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Capa da revista

EDITORIAL

Esta Tatuí no 6 foi concebida em torno da discussão sobre arte e política. Seguindo a natureza intrincada da relação entre ambas, este número traz uma teia de ideias e textos absolutamente polissêmicos. Além de sintoma da diversidade de enfoques e posicionamentos ideológicos dos autores que seguem nas próximas páginas, parece-nos que esta edição personifica um nó ainda maior, aquele referente a uma geração que tem crescido sob uma pesada (e obscura?) nuvem de ideologias e sistemas sócioeconômicos – com suas respectivas construções estéticas – conflitantes e, em certa medida, aparentemente falidos (ou ao menos confessadamente em crise).

Faz-se evidente o complexo espectro de pensamentos, protestos, “revoluções”, reformas, mercados, manifestos, greves, guerras, terrorismo, cracks… Diante do qual nos sentimos desencontrados. Ainda assim, mesmo perante tantos fenômenos/ações que parecem demonstrar o estado de incomunicabilidade ideológica no qual aparentemente vivemos e ao qual supostamente estamos condenados, recai sobre nossa geração o peso de, digerindo a história política da humanidade, buscar traçar “diretrizes” flexíveis, pacíficas, eficientes e sustentáveis para as formas de organização social do século vindouro.

Em meio a tal desafio – adensado, por exemplo, pela ideologia da responsabilidade social, que nos cerca dos impostos ao terceiro setor – colocamo-nos ainda a tarefa de produzir arte, seja lá o que isso for. Nesse panorama de desolação e desatino ideológico, talvez comunguemos, todavia, da impressão de que ser artista nessas circunstâncias é estar ciente da comodificação de nossa arte, cuja força entrópica inaugura o século XXI já muito desgastada. Tal consciência da atual condição do artista – que insistentemente debatemos em ateliês, bares e instituições – tem de alguma forma nos colocado em constante estado de alerta crítico diante das coisas, do mundo, e de nós mesmos. Há uma ansiedade por encontrar pistas que nos façam vislumbrar possibilidades de uma atuação sócio-política mais contundente e programática, refletida num processo de reorganização social em sentido ampliado e específico, perante uma sociedade, ou um dado campo da arte.

É provável que esse estado de alerta se faça evidente nos textos desta Tatuí no 6, marcados por um incessante esforço de autocrítica. A sirene não foi ainda acionada, contudo.

Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz, as editoras.

Colaboradores

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Conteúdo

Índice
  1. boletim de ocorrências ou antecedentes de a Caroline Pivetta - Escrito por Clarissa Diniz
  2. Arte, política e a crítica como fetiche - Escrito por Deyson Gilbert e Gustavo Motta
  3. FORTALEZA SEM SABOR - Escrito por Mariana Smith
  4. No fio da navalha entrevista com Miguel Chaia - Escrito por Fernanda Albuquerque e Miguel Chaia
  5. Notas do subsolo (da arte contemporânea) - Escrito por Gustavo Motta
  6. Sobre práticas e pensamento - Escrito por Ana Luisa Lima
  7. Ordem do dia: pensar a mim, pensar a Tatuí, pensar a ponto de não saber mais o que estou pensando… - Escrito por Clarissa Diniz
  8. Novas organizações e cultura - Escrito por Flavia Vivacqua

boletim de ocorrências ou antecedentes de a Caroline Pivetta

06:10     Numa cidade de interior, falsificação da pintura O Grito é deixada na porta do Museu de Arte Contemporânea local. Diretor da instituição procura perito para avaliar sua autenticidade. Esperança.

08:50     Edital nacional exige submissão de portfólios e projetos a partir da utilização de pseudônimos. Apenas artistas reconhecidos são premiados. Jovens artistas ironizam a exigência.

09:21     Diretor de museu, também artista, apresenta seu trabalho em mostra individual na instituição que administra. Não são feitos questionamentos.

10:00     Salão divulga premiados em seu website. Já no aeroporto, a caminho da cerimônia de premiação, artista é informado que a organização do evento cometeu erro na publicação do prêmio. Ele passa muito mal.

11:15     Com o objetivo de perpetuar “estilo” inventado, artista pergunta a grupo de críticos como fazer para criar uma “escola” e ter “seguidores”. O silêncio toma o recinto.

14:30     Em palestra, curador afirma ser “o centro do sistema da arte”. Artistas demonstram indignação.

16:03     Com argumento de perda de autonomia, crítico se incomoda com a presença de colega de mesma procedência regional em comissão de seleção. Reserva de mercado.

16:11     Programa nacional de formação em arte realiza curso de história da arte contemporânea em pequena cidade. Grande parte dos artistas naives do local abandonam suas poéticas e passam desesperadamente a fazer anacrônicas instalações. Efeito colateral.

16:23     Publicação de crítica de arte desiste de por em debate gestão de museu por temer retaliação de seu gestor. Covardia.

17:50     Instituição erra cálculo na pontuação de projetos submetidos a edital nacional e deixa de premiar artista que havia sido unanimidade da comissão julgadora. Membro da comissão o parabeniza pelo prêmio, percebe-se o erro e este é corrigido a tempo. Sorte.

18:07     Num seminário, reconhecido curador, localizado entre o público, envia bilhete a jovem curador participante de mesa de debate incitando-o a provocar outro curador reconhecido presente na mesma mesa. À noite, umingênuo encontra o bilhete no chão de um bar. Decepciona-se.

19:13     Crítico voluntariamente organiza sessões de leitura de portfólios. Ao folhear portfólio de jovem artista, diz-lhe enfaticamente que jamais “apostaria” nele. No mês seguinte, participa de comissão que o seleciona para realizar exposição. Mudou de ideia.

20:31     Com o argumento de sempre preferir “as conversas em petit comité”, curador encerra caloroso debate entre convidados e um entusiasmado público.Distinção social.

21:10     Patrocinadora de Salão pede a curador geral que retire prêmio aquisitivo de artista cuja obra aludia à prostituição. Ela o fora.

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Arte, política e a crítica como fetiche

É patente hoje, no mundo das artes, o fenômeno de uma curiosa insurgência de ações, trabalhos e discursos dotados de alta pretensão crítica e/ou política. O fenômeno, contudo, não é exclusivo do campo específico das artes.

Haja vista, por exemplo, os recentes exemplos no mundo da moda de coleções supostamente iconoclastas: desfiles que tematizam pontos ditos polêmicos como a anorexia ou a guerra do Iraque, e que colocariam em questão os próprios valores da moda. Operação semelhante também é visível nos meios de comunicação, como, por exemplo, a campanha realizada pela MTV brasileira em 2004, quando por diversas vezes a emissora retirou durante 15 minutos sua programação do ar. Durante esses 15 minutos, junto a um zumbido constante, exibia-se um letreiro que continha a seguinte frase: “desligue a TV e vá ler um livro”. Segundo o diretor-geral da emissora na época, esta teria sido a campanha mais antiTV já realizada, pois seria “a menos hipócrita”. O objetivo seria levar o jovem a ler mais e, consequentemente, melhorar sua escrita, forma de pensar e de construir opiniões: “Só assim poderá ser crítico, ser culto” [1] “MTV convence 14% da platéia a desligar a tv”, O Estado de São Paulo, São Paulo, 15 de novembro de 2004..

O mesmo espírito “crítico” também é observável na campanha publicitária “As coisas como são”,criada pela MaccainErickson para a marca de refrigerantes Sprite.Dentre as inúmeras peças publicitárias criadas pelo escritório de publicidade, havia um outdoor no qual figuravam bolhas falsas sustentadas por uma série de fios deliberadamente visíveis na imagem, como se estivessem saindo da garrafa azul do refrigerante (versão light). Ao lado da garrafa lia-se o arremate conceitual e brechtiniano junto ao slogan da propaganda: “A garrafa é azul e as borbulhas são falsas para te dar mais sede./as coisas como são”. Não à toa, a propaganda seria classificada por uma empresa de consultoria de marketing, também envolvida no projeto, de “irreverente, ousada e transparente” [2] In http://www.plusmedia.com.br/default.aspx?code=369. Adjetivos os quais, também não apenas coincidentemente, figuraram diversas vezes na mídia quando do rebuliço causado pelo leilão na Sothebys das peças de Damien Hirst neste ano (2008) [3] WULLSCHLAGER, Jackie. Damien Hirst muda relação arte-dinheiro.Folha de São Paulo, São Paulo, 14 de setembro de 2008..

Observa-se, portanto, que aquilo que poderia ser descrito como a emergência de um certo “espírito crítico” nas artes hoje, em realidade responde a um processo indefectível no qual todas as áreas da cultura e do capital se encontram inseridas, não mais na perspectiva da cooptação a posteriori, mas já a priori, como recepção festiva e lucrativa: da “moralização ecológica” das empresas e indústrias depois da “revelação al goriana” da catástrofe ambiental, às comemorações do “maio de 68” na Rede Globo; da proliferação do atendimento social burocratizado das ONG´s, à criação do Museu de Arte Contemporânea de Castilla e León[4] CYPRIANO, Fabio.Folha de São Paulo, São Paulo, 11 de abril de 2005, Caderno Ilustrada..

O que se observa é a gritante capacidade de um sistema econômico, político e cultural se afirmar mediante a crítica (distorcida, cínica, irônica, deslocada, parcial – não importa) de seus postulados anteriores. Cabe aqui a lembrança do diagnóstico de Adorno a respeito da redefinição da idéia de ideologia no mundo do pós-guerra, ou seja, no mundo onde reina a indústria cultural. Para o filósofo, as relações de poder se caracterizariam então menos pelo recalque típico – necessário ao funcionamento da ideologia enquanto “falsa consciência”, ou seja, enquanto instância de ocultamento das contradições existentes em um processo de legitimação da efetividade por um discurso dominante – do que, ao contrário, pela exposição e afirmação nua e crua dessa relação enquanto tal, ou seja, da ideologia enquanto movimento insuficiente de legitimação da realidade. “A ideologia”, escreve Adorno, “em sentido estrito se dá lá onde o que rege são as relações de poder não transparentes em si mesmas, mediadas e, nesse sentido, até atenuadas. Hoje, a sociedade, injustamente censurada por sua complexidade, transformou-se em algo demasiadamente transparente”. [5] ADORNO, Theodor.SociologischeSchriften I, Frankfurt, Suhrkamp, 1980.In:SAFATLE, Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. p.93.

Essa transparência permite que a crítica hoje a toda e qualquer ideologia se incorpore ao sistema de poder sem que sua presença, ou juízo, altere o engajamento prático dos sujeitos dentro deste. Pois, no final das contas, como esperar um efeito transformador da crítica – visto que em última instância esta sempre responde à necessidade de uma operação de desvelamento – frente a um objeto (agora já se pode falar de um produto) que já de início se expõe em pelo; numa espécie de internalização da crítica, a autoexposição de suas contradições?

