé que impulsiona e é a ventura daqueles tantos (sem esta e por muito menos privações a maioria de nós, no lugar deles, daria a vida por encerrada), Renato a observou perversamente agenciada num universo mercantil (que nenhuma relação deveria ter com as coisas espirituais) em um modo capaz de paralisar o tempo, no qual não há fissuras para que exista qualquer mecanismo de transformação. Se por um lado, quem compra vê o encanto da sua fé materializado no objeto adquirido, para depois ofertá-lo, não é menos encantado (embora nem sempre pelas mesmas razões do crente devotado) tal objeto para quem o produz com seu suor e talento. Para aquele que vende, contudo, o ex-voto nada tem de mágico, senão na maneira de “fazer” dinheiro fácil. Ao que parece, os vendedores estão alheios a esta perversão do mercado da espiritualidade (há quem diga que se vive paralelo semelhante no atual universo da arte).

Abalado pela realidade encontrada, depois de um mês iniciou um projeto chamadoCristos Anônimos, que trata da dicotomia mística cravada na cruz: martírio e redenção. A pesquisa rendeu ao final da bolsa uma série de gravuras. Verticais, todas são estruturadas por colunas que formam cruzes de votos e/ou ex-votos, cercadas por imagens repetidas de partes do corpo de Cristo, retiradas de obras de outros autores, apropriadas e utilizadas pelo artista. A experiência desse processo também viria alimentar o seu Diário no momento em que representa homens, mulheres e crianças de braços abertos em situações de martírio e/ou redenção: uma mulher que se abre para acolher alguém num abraço, um goleiro que se prepara para a glória ou a vaia, um homem desnudo em completa vulnerabilidade… Anônimos também são esses tantos “Cristos” vistos e, na maioria das vezes, não percebidos.

Durante a construção do trabalho, a simbologia católica ganha cada vez mais peso em suas reflexões. Num passo não muito distante, voltou-se também a si mesmo, à própria religiosidade, distinta do catolicismo, ainda que igualmente cristã, desde os primeiros desenhos que formam o seuDiário de Votos e Ex-Votos.Tal diário não só é um registro iconográfico de acontecimentos pungentes (tanto sociais, quanto pessoais), mas também exercício de uma dimensão espiritual da compaixão. Por um lado, Renato Valle – sempre apegado às suas pesquisas da forma – experimentava diversos tipos de grafites, desenhos com palitos (revelados pelo pó cinza), ou tipos de cores que enriquecessem o preto a ser impresso sobre o papel bege que formaria uma gravura. Por outro, na experiência do diário vivia uma catarse. Para cada desenho, existe um “voto”, um pedido em favor da resolução de um drama (naquele momento ele se via coapaixonado, coenvolvido)– como no conjunto de 243 desenhos de crianças desaparecidas, feitos a partir de imagens retiradas da página do Ministério da Justiça, com a exceção de uma foto que ilustrava a página de um jornal – ; ou um “ex-voto”, como forma de agradecimento por aquilo que tinha sido sanado.

De volta ao que comecei dizendo: ora, nem um punhado de palavras, nem uma imagem esvaziada, por estar em meio a tantas outras, são capazes de nos mover do estado de inércia que nos acomete nessa existência que levamos: de um muito, tudo. Acostumados com o excesso, tornamo-nos incapazes de absorver (sobretudo, reflexivamente) as graves questões que dia a dia nos ameaçam. Nesse sentido, é que penso na arte como uma agenciadora de mudanças.

A instituição da arte, entendida, além da obra-objeto, como o ambiente que essa cria – sua própria economia, sua própria política – pode deslocar situações do cotidiano de modo que as possamos enxergá-las. Senti-las. E nessa direção, torná-las parte de nós e, por nossa conta, talvez, causar alguma alteração externa. A subjetivação, como é possível perceber, está na criação e recepção da obra. Absorvendo a política de excesso da vida contemporânea, Renato a desloca e a ressignifica no paradoxo, sensivelmente criado, de síntese e excesso (imagens e discurso imbricados), em sua obra-diário, sempre munido de compaixão. Se pelo excesso do nosso diariamente nos anestesiamos, pelo seu excesso constituído unidade-obra, Renato dá-nos a chance de uma leitura que não seja mais cega. Resta saber, depois de termos sido expostos a tudo isso, o quanto vamos tornar nosso, o quanto nos coapaixonaremos. De outro modo, terá sido apenas mais um soco – como tantos outros que passivamente aprendemos a levar, tolerando o intolerável.

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Sobre Fabinho

Em certo momento da peça Hamlet, dois coveiros, enquanto trabalham, conversam sobre as injustiças da vida. Reclamando que vão dar sepultura cristã a uma suicida, lamentam: “o mais triste é que os figurões têm mais direito de afogar-se ou de enforcar-se do que todos os demais cristãos”. A cova que cavam se destina a Ofélia, amada de Hamlet. Então, um coveiro pergunta ao outro: “Quem faz construções mais sólidas do que o pedreiro, o carpinteiro ou o engenheiro?”. A resposta: “o construtor de forcas, pois a sua armação sobrevive a mil inquilinos”.

É de Hamlet, esse louco genial, uma das melhores definições práticas de ironia que conheço. Escandalizado porque um destes coveiros está cantando, o príncipe da Dinamarca diz: “Será que este homem não tem consciência do seu ofício? Canta enquanto abre uma cova!”.

A ironia é uma das marcas do trabalho de Fabinho e podemos afirmar que, sim, ele está bem consciente do próprio ofício. Sua investigação de temas como o corpo, ou a cidade, se fundamenta, com muita frequência, sobre a clave de um riso meio torto, que dá com uma mão para tomar com a outra.

Este humor pode tanto estar presente de forma mais explícita, como num dos trabalhos da série Om nibus, em que diversos copos são colocados sobre gelos baianos em avenidas do Recife, quanto de forma mais implícita, como no projeto Nosso Romance?, no qual é a ironia que dá direcionamento ao tom kitsch da decomposição de um corpo que se sexualiza na deformidade.

Todos conhecem os trambolhos que ficam ao redor dos remendos que a má gestão pública causa nas ruas das cidades brasileiras: para afastar os carros de buracos recém-abertos, ou mal-tapados, muitas vezes fazem-se círculos ou quadrados ao redor deles, usando estacas de madeira enfiadas em latões cheios de cimento, estacas unidas por fitas sinalizadoras. Ao fotografar um destes trambolhos e imputar-lhes uma “autoria”,Fabinho transforma um evento do cotidiano numa intervenção. A ironia se completa com o trocadilho da palavra Ring, que significa, em inglês, anel, mas cuja sonoridade lembra o português “ringue” – sonoridade reforçada pela própria imagem, que lembra um ringue. Esse trocadilho é um gatilho que aponta para diversas possibilidades de sentido, acentuando a percepção de que os grandes centros urbanos brasileiros são, cada vez mais, zonas de tensão, de conflito (mas não deixa de ser um alívio sabermos que, se as tensões sociais e a má urbanização não garantem o bem-estar e a segurança de pedestres e motoristas, pelo menos os buracos das ruas estão protegidos dentro dos seus ringues).

Ring se realiza com um mínimo de, digamos, “mão na massa”, pois se trata basicamente de um conceito estético que reescreve um fato contido no mundo. Cada vez mais, falar em arte implica em falar de um gesto criador inteligente. Um bom artista precisa pensar e pensar. Vamos a um exemplo interessante, que depois amarraremos com uma reflexão a partir de Artur C. Danto. Passeava no calçadão da praia com minha namorada, quando, em certo momento, ela pediu que eu parasse. Observou por alguns segundos um prédio, localizado no outro lado da avenida, e me disse: “olha, aquelas estruturas de ferro, tecido e corda, por um segundo pensei que fossem um trabalho de arte”. Ela se referia a toda uma estrutura montada para efetuar algum tipo de reforma no prédio. No ensaio Arte e Significado, Danto nos dá diversos exemplos de eventos do cotidiano que poderiam ser considerados instalações, performances, etc. A seguir, ele conclui: “é marca do nosso tempo que todas as coisas possam ser vistas como um trabalho de arte e em termos textuais”. É como se o mundo todo exalasse um certo potencial de poeticidade. Não é que a natureza, ou o cosmos, sejam por si só sensíveis, ou poéticos, no sentido de que possuam uma essência, mas sim que os domínios da arte implicam numa tensão entre a sensibilidade do artista e tudo aquilo que o rodeia. O poético se localiza numa relação, às vezes frágil, sempre movediça, entre a criatividade direcionada do ato criador e todos os que estão dispostos a sentir. Esta liberdade de caminhar criativamente através das mais variadas experiências é uma das mais importantes conquistas da arte nestas últimas décadas.

Um exemplo dessa liberdade da qual falo se encontra no trabalho Look my face thatlikeyou, que consiste num roteiro de performance-instalação aplicado numa parede. Ler o roteiro transforma o próprio projeto num trabalho de arte; a performance não acontece num espaço físico, mas sim na imaginação do leitor. A participação do público se completa com um questionário, em que há perguntas como: “Vale a pena executar a obra ou é suficiente apenas lê-la? No caso de valer a pena, há chances de ser executada e como se faria?”. Se uma leitura de uma obra já implica numa construção, pois todo tipo de arte (artes visuais, literatura, cinema, dança, entre outras) só se realiza quando se torna experiência, em Look my face thatlikeyou essa interatividade é destacada para amplificar o resultado do trabalho.

Outro trabalho em que a palavra desempenha papel fundamental é a série Castigo Divino. Neste caso, o texto deslocado não é o de projetos de performance, mas uma série de prescrições retiradas de uma cartilha produzida por uma igreja evangélica pentecostal. Essas prescrições são aplicadas em cinco pratos de louça. Um dos textos mais divertidos é este: “Castigo Divino 3 – O ânus é sujo, fétido e possui em suas paredes milhões de bactérias. É o esgoto, propriamente dito. No esgoto só existem ratos, baratas e mendigos. A pessoa que sodomiza, ou é sodomizada é igual a um rato pestilento. (…) Mas o pior é quando o ato é homossexual, pois o passaporte dessa infeliz criatura já está carimbado nos confins do inferno”. Aquilo que era um sinônimo de ortodoxia e agressão adquire, deslocado do seu contexto original, um tom de ridículo. As palavras implodem a si próprias. É como um filme pornô que só consegue fazer rir, não excitar. Nesse sentido, Fabinho desempenha um papel de terrorista. Outra vez, o apelo à imaginação é fundamental, pois a carne do corpo está escondida por trás das palavras satirizadas e este corpo só fica nu na nossa imaginação. A metáfora dos pratos nos lembra que muitos banquetes nada mais são do que sacrifícios e que a origem das palavras “missa” e “culto” está ligada a esta ideia. Para Bataille, em O erotismo, o sacrifício é uma “transgressão desejada”, pois “a carne é em nós esse excesso que se opõe à lei da decência”. A série Castigo Divino nos mostra que, muitas vezes, um pastor radical enxerga no espelho um libertino: um celebra o excesso, o outro o sacrifica, entretanto ambos estão preocupados com esse império sobre o corpo do Outro.

O corpo, a palavra e a cidade são resgatados das suas funções pragmáticas e colocados numa saudável ambiguidade. Em Fabinho, a arte se engaja num compromisso sensível com o outro. Sem perder a elegância da piada.

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“Você é Macunaíma Colorau?”: um debate ético-estético

O debate ética/estética é, provavelmente, o mais antigo da história da arte. Dentre os pensamentos cultivados na Grécia antiga, alicerce do conhecimento ocidental, a ideia de Beleza não era autônoma, mas estava, sobretudo, ligada aos ideais de justiça, bondade e virtude. Quando foi perguntado, por exemplo, para o oráculo de Delfos, sobre como deve ser avaliada a Beleza, teve-se: “O mais justo é o mais belo.”

Durante os séculos, as concepções estéticas foram-se modificando até chegar à ideia atual de Beleza Subjetiva, aparentemente desprendida da moral, em que cada um terá que se arriscar num diagnóstico acerca da beleza que “enxerga” (concebe). Como disse Eco [1] Eco, Umberto. História da Beleza; trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004. Pág. 428 : “Será obrigado a render-se diante da orgia de tolerância, de sincretismo total, de absoluto e irrefreável politeísmo da Beleza.”

Embora formalmente diversas, aquela Beleza Grega (perigosamente) se afina à da contemporaneidade – mesmo em meio ao furdunço característico a esta última. Em novembro do ano passado, no Museu de Arte Contemporânea em Olinda-PE, uma exposição intituladaMacunaíma Colorau, idealizada pelo artista Lourival Cuquinha e pela produtora Clarice Hoffman, fez despertar, aguçadamente, as implicações éticas carregadas pela estética. E que nesse sentido não podemos nos eximir de questionar.

“Macunaíma Colorau” trata-se, mormente, da presentação das populações indígena e quilombola pernambucanas – situadas no interior deste estado – em todas as suas complexidades políticas, estéticas, culturais, através de fotografias e videoinstalações. O que surpreende, no entanto, é a quantidade de estereótipos entranhados no ideário dessas pessoas (de culturas tradicionalmente negra e índia/indígena) que, apesar de não terem acesso imediato às produções (classicistas) europeias de artes plásticas, estão inundados por esta estética.

No vídeo Você é Macunaíma Colorau?, as perguntas giram em torno do que seria ser Branco, Índio e Negro. Os depoimentos nos assaltam e desapercebidos quedamos pasmos, não pela novidade das notícias, mas por vê-las tão escancaradas como se, coisas simples fossem. Para (a maioria de nós) os cosmopolitas habitantes da cidade, resposta alguma foi diferente das que estão acostumados. Apenas tornaram-se veladas, com o tempo, diante dos discursos do politicamente correto.

Diante das indagações do tipo: você é negro? Você é branco? O que é ser índio? Para além das características apenas estéticas (fenotípicas), associações de hábito e caráter entram no bojo do que é ser Branco que, por sua vez, é tomado como padrão de Beleza. Ser Branco é: “não ter manchas (na pele)”, “nariz pra cima”, “alma boa”, “não ter que trabalhar”.

Afirmações como as que se pode ouvir no vídeo a esse respeito às vezes soam tão retrógradas, no entanto, essas mesmas impressões são absorvidas como axiomas, não quando em palavras, mas como belas imagens. É por isso mesmo que não é de se espantar o sucesso cinematográfico da trilogia O Senhor dos Anéis, dirigida por Peter Jackson nos anos de 2001 a 2003. Série de filmes baseada numa obra literária de mesmo nome, criada pelo inglês John Ronald Reuel Tolkien [2] Tolkien nasceu na África do Sul e por volta dos três anos foi viver na Inglaterra – terra natal de seus pais. Foi um apaixonado por linguística. Cursou a faculdade de Letras em Exeter. Lutou na Primeira Guerra Mundial, período em que começou a escrever os primeiros rascunhos de suas principais obras O Hobbit, O Senhor dos AnéisO Silmarillion, esta última, sua maior paixão, que, postumamente publicada, é considerada sua principal obra, embora não a mais famosa., que não é outra coisa senão uma obra estético-moral.

