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Capa da revista

EDITORIAL

Mais um SPA, e a Tatuí retorna à sua proposta originária de desenvolver uma crítica de imersão situação em que todos os nossos sentidos se comprometem, apaixonadamente, a perceber, absorver e analisar objetos, ações, ambientes de arte, evitando a tradicional concepção de distanciamento crítico. O que se quer é um envolvimento vivencial, quiçá um engajamento ético com a produção de arte: a máxima empatia possível.

São duas semanas de encontros, embates, diálogos com artistas e obras que, por conta do curto espaço de tempo disponível para a elaboração dos textos que a eles se referem, impõem uma dinâmica de pensamento que acaba por transformar o processo de feitura da crítica de arte numa pesquisa muito mais experiencial do que técnico/teórica. Dessa forma, ao optarmos por uma outra metodologia, alteram-se os parâmetros habitualmente utilizados nas análises acerca da arte.

Não é para menos que ao retornar a esses textos percebemos o quanto estão claramente entranhados das vivências de seus autores, que assumem, sem receios, o caráter subjetivo das análises críticas, sobretudo, das imersivas. Ainda que se corra o eterno – e grave – risco de ser por demais passional, o que acreditamos valer é a disposição de permitir que sejamos tomados por sentimentos e sensações que, ainda que inatos a nós humanos, são por vezes camuflados por uma crítica que se quer cientificista.

Assim, esperamos que nossos leitores – uma vez conscientes da forma através da qual foram escritos os textos desta terceira Tatuí – possam, por sua vez, posicionar-se criticamente. Nossa maior intenção é promover o debate e estimular a criticidade.

Por fim, agradecemos aos colaboradores que, gentil e imersivamente, contribuíram para a viabilização desta publicação, bem como à Prefeitura do Recife que, através do SPA, continua a incentivar este trabalho.

das editoras

Colaboradores

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Conteúdo

Índice
  1. A Fronteira Incômoda - Escrito por Ana Lira
  2. Uma questão de tempo - Escrito por Simone Cruz
  3. Assombração  - Escrito por Ana Luisa Lima
  4. Vaidade e Resistência - Escrito por Clarissa Diniz
  5. Balançamdores - Escrito por Alê Carvalho
  6. E pancadaria que é bom, nada! - Escrito por Clarissa Diniz
  7. Fardo - Escrito por Silvia Paes Barreto
  8. As entrevistadeiras em… Histórias sem fim com Aslan Cabral - Escrito por Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz
  9. Do que não passa - Escrito por Clarissa Diniz

A Fronteira Incômoda

O SPA das Artes 2007 abriu a programação deste ano com um coquetel e o lançamento da ReviSPA na segunda casa do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, que fica no Pátio de São Pedro. Depois de circular para conseguir um exemplar da publicação e tentar compreender um pouco como estavam divididas as atividades da abertura do evento, uma vez que tudo parecia estar ocorrendo ao mesmo tempo, eis que foi possível chegar em tempo de ver a performance da carioca Daniela Mattos, no térreo do Mamam no Pátio.

A artista iniciava Make Over (trabalho que foi recentemente apresentado em São Paulo, bem como, no ano passado, na Eslovênia), que faz referência ao termo “make up”, que em língua inglesa quer dizer maquiagem. A idéia de se maquiar sugere, entre outros aspectos, os momentos em que o ser humano se prepara para uma determinada situação pública e coloca sobre si a personagem que vai entrar em contato com outras, em quaisquer que forem as ocasiões. É o momento em que se diz que alguém sai de um estado considerado natural e coloca uma máscara feita de perfumes, cremes, roupas e outros acessórios para atuar em um espaço de convivência comum.

A questão que se coloca no âmbito do cotidiano é: em que estes espaços se diferenciam? No setor da arte, a observação da performance de Daniela Mattos questiona o que faz dela (ou de qualquer outra pessoa que ocuparia o seu lugar) uma artista e em que medida aquela mulher que está diante de uma mesa cheia de objetos pessoais e uma câmera fotográfica polaróide, em que registra alguns de seus gestos, está em seu estado natural ou em seu estado performático. Ela desenvolve o trabalho migrando entre uma situação e outra e isso reforça o diálogo entre o que se diz que é vida e o que se atribui à arte, e de que maneira eles se integram ao longo da rotina de alguém que se revela artista.