Assimilada a ideologia pelos sujeitos sociais da troca (os indivíduos, produtores e consumidores) sem que haja uma crença efetiva em relação à sua legitimidade, a situação dela (a ideologia) ganha assim, hoje, a dimensão de algo próximo a um paradoxo. Pois, ao cumprir seu papel de mediação da consciência frente à realidade, justificando e legitimando esta realidade mediante critérios e valores normativos predeterminados – os conteúdos históricos e sociais da ideologia – ela termina por legitimar prescindindo de legitimidade. Por conseguinte, termina por validar aquela normatividade à revelia mesmo da consciência (por parte do sujeito social da troca) de sua falta de validade. “Daí eles [os sujeitos] poderem ter uma ‘crença desprovida de crença’ () na mera existência. Algo resultante de uma efetividade que já traz em si mesma sua própria crítica”. [6] SAFATLE, Vladimir.Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. p.97.

É nesse sentido que acreditamos ser preciso compreender os exemplos expostos acima e suas insistentes discursividades “críticas”. Pois, tanto na arte quanto em outras áreas, o que assistimos parece ser a agudização, ou prolongamento, daquilo que Adorno acusava meio século atrás; aquilo que alguns autores da teoria crítica de hoje (Vladimir Safatle, Slavoj Zizek, Jean-François Lyotard) se referem, no contexto de uma “falência da crítica”, como “o modo cínico de ser do capitalismo avançado”. É nesse contexto que aquilo que chamaríamos de crítica passa a surgir não mais como ação esclarecedora, mas, sim, como tautologia: ação que menos revela do que simplesmente repete – “diluição na diarréia”, diria Hélio Oiticica (para voltarmos a nosso ponto de partida no campo das artes plásticas).

Paradoxalmente inutilizada a crítica pela contraditória afirmação de sua plena potência, a sua “falência” se apresenta, na situação atual, talvez como o principal problema frente aos imperativos do capitalismo hoje. Ao menos no que se refere à ação política contra esses imperativos. Contradição não resolvida sobre a qual, incontornavelmente, devemos nos debruçar se quisermos pensar uma saída para a arte, desde já imersa nessa situação. 

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FORTALEZA SEM SABOR

A situação da arte contemporânea no Ceará é tratada, atualmente, tanto pelas instâncias públicas como pelos próprios artistas, com grande displicência, e eu me incluo nisso. Noutros momentos, articulações e experimentações em relação à cidade e à jovem produção foram ensaiadas nas instâncias governamental e independente. Foi um momento no qual até chegamos a ter a sensação de que algo interessante poderia brotar e de fato transformar a apática realidade em que estávamos inseridos. No entanto, nenhuma das ações teve uma continuidade –em alguns casos,por descuido; em outros, por pura falta de articulação. A questão é que não continuamos comprando a briga. Rendemo-nos a uma apatia particular de uma cidade em que nada se enraíza.

Acho errado esperarmos a todo tempo que o Estado resolva nossos problemas de carência de espaços expositivos, falta de mercado ou qualquer outra coisa que justifique a ausência de ações no campo das artes visuais. A questão: falta mesmo é desejo e articulação para fazer as coisas acontecerem. O desejo deve ser um carro condutor, o ativador da energia, o propulsor dos sonhos e a fonte da criatividade. Em um segundo momento, a partir da ativação do desejo, que está intimamente ligada à motivação e esperança, vem a articulação – ponto inicial de instauração da política no cotidiano. Política enquanto ação direta na instância pública.

Precisamos entender a política como algo mais simples, distante da politicagem; ela é uma forma de atuação social. Arte pode ser isto, além de ser também concretamente o diálogo e a criação de novas possibilidades do real. Criar estratégias para atuação artística é arte e é política. Às vezes, me parece que tudo aquilo que está ligado à ideia de atuação política foi desfeito nessa nossa geração,movida basicamente por uma apatia individualista, virtual e descentrada. Vivo isso e sei que não é fácil querer ser sujeito político em qualquer instância da vida hoje.Tudo se banalizou e as ações parecem datadas e sem ênfase. Nada parece fazer muito sentido. Mas ao prendermo-nos a rótulos, perdemos a possibilidade de ver coisas muito interessantes saírem do campo das ideias.

Em Fortaleza, o que vemos atualmente é um completo esvaziamento de tudo ligado às artes visuais. Os artistas que restam, que estariam no centro desse jogo, estão completamente dispersos e desestimulados.  A maioria migrou por falta de ter o que fazer na cidade. Não temos um museu sério que crie possibilidade real de desenvolvimento e apresentação da produção; temos apenas um centro cultural aberto ao estímulo de produção em arte contemporânea, mas por ser único e pequeno, ele não dá conta de sustentar por muito tempo o desenvolvimento de cada artista. O Museu de Arte Contemporânea, que em outro momento ensaiou ser um espaço de pensamento e articulação entre os artistas, sendo referência na seriedade com que escolheu seus diretores, foi engolido pela politicagem pequena, coronelista e retrógrada típica do nordeste.

As poucas escolas de arte da cidade nunca conseguiram se desenvolver de fato e acabaram ficando restritas a uma formação em arte-educação e arte moderna, salvo um ou outro grupo de estudos que, a duras penas, busca arraigar algum espaço para o pensamento de arte contemporânea e suas relações com a cidade. No mais, vemos atualmente o surgimento de um novo Instituto de Artes na Universidade Federal e a criação de cursos superiores em cinema, dança e possivelmente teatro. Mas não há, ainda, nenhuma possibilidade real da criação de um curso em artes visuais, acredito que por falta de quem brigue por isso. Aí volta a necessidade de desejo e articulação.

Isso tudo nos tira as forças e faz com que aos poucos um por um dos artistas deixe o barco, parando de brigar por uma atuação artística na cidade, seguindo seus rumos em locais onde o meio já conta com uma complexidade própria e possibilidades reais de crescimento profissional. Não acho que esta seja a melhor saída, mas não julgo os que a fazem. Acho natural e os entendo, pois cansa lutar por algo que sabemos que não terá possibilidade de crescimento, visibilidade ou continuidade. Ao mesmo tempo, sabemos da importância de ações independentes: a força que elas podem ter junto às escolhas políticas; o estímulo à conscientização da necessidade de defendermos o fazer artístico junto à sociedade.

As políticas públicas para as artes no Ceará estão cada vez mais restritas a editais, estratégia delicada que requer uma reflexão particular. Por um lado, os editais dividem o bolão da verba destinada à cultura de maneira mais ou menos equânime entre as áreas. Por exemplo, em artes visuais temos pesquisa, exposição, publicação e circulação. Daí, uma comissão premia uma certa parcela de projetos a serem realizados durante o ano e dentro disso se conclui a política pública para as artes no estado. Os artistas, que não são muitos, ficam felizes, porque vez ou outra será um deles o felizardo a receber o bolão; os projetos ainda contam com uma certa flexibilidade no seu implemento. Isto, muitas vezes, acarreta um direcionamento totalmente diferente daquilo que fora inicialmente proposto, sem que esta alteração seja ao menos discutida. Pronto: temos um resultado concreto para constar nos autos do Governo e os artistas ficam quietinhos com sua fatia orçamentária particular garantida. E ai de quem ameaçar retirá-la!

Podemos perceber o quão cômodo é para o Governo manter esse tipo de política pública, pois no máximo eles só devem se preocupar com: a publicação de um edital (cheio de lacunas, por sinal); uma seleção cujos critérios são pouco discutidos; a prestação de contas. Com isso, se redimem de desenvolver ações direcionadas ao fomento e reflexão da produção ou ações formativas e de circulação. Para os artistas, isso também é cômodo, pois garante, em parte, sua produção individualneste curto espaço de tempo. Isto tudo me parece ser por vezes preguiça de pensarmos de maneira coletivista e projetiva.

O município, além de também ter se adequado à política de editais – o que duplicou o número de premiados anuais –mantém um salão falido, que a cada ano veste um modelo novo, seja na seleção ou nos espaços expositivos, mas que no final das contas continua com uma mostra desarticulada e mal tratada, montada como que de improviso em galerias capengas e locais equivocados. Por outro lado, é um pouco mais animador que nesta atual gestão municipal percebamos uma articulação política mais consciente das necessidades do desenvolvimento das artes visuais. Um projeto em desenvolvimento para o complexo Vila das Artes parece nos reservar algo de particularmente interessante; lógico, apenas se houver desejo político na destinação de verbas. Quem sabe, configure-se um novo lugar para encontros mais férteis.

O papel do Governo deveria ser necessariamente o de criar instituições mais fortes, que não se desfizessem a cada nova administração e que tivessem, na cidade, um papel ativador e propositivoao debate e às ações. A falta de críticos que ajudem a articular as relações entre artistas e instituições ou de meios de comunicações sérios, com profissionais melhor capacitados no desenvolvimento de uma reflexão construtiva, colabora com a inoperância do sistema. O processo é cíclico, sabemos. O momento de baixa nesse ciclo talvez tenha a importância da reflexão e da acumulação de forças, ambasvoltadas a uma possível transformação. Retornando ao início do texto, o desejo de ação, que seria o propulsor de alguma mudança, dá poucos sinais de vida entre os artistas e traz a questão de como reativá-lo, buscando em mim mesma forças para voltar acreditar em algo.

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No fio da navalha entrevista com Miguel Chaia

Arte e política é o tema do livro lançado em 2007 pelo cientista social Miguel Chaia – e o ponto de partida desta entrevista, que em muitos momentos se aproxima de uma conversa. Perguntas ganham um tom afirmativo, ou antes, expressam questionamentos pessoais, ao mesmo tempo em que as respostas indagam constantemente suas posições, evidenciando o caráter investigativo do pensamento de Chaia. “Estou afirmando agora o que penso por enquanto”, diz o professor e pesquisador do Núcleo de Arte, Mídia e Política da PUC/SP, para quem a relação entre arte e política é, antes de tudo, paradoxal.

 

Em Arte e Política [Azougue Editorial], você afirma que o encontro entre esses dois campos é um encontro de convivência paradoxal. Pode falar um pouco sobre essa ideia?

A arte tem um domínio próprio, se constitui como linguagem, como poética expressiva. Diria que ela possui um campo autônomo, que pode estar ligado a outras esferas, como a religião e a filosofia, mas não necessariamente está. Por outro lado, a política é um campo forte, abrangente, que pode afetar a arte de duas maneiras: ou instrumentalizando-a, ou dificultando a produção artística. Onde estaria o paradoxo? A arte aponta numa direção, que é a direção da criatividade, da liberdade, da pesquisa e da revolução de linguagem, e a política aponta para outro lado, que é a esfera das relações de poder, do conflito aguçado, da luta por pequenos poderes. Mas nada impede que a arte constitua-se como micropolítica ou mesmo como macropolítica. Um exemplo de micropolítica é a obra 111, do Nuno Ramos. O trabalho coloca a posição política de um sujeito, o artista, no interior de uma determinada situação histórica [o massacre de Carandiru]. Nesse caso, estamos falando não da política de Estado, ou partidária, mas da posição de um indivíduo. Por outro lado, se analisarmos o realismo socialista que se desenvolve na União Soviética, temos a arte não mais na esfera da micropolítica, da discussão circunscrita, mas como experimento da política de Estado, das relações de dominação. Uma experiência intermediária é a obra do Candido Portinari, que fica um pouco na esfera da micropolítica, mas possui aproximações com o Partido Comunista Brasileiro e com o Estado.