Embora a trama seja construída em torno dos Hobbits, uma raça especial cheia de virtudes e pouquíssimos vícios, a raça Humana é sempre o parâmetro. O sucesso ou fracasso da trama quase sempre está ligado às demonstrações de caráter dos Homens.

O Homem corresponde à Unidade, à referência estético-moral. A partir dele se medem todas as coisas: o melhor e o pior. Ele é o microuniverso. Figura o Bem e o Mal. O Belo e o Feio. O claro e o escuro. A Ordem. Tomemos por exemplo Aragorn. O herdeiro do trono de Gondor, da mesma linhagem de Isildur, e que por isso mesmo teme ter em suas veias o mesmo sangue corrupto que traiu a esperança de todas as raças da Terra-Média. Ao mesmo tempo, é um guerreiro destemido. Ele é a dicotomia: de um lado a fragilidade, o medo de ser traído por si mesmo, e do outro a força, a bravura. Trata-se de um homem bonito, mas que por seu receio não se porta como um herdeiro do trono, aparentando ser um reles guardião de aspecto sujo.

Todas as outras raças parecem ser construídas propositadamente pelo autor a partir desses traços humanos em estado mais puro e/ou intensificado:

Os Hobbits são um povo alegre, discreto, que ama a paz, a tranquilidade e a terra lavrada. Preferem regiões campestres e se vestem de cores vivas. Têm pés com solas grossas como couro, cobertos por pelos grossos. Geralmente, seus cabelos são encaracolados e castanhos. Os rostos são mais simpáticos do que bonitos: largos, olhos brilhantes, bochechas vermelhas – “bocas prontas para rir e para comer e beber”. Essas pequenas criaturas gostam de brincadeiras a qualquer hora do dia e fazem cinco refeições por dia. São hospitaleiros, adoram festas e presentes – que oferecem sem reservas e aceitam com gosto. Têm ouvidos agudos e olhos perspicazes, tendência a acumular gordura na barriga; nem por isso deixam de ser ágeis quando preciso. Não medem mais do que 1, 20 metros.

Os Elfos: altos, eretos, cabelos de um dourado brilhante, ou muito escuros, como a sombras da noite. Rostos belos e jovens. São temerários. Eles têm olhos brilhantes e agudos, uma voz que parece música. São sinônimos de sabedoria, imortalidade e poder. Seres veneráveis.

Os Anões são um pouco maiores do que os Hobbits. Têm o corpo truncado, rostos envelhecidos. São feios, quase sempre mal-humorados, ambiciosos e orgulhosos. São trabalhadores, guerreiros. Adaptam-se facilmente às situações adversas. São mineradores e artífices. Moram nos lugares escuros das minas, ou nas montanhas.

Em O Senhor dos Anéis, existe uma implicação entre aparência e moral. As raças humanóides são representadas de acordo com seus perfis de caráter. A estética do filme está carregada da ideia de Beleza agregada à Virtude. O Feio é a presentificação da falta, como vemos em Platão.

A estética fílmica está toda comprometida com os ideais de Virtude e Beleza. O que é Belo é também iluminado e virtuoso; o que é Feio é sombrio, asqueroso e vil. Não há hibridismo, com exceção dos Ents, os sábios guardiões das Florestas, que embora feios, não são maus. E o Homem, que é a complexidade, a dicotomia: nele habita o Bem e o Mal, mas está sempre em luta consigo mesmo para trazer à tona o que é Bom e Virtuoso. No contexto da obra não há a ideia do Feio aceitável ou da bela representação do Feio de Kant.

Os Orcs são asquerosos, monstruosos, maus e vivem nas trevas. Porém, eles já foram Elfos, os seres brilhantes. Do mesmo modo que a criatura repugnante Gollum foi um Hobbit. Existe uma indicação clara da necessidade de distinguir essa dicotomia: entre o que é Bom e o que é Mau. Durante a trama é possível perceber que sempre há uma punição, quase sempre com morte, para os que não se mantiveram virtuosos. É o caso do guerreiro Boromir, que tentou roubar o Anel para si; dorei Théoden de Rohan, que inicialmente nega ajuda à cidade de Gondor, e do próprio Frodo, personagem principal e mais virtuoso de todos. Quando, influenciado pelo Anel, decide não destruí-lo, acaba sem um dos dedos da mão.

O enredo fílmico, tanto quanto sua estética, está dividido em luz e sombra. O Condado, lar dos Hobbits, é um lugar ensolarado, com muitas árvores, enquanto que emMordor, onde vive Sauron, só existe escuridão, fumaça e uma terra inóspita. Essa indicação se segue, respectivamente, nos lugares onde habita a bondade e onde a maldade está instalada. É possível comparar essa mesma concepção no trípticoO Juízo Final,de Hans Memling [3] Hans Memling (ou Memlinc) nasceu entre 1430 e 1435, em Seligenstadt, Alemanha. Acredita-se que tenha recebido educação artística em Colônia, de onde seguiu para Flandres, provavelmente para trabalhar no ateliê de Rogier van der Weyden.  Em 1465 mudou-se para Bruges e conquistou celebridade na cidade e arredores. As composições e tipos de Memling repetem-se vez por outra, com poucos indícios de uma evolução formal. Suas virgens pouco a pouco se tornaram mais esbeltas, mais etéreas e tímidas. As obras tardias distinguem-se pelos motivos de inspiração italiana, como cenas bucólicas e cortesãs. Sua arte revela a influência dos pintores flamengos da época: Jan van Eyck, DirckBouts, Hugo van der Goes e, sobretudo, Rogier van der Weyden., 1472.

A história está construída em bases éticas nas quais representantes de todas as raças devem, virtuosamente, se unir em função de um bem maior, que é a salvação da Terra-Média através da destruição do Anel de Poder. Nesse sentido, a trama é intrigante porque, no início do filme, quando a Elfa Galadriel narra o epílogo, relata que o Mal foi trazido pela ambição de três Elfos, Sete Anões e Nove Homens. Mas é um Hobbit, a raça mais virtuosa, que tem que carregar o fardo de levar o Anel até as terras sombrias de Mordor para ser destruído. Todas as raças entendidas dentro de uma Ordem se equilibram. Elfos se contrapõem aos Anões em beleza, altura, sabedoria; e os Hobbits aos Homens, sobretudo na capacidade de manter a pureza da alma.

A questão mais urgente a ser pensada é que o Bem e o Mal não são coisas tão distantes e, nem sempre, facilmente identificáveis nas instâncias do nosso cotidiano. A ideia de Beleza agregada à Virtude pode levar a preconceitos graves. O Branco descrito por alguns dos entrevistados no “Você é Macunaíma Colorau?” parece ter a mesma afiguração do Homem em O Senhor dos Anéis, em que todas as outras “raças” parecem auferir estados de virtude e beleza quanto mais se assemelham a esse ideal.

É difícil saber ao certo como deu-se essa construção de valor em torno do Branco. A versão mais plausível é que esse ideário tenha-se desencadeado através do cristianismo: inicialmente com a catequese dos jesuítas e posteriormente a evangelização protestante – não à toa ainda vinga a concepção de que o Branco (europeu) é prospero, porque abençoado por Deus. Não podemos também deixar de considerar a grande influência da televisão – nesta, os estereótipos chegam para se enraizar. Nesse sentido, aquele valor ético-estético grego chega às comunidades indígenas e quilombolas, ainda que essas não tenham acesso imediato às obras de arte classicistas. Percebe-se o dano quando o modelo estético-ético é recepcionado às avessas. Daí, o modelo formal (fenótipo) arbitrariamente ganha, por associação, conteúdos de virtude, bondade e justiça (caráter). Ninguém está imune a esse efeito colateral. Quem nunca se pegou dizendo: “ele, um rapaz tão bonito, bem vestido, jamais pensei ser bandido”?

Com o modernismo, a questão ética/estética perde força, praticamente sai do foco com a concepção l’artpourl’art. A contemporaneidade recepciona isso, ao mesmo tempo que tenta se voltar para os discursos político-sociais, vivendo uma grande ressaca (sem precedentes?). Inebriados, rejeitamos o debate aprofundado e vivemos de constatação: como se o puro “apontar realidades perversas” fosse suficiente frente a todas as reflexões-transformadoras que nos furtamos a ter.

Diante da situação tão complexa na qual vivem as comunidades indígenas e quilombolas, soam condescendentes as suas formas de exposição na sociedade dos “Brancos”. Descendentes diretos de índios e negros nos chegam exóticos e simbólicos, mas o fato é que não nos aprofundamos em suas realidades de fato – tampouco, eles às nossas. Então, ficamos nesse jogo de aparências. Fingimos entender o que seria ser Negro, Índio ou Branco (é pra manter o itálico, como nas outras grafias?),destacando diferenças que já não cabem mais: roupas, gastronomia, religiosidade? Hoje há quilombolas evangélicos e índios de havaianas. Não duvido que, mais dia menos dia, a McDonalds encontre sucesso por lá…

É provável que nossa sociedade ainda carregue um trauma em relação ao fracasso do maior modelo ideológico ocidental baseado na moral: o cristianismo. Assim, poderíamos, pensando juntos (não necessariamente forjando denominadores comuns), começar a dirimir muitos equívocos, começando por um em particular: ver no fracasso dos modelos ideológicos o fracasso também da moral. A moralidade, paulatinamente, veio sendo tirada da equação e o valor da nossa sociedade reside no não valor. O que se tem é uma espécie de moralidade prática (amoralidade?), individualista, isenta de responsabilidade.

Ingenuamente, fomos levados a entender que, se a moral (cristã) fosse retirada de nosso meio, estaríamos a salvo. O problema: nos recusamos a continuar com a ideia de moral cristã, mas não nos demos ao trabalho de construir outra no lugar. Porque, no fim das contas,moral [4] Aqui cabe explicar que quando falo em moral (inescapável) me refiro ao conjunto de regras e procedimentos ao qual nos adaptamos no dia-a-dia (cientes ou não deste). E que para se estabelecer um debate ético é necessário que nos demos conta da moral através da qual tomamos nossas decisões diárias. Só podemos falar em princípios éticos quando estabelecermos nossos valores (morais). é tudo o que temos. Sem ela, é impossível estabelecer uma ética.

Vale lembrar que o filme, lançado em 2001, apesar da construção estético-moral perigosa, é também uma ode à amizade, ao idealismo e à humildade. No contexto fílmico, cada raça conhecia bem quais eram os seus valores e, por respeito a estes, uma sociedade (A Sociedade do Anel) pode ser bem-sucedida. Enquanto Índios, Negros e Brancos não aprenderem quais são de fato seus valores e encontrarem, ainda que através de embates necessários, uma forma (política) de compartilhá-los, a realidade vai permanecer perversa.

Interessa a quem os discursos de resistência? Que quilombolas e indígenas permaneçam em suas aldeias e quilombos? Ter a posse de suas terras é um direito e não um fim. Não deveriam todos conviver com a possibilidade de habitar “a cidade”? Seriam menos índio ou negro por isso? Qual é exatamente o valor que precisa ser preservado?

Ora, “uma pessoa só pode ser livre se todas as demais o forem igualmente” “uma pessoa só pode ser livre se todas as demais o forem igualmente” [5] Habermas, Jürgen. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade, São Paulo: Martins Fontes, 2004. Pág13.. Não podemos prescindir de uma discussão ética, muito menos estética – esta última nos assalta com morais escandalosas, mas naifes. Preferimos acreditar que a moral morreu com os modelos ideológicos.

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Eu gosto de arte

Eu gosto de arte. Até certo ponto. Recentemente percebi que levei anos como aprendiz: lendo, discutindo, argumentando, apreciando, pensando, praticando com o trabalho das pessoas até estar capacitado a chegar ao ponto que, para mim, realmente interessava: quando seus olhos e sua habilidade de análise estão preparados para fazer atrajetória exigida para ENTRAR em uma obra de arte. Tudo isso depende de muitos fatores: o que você conhece sobre arte mais o que pensa a respeito de religião e o que conhece sobre poesia/arquitetura/música, o que pensa sobre sexualidade, seu dia-a-dia, os livros queleu, seu pensamento livre, onde nasceu e cresceu o que você sabe a respeito de história da arte, gostos que adquiriu durante sua vida, trabalhos de arte que já viu/gostou/não gostou, os arquivos de imagens que guardana memória, os filmes que assistiu, o que fez hoje pela manhã e muito mais. AGORA você está pronto para realmente apreciar arte. Para descobrir obras onde não esperava encontrar arte, onde NADAtem a intenção de ser arte. Agora você está no negócio. Capaz de criar a arte “INSTANTÂNEA POR SI MESMA”. Não me leve a mal, é claro que ainda gosto de ver o trabalho de artistas, mas conforme vou ficando mais velho, gosto cada vez de menos trabalhos… Porém quando vejo um que gosto, eu ganho meu dia. Há alguns anos atrás eu estava na cidade de Belo Horizonte no Brasil, e fui com alguns amigos ao Museu da Pampulha, projetado por Oscar Niemeyer, localizado em um parque muito bonito afastado da cidade, para assistir a exposição de fotos de um artista muito conhecido. Não gostei da exibição – me pareceu ser o início do fim da fotografia. Pensei assim porque o artista mostrava algumas imagens de determinados objetos em cima de mesas e embaixo das mesas os próprios objetos… INTELIGENTE. Mas o mesmo aconteceu à pintura anos atrás… A fotografia, nesse caso, não estava satisfazendo mais como linguagem, era necessária uma ajuda de fora (nesse caso, debaixo). No caso da pintura, tinha que ser a pintura MAIS alguma coisa, como: a continuação da imagem na parede, pendurando objetos na superfície, até mesmo o uso de agulhas de acupuntura; colocar um banco na frente da tela e denominando o mesmo como “uma instalação”…

Seja como for, depois da exposição, entramos no carro e alguém mencionou que TÍNHAMOS que ir ao salão de festas, também de Niemeyer, no mesmo parque, mas do outro lado do lago. Quando chegamos lá, decepção… Havia um aviso na porta dizendo que um produto acabara de ser colocado no chão e que não poderíamos entrar. Então meus amigos foram se sentar sob uma árvore próxima enquanto eu resolvi jogar um pouco de conversa fora com o zelador, que estava junto do lago vestindo seu uniforme, PESCANDO — Oi – eu disse – que pena não podermos visitar o prédio… Sim – respondeu – ninguém pode entrar durante as próximas 24 horas… E, como ele estava pescando, perguntei: — Você já pescou algum peixe? E ele puxando o bambu com uma linha de nylon presa na ponta falou: NÃO TEM NENHUM ANZOL AQUI, SÓ ESTOU MATANDO O TEMPO… Droga! Esqueça a arte contemporânea, aquele cara estava pescando sem anzol. Definitivamente eu ganhei meu dia. Talvez ele estivesse pensando em sua infância ou no jogo de futebol que assistiu a noite passada quando seu time perdeu, ou apenas imaginando os peixes circulando ao redor daquela linha e pensando ‘que porcaria’…

Numa outra ocasião eu estava caminhando do meu apartamento para meu estúdio, que fica a duas quadras de distância, quando vi um carro caindo aos pedaços, completamente corroído pela ferrugem, cheio de buracos por toda parte e o seu proprietário trabalhando todo orgulhoso dando polimento no único “pé quadrado” do capô onde a pintura estava boa. TURBO POESIA.