Embora a intenção de Mattos fosse refletir que “a natureza artística” não acompanha alguém em todos os momentos de sua existência e nem se manifesta apenas em condições de exibição pública, a performance também traz à tona aspectos que dizem respeito à relação entre arte, desejo e poder. Diante daquela mesa ela podia tudo que os observadores, teoricamente, não podiam: gritar, fazer careta, dar língua, sorrir, chorar, acariciar um cofre da Hello Kitty ou se largar na cadeira e deixar os olhos vagarem pelo espaço do Mamam no Pátio, até encontrar algo que lhe interessasse e fixasse atenção, sem se preocupar se havia gente esperando pelo seu próximo passo.

A condição de arte a que o seu trabalho foi alçado conferia a ela o poder de exorcizar desejos que os outros não podiam, a não ser que fossem convidados a participar do trabalho, o que os retiraria da condição de observadores. Nesse sentido, Make Over embora questione as fronteiras entre vida e representação, existência humana e existência artística, inquieta na medida em que faz pensar se apenas quem faz arte tem o direito de abrir-se ao ilimitado e não ser acusado de estar “fora do estado normal” ou se, para trafegar nesses setores que transcendem o senso comum, é preciso agregar o título de artista.

É claro que esta discussão é antiga e sempre acompanhou o fazer artístico, mas no trabalho de Daniela Mattos ela grita porque acende o conflito entre o espaço cotidiano e o espaço artístico. No primeiro, a liberdade de transcender está na área privada, enquanto o ambiente público exige a personagem que vai se comportar de acordo com certos princípios estabelecidos mutuamente. O espaço artístico, por sua vez, inverte esta condição e permite que se possam ultrapassar as fronteiras em público. A personagem, aqui, pode agir como se estivesse dentro de casa, sem ser considerado alguém que “quebrou as regras”.

É neste sentido que os espelhos com os nomes arte e vida, virados um de frente para o outro, de modo que as palavras se confundem por causa dos reflexos, também são um ponto-chave do trabalho de Mattos. A oposição entre eles também serve para refletir sobre as perspectivas de poder nessas instâncias. Não existe ali um único objeto em que arte e vida se integram, mas dois reflexos que se relacionam para que ocorra esta interseção, e nem sempre um processo de interação é ameno ou pouco conflituoso.

Assim, a performance de Daniela Mattos não pode ser considerada apenas uma interrogação sobre o ser e o estar artístico. Talvez este seja o mote principal, mas as caretas, a impaciência, os gestos exagerados, o canto doce de “sempre Daniela”, e o rosto e braços pintados com batom vermelho transcendem o refletir sobre o artista e criam uma onda de desassossego quando fazem o espectador perceber, por meio da arte, que atuar no espaço cotidiano é bem menos prazeroso.

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Uma questão de tempo

No início, até que estava interessante. Todos queriam ver de que maneira Daniela Mattos iria interagir com os inúmeros objetos que, aparentemente desorganizados, abarrotavam a mesa à sua frente. Ela pega um batom, passa-o na boca e, num rompante neurastênico, ultrapassa as linhas dos lábios, esfregando o batom por quase todo o rosto. Depois, pega uma Polaroid e faz um auto-retrato. E assim vai: de batom em batom, de foto em foto, pegando um objeto aqui, outro ali, durante… uma hora e meia!!??

Aos quinze minutos de performance, ficou mais divertido observar a platéia. De curiosos e ansiosos, seus semblantes se transformaram em puro tédio. Dentro dos limites de cada um, os espectadores resistiram o quanto puderam – uns por educação, outros pela esperança de ver algo novo. Afinal, ela, a esperança, ainda é a última a morrer. Mas ela morre.

Os fotógrafos que faziam a cobertura do evento foram os primeiros a sair. Afinal, não havia muito a fotografar, visto a repetição das ações. Em seguida, os curiosos vindos da rua. Depois disso, a debandada foi geral, restando apenas poucos artistas, curadores e críticos. Entretanto, até esses terminaram desistindo. O pessoal preferiu assistir aos vídeos, projetados em telão na sala ao lado, e aproveitar o coquetel de lançamento do SPA das Artes.

A questão aqui não é só o longo período de duração da performance. Pois há trabalhos artísticos nos quais o tempo é fator determinante e influi diretamente no resultado. Não é este o caso. O tempo em nada acrescenta. Muito pelo contrário, ele rouba do trabalho sua potencialidade em se tornar algo significativo e o dilui. Sem falar da maneira extremamente caricatural que Daniela escolheu para expressar a neurose, a ansiedade e o isolamento do indivíduo que vive nas grandes cidades.