 

Essa ideia de paradoxo não traduz um certo temor bastante recorrente no debate sobre arte e política de que, na convivência entre esses dois campos, o político se sobressaia e o artístico fique como que sufocado, solapado?

De certa forma, sim. Mas em que sentido a expressão poética e a dimensão estética podem ser eliminadas pela política? Só e quando não há preocupação com o desenvolvimento da linguagem, com a discussão da linguagem, com a revolução da linguagem. Quando não existe liberdade para a formulação de uma poética própria. É um fator eminentemente estético que garante à arte política que ela não seja engolida pela grande política. Essa redução da preocupação com a linguagem acontece de maneira muito clara no realismo socialista e também na arte nazista. Tanto um, quanto o outro, reproduzem linguagens já estabelecidas, seja o realismo, seja a arte grega. Mas existem casos em que uma dimensão política forte pode conviver com uma experiência de linguagem. No muralismo mexicano, por exemplo, o Estado praticamente subsidia os artistas, mas pela experiência que eles têm na Alemanha com o Expressionismo e o Fauvismo, os muralistas mexicanos vão trabalhar junto com o Estado, mas desenvolvendo suas próprias linguagens. Vão se utilizar da montagem cinematográfica, da história em quadrinhos, da pintura expressionista. É essa liberdade de experiência que faz com que a dimensão estética se mantenha. Mas até certo ponto, porque quando existe esse envolvimento com a política de maneira tão forte, com um partido político, com o Estado, ou mesmo com uma ideologia, há uma tendência a um certo esvaziamento. Outro exemplo é a produção brasileira dos anos 1960 e 1970. Artistas como Artur Barrio e Carlos Zílio produzem experimentos bastante radicais sob o impacto da ideologia política, mas aí também temos uma autonomia de linguagem, uma pesquisa de linguagem. Situações como essas me fazem pensar que é possível falar em ciclos. Tenho a impressão de que a relação entre arte e política não se dá de forma constante. Existem momentos em que ela fica mais forte e momentos em que enfraquece, como se as obras que trouxessem uma dimensão política mais acentuada fossem produzidas durante um certo tempo: o tempo do conflito, da guerra, isto é, o tempo em que a política se constitui como grande cenário.

 

Em que existe um contexto social tensionador…

 Exato. Que gera a necessidade de aproximar a arte desse cenário. A arte política no Brasil dura até a década de 1970. O realismo socialista também dura do final dos anos 1920 até os anos 1950, 1960. A arte nazista se produz durante a guerra, e as vanguardas também. Essa é uma questão que me instiga: por quanto tempo a obra de arte pode ser produzida politicamente?

 

E quanto ao momento atual, de meados dos anos 1990 para cá, não te parece que houve um fortalecimento de uma arte de preocupação política? Penso nas produções que se realizam em contextos sociais específicos, que se voltam para o espaço público, ou para comunidades, que flertam com o campo da antropologia.

Concordo com você. Mas desde que se considere a negação desse fenômeno em paralelo. Porque se percebêssemos constantemente a aproximação entre arte e política, se essa relação se rotinizasse, é como se a arte deixasse de ser autônoma, deixasse de ser linguagem, poética. Teríamos então de dizer que toda arte é política, mas como essa relação é paradoxal, há momentos em que esses campos se aproximam e momentos em que eles se distanciam. A arte não é o campo da política, nem o da economia. Diria que hoje a relação entre arte e política desdobra-se em duas esferas. A primeira é a da relação da arte com o mercado. Principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, vivemos, nos últimos anos, um crescimento do mercado de galerias e de grandes exposições institucionais espetacularizadas. Mas não se pode dizer que o mercado tenha ganho a parada, porque paralelamente a arte contemporânea ganhou uma dimensão reflexiva. Talvez em função da força do conceito, talvez pelo fato de um grande número de artistas contemporâneos não trabalhar necessariamente com o objeto, mas com a ideia, não trabalhar no cubo branco, mas na cidade, não trabalhar voltado para uma galeria, mas para um bairro. O que acontece é que a arte contemporânea abriu um leque que pode levar tanto para uma postura individual radical, de negação, ou de crítica ao mercado, mesmo participando dele, quanto para uma postura voltada para o campo social, ou sócio-político. Vemos hoje um grande número de ativismos artísticos e estéticos, artistas que perambulam por favelas, por bairros pobres e formam o seu campo de atuação ali. Nesses casos, a arte se constitui na construção de uma trama coletiva no qual o estético passa a servir para agregar as pessoas sob uma determinada direção de sociabilidade mais complexa, mais sofisticada, mais humanizada. O JAMAC é um exemplo, mas tem muitos outros, como os artistas que ocuparam o Prestes Maia. Aí se coloca de novo a questão: até onde esses artistas, para manterem o campo da estética, da expressão poética, desenvolvem uma pesquisa de linguagem? Até onde eles priorizam o campo da estética e até onde priorizam o campo da sociabilidade?

 

Muitos artistas vão dizer que não importa se a sua prática é vista como própria do campo da arte, ou do campo social, que essa não é uma questão. Mesmo que esses artistas sigam participando de exposições e fazendo o seu trabalho circular por espaços próprios do sistema da arte.

 Arte é um conceito polissêmico. Cada artista pode criar a sua concepção de arte. Essa é uma possibilidade colocada pela contemporaneidade. O artista pode querer eliminar a aura artística e afirmar que ele não é um ser diferenciado, com um tipo específico de conhecimento, de produção de linguagem, etc. Então depende da concepção de arte que se tem. Eu, pessoalmente, penso que a arte é uma área ligada ao social. E é aí que o problema se coloca: até onde podemos dizer que arte é expressão poética, pesquisa, desenvolvimento de linguagem, tentando explicitar as relações sociais, e até onde ela é relação social? É uma questão em aberto. Gosto da ideia de arte como relação social não quando ela se dilui na sociabilidade, mas no campo da performance, da instalação, do vídeo, das novas tecnologias. Tenho a impressão de que nessas linguagens o campo da arte se amplia ao seu limite. Como se chegasse perto do fio da navalha. Na fronteira, estariam os ativismos.

 

E nas linguagens mais tradicionais, desenho, pintura, gravura, como você vê o diálogo entre arte e política?

Talvez com o desenho e a pintura a discussão seja mais intimista, reflexiva. Já na performance, nas instalações, no vídeo, ou nas novas tecnologias, me parece haver um facilitador frente às condições da sociedade contemporânea, como se essas linguagens pudessem traduzir com mais facilidade uma nova percepção.

 

Talvez nas linguagens mais tradicionais, a preocupação política tenda a aparecer mais como tema do que como pesquisa de linguagem.

Será que na pintura e no desenho a intensidade relacional se reduz? Por outro lado, são linguagens potentes exatamente por se distanciar daquilo que é ordinário.

 

Por sugerir um outro tempo de relação, de percepção. Talvez mais do que outras linguagens que se mesclam tanto à vida cotidiana, ao seu tempo, à sua dinâmica, que podem chegar a se camuflar nela. Estou pensando alto também…

 Gostei do termo que você usou: camuflagem na vida cotidiana. Até que ponto a arte, quando vai em direção da camuflagem na vida cotidiana, perde a sua especificidade? Ou melhor, quando ela adquire especificidade? Mesmo com Duchamp não é qualquer coisa que é arte. Não é essa a idéia que está presente em seu trabalho. É arte aquilo que tem um conceito específico e que se diferencia do cotidiano.

 

Mas se por um lado podemos pensar que a camuflagem de uma experiência artística não instaura um outro tempo de relação, uma outra disposição por parte do público, por outro lado, quando lidamos com algo que é evidentemente um objeto, ou uma experiência artística, a expectativa que se tem em relação a isto também pode favorecer uma atitude pouco potencializadora dessa relação. Quero dizer que, para muitas pessoas, o fato de elas saberem que a entrega de um panfleto, por exemplo, faz parte de uma ação artística talvez faça com que elas se sintam intimidadas, distanciadas e mesmo inaptas para experienciar aquilo. Em outras palavras, talvez a camuflagem as aproxime do trabalho. É uma questão para se pensar.

 A origem dessa questão está na ideia da Escola de Frankfurt de que a arte, a partir da revolução industrial, teria perdido a sua aura. Isso em função da possibilidade de reprodução técnica das imagens. Pode ser que efetivamente esteja acontecendo isso. Mas por outro lado a arte segue tendo seu tempo. Me parece que essa relação entre arte e política e entre arte e sociedade atinge o ápice nos nossos dias. Com as propostas teóricas e os desenvolvimentos de linguagem propiciados pela tradição do passado, tornamo-nos aptos a trabalhar com a arte na instância da relação social, na concepção do desaparecimento do artista e da própria obra. Por outro lado, ainda é possível apontar o que é arte e o que é artista. A Regina Silveira tem uma gravura, se não me engano, que diz que arte é enigma. Mesmo na contemporaneidade, as obras mais potentes são aquelas que mantêm esse enigma – quando a política não é o reino do enigma, mas do provável. E o reino da sociabilidade é o reino do ajudar ao outro, ideia presente no trabalho do Maurício Ianês nessa Bienal [28ª Bienal de São Paulo], que é um pouco depender da vontade do outro para sobreviver. Até onde essa questão é mais sociológica do que estética? Penso que a ideia da imprevisibilidade, da imponderabilidade, do enigma é o que distinguiria a obra de arte daquilo que é ordinário, cotidiano. Mas voltando à ideia da camuflagem, aparentemente, quando a arte entra na sociedade e se coloca como relação social, acho que se esquecem três ideias. Primeiro, a ideia do Karl Marx de que o capitalismo é hostil à arte. Segundo, a do AntoninArtaud, para quem Van Gogh não teria se suicidado. A sociedade é que o teria matado, já que é da sua natureza destruir as individualidades. E a terceira é a do Jean-Luc Godard de que a cultura é a regra, a arte é a exceção, e é da cultura querer matar a exceção. Em outras palavras, se for arte, a sociedade tende a destruir, eliminar, hostilizar. Gosto desse parâmetro.

 

É uma ideia forte, mas me pergunto se ela não é muito moderna, que não se aplica aos dias de hoje. Porque é um pouco como se a gente acreditasse numa certa pureza do pensamento artístico, numa autonomia quase absoluta, como se o artista produzisse fora da sociedade e sua obra contivesse uma força, uma potência, que a sociedade não conseguisse abarcar e por isso não conseguisse conviver.