Ainda, na mesma quadra, em outra ocasião, havia um velho varrendo a calçada, então subitamente ele parou o que estava fazendo, segurou uma árvore de tamanho médio com as duas mãos e começou a chacoalhar ela com toda sua força. GANHANDO TEMPO.

Essas estórias não são engraçadas. Para mim, elas são belas. São: a ARTE DO INSTANTE – não pretendem ser, mas o são…

Em minha opinião, quando um artista fala sobre seu trabalho, não deveria dizer alguma coisa como: NESSE TRABALHO A IDÉIA É BLÁ, BLÁ, BLÁ E ISSO SIGNIFICA/REPRESENTA: BLÁ, BLÁ, e tal. Um artista não tem que saber tudo sobre seu trabalho. Ele deve conhecer, a meu ver,a espinha dorsal, a coluna vertebral de seus pensamentos estética e conceitualmente. Na maioria das vezes pode ser muito desapontante ou aborrecido ouvir um artista falar sobre seu trabalho. Há muitos anos atrás, durante a Bienal de São Paulo havia um trabalho de um artista de Israel. Tentarei contar detalhadamente o que aconteceu: tinha um corredor onde podíamos ficar, e de cada um dos lados uma sala com um vidro bem grosso e forte e dentro de cada sala havia uma daquelas máquinas que lançam pratos para o treinamento de tiros com armas. Então o público ficava parado no corredor, sabendo que aquela máquina iria jogar um prato emnossa direção, mas mesmo sabendo que o vidro iria segurar o impacto do prato quando este viesse voando,todos ficavam com medo. BONITO, aquele cara estava falando sobre ANTECIPAÇÃO… É como ir ao médico para tomar uma injeção no traseiro… Você antecipa isso e sofre antecipadamente. Não é como tropeçar na rua calçando sandálias de dedo. Dói muito mais, mas você não estava esperando. Sem mencionar como antecipamos a morte… E então BAMMM, outro prato voando e as pessoas gritando. Dois dias depois o artista iria dar uma palestra e eu decidi ir… Ele parecia inteligente, prendeu a atenção de todos por 15 minutos e então…NAQUELE TRABALHO, A IDÉIA ERA REPRESENTAR COMO OS ATIRADORES DE JERUSALÉM ESTÃO O TEMPO TODO CORRENDO PERIGO. Cara, como eu preferi minha coisa da antecipação! Não que os atiradores, Jerusalém e perigo não fossem um bom material para a arte. Mas parece que o artista tem a palavra final e é isso aí. Não para mim.

Desculpem-me se estou escrevendo esses comentários. Eu mesmo odeio quando vou a algum lugar ea pessoa senta e LÊ. É porque o inglês não é minha primeira língua e eu prefiro ter tempo para sentar na frente do computador e escrever e re-escrever e talvez dessa maneira eu possa ser compreendido. Por essa razão estou pedindo para alguém ler isso para mim. Soará mais claro. Quando tenho que falar sobre meu trabalho sempre falo sobre um milhão de outras coisas antes de chegar ao ponto de mencionar meu trabalho por si só. Então, lá vou eu. Aqui está a palestra que dei em Baff durante minha residência lá em 1999:

“Meu trabalho é uma tentativa de gerar memória através da pintura.

Estou interessado em novas significações.

Meu trabalho lida com fricção, tensão, formas, superfícies, relações, construções.

Ser um pintor hoje em dia é como ser o advogado de um serial killer.

Vou mostrar 40 slides de trabalhos produzidos nos últimos 40 anos, em ordem cronológica. Eles serão mostrados de forma rápida e por isso vou considerar que esta é a minha primeira obra de vídeo-arte.”

Não entendo porque tantas pessoas enfatizam tanto a filosofia quando estão falando sobre arte. Parece que assim elas darão um aspecto sério sobre as coisas. A filosofia é, em minha opinião, UM dos aspectos que mencionei no início. Os dias de avant-garde terminaram, o pós-modernismo é hoje uma idéia antiga… A arte é muito mais algo baseado em experiências acumuladas. Ainda, eu não gosto de citar, nem de citações em geral. As pessoas tendem a citar apenas ALTOS PENSAMENTOS,              pensando com isso estar acrescentando um aspecto sério e respeitável às coisas. Não que eu tenha a tendência de direcionar minhas ideias para o campo humorístico ou cínico– essa não é uma característica minha. Mas eu realmente estou inserido em INVENÇÃO, TRANSFORMAÇÃO, ERRO, HABILIDADE, FALTA DE HABILIDADE, INTENÇÃO, FALTA DE INTENÇÃO, ESTADOS MENTAIS PECULIARES, ATMOSFERAS ESPECÍFICAS, VERTICALIZAÇÕES, O INESPERADO, O SIMPLES e uma lista enorme de coisas.

Tenho ministrado workshops de pintura uma tarde por semana durante os últimos 15 anos. Costumo pedir no primeiro dia a um novo estudante que ele me dê o nome de três pintores vivos que sejam de seu interesse. Também gosto de perguntar por que estão interessados em pintura, uma vez que, se tudo correr bem, levará uns 15 anos para conseguirem alguma coisa. SE tudo der certo. E depois de todos esses 15 anos ele irá descobrir que não será convidado para coisa nenhuma, enquanto seus amigos que começaram na mesma época fazendo outras coisas estão recusando compromissos por estarem com a agenda cheia. Também gosto de dizer que os problemas com pintura hoje em dia são três: COMO pintar, O QUE pintar e POR QUE pintar. Porque alguém deve trabalhar com uma mídia tão “pobre” (duas dimensões, altura e largura, e para simular três dimensões é necessário usar truques como perspectiva, luzes e sombras…)?Eu digo a eles, “por que vocês não tentam, digamos, INSTALAÇÃO, onde você possa usar fotos, música, escultura, peças, atores, vídeo, iluminação, literatura, design, blá, bláe TAMBÉM pintura?” E no final da primeira aula eu sempre termino tentando explicar que um artista NUNCA coloca alguma coisa em código para ser decodificada… Esqueça aquela sensação de UHU, EU ENTENDI. Ela não existe. Toda a compreensão vai depender muito mais daqueles fatores que foram mencionados anteriormente. Caso estejam procurando compreender. Mas é tão bonito NÃO tentar compreender… Para mim, a coisa mais difícil de ser explicada ou de tentar explicar é COMO UM ARTISTA PENSA… Para não mencionar que o MESMÍSSIMO trabalho pode ou não ser ARTE dependendo de quem o fez. Cara, eu admiro os alunos que voltam para a segunda aula…

De volta a 2003, pedi a Wayne Baerwaldt que escrevesse um ensaio para o livro que seria publicado na ocasião da 25ª Bienal de São Paulo. Ele me pediu uma declaração e aqui está exatamente o que eu enviei para ele por e-mail:

“Wayne, lá vamos nós. Em primeiro lugar, você recebeu as nove imagens que eu enviei? Porque o servidor está dizendo que um dos meus dois e-mails contendo as imagens não foi entregue.

Os trabalhos que serão mostrados na Bienal são sete, todos com cerca de 190X250 cm, todos na horizontal, óleo sobre tela, muito mais matéria do que antes, palheta muito estranha, estrutura mais complexa e de fato o que aconteceu é que dez anos atrás poucos elementos foram suspensos no espaço, depois lentamente começaram a se agrupar e se tocar, multiplicar cada vez mais as composições e agora eles não apenas se prendem uns aos outros como se sobrepõem e o resultado é mais montado, mais pintura. Ainda o objetivo principal é a meu ver gerar memória, criar uma situação realde pintura que será reconhecida mais tarde no mundo exterior. Minhas referências mais intensas infelizmente não são de pintores brasileiros, embora me sentisse bem se pudesse dizer que são. Essa é uma das razões pela qual a crítica local não sabe como ler meu trabalho, é como se eu tivesse caído de pára-quedas do céu, eles não conseguem catalogar meu trabalho, eles não se sentem seguros e,sob meu ponto de vista, não conseguem construir uma linhagem que é tão importante para a cultura de uma nação, Mas continuemos: claro que olhei (em diferentes momentos): Kline, Twombly, Jonathan Lasker, Terry Winters, Julian Schnabel,Giorgio Morandi, Tapies,e algumas pessoas dizem que minhas pinturas têm algo de Beatriz Milhazes (discordo, minha mão é mais pesada que a dela. O senso de composição é diferente, talvez o único ponto em comum seja no que tange ao FUNDO/FIGURA). 

O uso da cor é novo. A palheta anteriormente havia sido limitada, para evitar a sedução através das próprias cores. Agora eu abuso de uma enorme possibilidade de cores muito diferentes. Um de meus estudantes morreu, e eu herdei todas as cores de suas tintas a óleo, a maioria delas eu nunca compraria e estou gostando muito. O processo é todo muito claro, o uso de cópias de má qualidade dá a chance de desconstruir o processo da pintura, no exato momento em que as decisões são tomadas.Tinta fresca se mistura e tinta sobre pintura seca deixa cicatrizes, justaposições, superposições. O resultado é menos gráfico, menos silencioso, mais afirmativo. Tudo isso é resultado de uma tentativa de deixar o trabalho renovado, de criar novos problemas a serem solucionados. Não uma declaração muito Professional Wayne, mas essa é a direção que o trabalho está tomando. Não antropofágica nem simulacra, nem nova mídia e não relacionada a si mesma.Ainda tentando trabalhar nesse espaço limitado bidimensional, esse espaço real, CONSTRUINDO UM UNIVERSO DE PINTURA. Trabalhando muito,com o intuitodecriar uma imagem que possa pertencer a si mesma.”

Tenho tido sorte e nesses quase 20 anos que tenho vindo para o Canadá conheci e fiz muitos amigos, alguns dos quais muito bons pintores: Eleanor Bond, Wanda Koop, Will Murray, Ryan Slugget, Ron Moppet, Chris Cran, Shary Boyle, Numa, apenas para mencionar alguns. Nenhum deles é o advogado do serial killer. Cada um deles solucionou o problema de COMO, O QUE E POR QUE pintar, da sua própria maneira. O que é bonito a respeito da pintura e deste problema para mim explica POR QUE algumas pessoas insistem em pintar, é que embora todos comecem a pintar devido ao prazer de misturar cores, ao desafio da tela branca ou mesmo de descobrir se ESTOU APTO A REPRODUZIR A VIDA REAL??? POSSO FAZER PINTURA ABSTRATA??? POSSO PASSAR UMA MENSAGEM??? Não tendo a menor ideia de qualquer conceito nem a coisa estética definida, a beleza PARA MIM é o fato de pertencer a uma tradição, fazer parte de alguma coisa que, de certa forma, é um dos pilares da história da arte, e que, se não for por qualquer outro motivo, já é suficiente.

Sei que parece terrível. Mas eu gosto de pintura… Sou pintor… As imagens são minhas, mas a IMAGEM POSTERIOR, esta já não me pertence mais. As pessoas tomarão controle sobre a imagem posterior, dependendo do que fizeram naquela manhã, do que elas gostam a respeito de poesia/música/cinema/, de seu dia-a-dia, estado emocional, os livros que leram, onde cresceram etc., e de certa maneira elas terminarão minha pintura, não apenas em suas retinas, mas em suas cabeças, como se editassem um vídeo em um computador, no modo cronológico, onde pudessem acrescentar, subtrair, reverter, usar câmera lenta, acelerar, inserir sequencias, narração e assim por diante, então eu lhes peço apenas um pequeno favor–  pensem em acrescentar MÚSICA ALTA PARA ESSAS PINTURAS SILENCIOSAS.

Em julho passado eu participei do SLED ISLAND FESTIVAL em Calgary e tive a chance de assistir a um ótimo show de Mogwai, uma das minhas bandas preferidas. Depois de cada música, o cara da guitarra dizia com seu sotaque escocês: THANK YOU VERY MA

Então, só pra variar, eu vou citar: pela sua atenção, “THANK YOU VERY MA”.

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Uma certa produção de pintura

No dia 7 de março de 2009 inaugurei, como curadora,a exposição coletiva Investigações Pictóricas, no Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC), no Rio de Janeiro. Como o nome diz, trata-se de uma exposição de pintura, a mídia mais tradicional relatada pela história da arte ocidental desde o século XV -época em que surge a nomenclatura. Trazer o tema à tona veio da vontade de examinar uma produção que se mantém viva e original, feita com paixão por artistas mais jovens, apesar da enxurrada de novas mídias que se vê na produção de arte desde os últimos quinze anos.

Falar de pintura nos tempos atuais pode ter duas faces, uma enfadonha e outra inovadora, pois ora oassunto é antiquado, ora é uma jóia atemporal à espera do redescobrimento.Por sorte,os fatos não são nem uma coisa, nem outra.

É notório que a pintura teve mortes e falências decretadas ao longo do século XX e, para compreender por que surgiu essa noção de ‘morte’, é preciso voltar uns 150 anos no tempo.Mesmo que corra o risco de ser rasteira, tentarei fazer esse retrospecto em poucos parágrafos.

O primeiro golpe na soberania da pintura como principal meio de representação da natureza até o século XIX,foi o advento da fotografia. Porém, enquanto que a função meramente representativa da pintura se enfraquecia, o suporte da tela começou, poucas décadas depois, a prestar-se para experimentações das vanguardas modernistas que buscavam novas possibilidades figurativasadiando-se, assim,a tal morte anunciada.

Contudo, é no final dos anos 1960, com a segunda onda vanguardista,que a pintura irá se tornarreferência de conservadorismo, uma vez que a tela não mais dava conta de tudo o que se queria pesquisar – e questionar. A arte se tornava política e filosófica, apresentada num campo expandido além do suporte objetual,num período marcado pela produção de obras tecnológicas apoiadas no vídeo e na fotografia. Por sua vez, sumidades da crítica modernanorte-americana como Clement Greenberg e Michael Fried, cujas análises de obrasse apoiavamem preceitos formais, não se interessaram pelas criações conceituaise, ao contrário do que tinham feito com a pintura abstrata nos anos 1950, se abstiveram de advogar em favor de qualquer prática artística. Desse modo, pode-se dizer que a produção pictórica dos anos 1970 ficou eclipsada por toda uma outra produção e sua morte, enfim,parecia irremediável.

Não obstante, como observaram Paul Wood e Francis Frascina“na história da arte moderna, o próprio fato da ausência de cultivo de uma área pode torná-la interessante para uma nova geração: os tempos mudam, e com eles, as necessidades.” [1] WOOD,  Paul; FRASCINA, Francis. Modernismo em Disputa – A arte desde os anos quarenta. São Paulo. Cosac & Naify, 1998.  E desse modo, o início dos anos 1980, com a cena artística saturada de fotografias documentais, vídeos experimentais e obras efêmeras, compreende a pintura como um fôlego de renovação ou até, inovação. Explosões de cores, figuras, elementos gráficos e grandes formatos tomaram galerias e museus de assalto, atendendo tanto a uma geração de artistas que havia continuado a pensar pintura, quanto ao mercado, ansioso por fazer circular obras menos ‘insossas’ plasticamente. A década então se caracterizaria pelo seu pop declaradamente casual e por vezes fútil, e resgatava o labor da pintura e um certo caráter humanista que havia sido negligenciado na produção conceitual e minimalista.