Ok. Sei que muitos irão erguer a bandeira de que “o mais importante é se o trabalho tem fundamentação teórica”. Sei também que deve haver muitos curadores querendo escrever um texto legitimando cada segundo gasto na performance. E até há quem levante a questão: “você sabe de quem ela é namorada?”, como se a relação pessoal e íntima que travamos com outros artistas fosse garantia de um trabalho bem realizado.

Certamente, há uma fundamentação teórica. Bom, pelo menos assim espero. A questão, contudo, que quero levantar é que nem sempre uma obra artística bem realizada no campo teórico consegue repetir o mesmo desempenho na prática. É quando a concepção é boa, mas o resultado plástico não. Pois é. Acontece. Para evitar que uma oportunidade de mostrar seu trabalho seja desperdiçada, o artista – falo aqui de maneira geral – deve ter mais paciência e não se contentar com a primeira idéia que surge em sua mente ao dar plasticidade à sua obra. Veja bem, não estou afirmando que foi o que aconteceu com Daniela. Mas, em todo caso, sugiro à artista – com todo respeito – que, se for repetir a performance, gaste mais tempo com o tempo.

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Assombração 

Tenho andado bastante preocupada quanto aos rumos da nossa arte pernambucana. Pessoas mandam projetos para participar do SPA (e conseguem aprová-los) como se estivessem concorrendo a uma vaga para o Big Brother. Parece-me que há um grande equívoco — que o discurso da arte contemporânea vulneravelmente colaborou para (por ser uma arte que se utiliza de materiais e temas cotidianos, confundindo, ou melhor, fundindo arte e vida) — de que ser artista e fazer arte é uma coisa banal: qualquer um faz, qualquer um pode, basta ter uma boa sacada.

Vejam bem, fazer artístico e obra de arte são coisas diversas. Nem todo mundo que pinta, modela argila, esculpe pedras, age performaticamente é artista. Nem todo mundo que (de maneira superficial) tem boas idéias utilizando-se de formas previamente legitimadas pelo sistema está fazendo arte. É necessário bem mais que isso. Quem se destina a fazeres artísticos sem um compromisso consigo, e com o seu tempo, em fazer pesquisas substanciais dispõe-se a fazer mero entretenimento e não arte.

Ora, quando falo em pesquisas não estou, absolutamente, pressupondo que uma obra de arte precise de uma extensa defesa teórica para existir no mundo. Mas falo de atos processuais ou resultados-obras, que sejam capazes de demonstrar preocupações investigativas acerca de temas, como também de materiais, tecnologias e suportes (os aspectos formais inteligentemente articulados criam, ou modificam significados). Arte é coisa nova posta no mundo, mesmo que esta seja concebida com o intuito de ser coisa antiga desconstruída e/ou desmitificada.

Arte é o objeto, ambiente ou ato re-significados. Ao artista, cabe essa construção de significados outros para significantes vulgarizados por nosso uso diário. É nesse contexto que Assombração, um trabalho de Ana Lu, se insere — é uma investigação, antes de tudo, sobre pintura, temporalidades e espaços.

Queremos fixar o ser e, ao fixá-lo, queremos transcender todas as situações para dar uma situação de todas as situações. Confrontamos então o ser do homem com o ser do mundo, como se tocássemos facilmente as primitividades.

Gaston Bachelard em A Poética do Espaço.

A artista, em suas ações/pinturas, dá materialidade à imaterialidade. Ela presentifica a ausência contornando, com pincel e tinta vermelha, a sombra (de objeto ou pessoa) projetada em determinado instante — seja por luz natural ou artificial. Ela quer capturar nossas “cargas ocultas” como antes se pretendia fazer nas cavernas das eras primitivas — pintura como atos de magia.

Ana Lu ora pinta sua própria sombra, ora avermelha o contorno dos corpos projetados nas paredes dos passantes criando uma composição equilibrada. A escolha de alguns muros de casas — lugares quase sempre abandonados, no centro da cidade — não é aleatória.  Existe uma vontade de reescrever uma história, de marcar a sua passagem por aqueles lugares que pressupõem outras passagens. Quando, num primeiro momento, ela se movimenta — na procura de tornar um pouco menos efêmero seu passar — pintando seu índice em determinado lugar, como quase uma dança ritualística.