É verdade. Legal você ter levantado isso. Por um lado, acho que esse entendimento se aplica fundamentalmente àqueles artistas que se embrenham na sociabilidade, se misturam às relações sociais. Por outro, o capitalismo também se tornou muito sedutor. O FredricJameson fala do capitalismo cultural. Segundo ele, o capitalismo hoje se reproduz em cima da beleza e da estetização do cotidiano. Então é verdade, sim, que na pós-modernidade, a arte e o artista foram incorporados pela sociedade contemporânea. A ideia de glamour e de beleza está presente desde a carteira de cigarro até o carro. Realmente há uma incorporação do estético.

 

Não no sentido de um desenvolvimento da sensibilidade, da percepção, da reflexão, mas no sentido da estetização das formas, é isso?

Isso. Por outro lado, também há o crescimento do mercado de arte. Os artistas hoje vendem e têm de enfrentar essa situação. Não podem fugir do mercado, mesmo porque muitos deles se dedicam apenas à sua pesquisa. Quando muito, dão aula. Por isso o artista na contemporaneidade é colocado no fio da navalha. O fato de vender não deixa de representar um perigo. Mas me parece que o artista contemporâneo tem mais instrumentos e conceitos para lidar com essa situação: a facilidade do mercado versus a necessidade de desenvolver a sua linguagem. Agora, em que medida a pressão da sociedade tende a aniquilar o artista? Talvez permanentemente, mesmo nos dias de hoje. Quando um artista vende bem, isso pode acabar reduzindo o seu potencial de causar incômodo.

 

Até mesmo pelo aspecto um tanto celebrativo que essa circunstância pode promover e que muitas vezes não condiz com as inquietações que estão por trás do trabalho.

Mas e por que não o aspecto celebrativo?

 

Boa pergunta. Talvez eu esteja sendo muito moderna. Mas, se por que não o aspecto celebrativo, então por que não a camuflagem na vida social? Entende o que quero dizer? Se concordamos que não faz sentido estabelecer regras a priori

É verdade. Podemos pensar nessa questão juntos. Talvez por vivermos em uma sociedade de massa, imensa, complexa, heterogênea, em que local e global se misturam, é possível, sim, pensar que cabe à estética criar relações sociais em que a percepção se torne mais aguçada, em que a vida seja melhor. É quando o artista opta por criar numa esfera social uma nova trama, englobando um maior número de pessoas. Acho que isso pode ser visto até como um avanço da ideia da arte conceitual. O conceito importante nesse caso passa a ser o de criar um espaço em que as pessoas vivam melhor, em que as relações sejam mais reflexivas, afetivas, etc. Seria como criar um campo estético social. Mas aí entramos naquela ideia da vida como obra de arte. É uma das possibilidades para se pensar. É isso que você está querendo dizer?

 

Exato. Realmente não vejo essa aproximação extrema com a esfera social como um problema. Mais do que me preocupar com a possibilidade de uma ação artística se confundir com uma ação social, me preocupa a possibilidade de uma ação artística que tem por base uma intervenção social realizar uma intervenção danosa. Afinal, quando falamos desse tipo de prática, estamos falando de outros campos do conhecimento também. 

Claro. Mesmo porque o campo das relações sociais tem especificidades. Para você entrar nele, é necessário conhecimentos, técnicas e cuidados que não necessariamente o artista tem.

 

Em muitos casos, o investimento do artista numa determinada comunidade é muito pontual. Então se cria uma expectativa que acaba frustrada. Mas claro que um profissional da área social não está livre de promover uma intervenção danosa também.

Verdade, mas talvez o artista carregue esse risco em maior proporção.

 

Normalmente, não faz muito sentido o artista produzir atentando para o efeito, ou a reação que sua obra pode suscitar. Mas nesses casos essa atenção está um pouco na base do trabalho.

O artista deve criar a partir de uma ética própria, de uma potência interna a ele mesmo, individualizada. Já o assistente social, ou o médico, produzem a partir de uma ética que está acima deles, de uma moral. E tem objetivos claros. Essa diferença é importante. Por isso acho que estamos num campo de maior risco. Mas a arte contemporânea vai nessa direção também. Não há mais limites para a experimentação estética, desde o próprio corpo até o outro. E quanto mais o envolvimento com o outro se coloca, mais a dimensão política tende a ser polêmica, porque o trabalho pode deixar de ser estético para se tornar sociológico. Quando o artista diz “eu sou a relação social e a arte é relação social”, não sei se estamos no campo do estético ou no campo de uma sociabilidade diferenciada. Mas tenho muitas dúvidas quanto a isso. Estou afirmando agora o que penso por enquanto.

 

A origem dessa problemática, dessa relação tensa entre o campo da arte e o campo da política, estaria ligada ao processo de autonomização do campo artístico e à consequente redefinição da função da arte e do artista?

A relação entre arte e política é antiquíssima. Está presente nos gregos, na Idade Média. Mas ela se constitui como problema com as vanguardas históricas, no início do século 20. Os dadaístas, surrealistas, futuristas. E, mais tarde, com os situacionistas. É quando se coloca a crítica da arte pela arte, a arte como produto de uma sociedade burguesa que tem de ser alterada. É quando se passa a colocar em xeque a ideia de obra de arte como mercadoria e o próprio mercado. Mas são muitas as possibilidades de se pensar a relação entre arte e política. No livro [Arte e Política], levanto quatro, mas você e eu já levantamos uma dezena. O que é muito importante quando falamos em arte e política, é tentar estabelecer o contexto e a especificidade dessa relação. Pode haver uma relação em que a questão política é própria do artista, uma situação em que a dimensão política é dada mais pela leitura do trabalho, uma situação em que entram em jogo ideologias mais amplas, etc.

 

Mas se a gente pensar que a arte sempre vai se relacionar com um determinado contexto, nem que seja o contexto histórico e cultural do artista, não faz sentido crer na possibilidade de uma arte efetivamente autônoma.

Por um lado, é verdade que a arte é histórica, resultado da práxis humana. Trata-se de um trabalho, como diz a Hannah Arendt. Uma forma de criar conhecimento que está ligada ao contexto de produção cultural de um determinado momento. Por outro lado, ela é desenvolvimento da linguagem de um indivíduo e da linguagem de uma história. E nesse sentido o artista só pode fazer aquilo que as condições herdadas por ele permitirem. Mas ainda acredito que há um teor de autonomia na arte. No sentido de que ela diz respeito não necessariamente à história de modo geral, mas à história da arte e da linguagem.

 

Por mais que a história da arte e a produção artística estejam sempre vinculadas a contextos históricos…

Exato. É preciso pensar essa questão levando em conta essa ambiguidade. Existem recursos, métodos, valores, símbolos, signos que são próprios de uma linguagem, de um suporte, de uma mídia. Quer dizer, a pintura propicia isso, o desenho aquilo, o vídeo outra coisa. De fato, o artista está no interior de um determinado contexto histórico, mas a arte também tem uma especificidade. Por que Shakespeare nos toca até hoje? Porque há ali uma continuidade daquilo que é próprio da arte.

 

Você acredita que a arte pode interferir ou transformar a realidade social?

 A arte pode transformar as realidades subjetivas. Podemos ser transformados por um livro, uma peça de teatro, uma pintura, uma instalação. Mas é uma transformação que acontece no indivíduo. A arte não tem o papel das ideologias, que mesmo elas não conseguem cumprir, de produzir transformações sociais, de fazer revoluções. A não ser a revolução da linguagem. Nesse sentido, ela é transformadora no seu próprio âmbito. Talvez a alteração da subjetividade esteja relacionada à revolução da linguagem. Amplia-se a percepção, na medida em que a arte se radicaliza na linguagem, mas não se transforma o mundo, a sociedade, a cidade, o bairro. Transformam-se as nossas subjetividades. O que muda a realidade é a história.

 

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Notas do subsolo (da arte contemporânea)

Lapsos (históricos) estéticos e mediações (estruturais) da sociabilidade

Em assuntos de arte, a recuperação histórica do passado não é jamais desinteressada. A revisão, ou retomada de certos artistas, movimentos e mesmo épocas artísticas serve sempre à resolução de problemas contemporâneos. Entenda-se por resolução a superação desses problemas (como quereria W.Benjamin). Ou, muito comumente, o recalque deles.

Isso para dizer duas coisas precisas: 1) a recuperação do passado artístico não se dá – em geral – sem uma cegueira correlata em relação aos problemas da própria época tomada em foco; 2) o interesse verdadeiramente histórico (porque relativo à historicidade dos problemas estruturais de uma época – ou duas) está justamente nesta dialética entre iluminar/obnubilar aspectos diferentes de uma época.  Este obnubilamento se refere à relação problemática que a época em vista (ou melhor, os fenômenos cuja recuperação está em curso) estabelece entre seus diversos elementos conjunturais estruturantes, ou, mais ainda, que estabelece com os momentos históricos que a antecedem e a sucedem imediatamente.

E que fenômeno, ou conjunto de fenômenos artísticos, nossa própria época histórica privilegia no passado?

Há pelo menos uma década e meia – após a ocupação formalista que tomou de assalto a arte brasileira desde meados da década de 1970 e vigorou com mão de ferro nos anos 80, cuja hegemonia se encontra hoje desgastada, mas não terminada – a historiografia e a prática artística no Brasil têm se voltado para o fenômeno oriundo da década de 60 da participação, ou das proposições em aberto. Participação ativa e proposições em aberto funcionando como ruptura das formas artísticas, por assim dizer, “fechadas”. Como superação da estética (como esfera autônoma) em direção a uma integração entre arte e vida.

As relações estruturais (ou, com o perdão da má palavra, formais) entre determinadas práticas dos anos 60 – como aquelas de Hélio Oiticica e Lygia Clark – e certas práticas atuais é patente: dissolução do campo estético contemplativo e consequentemente da divisão estanque entre autor e público; utilização de materiais cotidianos (panos, roupas, objetos, por oposição ao campo representacional da tela) em vista de uma proposição “existencial”, sensível, no lugar da contemplação estética; bem como proposições “ambientais” (hoje sob a forma reificada da instalação) e relacionais de toda ordem.

Mas parece haver, entre as duas épocas, um lapso em relação aos conteúdos histórico-sociais destes procedimentos. Afinal configuram-se as duas épocas como momentos distintos: 1) um, o momento sob a égide da formação nacional (Celso Furtado, Caio Prado Jr., Antonio Candido) e 2) outro, o atual, da consciência do desmanche nacional (Roberto Schwarz, Francisco de Oliveira, Paulo Arantes), da pós-nação ou daquilo que alguns autores entendem como o surgimento global de sociedades pós-catastróficas (Robert Kurz e, mais uma vez, R. Schwarz). Um lapso de percepção entre 1) o momento otimista, ligado ao ciclo desenvolvimentista no país (1930-1964) e 2) o momento posterior, da modernização conservadora e, em seguida, da desindustrialização – ou seja, o momento inaugurado pelo golpe militar (1964-1985) e sua sequência na frustrante redemocratização que, mais uma vez, não cumpriu a promessa de revirar a ordem social do país.