E assim fomos até os anos 1990, quando novamente o mercado se satura de pintura e somos chacoalhados pela revolução das novas tecnologias da comunicação. Em meio às muitas novidades, o fenômeno dos anos 1970 parece que se repetiu fazendo com que mídias tradicionais de procedimentos artesanais, como é o caso da pintura, fossem preteridas pelo fascínio dos suportes digitais e eletrônicos. Porém, assim como já foi citado, o próprio fato da ausência de cultivo de uma área pode torná-la interessante. E é isso o que estamos vendo hoje. A pintura não morreu nem está sendo redescoberta; ela simplesmente nunca saiu de cena – e nem nunca sairá.

Neste momento em que superamos a era do multiculturalismo, os artistas partem de um começo próprio, não mais referindo suas pesquisas a bases ocidentais europeias, como foi toda a história da arte até a pós-modernidade. Nesse sentido, longe de buscarmos uma pintura brasileira ou internacional, o que presenciamos – e a exposição Investigações Pictóricas aponta para isso – é uma diversidade de temáticas, de referências, de procedimentos e técnicas que permeia toda a produção de arte atual, inclusive a pictórica, na qual o discurso não está precisamente atrelado a um questionamento ou referente único.

Então foi surpreendente olhar atentamente para a produção de pintura de artistas mais jovens, brasileiros, e perceber que o campo é amplo e oferece obras de qualidade e apuro. A seleção curatorial de Investigações Pictóricas foi apenas um recorte, mas espero que ela sirva para indicar que a pintura continua e continuará de pé, não importa o quanto digitais e cyborgs nos tornemos no futuro.

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O SPA e a sua crise

O SPA das Artes já está na minha mira há algum tempo. Desde quando comecei a me interessar em compreender os entrelaçamentos possíveis entre arte e política, tomava-o como local privilegiado, no Recife, para o desenvolvimento dessa relação. Por incentivar ações de intervenção urbana, muita coisa produzida no evento trabalha questões contemporâneas que envolvem a política em um sentido ampliado, entre os quais problemáticas ambientais, a necessidade de ressignificar a vivência dos indivíduos na cidade, de ativar o sensível e o reconhecimento do outro no espaço urbano. Muitos dos trabalhos realizados no SPA têm a forte característica de provocar uma interação com a cidade, de inserir a ruptura e o questionamento na esfera pública e de trabalhar as tensões existentes dentro desse espaço.

Ao longo das investigações, surgiu a necessidade de aproximar o foco sobre o evento, e não apenas visualizar a relação entre arte e política presente em alguns trabalhos produzidos nele. Voltar o olhar exclusivamente para o SPA trouxe à tona muitas outras questões instigantes (e problemáticas), sendo a principal delas a relação entre arte urbana e dimensão institucional. O deflagramento da crise na edição deste ano, colaborou ainda mais na decisão de dar prioridade à análise desse relacionamento, aparentemente tão paradoxal, entre ação artística no espaço urbano – experimental – e Prefeitura.

Nesse sentido, o ano de 2009 foi decisivo na minha escolha por entender melhor o SPA, visto que ficou marcado como o momento do reconhecimento de sua fase crítica. Ideias que não deram certo, diminuição da participação dos artistas, dificuldade de atingir um público mais amplo, são alguns dos obstáculos e desafios impostos à coordenação que, a cada ano, tenta resolvê-los adaptando o SPA a essas demandas. Porém, nesta oitava edição, esses desafios tornaram-se ainda mais difíceis de encarar, diante da redução drástica da verba destinada ao evento pela prefeitura.

Por ora, gostaria de compartilhar algumas impressões iniciais surgidas após um primeiro ano de pesquisa. Não se trata de teorizações ou diagnósticos conclusivos sobre qual é o problema do SPA. Nesse momento inicial, o que mais me preocupou foi o levantamento de questões para serem respondidas ao longo do trabalho que irei desenvolver posteriormente. Minha intenção, neste momento, é levantar hipóteses sobre a crise do SPA, que serão testadas durante a investigação. Essas perguntas e hipóteses iniciais têm a função de ajudar no delineamento do objeto de pesquisa e, mais além, de incitar um debate sobre o que deflagrou a crise do SPA e quais podem ser as possíveis soluções.

 

Sobre o SPA e a Crise

Uma das questões que acho importante ressaltar, na análise do SPA da Artes, é o fato dele ter sido criado, desenvolvido, implantado e mantido (até hoje) por artistas. Esse engajamento de artistas na esfera institucional, como criadores de políticas públicas para a arte, é um fenômeno que Sônia Salzstein identifica na história da arte brasileira como ocorrendo desde, pelo menos, os anos 1980. É o que ela irá chamar de gestão amadorística. Esse tipo de atuação institucional se caracterizava pela presença de artistas e intelectuais que pensavam e implantavam importantes projetos voltados à arte contemporânea. Os diretores e colaboradores, nestas gestões, “eram mobilizados pelo objetivo de consolidar uma arte contemporânea brasileira e, por sua vez, oriundos de áreas externas à carreira institucional, indivíduos que percebiam no Estado a oportunidade de aglutinar energias e estimular trabalhos experimentais. Foi dessa maneira tão peculiarmente brasileira que projetos artísticos radicais acabaram sendo subvencionados por ministérios ou secretarias de cultura de âmbito estadual ou municipal, patronos muito mais frequentemente de projetos conservadores e populistas.” [1] SALZSTEIN, Sônia (2001). Uma dinâmica da arte brasileira: modernidade, instituições, instância pública. In:Basbaum, Ricadro (org). p. 400. E foi a partir dessa maneira “tão peculiarmente brasileira” de institucionalização que foi possível, em 2002, o surgimento de um evento como o SPA das Artes no seio da Prefeitura da Cidade do Recife.

O SPA apresenta, pelo menos, três características interessantes em sua concepção: uma é a necessidade de ampliação do espaço para a arte contemporânea na cidade; a outra é a existência de artistas (ao invés de burocratas ou políticos) promovendo políticas públicas voltadas ao setor artístico dentro da prefeitura da cidade; a terceira é a necessidade de afirmar o caráter experimental da arte, estimulando a intervenção urbana como ação artística privilegiada.O SPA propunha apresentar os novos artistas e convidá-los a fomentar uma conversa entre a cidade e a arte contemporânea, visto que as instituições não conseguiam cumprir esse papel.

À medida em que o evento foi ampliando, alcançando importância na agenda cultural do Recife, sua contribuição inicial aos artistas também precisou aumentar, daí que, entre outras ações, foram implantadas as Bolsas de Incentivo à Produção, através das quais passou-se a proporcionar aos artistas ajudas de custo à realização de trabalhos de intervenção urbana e também de oficinas. As bolsas foram disponibilizadas através de uma seleção de projetos, segundo um edital lançado pela prefeitura. Esta ação permitiu ampliar as fronteiras do evento para além da cidade. Ao se lançar o edital nacionalmente, possibilitou-se a participação de artistas do Nordeste e de outras regiões do país, ampliando o diálogo entre a produção nacional e local e a presença artística do Recife no Brasil.

É a partir daí que a dimensão institucional do SPA se amplia e ele passa a ser uma verdadeira alternativa institucionalizada aos museus e salões de arte como espaço de apresentação, exibição e, agora, também, legitimação da produção e dos artistas. O processo seletivo é feito a partir de uma comissão composta por artistas, críticos e curadores que avaliam e escolhem quais projetos farão parte da edição do evento. O edital nomeia e lista as possibilidades de intervenção artística urbana, delimita os possíveis locais de execução dos projetos, burocratiza e formaliza a atuação artística na cidade.

Claro que o surgimento do edital de seleção não é contraditório nem absurdo, se observado do ponto de vista do objetivo maior que sempre permeou o SPA: o fomento à produção de arte contemporânea na cidade. Com a ampliação do evento e, consequentemente, com a maior disponibilidade de recursos para promovê-lo, por que não criar mecanismos mais efetivos de apoio aos artistas e às suas produções? Por que não ampliar ainda mais o alcance do evento, estendendo-o para as outras regiões do país? Mas o problema que se coloca é: e a intervenção urbana? Como conciliar obras que se configuram como ações efêmeras de intervenção no espaço da cidade com um edital? Importante dizer que, em minha pesquisa, tomo como arte urbana obras com características de ruptura, de indeterminação, de ressignificação do lugar, de diálogo com o público, de negociação com as tensões existentes nesse ambiente, conflituoso por excelência, baseada em autores como Chantal Mouffe, por exemplo.

Essa relação paradoxal entre arte urbana e edital pode estar na base da crise do SPA. Nas primeiras observações feitas, um dos principais indicadores deste momento crítico encontrado foi a diminuição da participação dos artistas – fato que leva a pensar na possibilidade de um esgotamento do formato do evento. A questão a se pensar é: não será essa relação conflituosa entre edital e arte urbana o motivo do afastamento dos artistas do SPA?

O edital, de uma certa forma, obriga os artistas a pensar em mídias específicas e a tomar a cidade como lugar de execução para o qual a obra pode não ter sido pensada. Nesse sentido, podem artistas que procuram incentivo para produção de suas obras, mas que não pretendem promover ações de intervenção urbana, sentirem-se desestimulados a participar do SPA – por este não se configurar como um espaço ideal para a execução e exposição do seu trabalho (isto apesar de o SPA já inserir em sua programação edifícios-sede onde ocorrem exposições, mostras descentralizadas, entre outras ações de exibição)? Ou, por outro lado, podem artistas que sentem a necessidade de intervir artisticamente no espaço urbano, ficarem intimidados com a presença de um edital que os leva a pensar em suportes específicos, locais e modos de agir – como uma espécie de bula de ação artística no ambiente? Será esse o fator causador da diminuição da participação dos artistas no SPA?

Além do conflito entre edital e arte urbana, o SPA ainda convive com um certo descompasso entre uma proposta experimental e as novas (e crescentes) necessidades de legitimação artística e de espaço expositivo que os artistas vêm demandando. O Recife, de uma certa forma, já entrou no mapa nacional como polo produtor de arte contemporânea. Projetos como o SPA e outros como o Trajetórias, da Fundação Joaquim Nabuco, por exemplo, deram fôlego novo à produção artística e revelaram vários jovens artistas ao mercado de arte nacional. Outros espaços expositivos abertos à arte contemporânea foram criados na cidade – como o Mamam no Pátio e o Instituto Banco Real, por exemplo – que, ainda de maneira precária e insuficiente, divulgam parte do que é feito atualmente no Recife. As galerias ampliaram um pouco mais a participação na produção contemporânea, lançando artistas no mercado nacional de arte (porém, ainda preferindo os já consagrados a trabalhar os muito jovens).

Essa movimentação, embora não configure uma estruturação institucional e mercadológica da arte contemporânea no Recife, faz nascer, nos artistas, a necessidade de se inteirar desse circuito, de entrar para o mercado de arte, ficando o SPA ofuscado nesse contexto. Ou seja, parece-me que hoje o evento é mais uma dentre as opções de inserção em um circuito institucional. Mas uma das menos eficazes, visto que é efêmero e não mantém, nem reproduz, o que é produzido nele por muito tempo. A maioria dos jovens artistas – o foco maior do SPA – busca a legitimação e, para muitos, essa é a razão de inscrever um projeto de intervenção urbana no SPA das Artes. Diante da necessidade crescente de inserção no mercado e legitimação, por parte dos artistas, as propostas do SPA podem estar em esgotamento.

Por isso, cabe perguntar aos coordenadores, participantes, pesquisadores, jornalistas e a todos os interessados pelo evento: deve o SPA mudar de formato a fim de se adaptar às novas necessidades artísticas crescentes? Ou manter-se com a proposta de experimentação artística, voltada para pensar o urbano? Longe de querer predizer qual será o futuro deste evento, sinto que – diante do quadro brevemente esboçado – mudanças profundas ocorrerão em suas edições posteriores. Vejo um SPA com muito mais espaços expositivos, com muito mais propostas voltadas à inserção dos artistas em um circuito de mercado de arte e pensando menos na questão da arte urbana. Se essa minha leitura está correta ou não, só o próprio SPA dirá. Mas, se assim continuar, o Recife perderá um importante e necessário espaço para a reflexão e a execução da intervenção artística urbana. De minha parte, continuarei observando, lendo e conhecendo o SPA, tentando trazer alguma contribuição ao seu processo de reflexão e mudança. Enquanto isso, torço: que a cidade mantenha esse importante lugar por ainda muitas outras edições.

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Aos leitores

“Incoerente” e “irregular” são alguns dos adjetivos que muito ouvi acerca da 7ª Bienal do Mercosul – Grito e Escuta. Ainda que compreenda o contexto no qual foram colocados, e mesmo que pessoalmente me tenha sido mais fácil listar obras de que desgostei do que o oposto – aquelas que me entusiasmaram –, pensar na natureza dessas críticas (insuficiência de coerência e de regularidade) me leva a vislumbraralgumas expectativas e intenções da arte atual. Sobretudoasque, como espectadores e interlocutores, sobre a produção artística lançamos.

“Ego dominante” Em texto institucional[1] Todos os trechos de textos institucionais da 7ª Bienal do Mercosul presentes neste texto foram retirados do website do evento: http://www.fundacaobienal.art.br/novo/index.php?option=com_content&task=view&id=1394&Itemid=1485&id_bienal=36&menu_image=-1&unique_itemid=0 sobre um dos braços da Bienal, o Musicircus – propostade John Cage (1967) experimentada por um amplo grupo de artistas e público em outubro de 2009, no contexto do evento –, comenta-se que a principal preocupação na realização do trabalho estava na demonstração de um processo coletivo e democrático de produção e experiência da música, que não poderia ser “regido por um ego dominante”.

Talvez algo muito similar possa ser dito em relação à Bienal como um todo: ausência de ego dominante.

Incorporando múltiplos egos-curadores (quase todos artistas), cuja autonomia curatorial parece ter sido mantida por meio de exposições/atividades independentes, de preocupações e formatos efetivamente distintos, aquilo que poderia serum outro – e mais forte – “ego dominante” da Bienal, uma temática, não existiu: “em seu conjunto, a 7ª Bienal propõe uma guinada metodológica: um sistema centrado nos processos de criação – mais que em temas específicos”.

Ainda que habitualmente, nas bienais “tradicionais”, os temas propostos poucas vezes sejam de fato rigorosamentetrilhados – servindo mormente como pretexto para validar as concepções de seus respectivos “egos dominantes” acerca da arte de seu espaço-tempo –, construir uma Bienal sem tais argumentos temáticos“externos” pareceassumir um desvio no foco do olhar que pensa/produz arte, agora.