Num segundo momento, ela reescreve nosso itinerário quando nos convida a participar de sua ação. Há uma espécie de lei invisível que nos faz andar por aí, pelos espaços urbanos, sem consciência de nossos momentos. No cotidiano, nossa passagem parece irrelevante, porque é efêmera e quase sempre imperceptível. Mas a artista com tinta, e desejo, transforma nosso itinerário em marca — o indício de nossa presença. E a lei, que antes invisível, se revela: nossas passagens diárias, por lugares e pessoas, criam linhas e o que fica ali registrado, então, são geometrias desses encontros — com esses lugares e pessoas nos tangenciamos, suavizamos arestas, criamos intersecções. Ana Lu demarca. Faz um mapa de alguns instantes vividos: sobrepostos. Dá-nos a oportunidade de perceber camadas de existências.

A ação/pintura de Ana Lu subverte pelo menos duas coisas: a pintura e a sombra. A sombra que temos por intangível ganha materialidade pelo gesto, pela tinta, e se torna fixa. Ainda que índice de determinada situação, mas acaba ganhando o significado da possibilidade de todas as outras situações. E a pintura — que historicamente se tem por permanente —, obra que se quer perene, coisa para guardar e sobreviver a inúmeras gerações, nesse caso, é efêmera, porque é feita com tinta vulgar, e em lugares que não se pretende algum tipo de preservação. Nesse sentido, é como se as substâncias dessas duas coisas trocassem de lugar – a efemeridade da sombra ganha um pouco mais de permanência com a pintura e, esta, por sua vez, podemos pensar que acaba adquirindo o caráter de impermanência da outra.

 Cada obra de arte é um instante; cada obra conseguida é um equilíbrio, uma pausa momentânea do processo, tal como ele se manifesta ao olhar atento. Se as obras de arte são respostas à sua própria pergunta, com maior razão elas próprias se tornam questões. 

Theodor W. Adorno em Teoria Estética.

Volto à preocupação das pesquisas enquanto artista. Ora, já é possível perceber que há uma tendência contemporânea em que os desenhos se apresentam extremamente limpos, quase que só feito de contornos — comparemos os trabalhos de bons artistas como Nino Cais, Mauro Piva, Amanda Melo. As tendências são interessantes porque são sintomas de um olhar coletivo em determinado espaço e tempo. Minha angústia é perceber que algumas pessoas que querem ser artistas, mas têm uma grande preguiça de procurar seus próprios caminhos de pesquisa, se aproveitam de aspectos formais que deram certo para alguns e os repetem. O meu encanto pelo trabalho da artista Ana Lu é que, ao contrário de alguns, ela não escolheu uma fórmula para justificar a contemporaneidade de seu trabalho. Mas todo o seu processo de investigação demonstra a opção pelo contorno porque assim lhe se deixou desvendar o modus da existência — as temporalidades se desenharam em sua frente sob formas de sombras, então ela as contornou por um desejo de captura, também da alma.

A intervenção urbana de Ana Lu, registro de suas ações/pinturas pela cidade, é desdobramento de uma outra pesquisa que se deu anteriormente e que resultou em algumas pinturas sobre suporte plástico transparente, que sob a luz, projetam uma sombra e lhes acumulam outros tantos significados. A investigação artística vai dando gênese às obras que geram perguntas e desembocam em outras obras como respostas. Então, não me venham dizer que qualquer fazer artístico é obra de arte e nem que boas idéias faz de alguém artista. Obras de arte nos incitam às problemáticas e novas possibilidades de percepção das coisas.

Por muito tempo pensei ser a assombração o medo causado pela sensação de existência de pessoas que já deixaram de existir — no entanto elas existem de alguma forma quando se fizeram capturar pela alma de alguém ou pelos espaços por que passaram. Todavia, hoje o que me assombra é ver — a partir dessas linhas de instantes mapeados por Ana Lu — o quanto não nos damos conta de que, na verdade, diariamente, somos nós que existimos como pessoas que insistimos, indolentes, em passagens quase sempre imperceptíveis, como sombras, tão irrelevantes que nos fazem parecer meros índices de um algo que deixou de existir.