Lapso: falta uma mediação.

E aqui entra aquela dialética da recuperação do passado que, ao iluminar um lado do objeto histórico, obscurece seu par antitético: na tardia história da arte moderna no Brasil ao momento culminante da poética neoconcreta (e de sua superação nas obras de Oiticica do início da década de 60 – penso aqui nas Bólides, Ninhos e Parangolés por oposição aos Metaesquemas e Núcleos)[1] A superação do neoconcretismo nos trabalhos de H.O. se dá menos como ruptura do que como desenvolvimento. Neste sentido a intuição de Mário Pedrosa, feita no calor da hora, é ainda a fonte mais confiável, em termos de uma dissociação do momento neoconcreto propriamente dito e o prosseguimento das experiências de Oiticica. Ver: PEDROSA; Mario. Os Projetos de Hélio Oiticica; Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica. In: Acadêmicos e modernos: textos escolhidos III, Organização Otília Arantes. São Paulo: EDUSP, 2004, p. 341-343; 355-360. de uma fenomenologia do sensível e sua ênfase no sujeito da experiência (por oposição ao seu antecessor imediato, o artista-projetista do concretismo e, portanto, da centralidade do autor como engenheiro da forma), segue-se o momento que ficou conhecido por Nova Figuração (da qual fazem parte Antonio Dias, Rubens Gerchman, Pedro Escosteguy, Marcelo Nitsche, bem como os ex-concretistas Waldemar Cordeiro e Maurício Nogueira Lima), que culmina no momento que Hélio Oiticica sintetizou como o da Nova Objetividade Brasileira. [2] Para a superação do “momento otimista” da geometria por um “reconhecimento trágico” mediante o apelo da Nova Figuração ao imagético na arte brasileira dos anos 1960, ver: MARTINS, Luiz Renato. A Nova Figuração como Negação. In: Revista Ars n. 8. Revista de pós-graduação do Dept. de Artes Plásticas, CAP-ECA-USP. São Paulo: CAP-ECA-USP, 2007, p. 62-63.

É de se notar que, a partir de 1966 e tendo como novo parâmetro a obra dos artistas mais jovens (vide-se textos como “Esquema Geral da Nova Objetividade” e “Vivência do Morro do Quieto”)[3] OITICICA, Hélio. “Esquema geral da Nova Objetividade”, texto do catálogo da exposição Nova Objetividade, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1967. Republicado em OITICICA, Hélio. Hélio Oiticica. Catálogo. Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 1997, p. 110-120;  “Vivência do Morro do Quieto”, escrito em dezembro de 1966. Publicado em BASUALTO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira. São Paulo: Cosacnaify, 2007, p. 218-220. a obra de Oiticica passa a fazer uso, pela primeira vez e a partir de então sistematicamente, da nova mediação geral que estava sob o foco dos artistas da Nova Figuração/Nova Objetividade: a imagem.[4] Veja-se, como exemplo, a primeira delas, Bólide-Caixa 18, Poema Caixa 2, Homenagem a Cara de Cavalo (1966), cuja estruturação mediante a imagem delineia um programa que será seguido posteriormente nas fotomontagens de Subterranean Tropicália Projects (1967-9), nas Cosmococas da década de 70, entre inúmeros outros trabalhos.

 

Resistência ao Mundo-Imagem

Para que os artistas possam operar conscientemente num mundo tornado imagem, não se trata de efetuar uma recuperação histórica pura e simples. Os conteúdos de um uso consequente da imagem como realidade organizativa da vida social atual – sua mediação geral – deveriam rever criticamente o passado. Tendo em vista suas semelhanças e diferenças com o processo atual, rever suas falhas e demarcar suas limitações.

O processo que se inaugurava com a implantação do regime militar em 64, de uma preponderância das mídias visuais como agentes da reificação modernizante mais ampla – notada já em 1963 por Waldemar Cordeiro[5] “A nova figuração denuncia a coletivização forçada do indivíduo levada a efeito mediante os poderosos meios de comunicação atuais (TV, cinema, rádio e imprensa), a serviço de uma oligarquia financeira cada vez mais ávida de lucro. O pomo de Adão é a coisa e a gula é paga com alienação. A coisa talismã da segurança na filosofia do conforto. Possuir as coisas, a qualquer custo, é a pobre ideologia dos alienados.” CORDEIRO, Waldemar. VII Bienal: Nova Figuração denuncia a alienação do indíviduo. Brasil Urgente, I, 40, dezembro de 1963. In: AMARAL, Aracy (org.). Waldemar Cordeiro: uma aventura da razão. Catálogo de Exposição. São Paulo: MAC-USP, 1986. p. 119. – generalizou-se amplamente e ganhou, no quase meio século que nos separa do passado desenvolvimentista, dimensões globais anteriormente impensáveis. Ganhou o papel de estruturar a própria realidade.

Ao interesse historiográfico (que poderia ser resumido na questão: “qual o estatuto da imagem na obra de Oiticica a partir da Nova Objetividade e como ela ressignifica, sem anular, suas experiências de participação ativa?”) junta-se o interesse prático: “Qual a realidade da participação hoje? E quais suas relações com o mundo-imagem que a experiência cotidiana nos obriga a encarar?”. Assim, essa “abertura histórica” proposta abre, ao menos, um campo pouco visado pelas experiências artísticas contemporâneas.

Ou antes: um campo pouco visado conscientemente pelas experiências artísticas contemporâneas, posto que a realidade muito concreta da imagem domina a vida cotidiana. Procurar escapar à imagem mediante a esquiva, sem a tentativa de superá-la, não parece um recurso efetivo para fugir à colonização do cotidiano que as formas visuais submetem a vida social. Mais: as abordagens fenomenológicas, participativas, relacionais – a ênfase no processo criativo, que seria então compartilhado com o público, ativamente – partem do pressuposto de que existem espaços da vida não colonizados pela lógica mercantil (do qual a forma-imagem é, segundo Debord, o momento de máxima acumulação).[6] Debord: “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.” DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo, trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 14, 25.  Assim, a experiência do corpo, do inconsciente, da libido – em suma, as forças criativas do humano – seriam as experiências “reais”, livres – que se oporiam à relação fetichista imposta pelo capital ao mundo social.

Poderiam sê-lo efetivamente? As abordagens relacionais contemporâneas opõem à obra fechada a apropriação de “valores de uso” puros para a arte, que – por um princípio inefável – estaria a priori fora do âmbito do “valor de troca” capitalista.

É interessante observar que a reificação do processo criativo nasce precisamente da recusa da reificação implícita em toda obra de arte. Assim, [o] Dada, que  procura constantemente negar o objeto artístico e abolir a própria idéia de ‘obra’, acaba mercadorizando paradoxalmente a própria atividade espiritual. O mesmo pode ser dito dos situacionistas que, na tentativa de abolir a arte realizando-a, acabam, pelo contrário, dilatando-a para a existência humana inteira. A origem desse fenômeno encontra-se provavelmente nas teorias de Schlegel e de Solger sobre a chamada ‘ironia romântica’, que se baseava precisamente sobre o fato de se assumir a superioridade do artista (ou seja, do processo criativo) com respeito à sua obra, e levava a uma espécie de referência negativa constante entre a expressão e o não expresso, comparável a uma reserva mental.[7] Debord: “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.” DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo, trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 14, 25.

Mas a reserva mental do artista (agora compartilhada com o público na esfera criativa da participação) seria suficiente para barrar os processos objetivos (e objetivantes) do capital numa sociedade que às técnicas disciplinares (Foucault) somou as técnicas de controle (Deleuze)? Ou faria antes parte de um jogo de inversões no qual a experiência direta original, negada de princípio pela sociabilidade capitalista (na qual rege a mediação geral da forma-mercadoria), torna-se o seu oposto? O oposto da experiência direta: a mercadorização e reificação das experiências corporais, participativas, sensíveis, etc – agora tomadas como um fim em si.

A hegemonia que a indústria cultural, como nova forma de totalitarismo (Adorno), alcançou nos últimos trinta anos efetua menos uma cisão entre a experiência mental (contemplativa) e a experiência direta (do corpo, dos sentidos), do que o rebaixamento de toda experiência. Rebaixamento de toda experiência que não esteja submetida à hiper-realidade da imagem.

Não se trata, é certo, de aderir ao sistema de imagens, mas de começar a compreender sua existência real, em vistas de intervir nessa hiper-realidade. A realidade da colonização do eu por imagens de toda ordem parece ser a experiência sensível (e frustrante, certamente) a qual uma arte não formalista – que deverá servir à resistência – deveria tentar responder.

Mas quais são, dirão vocês, as vias da resistência? Mal se começa a percebê-las. Os bons artistas, que são raros, já sabem como tomá-las. Também não têm escolha. A resistência não é a delinquência (pirataria, sabotagem e outros). Opera sempre na imagem. No interior do sistema. No coração do controle. Trata-se de inventar uma outra agit-prop que seria virtual: retórica do desvio, da sobrelanço e da zombaria.[8] MICHEL, Régis. Farocki: o olho-máquina. In: Revista Margem Esquerda 12, São Paulo: Boitempo Editorial, novembro de 2008. p.134.

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Sobre práticas e pensamento

De seis a nove de março do ano passado aconteceu, em Recife, o seminário de curadoria Panorama do Pensamento Emergente (PPE). Treze jovens curadores brasileiros foram convidados para a ocasião e compuseram quatro mesas de debate temáticas, que foram agrupadas em áreas de atuação tais como: academia, mercado editorial, ambiente institucional e projetos independentes. Cada mesa foi mediada por um profissional de carreira consolidada[1] Informações obtidas no portal Dois Pontos – Arte Contemporânea em Pernambuco [1 – http://www.doispontos.art.br/novo_interno.php?cod=605.

O seminário foi amplamente divulgado como não pago: qualquer um poderia participar. Embora acontecesse durante quatro dias, eis que a maioria de nós ficou intrigada ao saber que o primeiro e o quarto eram vedados à participação do público.

Logo em seguida ao PPE, um workshop de discussão e produção de textos críticos foi ministrado por David Armengol, integrante do coletivo A-DESK, formado por curadores e críticos espanhóis. Juntos, eles editam uma revista eletrônica [2] www.a-desk.org de mesmo nome.Uma experiência similar de workshop se deu em Belo Horizonte com David Torres, também membro do A-DESK. Os textos produzidos em ambasocasiões foram compilados e publicados na referida revista sob forma de dossiê [3] http://www.a-desk.org/25/.

O texto que se segue é resultado do workshop realizado por Armengol.

 

A relação intrínseca entre verdade e justificação é revelada pela função pragmática de conhecimento que oscila entre as práticas cotidianas e os discursos. Os discursos são como máquinas de lavar: filtram aquilo que é racionalmente aceitável a todos. Separam as crenças questionáveis e desqualificadas daquelas que, por um certo tempo, recebem alicença para voltar ao status de conhecimento não-problemático.