Ao invés da frágil tendência em direção a umaarte que comenta o mundo por ter entendido não poder representá-lo (donde talvez surjam, com veemência, os temas das Bienais que têm estreita ligação com questões da filosofia contemporânea), a 7ª Bienal do Mercosul, resguardando uma relativa autonomia à produção artística, centra-se em seus “processos de criação” como “método” para relacionar a arte ao mundo. Trazendo questões de linguagem ao cerne do debate da Bienal – desenho, instabilidade, transformação, etc. –, larga mão do ainda persistente apego aos sistemas de significação (como chave de produção e leitura da arte) a fim de abrir espaço a investigações e experimentações de linguagem que fogem aos sentidos e nexos pré-estabelecidos. Como diria Hélio Oiticica: “todas essas são coisas velhas: a interpretação, a tentativa de buscar significados e de vivenciar estruturas significantes (…), na realidade, o que resta agora é apenas a proposição da grande invenção”[2] Hélio Oiticica em entrevista a Ivan Cardoso, em 1979, para o filme HO. FILHO, César Oiticica; VIEIRA, Ingrid (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009..E a invenção, em suas múltiplas formas de existência, pode ser considerada “absurda” – é por definiçãoextra-ordinária.

Como informa texto curatorial da mostra Absurdo, curada pela artista Laura Lima e talvez uma das mais polêmicas desta 7ª Bienal, a “exposição opera sobre a estranheza e a ideia de instabilidade. (…) criando um novo lugar ou um outro lugar para o que está por vir ou o que nem foi ainda codificado”. A arte está na mostra apresentadacomo possibilidade de ir além da linguagem que nos faz cotidianamente comunicar: sendo outra linguagem, a arte não precisa falar, dizer, argumentar. Ela pode ser Grito e, ao berrar, comunica a seu modo. Há, contudo, a “responsabilidade social”.

“Benefícios” dominantes. Em texto de apresentação de sua 7ª edição, a Fundação Bienal do Mercosul elenca suas metas. Antes do ponto que menciona o objetivo de manter uma “contínua aproximação com a criação artística contemporânea e seu discurso crítico”, em primeiro lugar está aquele que diz do “foco na contribuição social, buscando reais benefícios para os seus públicos, parceiros e apoiadores”. A “relativa autonomia” resguardada à produção artística, na ausência de um tema-ego da Bienal, converte-se numa demanda de diálogo social que precisa ser levada em consideração nos “absurdos” de suas experimentações de linguagem. O Gritonão pode ser agudo a ponto de inviabilizar a Escuta: “para a Fundação Bienal do Mercosul, esta Bienal vai promover ações pensadas para envolver o público em um processo contínuo de aproximação e diálogo”.

Ainda que a “responsabilidade social” demandada pela Fundação possa ser um ego dominante da 7ª Bienal, ela não parece inteiramente ir de encontro à arte contemporânea, que há algum tempo vem incorporando, em seus interesses e “métodos”, referências e desejos herdados do campo da responsabilidade. Como afirma texto do projeto pedagógico da Bienal, muitos são os artistas que têm buscado “restabelecer vínculos sociais, expandindo sua área de trabalho, repensando a própria prática e respondendo às necessidades tanto da comunidade artística quanto da sociedade em geral”.

Resposta e responsabilidade. O artista Vitor César cita “a autora americana Rosalind Deutsche, em um texto que aborda questões entre arte e esfera pública”[3] Depoimento de Vitor César em conversa para o catálogo do Projeto Condomínio. Recife: Branco do Olho, 2010., para se referir à ideia de responsabilidade como habilidade de resposta – do inglês, response + ability. Para Rosalind, trata-se de um modo de se posicionar diante do mundo. Para Vitor, a responsabilidade da arte não é assumir compromissos sociais, mas se posicionar criticamente face à sociedade.

Para Yuri Firmeza, outro artista, a ideia de uma “habilidade de respostas parece uma questão de eficiência produtiva, do marketing, da administração, sobretudo por conta do imediatismo explícito na response +ability.” Yuri, distinguindo-se da fala de Vitor César, afirma: “eu sempre desejei que meus trabalhos traíssem o público ao qual ele pode, um dia, ter sido destinado. Sempre almejei apagar qualquer relação de emissor para receptor que essa questão do público definido a priori me parece conduzir. Pois bem sei que arte nada tem a ver com comunicação.”[4] Depoimento de Yuri Firmeza em conversa para o catálogo do Projeto Condomínio. Recife: Branco do Olho, 2010.

Vitor e Yuri não estão participando da 7ª Bienal do Mercosul.Mas se referem a um embate que, acredito, a perpassa e ultrapassa. Entre o Absurdo e o Texto Público, como articular a necessidade de gritar com o desejo de ser compreendido? Como levar adiante um elevado grau de experimentação em arte sem condicionar-se socialmente? Se “todo esforço criador tem um lado marginal”[5] Hélio Oiticica em entrevista para o Pasquim. FILHO, César Oiticica; VIEIRA, Ingrid (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. em seu aspecto de não codificação, como manter acesa a marginalidade do que está instituído pela Fundação Bienal do Mercosul? Em que medida curadores-artistas fazem alguma diferença nesse processo?

Coincidência?Rigorosamente, nada garante que, por ser curada por artistas, a 7ª Bienal do Mercosul possua uma ética diferenciada daquela comum às bienais ego-dominadas por curadores. Contudo, quando a Oi foi convidada a patrocinar esta edição do evento e se sentiu incomodada com o título da obra Ao Vivo, de Cristiano Lenhardt, quem “se retirou” não foi o artista, mas ela. A Fundação Bienal do Mercosul, que elencara primeiramente o desejo de “reais benefícios para os seus (…) parceiros e apoiadores”, pôs o compromisso com a arte na frente. Não foi Cildo Meireles quem abdicou da participação na Bienal.

“A anarquia é a verdadeira ordem entre os homens, o resto é mero comércio”[6] Jean Natal Groishman, citado por José Oiticica em texto do periódico Ação Direta.. No final das contas, desconfio que o ego dominante desta 7ª Bienal, esseque continua demandando coerência e regularidade, tende a se apresentar em nós – o público de curadores, artistas e críticos,talvez cada vez menos acostumados com o “lado marginal” da invenção. É que, a despeito das 10 alterações propostas/impostas às obras da mostra Árvore Magnética, a intenção demonstrada pela curadoria da mesma – a de fazer a “crítica especializada, a imprensa e o público” repensarem seus papéis como “atores determinantes no campo contemporâneo da arte” –, acredito, foi de algum modo alcançado pela 7ª Bienal do Mercosul.

Todavia, no meu caso, não foi através do que ela afirmou/dialogou/propôs que esse “repensar” se deu. Foram suas lacunas, silêncios, destrambelhos; a sensação permanente de que há algo errado, incompleto, canhestro: em última instância, a ausência de capacidade de comunicação.Tudo o que pedia do público uma posição tão experimental quanto aquela que se esperava da arte.

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Um gosto de desgosto

A sétima Bienal do Mercosul tinha como tema o binômio “Grito e Escuta”. Foi um projeto selecionado através de edital, cuja equipe curatorial foi formada majoritariamente por artistas e que tinha o processo artístico como foco de todas as mostras. John Cage era o pai conceitual do evento. Essas informações a respeito da configuração da exposição sempre criaram uma expectativa muito positiva em relação ao que seria, afinal, esta bienal. Que artistas e obras seriam chamados tanto para as curadorias, quanto para as mostras? Como “formalizar”, em uma exposição que acontece em determinado espaço-tempo, discussões complexas e densas sobre arte?

Sabe-se que esse dualismo, discussão teórica X proposições artísticas, acompanha boa parte das grandes exposições. Como é de se esperar, muitas vezes não é possível ler nos objetos o que a reflexão escrita sugere, nem antever no texto obras de arte. Ou seja, é até interessante e positivo ver como os trabalhos escapam às leituras e não se limitam a uma ou outra abordagem ocasional. Por isso, não é exatamente este aspecto que interessa criticar em uma exposição. A crítica a um projeto do gênero se desenvolve, principalmente, sobre aquilo que é visível: a dimensão expositiva do evento.

Claro que também é interessante nos debruçarmos acerca da1 pertinência das discussões propostas em uma bienal – suas estratégias e “bandeiras” – mesmo quando esse todo não coincide com o que é exposto. Agora, há sim uma hierarquia entre esses campos e o que interessa em primeiro lugar sempre são as obras. E mais: é notório que, quanto maior a quantidade de bons trabalhos, menos interessa a discussão teórica que norteia a seleção. Ao mesmo tempo, tal discussão passa a fazer sentido quando a qualidade prevalece. Já quando acontece o contrário, uma mostra fraca em termos de proposições artísticas, a questão central da mostra pode ser desvalorizada pela fragilidade estética do que está exposto.

Esta Bienal do Mercosul levantou questões muito interessantes de serem abordadas e debatidas: o processo artístico, o papel do artista no sistema das artes, a curadoria como obra. É lamentável que a maior parte dos trabalhos reunidos na mostra estivessem aquém do debate proposto. Mostras como Absurdo, Árvore Magnética e Projetáveis apresentavam obras que, na maior parte, mais ilustravam conceitos como adversidade, transformação, interatividade, do que se valiam deles para existir.

 

Artistas curadores e curadorismos

Os dois grandes eixos complementares de discussão dessa bienal eram o processo artístico e o artista. As sete exposições que compunham a mostra e a rádio da bienal se desdobravam em vieses desse processo artístico, sem contudo se fixarem radicalmente em suas premissas – o que em arte é positivo. E dos 10 curadores envolvidos no evento, nove eram artistas.

As melhores exposições da bienal foram Texto Público, com trabalhos espalhados no espaço urbano, Desenho das Ideias, no MARGS e Ficções do Invisível, no Armazém A4. Dessas, Ficções e Desenhos foram curadas por Victoria Noorthoorn, a única não artista da equipe. Considero essas três mostras as melhores pois continham um número grande de obras com qualidades formais e conceituais. No caso das exposições da Victoria, que aconteceram em espaços fechados, também podíamos notar a noção expandida dos conceitos que norteavam as seleções. A questão do experimento, da anotação, nas obras do MARGS, e da autorreferência nas do Armazém A4, pareciam compor o conceito das exposições junto com a curadoria. Quer dizer, não eram ilustrativas: problematizavam as proposições teóricas que as embasavam. Por exemplo, na exposição Desenho das Ideias, poderíamos citar a série de vídeos de Maria Lúcia Cattani, que apresenta a questão do desenho como um modo de olhar e não de “gesto”. Já na exposição Ficções do Invisível poderíamos citar o registro da performance Samba do Crioulo Doido de Luiz de Abreu, na qual o artista é personagem e sujeito da ação.

A conclusão desse comentário não é que artistas não podem ser curadores, mas sim que artistas não precisam ser curadores.Geralmente um artista é melhor como artista, geralmente um curador é melhor como curador. Geralmente.

A bienal ainda nos apresentava cinco outras exposições, sendo que uma delas, a Projetáveis, reunia trabalhos selecionados via edital público. Como iniciativa, a ideia era muito interessante, já que esse é “o” mecanismo atual de inserção no circuito de arte. Logo, uma bienal pode apontar e, ao mesmo tempo, se valer desse tipo de estratégia. O resultado, entretanto, foi aquém das expectativas. De longe, essa mostra reunia os trabalhos menos potentes da bienal, com obras ingênuas quanto às discussões sobre tecnologia, de má qualidade técnica e, ainda por cima, expostas de um modo esdrúxulo e descuidado. Com certeza, o maior problema está na seleção e museografia dos trabalhos, pois revelam a incompetência da equipe em apontar obras que abordassem e se valessem, de maneira pertinente e interessante, do mote tecnológico que norteava a exposição.

Ingenuidade também era a tônica dominante na mostra Árvore Magnética, que previa a modificação dos trabalhos ali reunidos para a discussão sobre obra viva. Ora, se entendermos que para uma obra estar viva ela precisa sofrer alterações físicas, não poderíamos jamais reler Alice: saber que tudo não passa de um sonho da personagem, não acaba com o País das Maravilhas.

O trabalho de Jonathas de Andrade, Ressaca Tropical, presente nessa mostra, é uma instalação de fotografias articuladas com páginas de um diário. Entre imagens reconhecíveis de uma Recife não muito distante, anotações de um homem comum e cenas de lazer desterritorializadas, a obra nos permite um ir e vir – construção de sentidos narrativos complementares –, que são o resultado da combinação entre o realmente exposto e a história de cada espectador.

Por fazer parte da Árvore Magnética, a obra de Jonathas reconfigurava sua organização espacial periodicamente. Ou seja, mudavam a ordem das fotos, a sequência das páginas do diário e a disposição dos suportes, que ora formavam uma linha reta, ora uma sala, ou outra coisa qualquer. Esse tipo de “movimento” acontecia em todas as obras da mostra. A Módulo Lunar, de Paulo Nenflídio, era de fato uma máquina e por isso estava “encaixada” no “conceito” da mostra. Realmente, foi constrangedor ler a exposição sob o viés proposto, que ressaltava o movimento e a interatividade como valor em si, independente da necessidade interna da obra de ser lida sob esse prisma.

Ainda na Árvore Magnética, um problema ético e que de tão praticado parece perder importância: ao que tudo indica, mais uma vez na Bienal do Mercosul tínhamos um curador chileno, Mario Navarro, apresentando como uma das artistas da sua mostra a esposa, Francisca Garcia. Isso já aconteceu por essas bandas outras três vezes, sempre com o Chile. Independente da qualidade do artista, não posso me convencer de que é legítimo isso acontecer. Como diz um amigo meu, em política a elite cultural é sempre de esquerda, mas na prática artística há muitos malufistas.

 

Quaquaqualidade X qualidade

É claro que nem todos os experimentalismos curatoriais foram tão malsucedidos como a exposição de Navarro. Em meio a outras ideias mirabolantes, tínhamos um oásis: a já citada mostra Texto Público, curada pelo artista Arthur Lescher. Programada para acontecer no espaço da cidade, essa exposição reunia obras realmente instigantes e apresentava o que se espera do trinômio curadoria X artista/obra X instituição. Exemplo: a obra de Henrique Oliveira, Tapume. Tratava-se de uma intervenção escultórica numa casa abandonada do centro da cidade. Trabalho construído com compensado flexível, tínhamos a impressão de que, das aberturas do imóvel, “brotava” uma massa disforme e orgânica, como se esta derramasse em direção ao exterior da casa. A obra tornava visível o imóvel, que se encontrava neutralizado pela profusão de edifícios e estabelecimentos comerciais surgidos ao seu redor nas últimas décadas.

Esta foi a primeira vez que Henrique realizou uma intervenção fora dos espaços expositivos tradicionais. A percepção da sintonia entre a obra e a cidade, a radicalização dessa relação ao trazê-la para o espaço público, surgiu das conversas entre o artista e o curador. A partir daí fez-se necessário uma negociação entre instituição Bienal e prefeitura municipal, dona do imóvel que incorporou a obra.