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Vaidade e Resistência

O funcionamento dos sistemas sociais sempre me chama a atenção e, dentre esses, me preocupa — às vezes muito — a dinâmica do sistema de arte. Composto por artistas, críticos, curadores, museus, galerias, centros culturais, revistas, universidades, imprensa, etc., o sistema de arte apresenta — como qualquer outro — a intenção inata de manter-se conservado em sua própria organização. Como um organismo, busca sempre manter-se autônomo e, sobretudo, onipotente e onisciente em relação à arte (seu ambiente): a esse sistema interessa a manutenção do poder de indicar e legitimar quem são os artistas e, portanto, o que deve “merecer” ou não o “título de arte”. Nesse sentido, eu arriscaria dizer que, almejando conservar esse poder legitimador, o sistema de arte possui estratégias de atuação bastante específicas e inteligentes que merecem ser debatidas.

Algumas dessas “estratégias” (que não são necessariamente calculadas, mas, na maior parte das vezes, inconscientemente mantidas) — parece-me — escancaram-se no projeto Estética da Periferia, originalmente concebido no Rio de Janeiro por Heloísa Buarque de Hollanda, Eva Doris e Gringo Cardia. Ao vir a Recife, o projeto produziu: um seminário, no qual se desenrolaram várias discussões acerca do que seria a periferia e sua respectiva estética, além de uma exposição, que foi abrigada pelo Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, local especialmente escolhido porque o projeto acredita que “a arte da periferia deve ser mostrada à cidade [do Recife] em seu maior e mais prestigiado espaço de arte e cultura” [1] Heloísa Buarque de Hollanda no catálogo Estética da Periferia – diálogos urgentes. 2007.

Ainda que haja a sincera e válida intenção de propiciar que um público diferente tome contato com a produção da periferia — provocando um diálogo entre grupos sociais habitualmente apartados de uma convivência mais próxima — a decisão de promover tal encontro, através da mediação de um museu, traz um conjunto de especificidades que torna esse diálogo, a meu ver, muito mais monologal que o intencionado.

A mostra (curadoria de Gringo Cardia e h.d.mabuse) opera um deslocamento de objetos da periferia (seu contexto de origem) para o museu. O interesse de tal deslocamento, muito mais do que propiciar que seja visto um algo não passível de ser conhecido (por impedimentos físicos) de outro modo, é, mormente, promover a inclusão simbólica, no contexto do sistema da arte, desse algo. Ao “transferir”, por exemplo, a grafitagem do Alto Zé do Pinho ao Mamam, para além da intenção de fazer notar tal grafitagem ao propiciar sua “descida do morro” (intenção majoritariamente retórica, pois, no museu, ela será muito menos vista do que é no Alto), existe, sobretudo, o desejo de legitimá-la como arte a partir de sua inserção no ambiente museológico. O interesse maior do deslocamento procedido é, portanto, simbólico — referente à aquisição de um status artístico que, atualmente adquirido necessariamente através da aproximação a críticos, curadores, pesquisadores e outros profissionais capazes de conceder tal valor, é, em vários sentidos, almejado pelo projeto em questão. Ter escolhido o Mamam com a consciência de que ele é o “mais prestigiado espaço de arte e cultura” do Recife atesta, portanto, a pretensão “legitimatória” do Estética da Periferia.

Contudo, para além dos anseios (auto)corroboradores que todos possuímos, como interpretar o fato de que quem está buscando ter suas atividades artisticamente validadas não são seus próprios autores (os “periféricos”), mas indivíduos a elas alheios (os curadores e outros atores “centrais”)?

Muda-se, portanto, o enfoque da ação: não é a periferia que está procurando legitimar-se diante do sistema de arte, mas o sistema de arte que está disposto a conceder legitimidade à produção da periferia. Daí saltam duas importantíssimas questões: quais as motivações dessa disposição tão “solidária/democrática” por parte do campo da arte e que tipo de legitimidade é essa que ele aparenta estar disposto a oferecer?

Sem querer ignorar o real desenvolvimento (proliferação, inclusive) das populações moradoras das áreas — física e simbolicamente — “periféricas” e sua consequente “invasão” — também espacial e cultural — ao que costuma ser considerado “centro”, bem como sem querer abster-me das políticas e éticas notoriamente pós-modernas de descentralização (de conhecimento, de poder, etc.), de diálogo e de inter/multiculturalidade das quais também compartilho, o que me interessa neste texto não é justificar o Estética da Periferia a partir de tais paradigmas inclusivos — argumentação esta que já foi exaustivamente feita e refeita durante todo o projeto em questão — mas, contrariamente, fazer ver algumas das problemáticas implicações (éticas, sobretudo) que nele percebo — implicações essas habitualmente camufladas por discursos como o acima referido.