Jürgen Habermas em “A Ética da Discussão e a Questão da Verdade”.

 

SOBRE PRÁTICAS E PENSAMENTO

É certo que dentro do nosso contexto contemporâneo, no qual se celebra o indivíduo psicologicamente fragmentado e polivalente em suas atividades, tem-se por corolário a pretensão de Todas as possibilidades não só no fazer arte, bem como nas práticas curatoriais e críticas. Na dinâmica de tantos afazeres e na busca de preencher todos os espaços que lhes são dados, críticos e curadores perdem, neste caminho, a oportunidade de um olhar mais reflexivo e aprofundado sobre seus próprios trabalhos – não há parâmetros.

Arrisco um diagnóstico ao ouvir falas, que transitam entre a insegurança e a incerteza, de alguns dos curadores que compuseram o Panorama do Pensamento Emergente. Creio que ainda existe (em nosso imaginário) uma mágoa rançosa em relação às ideologias pré-modernistas em que tudo seguia um cânon. Tal rancor faza maioria se abster de uma tomada de posicionamento assumidamente de caráter ideológico, receosa de estar aderindo a um moralismo impermeável e arredio. A questão é que essa falta de posição, de referência, emperra a tentativa de uma epistemologia. Os questionamentos acabam sendo superficiais, porque os discursos também o são – preocupados apenas em trazer à tona não a verdade (ainda que pragmática), mas uma justificativa de ações.

Sintomas disso é que, nos encontros de pares, o maior tempo é gasto nos relatos de entraves e tentativas de elucidações das problemáticas cotidianas sem, no entanto, desenhar um contexto e uma direção para que se traga à baila as discussões reflexivas sobre as produções (curatoriais ou críticas).

Cabe dizer que, no Brasil, temos uma fragilidade institucional. Ela começa da inabilidade (ou má vontade) dos nossos legisladores em criar uma política pública que assegure a estabilidade de nossos museus e a execução de projetos curatoriais a despeito do humor da gestão executiva (seja ela municipal, estadual ou federal). Ainda assim, não penso que isto seja suficiente para justificar um esvaziamento de significado no exercício da crítica e da curadoria.

Tivemos em Mário Pedrosa,Walter Zaninie, atualmente, em Paulo Herkenhoff, exemplos de posturas bem definidas de trabalho. Este último, alicerçado em um exercício contínuo de pesquisa, interessa-se em preencher lacunas de um passado histórico e, quem sabe, reescrever uma história da arte (sobretudo moderna) ainda hoje paulicentrada. Ora, este (ainda) não é o momento de pôr em questão juízos de valores, mas sim o de uma procura por discutir e entender que práticas são essas, ou que pensamentos emergentes são esses– que o Panorama do Pensamento Emergente prometeu apontar – surgidos sob um discurso de “compromisso geracional”. Porque, de discurso em discurso, o que pude perceber é que existe muito mais um compromisso relacional (relações de afetos e redes de trabalhos) do que um comprometimento com a geração – embora essas relações de afeto e de trabalho quase sempre se dêem entre pessoas de uma mesma geração.

O que é o compromisso geracional dentro de uma política curatorial que repete exaustivamente os mesmos nomes? A quem cabe decidir quais trabalhos são mais significativos que outros? Quem decide qualidade? Quase sempre, ao se discutir sobre curadoria, pensa-se no binômio curador-artista e tira-se dessa matemática o público enquanto agente ativo. Ora, não é uma postura um tanto quanto estreita pensar no público apenas como receptor de imagens-significados? E não, também, como um formador de opiniões? Mesmo as curadorias demasiadamente autorais não prescindemdo compromisso de uma gestão para e com o público, mormente se forem realizadasem um museu mantido mediante recurso estatal (ou municipal).

Como disse logo acima, a polivalência dos curadores e críticos, que atuam segundo as oportunidades que lhes são dadas, não importando se no âmbito público ou privado, institucional ou independente, acaba embaraçando um posicionamento claro,maquiado pelo discurso, já mencionado, do compromisso geracional. Esse é um ponto para adentrarmos um pouco mais no campo da ética.

Quero acreditar que, ingenuamente equivocados, alguns jovens curadores afirmaram adotar o preceito de que ética é pessoal, “cada um tem a sua”. Porque a razão de ser da ética é por sua parte subjetiva e, sobretudo, sua parte objetiva. Um curador que trabalha com dinheiro público tem implicações éticas bem maiores do que aquele que gere dinheiro privado. Mas, quando reclamo uma tomada de posição é muito mais por uma necessidade de construção de conhecimento (e, por que não, conceitos?), nesta instância ainda tão inconsistente que é a ciência da arte aqui, do que uma tentativa de moralizar os exercícios de crítica e curadoria.

Por fim, resta reclamar o cumprimento da promessa do panorama de um pensamento emergente brasileiro. De outro modo, o que temos é um panorama das práticas de críticos/curadores que estão emergindo e, no desejo de continuar em ascensão, desdobram-se em mil e uma atividades sem, contudo, deterem-se necessariamente na construção de um pensamento.

***

Durante o seminário ficamos sabendo que o último dia era privado aos curadores convidados, porque seria o momento em que discutiriam sobre questões acerca da prática curatorial e esboçariam um documento, que posteriormente seria trazido ao público, como resultado destas reflexões.

Passado um ano, não se teve notícias do documento. Permanecem embaçados o lugar ético do crítico, do curador, do produtor cultural… Quedam incipientes as atuações e os discursos que clarifiquem o que seria, entre tantas coisas, “compromisso geracional”.

Mais uma vez perde-se a oportunidade de alicerçar a construção de um ideário brasileiro acerca dos agentes e de outras pertinentes questões das artes visuais. Assim como as políticas públicas, muitas curadorias são feitas de forma assistemática e difusa, sem produzir recortes significativos para nosso processo histórico. Fico me perguntando se atualmente muitas das grandes exposiçõesnão beiramo entretenimento, porque, a despeito dos aparatos midiáticos, das guloseimas e das conversas petit comité, estas exposições não sobrevivem enquanto pensamento…

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Ordem do dia: pensar a mim, pensar a Tatuí, pensar a ponto de não saber mais o que estou pensando&

Ordem do dia: pensar a mim, pensar a Tatuí, pensar a ponto de não saber mais o que estou pensando…  [1] Este texto nasceu de um conjunto de reflexões que foram parcialmente apresentadas nos eventos Fora do Eixo – Precipitações (Brasília, dezembro de 2008) e Seminário Criação e Crítica (Vitória do Espírito Santo, março de 2009) e que, portanto, colaboraram intensamente no estímulo à organização do constante esforço de autoanálise e autocrítica.

Glória Ferreira, crítica de arte a quem muito admiro, escreveu recentemente, ao comentar sobre a Tatuí num seminário na USP, que apresento certa “indecisão entre exercer uma atividade artística ou crítica”, donde tirei que devo parecer, aos olhos dos outros,razoavelmente indefinida. Um tanto quanto preocupada com o que pareço ser, pus-me a pensar sobre meus próprios pensamentos e acerca de minha condição aparentemente cambiante entre a “crítica” e a “criação”. E aqui compartilho parte de minhas elucubrações, cônscia que estou de serem elas um tanto quanto delirantes…

Para a configuração desta identidade “mestiça” certamente corroboram dois aspectos apenas relativamente distintos entre si. O primeiro se refere à minha formação, ocorrida na então única graduação em arte de Pernambuco, um curso de licenciatura em Ed. Artística que, por conta da demanda artística local, coloca, simultaneamente ao foco no ensino da arte, grande ênfase na formação de artistas. Assim, posso dizer que, em alguma medida, apesar de ter adentrado o curso já com a intenção de ser crítica de arte, tive uma formação de artista.

O segundo aspecto que contribui para a tal hibridização existencial diz respeito a um posicionamento ideológico um pouco mais claro, que incorpora dimensões éticas, estéticas e políticas, e sobre o qual vou aqui me deter ao intercalar minhas experiências pessoais à pequenina história da Tatuí, revista de crítica de arte da qual sou uma das editoras, e que surgiu em Recife, em 2006. Assim, começo com uma breve contextualização.

No periférico Recife onde resido e trabalho, a crítica de arte – praticada ao longo do século XX em grande parte por escritores, poetas, sociólogos, jornalistas e artistas – tem estado nos dias de hoje (assim como em todo o País) intimamente atrelada às instituições locais, espaços onde o pensamento de seus gestores-críticos-curadores se personifica sobretudo por meio da curadoria, consolidando a formação dos mesmos ao passo que legitima um território para a reflexão crítica.

Os esforços críticos de outrora – sobretudo aqueles das décadas de 1920/1930 e 1970/1980, vinculados à imprensa “oficial” e, mais raramente, a revistas independentes de cultura – sofreram, portanto, notável transformação em seu meio e conteúdo. Antes comprometidos com a afirmação de uma identidade para as artes visuais de Pernambuco (como buscou fazer Gilberto Freyre, por exemplo), hoje nossos pouquíssimos críticos têm se comprometido, por sua vez, com a constituição de um campo – de penetração nacional – cada vez mais profissionalizado para a arte, dedicando-se ao fortalecimento de instituições e políticas públicas para a cultura, na intenção de articular e oxigenar a produção artística local não ao debatê-la em suas referências e características, mas, genericamente, ao fomentá-la em termos financeiros e de legitimação.

Parece-me, portanto, que a crítica processa um deslocamento de sua função de “debatedora ontológica” da arte na direção do estabelecimento de uma relação mais socialmentecom ela compromissada. Nesse sentido, no Recife, a relação entre os críticos de arte e os artistas tem se dado cada vez mais mediada pelo aparato institucional ou de mercado (sistema social da arte), cujas demandas são pretexto para uma aproximação que, de outra forma, talvez sequer existisse. Desse modo, tanto quanto interface entre o público e a arte, o meio institucional tem sido, também, a interface central entre a arte e a crítica (ou preponderante parte dela). Ainda assim, apesar de tamanho condicionamento institucional, não são raros os discursos proclamados por críticos e curadores que afirmam estar a crítica de arte mais próxima do que nunca à produção artística, discurso esse que me parece paradoxal e problemático.

Foi nesse contexto onde a crítica, para além de sua natural condição a posteriori, tem se somado, ademais, à mediação institucional, que surgiu aTatuí, na intenção de ser, para além de um meio de veiculação do pensamento crítico de seus participantes, sobretudo um experimento de crítica de arte. Dispostos a constituir nosso pensamento crítico num vínculo enfaticamente mais estreito com a arte e com os artistas – e, portanto, sem buscar na mediação institucional um pretexto de aproximação –, nós,[2] À época (2006), Ana Luisa Lima, Silvia Paes Barreto, Renata Nóbrega e eu, primeiras editoras da revista Tatuí. Da equipe da revista também faz parte, desde seu princípio, o artista Bruno Vilela, responsável pela identidade visual. alguns dos “jovens críticos” do Recife, criamos a Tatuí como espaço de experimentação coletiva do que chamamos de crítica de imersão, título cujo objetivo, mais do que identificar um conceito ou modalidade específica de crítica de arte, foi o de sublinhar as condições peculiares nas quais os textos que viríamos a escrever surgiriam. Explico-me.