Ou seja, fica evidente como é interessante quando um curador tem a capacidade de se colocar como um interlocutor ativo do artista, pensando com ele a sua obra e, a partir daí, assumindo a parte burocrática do processo para viabilizar a realização do projeto. Aí temos um exemplo real de obra viva, que segue se pensando enquanto ser no mundo e encontrando impasses no caminho.

Para colocar o artista no centro da discussão sobre arte não é necessário criar simulacros de igualdade, forçando-o a desempenhar um papel que tem muito de mediação entre o institucional e o conceitual, e que requer uma habilidade específica. É claro que o trânsito entre papéis predefinidos é bem-vindo e salutar, contudo apenas quando existe uma inquietação interna nos sujeitos que justifique a inversão do lugar de enunciação. Além disso, mais uma vez vimos artistas não recebendo cachê e sendo hospedados em hotéis diferentes dos curadores. Ou seja, nem a mais banal, óbvia e recorrente questão dos artistas não receberem para expor, foi expurgada.

Um viva à experiência [1] A Bienal do Mercosul, desde a sua quinta edição, vem apresentando propostas curatoriais que fogem ligeiramente ao lugar comum e, o que é melhor, que se transformam em conquistas para a equipe subsequente. Em 2005, Paulo Sérgio Duarte conseguiu dar o pontapé definitivo para a abertura do evento, fazendo com que a bienal deixasse de apresentar somente obras de países latino-americanos. Depois foi a vez de Gabriel Perez Barreiro, que realizou como curador geral uma série de pequenas exposições para compor o evento e uma mostra que previa a participação dos artistas na sua configuração. Em 2009, o grande passo da Bienal foi ter criado um processo de seleção para o projeto curatorial do evento e ter apostado numa proposta ousada.

Todas as críticas feitas até aqui só puderam ser realizadas porque um grupo de pessoas resolveu ousar, apostar e experimentar outras possibilidades de se fazer bienal – modelo expositivo centenário e que cada vez mais é um recurso para legitimar diferenças e dinamizar economias. Se muitos dos aspectos conservadores desse tipo de evento não foram sanados, como a eterna batalha por cachês para artistas ou exposições um tanto formalistas, tivemos a oportunidade de ver e acompanhar um processo de investigação do fazer curatorial.

O entrosamento entre a equipe era notório, as discussões públicas sobre a conformação da mostra se revelaram agregadoras e estimulantes. A programação de cinema e palestras, que antecedeu a abertura do evento, e as residências artísticas, realizadas desde o meio de 2009, também foram instigantes e auspiciosas. No entanto, como foi dito, o resultado expositivo ficou aquém das expectativas. Foi o caso de apostar em premissas não qualitativas: na definição da equipe curatorial, por exemplo, insistir que os curadores precisavam ser artistas, independente da habilidade curatorial; ou estipular que as obras precisavam se modificar fisicamente, a fim de indicar a própria vivacidade.

Experiência realizada, abriu-se caminho para repensarmos, além das páginas das revistas, o fazer curatorial nos megaeventos de arte.

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NOTAS SOBRE CURADORIA E &

Já de saída é preciso dizer, a título de situar este texto, que me incomoda um pouco a maneira como o termo “curadoria” circula já há um bom tempo no Brasil – e talvez não só aqui. Chama atenção o modo um tanto equivocado – quando não esquizofrênico – como este tem sido assimilado e empregado precariamente tanto no campo da arte quanto em áreas tão díspares como a moda, literatura e gastronomia, passando por futebol e filatelia. Mas também é preciso contextualizar: se a atividade curatorial atingiu um estatuto tão vago quanto glamouroso, é porque se tornou uma prática tão difundida quanto diluída, e isso não significa que não haja bons profissionais em atuação por aqui.

De modo geral não é raro constatar – principalmente fora do circuito da “grande arte” – um raciocínio segundo o qual o simples fato de haver um indivíduo que assine como curador pareça se bastar, como se isso por si agregasse de pronto algum tipo de glamour extra ao produto/evento, como um selo de inefável qualidade respaldada pela presença deste profissional. Esta movimentação só se pode explicar, a meu ver, como manifestação de certo deslumbramento ainda algo provinciano em torno de uma função da qual pouco realmente se sabe e se pode exigir mas que, amplamente difundida e abalizada no prestígio que atingiu sobretudo no exterior, torna-se subitamente “indispensável”. O que leva ao estabelecimento de uma dinâmica emque se vê mais “curadorismos” que curadorias…

Atendo-nos ao meio da arte [1] Ao circunscrever a definição de curador no âmbito das artes plásticas, descartei deliberadamente definições mais clássicas para este termo, que podem remontar até à Roma antiga; além de não servirem ao que este texto propõe, demandariam um percurso genealógico que não cabe ser aqui esboçado., cabe lembrar que designa-se sob a mesma terminologia mais de uma função profissional específica: é preciso dissociar a que este texto busca tratar daquela do curador institucional, que atua em cargos fixos em museus, fundações culturais e similares e que é tido antes de tudo como um especialista. Esse é o profissional que irá orientar a instituição principalmente na aquisição e formação de acervo no âmbito de sua área de especialidade, dentre outras funções. Grandes museus possuem diversos curadores, nomeados especificamente para suas áreas de expertise: arqueologia, fotografia, pintura, tapeçaria, design, etc.

Já a prática curatorial aqui em foco se refere ao personagem que, no âmbito das artes visuais, parte de uma determinada ideia, assunto ou tema devidamente conceituado [o que não necessariamente significa fazer um uso fetichizante da teoria] para propor uma situação expositiva em que este assunto se articule a uma presença material, tradicionalmente por meio de obras de arte. Tal função abrange ainda, idealmente, a concepção e acompanhamento de estratégias e soluções espaciais de montagem dos trabalhos, além da produção de um texto.

Um ofício que, cabe lembrar, não se deve confundir necessariamente – embora isso muitas vezes aconteça – com o do crítico nem do historiador de arte; embora não autoexcludentes, cada uma dessas atividades exige em princípio certos predicados específicos, que podem eventualmente convergir num mesmo profissional. De um ponto de vista mais conservador, pode-se sustentar que um crítico de arte não deve – idealmente – atuar como curador, já que torna públicas suas afinidades e pode assim “contaminar” o juízo alheio sobre seu próprio sistema de juízos. Esta recalcitrância pode ser eticamente recomendável, em princípio; mas um bom crítico não se furtaria a expor seus gostos publicamente, sobretudo num país em que alguns de nossos grandes críticos se formaram “em público”, na imprensa – de Mario Pedrosa a Ronaldo Brito, dentre outros [isso nos tempos em que ainda havia espaço regular na mídia impressa para o exercício da crítica de arte… mas esta é outra discussão]. Tendo em mente a busca por um equilíbrio entre uma plataforma de ação mais teórica e a pulsão em realizar projetos expositivos como uma extensão mais ou menos natural desse campo de ação, não vejo as duas atividades como incompatíveis entre si a priori. E há que se manter, para além da coerência em relação à plataforma teórica do crítico [se houver uma] que se aventura na práxis curatorial, certos cuidados éticos no que tange a interesses comerciais-mercantis que permeiam essa dinâmica, sempre um fator a ser considerado.

De Harald Szeeman [curador da seminal Whenattitudesbecomeform, de 1969, Documenta V e algumas Bienais de Veneza, dentre outros projetos de magnitude] a Jean-Hubert Martin[curador de Lesmagiciens de la Terre, 1989, além de mostras de Picasso, Warhol e Cy Twombly para o MNAM de Paris], para ficar em apenas dois exemplos clássicos de curadores que impõem-se como realizadores de projetos, o dado autoral emerge como diferencial na concepção expositiva, mesmo que a serviço de pulsões conceituais bem diversas. É a epítome do curador como realizador de exposições. Mais recentemente, a partir dos anos 1990, é sensível uma diversificação em torno da noção de [prática de] curadoria. Nomes como o suíço Hans-UlrichObrist e o costa-riquense Jens Hoffmann alargam as possibilidades curatoriais e as levam a novos limites, injetando inéditas doses de originalidade no formato, ao mesmo tempo em que comentam a própria prática sob que atuam. Inclusive no que se refere aos espaços expositivos: ambientes domésticos, hotéis, bibliotecas e até mesmo aviões podem se ver convertidos em espaços abrigando mostras de arte contemporânea. A ideia de “limite” pode se radicalizar em propostas de exposições constituídas apenas de textos, por exemplo, solicitando do espectador um inédito grau de participação ou cumplicidade [nem sempre correspondido na medida desejada, é verdade] não apenas no âmbito da compreensão como da própria [in]completude ou eficácia do projeto.Investe-se numa chave de ativação dos significados a ser realizada pelo público, não raro em situações não-institucionais.

Mas voltando ao mote: o fato é que diversos segmentos da, digamos, cultura passaram a franquear o direito de ter seus “curadores”, numa atividade tão prolífica quanto relativa. Até aí tudo bem, por que não? Se até o próprio termo “cultura” tem sido tão invocado quanto mal-interpretado na última década… O problema está no que considero o equívoco, ou falta de um maior cuidado na definição sobre quais seriam efetivamente as atribuições, qualidades, responsabilidades e competência específicas que conformam o perfil de um curador. Frequentemente tenho a impressão que o termo é usado simplesmente como sinônimo de “responsável pela escolha”: assim, eventos ligados a arte contemporânea mas também a tapeçaria, fotografia publicitária, vinhos, celulares e até mesmo mostras de automóveis se apresentam de súbito devidamente “curados”. Como se uma curadoria se resumisse apenas a selecionar determinadas peças/objetos ou obras de arte para se configurar como tal. Mas a isso não podemos chamar de “organização”, “coordenação” ou o que for – como aliás se chamou por muito tempo, antes da ascensão ou disseminação do termo “curador” tal como circula hoje?

Não quero com isso sugerir uma postura negativa ou de ataque à função de curadoria de modo geral; nem poderia, já que seria incorrer em um posicionamento quase hipócrita, já que eu mesmo atuo esporadicamente como tal, e não descarto planos futuros nesse sentido. Antes pelo contrário: é por reconhecer a potencial importância da atuação do curador que me incomoda constatar como a circulação e visibilidade excessivas em torno desta função colaboraram para banalizar uma ideia geral em torno de sua atividade, criando estereótipos rasos e, mais recentemente, posicionamentos reativos a esse personagem. Estes muitas vezes obedecem a argumentos da ordem de que boa parte do sentido de proposições artísticas diversas podem se ver reduzidas ou deturpadas no processo de “ilustração” de um conceito ou plataforma curatorial. O que se verificaria em situações expositivas em que os artistas se veem convertidos de autores em intérpretes, a serviço de respaldar a proposta teórica. É um aspecto efetivamente espinhoso, sobre o qual não chego a um juízo absoluto. Se de fato há muitos casos em que trabalhos de arte se apresentam subjugados pelo mote conceitual, por outro lado é inevitável que um dado autoral aflore num projeto de curadoria; muitas vezes é o que irá determinar que uma exposição se afirme como tal. E aqui não interessa necessariamente entrar no mérito de comentar a qualidade do material ou obras expostas; a questão é encontrar esse delicado ponto de equilíbrio entre a autonomia das peças, em suas singularidades, e os diálogos e articulações [formais, simbólicas, etc.] buscados pelo projeto curatorial que as mesmas irão promover.

Seja como for, que possamos ter mais experiências de curadorias de fato, e menos espetáculo rasteiro engendrado pelo “curadorismo”.

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Hélio Oiticica em cinza e carvão

A despeito de todo o pesar trazido pelo incêndio do acervo Hélio Oiticica, acontecido na reserva técnica mantida por sua família numa casa no bairro do Jardim Botânico, Rio de Janeiro, são tantas as perguntas sem resposta e os absurdos que permanecem sem explicação que, passado o choque, urge refletir.

Um dos problemas que saltou aos olhos nos dias pós-incêndio, observado a partir do bate-boca entre a família Oiticica e os gestores municipais – que, aliás, não contribuiu para esclarecer e acrescentou ainda mais controvérsias ao assunto – foi a relação público/privado e a forma como esta é praticada na sociedade brasileira, tanto do lado do cidadão, quanto do lado da administração pública. No caso do Projeto Hélio Oiticica e da Prefeitura do Rio de Janeiro, tivemos o pior exemplo – e a pior consequência possível.

Em 1996, quando o Centro de Arte Hélio Oiticica (CAHO) foi criado e destinado a abrigar o acervo do artista, num pequeno impresso conjunto Centro de Arte Hélio Oiticica/Projeto Hélio Oiticica, a Secretaria Municipal das Culturas, em texto assinado pelo então secretário Ricardo Macieira, coloca-se como “mantenedora do acervo do Projeto Hélio Oiticica”. Reconhece Hélio Oiticica como “uma das grandes expressões da arte do século XX”, como “figura seminal” e enaltece o Projeto HO: “instituição que soube bem zelar pela coleção”. Por fim, declara a intenção do trabalho colaborativo e o compromisso com “a promoção e memória da arte brasileira”. Na época o diretor do Centro era Luciano Figueiredo, curador e amigo de Hélio Oiticica, que deixou a direção em 6 meses, alegando falta de condições de trabalho por descompromisso da prefeitura. Em 2003 retorna à direção, a convite de Cesar Oiticica e Macieira, saindo em 2005, segundo consta, pelo mesmo problema com a administração municipal: falta de cumprimento do acordo.

No mérito das palavras – que no caso da gestão Macieira/Cesar Maia não tiveram valor algum – consta que há um documento, “termo de permissão de uso”, que estabelecia o acordo da prefeitura com o Projeto HO e previa a implantação da reserva técnica no prédio. Após o incêndio, Cesar Oiticica deu declarações públicas mencionando a falta de condições mínimas da reserva técnica.

Porém, saindo do mérito das palavras escritas, assinadas, lançadas ao vento e ao ralo, o maior absurdo é que o documento inicial não evoluiu para um contrato de comodato que especificaria os direitos e obrigações de ambas as partes. E neste caso a responsabilidade é dupla.

Foram 13 anos de utilização do prédio e recebimento de uma verba municipal mensal, com razoável continuidade, levando-se em conta as exposições e publicações, entre outras iniciativas que o Projeto Hélio Oiticica realizou durante este período.

Hélio Oiticica foi o único artista (embora morto) a receber mais de uma década de financiamento público no Brasil – uma corretíssima decisão de Estado se, no caso em questão, não fosse mais um factoide do prefeito… Porém fez falta, em termos de retorno à sociedade, a criação de um site do Projeto HO para, além de divulgar a obra, tornar públicas as ações desenvolvidas, assim como a destinação dada ao dinheiro investido. Todos os setores da sociedade financiados pelo Estado devem retornar o produto do financiamento e a prestação de contas. Não poderia ser diferente com o Projeto Hélio Oiticica.

Manter a situação de ocupação do prédio pelo Projeto HO de uma forma “frouxa”, sem contrato de direitos e deveres firmado e observado pelas partes e sem um acompanhamento da sociedade, revelou a falta de profissionalismo e seriedade das autoridades do Rio de Janeiro na gestão pública – sem falar no descaso com um acervo importantíssimo – mas também evidenciou a forma como o brasileiro lida com os espaços e recursos públicos: como se fossem particulares. Na ausência de definições e limites, alguns períodos sem programação e dado o vazio institucional, o espaço foi utilizado como business office, e exclusivo do Projeto HO.