É preciso, contudo, levar em conta que toda ética — tema principal desta análise — é incerta: o debate ético é, fundamentalmente, o problema da contradição, bem como toda decisão ética é sempre uma aposta, dada a impossibilidade da prévia certeza de seu sucesso. Também todas as ações humanas estão sujeitas a uma imprevisível adaptação aos interstícios da realidade, que pode distorcer seus anseios iniciais — a isso Edgar Morin chamou ecologia da ação: “é no ato que a intenção corre o risco de fracassar” [2] Morin, Edgar. O método 6: ética. 2ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.  Assim, ainda que o intuito do projeto Estética da Periferia seja o mais “democratizador” possível, acredito, no entanto, que sua concretização — da forma como tem sido feita até então — desvia-se de tal propósito, mantendo (senão enfatizando) o caráter onipotente dos campos que ele originalmente pretendia desestabilizar: o do “centro” e o da arte.

De acordo com as éticas “politicamente corretas” de nossa recentíssima história, deve-se promover a inclusão social como procedimento democratizador. Incluir aqueles que à margem estão tornou-se conduta-de-ordem e, sem grande senso crítico, expandem-se em proporções assustadoras ações de um governo e de um terceiro setor sedentos por ofertar — sempre com a melhor das intenções, creio — bolsas, cursos e outras ferramentas paliativas que facilitem a inserção dos “marginais/periféricos” no “paraíso” do qual nós, “centrais”, desfrutamos.

Todavia, como já vem sendo debatido em relação às políticas adotadas pelo governo brasileiro, tais ações teoricamente democratizadoras mantêm, para além de seus solidários e sinceros propósitos, um efeito reverso (e perverso): ao vincular a possibilidade de ingresso no “paraíso central” a nós — adões e evas portadores de seus códigos de acesso — geralmente acabamos por aprofundar relações de dependência (e poder) que, mais do que econômicas (relações estas bastante interdependentes, ainda que injustas), são de uma dependência cognitiva. Dessa forma, mantemos nosso posto central irradiador das virtudes do Éden: “vinde a mim as criancinhas!” que, depois de anos de ONG, talvez sequer vislumbrem a possibilidade de não precisar remeter-se — simbólica e cognitivamente — a nós. Não precisam, contrariamente ao que as fazemos crer, incluir-se (em nosso referencial “central”, nosso mundo). É preciso garanti-las o direito à “exclusão”. Ainda que, obviamente, devamos garantir que todos os humanos tenham igual acesso a decentes condições de sobrevivência – e em relação a tais necessidades faz sentido falar em inclusão – não podemos, por outro lado, almejar que todos se interessem pelos mesmos contextos culturais. A real democracia cognitiva (e, consequentemente, cultural, social, simbólica, etc.) não está vinculada, portanto, à idéia de inclusão, mas de autonomia.

Na convivência entre sistemas vivos existe um complexo jogo de forças concorrendo para a organização do conjunto de sistemas como um todo. Ao mesmo tempo encontram-se forças homogeneizadoras (sistemas maiores tendendo a englobar os menores) e forças entrópicas (por exemplo, membros de determinados sistemas atuando de forma a desestabilizá-los, transformando-os, ou ainda, por vezes, dando origem a novos subsistemas). Nos sistemas sociais humanos não é diferente. As forças atuantes sobre uma sociedade como a brasileira, por exemplo, são múltiplas. Nossos diversos subsistemas sociais, em sua co-dinâmica existencial, instauram relações de poder variadas – econômicas, políticas, culturais, simbólicas… São interdependentes os grupos de nossa sociedade (inclusive os sistemas “centro” e “periferia”), e o equilíbrio (e harmonia?) desta resulta do contínuo embate entre os esforços de manutenção da autonomia grupal num opressor contexto de dependência no qual os sistemas maiores tendem a sempre incorporar (“inclusão social”) os menores. O desafio de todo sistema é, portanto, manter-se conservado em sua organização, manter sua autonomia.