Em 2006, no contexto da Semana de Artes Visuais do Recife – SPA, [3] Evento organizado pela Prefeitura Municipal da Cidade do Recife, congregador dos artistas da cidade e de outras localidades, quando ocorrem dezenas de exposições, performances, intervenções urbanas, oficinas, debates, festas etc. em intensidade frenética e considerável dispersão geográfica. propusemo-nos a acompanhar os trabalhos desenvolvidos ao longo do evento, sobre eles refletindo e escrevendo para, no último dia, lançar um fanzine com nossos textos. Assim, em seis dias de SPA, vimos/assistimos/participamos de vários trabalhos apresentados por todo o Recife, sobre eles debatemos e escrevemos, desenvolvemos a identidade visual da Tatuí, imprimimos e fizemos seu lançamento. O SPA foi especialmente escolhido por sua profusão de atividades e seu caráter informal e entusiástico, constituindo-se num momento propício à realização do experimento que então nos animava: tomar contato direto, presencial e íntimo com a produção artística, forçar o corpo à exaustão e, nessas condições físicas e mentais específicas, produzir uma crítica de arte que, esperávamos, carregaria características estreitamente relacionadas àquele contexto, cumprindo, assim, função arejadora em nossa formação, como informava o editorial daquela primeira Tatuí, intitulado “glub, glub, glub”:

(…) Almejando dar uma sacudida em nossa afoita e ainda imatura pulsão crítica é que fazemos este fanzine, apelando para o nosso corpo para ver se, esgotando-o, esgotamos também nossas prévias formatações de pensamento, abrindo espaço para um discurso mais verdadeiro e autêntico. Para concretizar esse esforço (físico, mental e espiritual), nada melhor do que o SPA.

(…) Os textos que aqui estão são, portanto, textos cujo distanciamento crítico em relação ao suposto “objeto de análise” tende ao zero, palavras escritas no correr da Semana – algumas ainda durante a realização dos trabalhos. Enfim, uma pretensa crítica de imersão.

(…) Perdoem-nos a esquisitice do nosso nome – Tatuí –, apelido daquele bichinho que vive imerso no solo, escavacando o que encontra pela frente e sobrevivendo às custas das bolhas de ar derivadas de sua ação de revolver a terra.

É na ânsia de revolver a nós mesmos que aqui nos colocamos. Esperamos conseguir, sinceramente, produzir as tais bolhas de ar…

A crítica de imersão – experimento e estratégia de construção crítica que viríamos a repetir no ano seguinte – estava animada, ademais, pelas idiossincrasias de nossa posição diante do campo artístico;em especial, a graduação em arte, a relação informal e consideravelmente íntima com os artistas de nossa geração e de gerações próximas e, em particular, no meu caso, uma “prática artística” voltada a performances de longa duração, baseadas na concepção de exaustão física e simbólica. O protagonismo do corpo e a busca pelo contato íntimo entre entes diferentes nortearam os nossos instintos críticos. Assim, dispusemo-nos a perseguir as ações dos artistas participantes do SPA, vivenciando suas propostas e a pulsação da cidade, buscando incorporar em nossas observações os dados sensoriais e subjetivos das relações estabelecidas, dando vazão a considerações surgidas a partir da “cumplicidade” travada na vivência da obra que, de outra maneira – como através de uma mediação institucional – nos parecia impossível de ocorrer em plenitude. Correr atrás dos artistas, simbólica e literalmente, tinha, para nós, caráter ideológico, ético e político.

Ao nos desfazermos da obrigatoriedade do distanciamento crítico que, apesar de nos ter sido ensinado como eficaz metodologia para a crítica de arte, parecia impossível diante de nossa inexperiência e falta de repertório e, mais, bastante deslocada diante do campo da arte de Recife – profundamente informal, marcado por relações pessoais e por um instinto de cooperação que tem congregado artistas sobretudo ao longo das últimas seis décadas –, optamos por ousar desenvolver um pensamento crítico que não se apoiasse no distanciamento, mas na imersão e na aproximação à produção que analisávamos, colocando em jogo, inclusive, nosso próprio corpo.

Colocando as coisas de outro modo, ensaio afirmar que a crítica de imersão da Tatuí seria um tipo de versão da idéia de experiência estética kantiana em sua capacidade de atuar, nas palavras de José Camillo Osório, um estudioso de Kant, como “abertura singular do sujeito ao mundo e aos outros (…), como se os fenômenos [no caso, as obras] surgissem diante de nós sem que fossem determinados, em sua maneira de ser, por uma expectativa do entendimento, ou seja, eles nos surpreendem e nos fazem falar”. Camillo continua:

A vontade de falar ou de escrever depois do impacto de uma obra é uma forma natural de responder à experiência estética e, uma vez que o entendimento não é aí determinante, nossa imaginação vai atuar de modo mais livre e produtivo. Essa vontade originária de falar, de querer que o outro sinta como nós e compartilhe o nosso sentimento, que é tão própria à existência, vai qualificá-la como solo de nossa comunicabilidade. [4] OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da Crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

Comunicabilidade essa a que se filia inclusive a crítica de arte e que, acredita a Tatuí, é aguçada quando a experiência estética se dá por meio de todos os sentidos de nossa percepção, como ansiamos fazer em nossa crítica imersiva. Mais adiante, levando em consideração nossa “prática artística” – e aqui gostaria que “prática artística” fosse entendida tal qual o seria, por exemplo, a “prática esportiva” de um tenista amador que joga para particularizar uma experiência que, como público de uma partida de tênis, ele teria de outro modo – assinalo que, ao menos para mim, experiência estética é, também, a vivência de, em alguns momentos, estar na posição do autor, daquele que promove situações passíveis de serem experienciadas pelos outros.

Assim, diante de um panorama de crescente “intelectualização do artista”, na contra-mão exercito-me, portanto, numa espécie de “corporalização da crítica”. É que, se o sistema da arte se desenvolveu de forma a racionalizar a produção artística, exigindodos artistas, sobretudo por meio de seus mecanismos de seleção (como portfólios, editais e projetos diversos), uma clareza cada vez maior acerca de seus procedimentos, soluções e problemas – quando não implicitamente demandando lógica e coerência em sua produção –, estou razoavelmente convencida de que é preciso agir na direção contrária. Ainda que tal direção não passe por uma “corporalização da crítica”, não me parece, todavia, que deva seguir o “confortável” caminho da mediação institucional. Entendo que se faz urgente que a crítica se posicione ética e politicamente no seio do aparato institucional que tende a transformá-la numa massa intelectual interpretante que, regada a poltronas, ar condicionado e cafezinhos, recebe em mãos portfólios com a reprodução de obras quase que totalmente “decodificadas” em textos por seus próprios autores, restando-lhe, portanto, um cada vez mais tendente ao zero espaço para a experiência estética, dúvida, incerteza, surpresa, entropia, tesão, e assim por diante. Se concordamos que, como sintetizou Nelson Goodman, devemos deixar de nos perguntar “o que é arte” para nos indagar “quando é arte” – partindo, portanto, para uma concepção mais contingente da mesma –, como esperamos fazê-lo estando restritos às instituições enquanto o “quando arte” só é possível de ser percebido no espaço-tempo da vida, em plena deriva existencial, num possível estado de indiferenciação diante das coisas e movimentos do mundo e da cultura? Deixaremos a responsabilidade inteiramente para os artistas? E, caso sim, caso nos retiremos de tal tarefa, como posteriormente afirmar que somos horizontais interlocutores deles? Como definir, então, a crítica em relação à arte?

Se o que está em questão é a relação entre a crítica e a arte, parece-me evidente que partimos do pressuposto de uma situação de dependência da primeira (a crítica) diante da segunda (a arte), configurando, na mais otimista das hipóteses, um contexto de interdependência entre ambas as atividades, conclusão que às vezes nos traz medos diversos, dentre os quais o já tão apontado temor de uma crítica de arte que não goze de autonomia ideológica – medo recorrente naqueles que enxergam a proximidade entre o crítico e o artista de forma apocalíptica, como espécie de desvirtuação da função da crítica.

Edgar Morin, todavia, numa reflexão sobre ética, enuncia enfaticamente que é preciso ser dependente para ser autônomo. Complexificando a ideia de autonomia, faz ver que, se a dependência tem a ver com a instauração de relacionamentos, a independência também o tem. A independência, completaria o artista (e crítico) Mark Hutchinson, tem a ver, portanto, com um projeto colaborativo. Se, como é amplamente difundido no campo da arte, não é possível nela atuar senão de dentro de seu sistema social – ou seja, se não é possível ser artista, por exemplo, estando fora do sistema da arte – parece ser imprescindível que, para atuar de forma “independente” (mantendo autonomia ideológica e crítica), seja preciso agir de maneira colaborativa, numa ação que configure, no seio do sistema da arte, um subsistema próprio, pautado em práticas e pressupostos de relativa independência. E não seria essa colaboração um possível encontro existencial entre a arte e a crítica ou, para ser menos delirante, entre o crítico e o artista?

Para os que temem o discurso autoral da crítica e, principalmente, o da curadoria, insisto que minha hipótese não trata de atribuir à crítica o caráter autoral que é tradicionalmente entendido como próprio da arte. Não me interessa assumir, para a crítica, uma idéia de autoria já “sepultada” pela arte.

A colaboração a que me refiro não tem a ver, portanto, com a idéia de um crítico coautor da obra, mas com a de um crítico que prescinde, entretanto, de sua distinta posição social de “especialista em arte”. Explico-me tomando de empréstimo uma reflexão sobre especialização e experts (peritos), elaborada pelo psicanalista Adam Phillips, e que foi por sua vez problematizada, para o campo da curadoria, por Mark Hutchinson.

Em seu livro Terrorsand Experts, o psicanalista relativiza a necessidade humana de especialização ao analisar os danos que a função social doexpert (perito) pode trazer. Para evidenciar também a camada inconsciente do expert, e, portanto, sua incapacidade de deter pleno conhecimento sobre sua especialidade, o autor se baseia na figura do psicanalista e chama atenção para dois momentos das teorias freudianas. Num primeiro momento, teríamos o Freud iluminista, aquele que se esforçava por tornar a psicanálise cientificamente reconhecida, vestindo-a em corpetes objetivantes que vislumbravam corroborá-la como o conhecimento especializado acerca dos processos da mente e, em especial, do inconsciente. Tal concepção previa o psicanalista como aquele que, detendo o conhecimento, deteria também as soluções para os problemas psíquicos postos em questão – tratava-se, portanto, de uma idéia empoderada do especialista, tratado como autoridade. Num segundo momento, continua Phillips, Freud ironizaria seu projeto iluminista da psicanálise, assumindo os limites do conhecimento e do auto-conhecimento, e fazendo ver a impossibilidade da especialização plena, a utopia da constituição do expert. Para esse segundo Freud, o psicanalista não mais curaria o paciente com seu conhecimento, mas, sabendo de sua incapacidade de saber, bem como da impossibilidade do paciente saber (dominar plenamente os meandros de suas circunstâncias psíquicas), esforçar-se-ia por constituir um momento de diálogo, uma conversa sobre aquilo que não pode ser solucionado por meio conhecimento enquanto experiência de observação e normatização dos fenômenos.