Ou seja, a falta de limites claros e de transparência na relação público/privado às vezes é funcional! Pode interessar a uma das partes, à outra, a ambas…
Ali perdeu-se a oportunidade de se construir uma relação institucional exemplar e única, através da qual a obra de um artista contemporâneo estaria reunida, preservada, trabalhada, estudada, exposta e disponível para acesso público.

Se a relação da família Oiticica com a administração municipal da gestão Maia/Macieira estava desgastada, toda a classe artística do Rio de Janeiro também sofria as represálias da prefeitura, em consequência da luta vitoriosa dos artistas e demais profissionais da área contra o disparate da implantação do Museu Guggenheim no cais do porto do Rio. Foram cortadas bolsas de produção e pesquisa, desativados espaços de arte e o Espaço Cultural Sérgio Porto pegou fogo por incompetência de gestão e descaso (permaneceu fechado por um ano). Para culminar, foi desmontada a instituição das artes visuais (Rioarte), que havia funcionado por décadas com projetos importantes e bem-sucedidos – diz-se que a Rioarte foi desativada por total impossibilidade do fechamento das contas da entidade…

Todo esse esvaziamento atingiu também, obviamente, o Centro de Arte Hélio Oiticica. Em 2009 muda a administração municipal e assume a nova secretária de cultura, Jandira Feghali, por acordo político partidário. Sendo ela oriunda da área médica, sua indicação não foi bem aceita pelos artistas. Com a nova gestão e a consequente auditoria nas contas, parece ter havido um lapso de tempo, no qual o Projeto HO ficou sem definições por parte da prefeitura. No entanto, a retirada do acervo do prédio já estava sendo feita desde a gestão anterior. Inclusive a chave da sala onde se encontrava ainda uma parte do acervo, no CAHO, permanecia com a família e não foi entregue à nova diretora, a artista Ana Durães.

Parece que, com a entrada da nova secretária, houve uma precipitação na retirada do acervo do prédio. E por quê? É o caso de perguntar se a família teve receio da secretária (comunista) estatizar o acervo, atropelando a lei… Hipótese cômica, não fosse o contexto trágico, mas que seria uma ameaça a possíveis intenções capitalizantes do Projeto HO. Informações sobre os valores internacionais da obra de Hélio Oiticica e as negociações do Projeto HO estão disponíveis na mídia.

Não há utilidade em se entrar nos detalhes dos desentendimentos da nova gestão com a família Oiticica, porém é certo que o Projeto Hélio Oiticica recebeu anos de verba pública para consolidar a permanência do acervo no CAHO e mantê-lo no local. A Prefeitura, como mantenedora, teve a despesa mensal de 20.500 reais (onde estará a planilha?). Esta verba, no entanto, não seria suficiente para projetos e eventos externos ou/e paralelos às mostras no próprio local. O Projeto Hélio Oiticica também captou para isso, inclusive patrocínios governamentais.

A partir da desistência da negociação e da não criação de uma rede de amigos, artistas, curadores, críticos e cidadãos, que exercesse pressão e levasse os gestores (nos âmbitos municipal, estadual e federal) a efetivar um compromisso de comodato, o Projeto Hélio Oiticica assumiu, na prática, a inteira responsabilidade pelo destino do acervo. E isso foi dito publicamente por Cesar Oiticica após o incêndio. Assumir desta maneira a responsabilidade pelo incêndio, isentando os órgãos públicos, foi apostar na opacidade, na falta de desdobramentos, colocar-se na posição ambígua “vilão-vítima”, angariar compaixão e transferir o “lugar” do acontecimento – um lugar público, local, nacional e internacional – para o quintal de casa (literalmente).

Cria-se um vazio e a irresponsabilidade se perpetua, para além da perda do acervo, na falta de investigação das decisões e omissões do acordo, assim como das circunstâncias que levaram ao incêndio. A sociedade brasileira perde mais uma oportunidade de afirmar uma dimensão da cidadania – sempre reivindicada, reclamada, cobrada do Estado, mas não exercida –, quando se trata de afirmar este exercício por parte dos cidadãos.

Se, como todos concordam, o acervo HO é patrimônio cultural de interesse público, não chegou a ser tratado como tal por incompetência, falta de condições materiais ou desconfiança mútua. O fato é que uma administração festiva e irresponsável o colocou em risco mais de uma vez, até mesmo dentro do prédio do CAHO, onde deveria estar rigorosamente resguardado. O resultado de tudo isso é agora lamentado.

Historicamente, a pouca presença do Estado na formulação e implementação de políticas de aquisição, guarda e manutenção de acervos de artistas importantes e representativos da cultura brasileira, reflete séculos da desimportância da arte nas prioridades nacionais. Essa situação de indigência da arte vai desde a inexistência das estratégias citadas, até a despreocupação pública (do Estado e da sociedade) com a formação das gerações atuais e futuras. Não se oferece informação atualizada, histórica e contemporânea; não se prioriza a criação de conhecimento e compreensão sobre a arte – suas transformações, processos, práticas, marcos conceituais – e sobre percursos de artistas e obras, alguns fundamentais, reconhecidos internacionalmente, como Hélio Oiticica.

Nas gestões Gilberto Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura, a postura do governo vem apresentando mudanças sensíveis, inclusive demonstrando interesse em encontrar soluções para a questão dos acervos. Do lado da sociedade civil, seria o caso de acompanhar os novos tempos. Deixar de praticar o pensamento “privatista” na esfera pública e investir na criação de canais e mecanismos institucionais, como também utilizar os já existentes. Urge mudar aquele “perfil” brasileiro, tradicional, das classes abastadas, porém ignorantes, dos coronéis autoritários cujo poder se assenta no dinheiro, na propriedade da terra, no sobrenome e na peixeira… Homens com poder de vida e de morte, que subjugam os subalternos de forma desumana e cínica, porém sem cultura, sem informação ou formação alguma naquilo que faz o espírito de um povo: a arte.

Os códigos de convivência originários daí são, ainda, vigentes nas ruas e no Congresso Nacional, no campo, na cidade, nos apartamentos de classe média e nas favelas. E se este perfil é o aspecto hard das nossas classes economicamente favorecidas, urge também repensar o aspecto “sutil” deste mesmo código de convivência social, praticado pelas classes culturalmente favorecidas, em cargos públicos ou não: o tráfico de influência, o exercício do poder das relações familiares baseadas nos signos de prestígio, a busca por privilégios, a demanda privada no âmbito público, o “jeitinho”, o “agrado”, a apropriação privada dos bens e recursos públicos, o profundo desprezo pelas regras do jogo democrático.

E nesse triste evento sobressai tudo isso como sina, como índice da fragilidade da cidadania brasileira. Apesar da nossa música, da nossa arte, das nossas manifestações culturais, dos nossos músicos e artistas brilhantes, como Hélio Oiticica.

 

 

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Tá tudo dominado: ENTREVISTA COM FRANCISCO ALEMBERT

Francisco Alambert [1] Francisco Alambert é professor titular da Universidade de São Paulo – USP no Departamento de História. É historiador das artes plásticas e crítico de arte. Já publicou vários artigos no Caderno Mais da Folha de São Paulo. Coordena o projeto História da Arte e da Cultura no Brasil dos Séculos XIX e XX. Tem vários artigos acadêmicos publicados sobre artes no Brasil. veio ao Recife em novembro de 2009, a convite da Coordenação Geral de Capacitação e Difusão Científico-Cultural (Cadif) da Fundação Joaquim Nabuco, onde comentou suas reflexões acerca da Bienal de São Paulo, recentemente publicadas no livro Bienais de São Paulo: da era dos Museus à era dos curadores (Editora Boitempo), escrito em parceria com Polyana Canhête. Desejando explorar outros aspectos de sua pesquisa, a Tatuí o convidou para conversar sobre o campo da arte no Brasil: suas instituições, seu mercado, suas iniciativas “independentes” e suas possibilidades de revolução. Da conversa, participaram também as historiadoras Andréa Bandeira, Joana d’Arc e Natália Barros, às quais agradecemos pela interlocução.  

Tatuí Que espaços, que agenciamentos, você acha representantes hoje, no Brasil, daquilo que a Bienal outrora representou em termos de construção de um projeto de modernidade? Onde podemos diagnosticar um projeto similar, e que não está totalmente vinculado (ou consegue escapar da melhor forma possível) à lógica das feiras, do mercado?

Francisco Alambert Isso é muito interessante porque isso é mundial, não é só do Brasil nem da Bienal. É um fenômeno que acontece no mundo inteiro: a volta das feiras de arte, que só pode ser entendida dentro da forma dominante no capitalismo hoje – que acabou de entrar em crise; não se sabe se continuará dominante, mas foi a que prevaleceu até agora –, a da especulação financeira, ou seja, a valorização da irrealidade em cima da ideia de posse, do irreal, do virtual, etc. A arte, mais ou menos como no século XIX, voltou a ser uma commodity de mercado,cujo funcionamento se presta ao sistema de valorização e trânsito como mercadoria.As formas da arte contemporânea são espetaculares para isso, porque se adaptam, formalmente e integralmente, a esse sistema – através da “desmaterialização”, dos projetos– sem precisar da materialidade do “negócio” como era a obra moderna.Ela (a arte) vira quase que uma commodity perfeita, quase um espelho complexo da própria realidade. Não é coincidência que o mercado de arte – por exemplo, dos EUA – tenha estourado do jeito que estourou nos anos 1980, coincidindo com a ascensão dessas figuras tipo yuppies, milionários instantâneos, gente que ganhava milhões na bolsa de valores da noite para o dia e investia em arte. Mas o que é curioso é que, naquele momento (anos 1980), eles investiam em arte justamente no que ela tinha de mais “real”, mais concreto: investiam no objetoarte. Compraram, compraram, compraram e transformaram o mercado numa loucura. Jogaram os preços no fim do mundo! Nos anos 1980, bancos japoneses (que depois faliram todos) compravam telas do Van Gogh, por exemplo, por 80 milhões de dólares! Paradoxalmente, a arte representava dinheiro materializado – “dinheiro real”, como dizia Marx. Esses preços se tornaram incompatíveis com o próprio mercado, tornado totalmente irreal, absurdo – embora não se tenha, claro, parâmetros econômicos objetivos para a arte. Mas jogaram os preços do primeiro modernismo na estratosfera. No final dos anos 1980 e começo dos anos 1990, passou a ser a grande vedete do mercado comprar arte contemporânea, porque era essa que estava com o preço lá embaixo e tinha esse aspecto da maleabilidade… Criou-se o mercado da arte contemporânea que, não à toa, coincide com a expansão geral das exposições mundiais, das megamostras…

(…) O caso da obra do Hélio Oiticica foi isso. É uma vedete desse novo mercado, só que aí tem um paradoxo engraçado: o novo mercado (internacional) supercontemporâneo descobriu nos artistas brasileiros dos anos 1960 uma espécie de revitalização de si mesmo. Viram no Oiticica, na Lygia Clark, nas performances, no Cildo Meireles,a arte deles próprios, só que 20 anos depois…! É impossível entenderem como aqui, nesse país de botocudos, 20 anos antes se fazia uma arte que era, para eles, supermoderna. A gente vai ter que passar 30 anos explicando e eles não vão entender do mesmo jeito. Só que isso se tornou um chamariz fascinante, daí a grande valorização – e eu não estou discutindo qualidade porque, nesse caso, trata-se de um artista de fato excepcional –, meio irreal, no mercado.

(…) Agora, com a quebradeira geral desse sistema, que a gente não sabe exatamente em que pé está e até onde chegará… Ontem à noite, por exemplo, eu vi na televisão o Obama alertando ao mundo que o sustenta: “tá começando tudo de novo”, “daqui a pouco vem outra vez”…, coisa que meia dúzia de pensadores marxistas considerados, até pouco tempo atrás,“debilóides”, “irresponsáveis”, “ortodoxos” e “anacrônicos”, não paravam de dizer… OArrighi, o pessoal doWallensteinestá escrevendo isso há 30 anos. O Mandel falava isso nos anos 1960… Enfim… É mais do que a crônica de uma morte anunciada, não é? A tristeza, para os marxistas, é que não se tem um movimento social que aproveite isso. É uma crise do sistema capitalista dentro dele mesmo, sem nenhuma força pressionando. Essa é a contradição maior da sociedade contemporânea:o sistema cai “de podre” e nenhuma força social está pronta para tomar o lugar. Nesse sentido, o marxismo entra em parafuso.

(…) O Waltercio Caldas fala que o curadorismo é a última ideologia criada no século XX. Ele tem toda razão.É uma ideologia mesmo: essa coisa do sujeito que se impõe sobre o artista, de uma poética que se coloca de fora das obras, ditando uma organização a elas…  Embora essa analogia tenha cumprido um papel,por causa da crise econômica vai entrar em crise também. Porque a feira é anticuratorial. O curadorismo é uma forma ideal para as megaexposições, bienais;foi desenvolvido como um modo de trabalho que lida direto com o artista, semelhante à outrora importante figura social, recentemente falecida, que é a do crítico. Mas as feiras são uma forma contrária. Elas demandam outro tipo de manipulação, diferentedaquela realizada pelos curadores nas megaexposições. Porque as feiras são quase um retorno a uma instância pré-capitalista de relação imediata de puro negócio. Aquela coisa a que a arte se presta: ela, a arte moderna, é um objeto do mundo moderno e, portanto, do capitalismo. E as feirassão uma forma “atrasada” –ficar gritando “oh, venham ver, o meu artista é mais bonito!”, fazer festinha, coquetel, seduzir o sujeito, vender mais caro um pouco…É uma forma totalmente atrasada. O agir dos curadores está ligado à outra, vinculada ao megamercado mundial, hipervalorizado, de circuito, seja das bienais, seja dos museus, dos grandes e dos megacolecionadores… A feira não. É um lugar dos grandes, dos pequenos, dos neófitos, dos burgueses em ascensão… Igual no século XIX. É um retorno. É capaz até da figura do crítico voltar, porque em sua origem – Adorno explica isso muito bem – era o orientador do gosto burguês. O crítico levava o burguês ao mercado e dizia: “para você se artistocratizar, ter vínculos sociais, precisa ler isso, ter aquilo, comprar aquilo, se vestir assim, ir nesse lugar, agir de tal maneira…”. Depois, o crítico foi se especializando:um para a arte, outro para literatura, outro para o comportamento… Com a indústria cultural, eles entram nos jornais! E aí começa a se formar um outro circuito. No começo do século XX, surge o anticrítico: os críticos “críticos”, modernos, que pensam no negativo, cuja figura entrou em parafuso no mundo contemporâneo. Mas talvez com o sistema das grandes feiras haja um retorno dessa função… Já é meio assim. Muitos diretores de museus são orientadores de mecenas: “compre isso, faça aquilo, pegue esse garoto aqui porque ele vai dar certo e, se não der, eu faço ele dar, porque sei onde publicar, sei o que fazer, sei como valorizar…”.