Substituindo, no pensamento de Phillips, o termo “psicanalista” por “crítico de arte”, chegaríamos à interessante situação em que o crítico seria aquele que, cônscio de sua impossibilidade de conhecer em totalidade (ou seja, de ser um expert da arte), teria consciência também da incapacidade do artista de saber plenamente sobre o que faz. Problematizando a idéia de especialização no contexto da arte, esse crítico seria não mais aquele que se definiria como sendo portador de grande conhecimento sobre arte, mas aquele que instauraria, com o artista, uma conversa acerca daquilo que nenhum dos dois domina e conhece em inteireza, arte. Dessa forma, destituiria a – inclusive pública – função social do crítico como uma autoridade para tornar a crítica um estado, um espaço-tempo analítico e investigativo que, em projeto colaborativo com os artistas (e com o público), se empenharia na função de pôr-se a conhecer aquilo que lhes escapa ao entendimento.

Esse raciocínio levaria, em última instância, a um curioso projeto de, digamos, “indistinção social” entre a crítica de arte e a produção artística. Se a crítica, por ser uma instância a posteriori da arte, de várias formas precisou constituir um campo que a legitimasse por meio da configuração de circunstâncias de trabalho que a demandassem e, a partir daí, buscou tornar-se autônoma diante da produção artística através de estratégias de afirmação existencial mediante distinção social, pensar num movimento de indistinção social significaria, em certo sentido, repensar tal autonomia em seu modo de operação e, sobretudo, em suas motivações existenciais. Algo similar pode ser dito em relação ao processo de distinção social na história da curadoria, cujas estratégias de legitimação muito recentes no Brasil, por exemplo, têm se articulado de tal modo a re-configurar o sistema social da arte em nível nacional, reformulando-o com base numa lógica licitatória em que grande parte das decisões finais passam a caber a curadores que, assim, retroativamente alimentam o sistema com necessidades que acabam por tornar tais profissionais ainda mais demandados com base em argumentos de especialização (sejam técnicos ou conceituais). Mas, afinal, quais seriam as especialidades de um crítico e, sobretudo, de um curador, que os tornariam experts da arte a ponto de justificar sua plena distinção social dos artistas e, consequentemente, a ocupação de posições de poder mediante a paulatina retirada dos artistas de tais posições, que outrora, ainda que diferentemente, ocuparam? O discurso da especialização seria de fato pertinente? Em que exatamente, senão um especialista das redes de relações do próprio sistema social da arte, um crítico ou curador é expert de modo que o artista não possa sê-lo? Será que, para uma crítica do sistema da arte por meio de uma crítica à crítica e à curadoria, não caberiam as reflexões, também críticas, acerca da idéia do expert tal como anteriormente referidas?

Caso sim, parece-me pertinente falar desse processo de indistinção social que, enfatizo, não tem a ver com a idéia do crítico como coautor face ao artista (ainda que esta seja uma possibilidade). Tal indistinção – que ainda não é muito clara para mim, todavia – teria a ver, sobretudo, com a recusa à plena distinção social entre a crítica e a arte, evitando dotar a primeira da função de especialista da arte e, assim, trabalhando em prol de uma crítica como permanente estado de investigação artística, estado esse que, quando desenvolvido em colaboração com os artistas, tende, a meu ver, a possibilitar a constituição de um espaço de relativa autonomia inclusive diante das rígidas estruturas do sistema social da arte. Nesse sentido, a indistinção tem caráter ético e político. Obviamente, tal tipo de posição não resolve a famigerada crise da crítica; muito pelo contrário, incita-a. E é justamente essa crise, esse estado entrópico latente, que vislumbro como o estado ideal para um crítico, visto que permanentemente o inibe a estar na posição daquele que sabe, impulsionando-o, por outro lado, a buscar conhecer a arte de formas cada vez mais múltiplas e menos confortáveis – onde se encaixaria, por exemplo, a crítica de imersão da Tatuí em sua experiência de “corporalização da crítica”. E é por isso que afirmo, hoje, diante de minha ordem do dia, que não considero estar indecisa entre ser crítica ou artista, mas empenhada em fazer crítica de arte de uma forma outra, a ponto de parecer não saber o que estou fazendo. Em todo caso, para além da advertência freudiana de que nem o paciente, nem o psicanalista sabem plenamente, há sempre a possibilidade de um álibi último, o horizonte cristão do “Pai, perdoai-os; eles não sabem o que fazem”.

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Novas organizações e cultura

A Força não provém da capacidade física e sim de uma vontade indomável (…),

o Amor é a força mais sutil e humilde do mundo, a força mais poderosa!

Mahatma Gandhi

 

A liberdade existe em momentos delicados e se localiza bem próxima da fronteira.

As escolhas, em diferentes escalas, são como uma onda acumulada.

Na indústria, vende-semais porque é de plástico, ou é de plástico porque vende mais? Os consumidores são indivíduos não-organizados que tomam, em suas escolhas de compra, a escala da multidão. Nós, ainda que sob massificada tentativa de determinação de nossos desejos por parte da indústria e da publicidade; de nossa possível imaturidade diante da necessidade afetiva de pertencimento; ainda assim, temos o privilégio de fazer escolhas e tudo parece necessitar ser sacrificado pela atenção consciente.

Por serem diferentes dos espetáculos teatrais, do cinema e da música, as artes visuais e, dentro deste campo, as artes experimentais e as artes públicas, tornam-se, por suas qualidades relacionais,“ponta de lança” do sistema cultural, das diretrizes e ações públicas de desenvolvimento social. Também sob essa ótica, escolhas que estariam em uma escala do individuo, ou do grupo e seu micro cotidiano, tornam-se escolhas coletivas, escolhas sociais.

Presenciamos a todo instante o perigo eminente da forma amornada, das propostas inseridas no sistema instituídos em posicionamentos críticos e tensionadores, na busca por estar em relação de manutenção de mão dupla com ele…Como reconhecer o ponto em que simplesmente reproduzimos o que não nos serve mais? Como pode ser uma relação fronteiriça de negociação diferenciada com as instâncias de poder? E como podem os que trabalham em posições de poder estabelecer tomadas de decisão, governança e empoderamento de forma diferenciada? Quais os valores e princípios fundamentais? Quais as diretrizes e indicadores que nos guiam? Qual o sentido que estamos construindo?

Nas práticas e negociação pessoal, o que vem atrás recebe esse mesmo ponto, ou padrão, que se torna dado de referência ou parâmetro pré-estabelecido. Faz-se necessário perder a ingenuidade ou qualquer tipo de mitificação e tabu nas negociações, sobretudo nos acordos jurídicos e econômicos.

No entrelaçamento das práticas artísticas e culturais da sociedade, na lógica das redes, pelas novas organizações e economia criativa, encontramos alguns exemplos de práticas(cultura livre; democratização do conhecimento e livre circulação; intervenções e ações diretas; happenings e arte relacional; manifestações públicas e midiáticas; práticas pacifistas e desobediência civil não violenta; entre outros) que pressionam transformações para outras tomadas de decisões das instâncias de poder, ao imprimir novos valores e ética no trabalho e suas relações (como nas manifestações frente às situações jurídicas e econômicas das atuais leis de isenção fiscal, direito autoral e propriedade intelectual). Dessa forma, todas as escolhas no âmbito do trabalho –desde a escala individual –serão sempre, para o sistema, escolhas coletivas.

Vivemos em uma sociedade pautada nos processos de Troca e Partilha, buscando aprender práticas de Compartilhar e Colaborar–detalhes do COMO–geradoras de novo processo cultural para essa sociedade.

Já é possível perceber que se apropriar singularmente, ou grupalmente, dos meios de produção e difusão, importante prática dos artistas e agrupamentos independentes, dinamizados pelo uso das atuais tecnologias, não basta para o fortalecimento das novas organizações em rede como possibilidade de reorganização social. Pois, ou são efêmeras e pontuais, ou são facilmente absorvidas pelo sistema vigente, necessitado de novidades geracionais para se manter. Desse modo, as dinâmicas coletivas que imprimem novas éticas e valores; o ambiente compartilhado e estruturado de maneira a gerar menos desperdício e ampliação das possibilidades de relações, como lentes que nos amplificam a visão; e, principalmente, a continuidade dos processos, são eixos fundantes na transição para uma sociedade colaborativa.

Porém, são justamente as novas organizações em rede, capazes de experimentar – criando e praticando conceitos diferenciados como autogestão –,compartilhar e colaborar em escala macro (ex.:www.indymedia.org – 1999 ewww.wikipedia.org – 2001) ou comunitária (ex.: http://gen.ecovillage.org– 1993), que estabelecem novos meios produtivos, circuitos e conhecimento livre.O fundamental na construção cultural é que essas organizações são exemplos para novos procedimentos e valores nas tomadas de decisões, governança, empoderamento, comunicação e resoluções de conflitos, sendo propositivos em soluções e sobresaindo-se ao statusquo claramente insuficiente e ineficiente hoje, porque destrutivo e com alto nível de desperdício.

Na organização comunitária, se o foco do investimento de energia produtiva (produtor + processo + produção) e das outras partes da economia, for direcionada em sua maioria para o interior da rede social colaborativa, de forma a nutri-la mais, do que ao ponto de maior externalidade, a boa tendência é o fortalecimento e a possibilidade da comunidade estar em manutenção continuada e crescente de sua funcionalidade sistêmica; o contrário, tende a gerar desperdício sistêmico. Para tanto, se torna necessário atuar no cinturão da resistência e para além dele, saindo da zona de conforto e dos padrões estabelecidos sobre códigos e necessidades que já não nos pertencem, para que haja construção efetiva de outro modo de existir.

Nesse momento, o redesenho organizacional, econômico e relacional, integrados…talvez seja o caminho político-cultural mais seguro para uma comunidade em rede fundada na lógica da autogestão, do compartilhamento, da colaboração, da dinamização da economia local, do fortalecimento das novas estruturas organizacionais e de uma nova ecologia do sistema.

 

Política? São as escolhas coletivas de cada um, que estabelecem acordos, fronteiras, modos de viver, de relacionar-se e de construir o conhecimento comum. É o desafio e responsabilidade de todos que escolhem viver em sociedade e, dessa forma, necessita ser encarada como construção cotidiana, inteligente, criativa ,saudável e prazerosa, porque justa.

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