Tatuí Não é bem assim… O lugar que a feira ocupa não é o dessa relação direta, porque há mil estágios, redes por trás… Como no caso do Ministério da Cultura bancar a participação brasileira na Arco. Além disso, no Brasil, o lugar que o mercado ocupa é diferente daquele que ocupa na Alemanha, por exemplo – aqui, um jovem artista faz 3 individuais em museus para depois chegar numa boa galeria; em geral, fora daqui, todos têm galeria e só depois conseguem a inserção institucional. Logo, há uma certa substituição do papel do mercado pela instituição… 

Francisco Alambert Um dos exemplos que mais aparece quando falamos é o da emergência mundial dos coletivos artísticos. Uma parte deles é estimulada pela própria crise desses megasistemas. Cria-se um espaço interessante, cuja originalidade consiste em pensar articuladamente. O produto é uma produção coletiva… Mas deixa eu ser advogado do diabo: frequentemente – acho que a 27ª Bienal de São Paulo é o grande exemplo – o tipo de ação coletiva tende a ser engolfado por outro. Eu me refiro a esse tipo de organização paraestatal: terceiro setor,ONG… Não é raro que coletivos se articulem de maneira muito parecida com ONGs. Elas têm lá sua função. Em alguns lugares desempenham uma atuação relevantee frequentemente são formas simpáticas – é difícil você se opor a, por exemplo, grupos que estão alfabetizando gente, dando comida para quem está passando fome, defendendo índio, a floresta… Normalmente, quem não for um idiota é simpático às causas. Mas a ação pode servir a funções perversas, como, por exemplo, o esvaziamento do Estado, a não responsabilização da sociedade, dos ricos, em relação a um monte de coisa… As ONGs também tendem a trabalhar sobre o fragmento: vai-se lá e constrói-se um troço que age sobre uma favela; a ação pode render bons resultados, porém dentro daquele local e não no resto. O que está sendo atacado não é a pobreza, mas um efeito localizado dela. Veja o que acontece na África, um continente cuja vida humana está desaparecendo, seja pela pobreza, seja pela exclusão, seja pela AIDS… Não há lugar no mundo onde haja mais ONGs estabelecidas! Todos os países ricos que tenham qualquer problema de consciência ou que precisam justificar para o Banco Mundial ações caridosas; ou empresas que precisam fazer um marketing de sustentabilidade e responsabilidade social, metem três ONGs na Botsuana, no Sudão, não sei onde…O que não muda absolutamente nada a barbaridade. A lógica do pequeno grupo, da ação local na forma contemporânea, tende a tomar esse caminho da ONG – inclusive porque ONG, você sabe, recebe dinheiro, financiamento mundial… Está cheio de gente que vive disso. Cria-se quase que um atrelamento com a miséria: “se desaparecerem os miseráveis, desapareço eu também”. Uma situação completamente bizarra!

Tatuí Edgar Morin fala numa ética da convicção, em detrimento de uma ética da responsabilidade. A da convicção seria aquela que recusa alguns compromissos e não aceita necessariamente todas as responsabilidades. Você acredita em revolução?

Francisco Alambert Ah!, acredito, claro! Não tem absolutamente a menor chance de acontecer a revolução – alguma, em lugar nenhum, por enquanto. O que só reforça a ideia de que isso voltou a ser uma possibilidade.

Tatuí Mas pode haver revolucionários sem revolução.

Francisco Alambert Ah, pode! É o que nós estamos fazendo, é o que nós estamos conversando aqui. Não tem o menor problema, aliás, de ações como a nossa acontecerem, porque a história nos ensina a cada dia, desde a queda do Muro, que as contradições do sistema o colocam em xeque! O sistema entra em “xabu” por suas próprias lógicas e por não ter oposição… Não há oposição em lugar nenhum! Nem do tipo institucional. Ninguém aqui vai achar que a China está fora do capitalismo, que a Coreia do Norte ou Cuba têm alguma relevância no funcionamento do mundo… Nenhuma! Não há oposição nenhuma. É a primeira vez na história da humanidade! Um sistema produtivo e cultural dominante: em todas as partes, em todos os lugares, ao mesmo tempo! A totalidade, a totalização – como se diz na favela, “tá tudo dominado!” – é uma possibilidade fantástica.Ela é, em si, absolutamente nova. Repito: isso jamais existiu… Nem na história do capitalismo, nem na história de nenhuma forma pré-capitalista também. Existir uma unificação totalitária justo agora, que os pós-modernos estão falando que “não há mais totalidade”, “só há fragmentos”… O escambal! É o contrário! Agora está tudo totalizado! Tudo dominado, tudo ocupado. A lógica é uma só, funciona em todo lugar, com diferenças apenas de grau. Talvez nunca –agora vou brincar de ter surto utópico – a possibilidade da negação completa do sistema se colocou tão integralmente, porque ele está inteirinho apresentado. É bem possível que um dos desdobramentos disso seja a revolução mesmo… Porém não é a revolução da classe, a revolução do século XIX…

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sem título #9 (da série Inquietações)

A proposta inicial para este texto era elaborar uma auto entrevista explicando o que é o coletivo e como ele se estrutura. Ao percebermos que a própria discussão já supria muito do que queríamos falar e ocupava muito além do que nos foi oferecido por esta revista, percebemos que seria mais interessante apresentar este excerto da conversa dos integrantes do coletivo Beco da Arte, realizada da meia noite às cinco em mais uma típica madrugada paulistana. Confira a íntegra desta autópsia coletiva em www.quandonaodormimos.wordpress.com

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– hoje o Beco da Arte é formado por sete artistas visuais de diversas áreas de atuação. Atuamos com três eixos básicos: a editora, que fomenta as mídias impressas e escritas; o espaço expositivo, que fomenta um espaço a novos artistas; o coletivo, que produz trabalhos para contextos específicos.

– penso na editora não somente como fomentadora de trabalhos em mídias impressas e escritas, mas sim como a produtora dos convites e demais materiais gráficos, que também atinge o meio virtual, como os blogs e etc. Quanto ao Espaço Expositivo, ele não é somente para novos artistas; vide o ciclo de palestras do 4º Espaço Expositivo, que foi composto por artistas já maduros e mais conhecidos que debateram conosco com uma postura sem hierarquia.

– como o beco se configura? Penso na configuração material do coletivo, que somos nós mesmos. Como fazer com indivíduos que não estão presentes? Não trabalhamos muito bem com o afastamento de alguns membros. Por exemplo: quando o projeto gráfico foi deixado de lado, outra pessoa tomou pra si a função e isso a incomodou. A partir disso nos vemos num mato sem cachorro, gerando reuniões particulares, que viram coletivas para readaptarmos as funções. Proponho então pensarmos na nossa configuração, quem é que faz o coletivo Beco da Arte?

eu concordo com esse ir e vir, isso é o coletivo penso eu. De quem é esse coletivo? Estamos reunidos pra nos promovermos individualmente? É melhor repensarmos essa configuração, mas agora não é o momento, isso é um outro passo.

– concordo, o momento agora é de afirmar que não precisamos mais ter individualidades, não somos sete, não somos dois, somos um coletivo.

– ok, mas para chegarmos nesse ponto, temos que entender se temos mesmo essa heterogeneidade e se concordamos com isso.

– vamos definir se somos indivíduo ou coletivo; vamos definir para explicitar dentro da resposta. Configurar não é só o que temos que discutir, temos que refletir o que forma o corpo do beco e o que gera potência quando abrimos nosso trabalho a outras pessoas. E não discutir quem produz os trabalhos do beco.

– acredito que em nosso coletivo os indivíduos são finitos e o espaço/projeto é eterno. Não é cada indivíduo que faz o beco hoje, esse espaço que falo é aquele para além do espaço físico. Ele é mutável, pois se configura a cada trabalho produzido.

– eu acho que o que você quis dizer é que daqui há uns três anos pode não haver nenhum de nós ou haver, mas esse espaço do beco, que acontece só no espaço-pensamento, ainda será existente.

– eu concordo até certo ponto. Por exemplo, o coletivo só é um coletivo se tem indivíduos. Ele se estruturaria de outra forma se fosse composto por outros que não nós. Excluir a individualidade no coletivo é uma linha muito tênue, porque se não fosse composta do jeito que é não teria essa configuração e não provocaria como provoca. Por isso você pontua que é infinito, porque a cada soma de outro indivíduo e a cada ausência, o beco se configura de uma forma diferente.

– nos formamos ao trabalharmos e ao mesmo tempo formamos as pessoas que nos acompanham. Elas sentem necessidade de pensar o que produzimos. Quando sairmos do beco elas poderão continuá-lo, ou seja, enquanto ideia primeira sempre poderá haver a experimentação como base.

– então, a formação indica que autorizamos outra pessoa a assumir a construção do beco, pois já vem de um processo de conhecimento, de discussões sobre o que é o espaço a partir da convivência.

– beleza, nós sete tomamos a frente das produções, porém elas não acontecem sem esse outro que também se forma. Essa interação às vezes é falha e às vezes é maravilhosa. Penso que o coletivo EIA (Experiência Imersiva Ambiental) tem seus 30 integrantes, mas apenas 12 elaboram proposições para as produções, e os trabalhos só acontecem quando integram o público, e assim o público forma o EIA e o EIA se forma.

– eu não sei se concordo com essa coisa do público integrar o coletivo. Eu entendo quando o beco não é formado pelos sete, mas não é o público que toma as decisões. Isso ainda me soa como um tipo de marketing, pois somos nós que estruturamos tudo. Querendo ou não, falar do Guilherme é fácil, pois ele é completamente presente e participativo no beco. Mas, tivemos nesse semestre a situação com o Felipe, que quis adentrar as produções do coletivo, porém não soubemos lidar com ele. Por isso não podemos falar que o beco é todo mundo.

– eu concordo discordando, pois o nosso trabalho não nasce em nós e não morre em nós. Nasce das conversas com os outros. Por isso vamos além da instituição. Pregamos uma tentativa de democracia, na qual propomos que as pessoas tomem as decisões. Isso acontece ao levarmos os trabalhos para debates públicos que promovemos e inevitavelmente as questões acabam se modificando. Eu acho que o beco se difere de alguns espaços de São Paulo. Na verdade acredito que ele é um espaço realmente aberto, que demonstra seus erros e acertos, tentando discutir coletivamente suas propostas.

– o beco passa a existir porque não se ensimesma, pois se nutre das discussões para gerar uma nova. A partir das divergências cria-se um embate, um combate, daí vamos a público gerar questionamentos e não esclarecimentos.

– acredito que o beco exprime muitas inquietações que partem de vários outros estudantes, artistas e etc. O beco se torna coletivo porque os trabalhos surgem dos encontros que causamos ou que vêm por acaso. Numa visão particular, acredito numa democracia completa, parecida com o anarquismo socialista de Bakunin. Penso que tudo que fazemos já está sendo pensado e/ou sentido por outras pessoas.

– quando você falou em democracia, pensei na possibilidade de se uma galeria de arte nos convidar para nos representar, não sei se seria bom ou ruim, mas sei que deveríamos fazer disso um trabalho. Poderíamos criar um debate público sobre ir ou não para uma galeria, formar uma banca, com defesa e acusação, assim todo esse debate chegaria a uma conclusão se o beco iria ou não participar. Aí sim, seria a minha ideia de democracia completa.

– quando disse democracia pensei num processo aberto para nutrição. Quando você fala da galeria, é o ato de se abrir ao debate. É discutir uma democracia, uma falácia que não existe, uma democracia utópica. Acho isso particular do jovem, acho que essa democracia utópica é o que o beco faz.

– eu me incomodo um pouco talvez por ver as coisas de uma forma extremamente burocrática. Penso no que entendi quando a Adriana falou sobre o mártir da arte – eu me doo porque gosto, não quero me vender, não quero me comercializar. Dessa forma, quando falamos de democracia e etc., é se isentar de muitas coisas. Nós nos doamos para criar todas essas possibilidades, por isso não adianta democratizarmos tudo, porque se não fosse pelo nosso trabalho, não teríamos um público.

– as pessoas sabem quem está fazendo as coisas no beco. Quando a gente produz, criamos uma plataforma inicial e abrimos os debates. E essa atividade nasce a partir do que aconteceu anteriormente com outros trabalhos.

– então quer dizer que quando falamos em democracia, falamos da questão de abrir o espaço do beco com o objetivo das pessoas compartilharem conosco energias, comentários, críticas, para que possamos pensar. E a questão não é sobre ser um mártir da arte, porque todos nós queremos viver disso… Da maneira que for. É a única oportunidade que temos na vida de darmos tudo de si e sermos audaciosos, mesmo tendo medo de encarar. É o único momento que você acredita sem ter que se preocupar se vai cair ou não.

– voltarei à discussão sobre nossos trabalhos serem sequenciais e serem nascidos de encontros. Darei alguns exemplos práticos: a publicação da exposição Noves_Fora nasceu com o Sergio e a Luciana, que pensaram o catálogo como parte da produção; a formatação do 4º Espaço Expositivo, que já era uma inquietação nossa, nasceu a partir do contato com o projeto da Luiza e do Roberto e também quando o Maurício nos indicou o edital de Criação Literária da Funarte, o qual fez surgir o projeto Percursos Narrativos.

– como articulamos esse monte de coisas que surgem no caminho de nossas produções? Prefiro exemplificar: analiso que o 1º Espaço Expositivo veio sanar a questão particular do coletivo de expor seus trabalhos individuais. No 2º convidamos outros artistas. Assim, quando entrei no beco, propus que abríssemos um edital (3º) a fim de fazer uma exposição de artistas que não conhecêssemos e que estivessem numa situação parecida com a nossa. Quando fizemos a Noves_Fora convidamos outros artistas que nos interessavam. E o 4º Espaço Expositivo veio da tentativa de se pensar num modelo que não delimitasse nossos desejos artísticos. Ou seja, uma insatisfação gera a outra.

– o espaço do beco não é o coletivo beco, é a soma de todas as instâncias do circuito da arte. Ele em si é seu próprio circuito de arte. Isso é um trabalho de arte, a gente assume esse circuito e os pormenores que formam esse circuito.

– o beco cria o seu próprio dispositivo e é o dispositivo em si mesmo, porém acredito que somos mais que um dispositivo, o beco é uma plataforma. É uma necessidade necessariamente necessária.

– quando eu fiz anteriormente meu comentário e você falou aquilo, o fato é que não importa o meu nome estar ou não nos trabalhos do beco. Só não podemos nos isentar do mérito de criar esse dispositivo e deixar o público manejar isso. Nós precisamos entender e distinguir o que é o coletivo.

– eu vejo pelo contrário. Não estamos nos isentando, não precisamos assumir essa produção, mas as pessoas também podem assumir. A gente não pode simplesmente se eximir porque queremos que as pessoas assumam. Ou seja, falar isso não é uma questão de marketing porque nos autoentrevistamos, é uma autoanálise do beco, uma autópsia.

– calma gente, por que agora não propomos uma pergunta e continuamos pensando juntos?

– no contexto atual, por que as ações que propõem alternativas para produção/circulação de arte ainda são importantes?

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Referências

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