Entendendo, então, que a concepção de inclusão social/cultural é perigosa por estimular o desenvolvimento de interações de dependência em detrimento do adensamento das estruturas geradoras de autonomia, atento para o ponto crucial de minha crítica ao projeto Estética da Periferia: ao inserir a produção dos “periféricos” no sistema museológico (que é uma estrutura especificamente “central”) como forma de legitimá-la como arte, o projeto, a exemplo das dinâmicas sistêmicas, instaura uma relação de dependência entre as partes da interação. Ao incluir um sistema (arte da periferia) no outro (arte do centro) de maneira pacífica, sem os sacolejos entrópicos necessários à desestabilização (e consequente mutação) do sistema “central”, o projeto não só mantém como, mormente, enfatiza o caráter onipotente deste. Ao convidar os “periféricos” a penetrarem em sua estrutura, o sistema de arte — através da instituição museológica — perpetua-se, mais uma vez, no centro das relações de poder que indicam o que é ou não é arte e, o que é mais estratégico, o faz à seu modo — antecipando-se à explosão de uma circunstância entrópica que verdadeiramente o colocasse em xeque (como poderia ser, por exemplo, um museu da periferia). Este sistema de arte confortavelmente garante sua posição de poder: saem de seu interior os curadores, as convenções de montagem, as estratégias de reflexão e difusão; ou seja, todas as regras do jogo. Mudam os peões, mas mantém-se o tabuleiro. Os artistas da periferia são, no jogo de forças sociais em questão, somente os “incluídos”, aqueles que foram convidados a entrar, e não os “invasores”, como enunciam os discursos (auto)justificadores do projeto Estética da Periferia.

Acontece, por exemplo, que as placas de Seu Juca, ao serem deslocadas de seu contexto original (a rua) a um museu de arte, adquirem (ou garantem) um status artístico anteriormente a elas não asseverado. O problema, no entanto, não é a mera validação do objeto como arte, mas as implicações geradas quando quem habitualmente tem o poder de dizer o que é ou não arte — o sistema de arte “oficial” (“central”): museus, bienais, críticos, curadores etc. — tem seu poder infinitamente corroborado e mantido. A partir de uma conduta de teórica “inclusão cultural” (a arte “marginal” no museu), o projeto em questão termina por perpetuar a exclusão ao permitir que o reconhecimento (e consequente valorização) daquilo que a periferia produz continue dependendo do centro, ao invés de conceder autonomia para que esta crie suas próprias estratégias legitimadoras, excluindo, assim, o poder daquilo que a exclui (o sistema de arte) — única maneira de acabar com a exclusão. Enfatiza-se, assim, o monopólio de poder dos membros do campo da arte, que se mantém onipotente. Estimula-se a dependência (ao dar voz à periferia através da mediação do museu) em vez de fecundar a autonomia (que seria colaborar para a criação de meios que fizessem soar — sem mediadores externos: autonomamente, portanto – a voz da periferia).

Como dito no começo deste texto, trava-se uma conversa mais monologal que dialógica entre as partes. O centro parece conversar com a periferia em um de seus palcos prediletos de distinção social — o museu — utilizando, portanto, seu particular repertório para selecionar, na periferia, os espetáculos que está disposto a assistir. O poder decisório (curatorial) mantém-se na mão centralizadora que, por sua vez, tudo estetiza. E, estetizando, vai aos poucos retirando o ainda restante caráter político e entrópico dos objetos outrora vivos que, uma vez no museu, encontram-se então adestradamente expostos (e mortos). A curadoria é clara: a mulher da periferia é sensual, rebola, usa calças gang e botas cano longo — as gordas empregadas domésticas, motor de toda uma sociedade, sequer são citadas; os ´boyzinhos´ são bronzeados do sol de Brasília Teimosa, usam piercing e têm cabelos louros e fashion — os garotos anêmicos que pedem esmolas, que insistem em limpar o pára-brisa dos carros e andam sempre com uma garrafa de cola rente à boca também não são nem mesmo fotografados; a periferia tem consciência ecológica e monta bares com decoração de sucata — ainda que os frequentadores de tal bar sejam todos da classe média (eu, sobretudo) e que nele não se ouça música brega, forró eletrônico, ou coisa do tipo. Etc., etc. O que interessa, afinal, é a estética. Importa aquilo que pode comportadamente habitar o imaginário burguês a respeito das excentricidades do favelado, e não imagens que poderiam tirar-lhe o sono em justos pesadelos.

E, não perturbada em seu Éden, fica, à burguesia, a impressão de “missão cumprida”. Cedemos, afinal, nosso “maior e mais prestigiado espaço de arte e cultura” aos “periféricos”. Não importa que eles tenham passado pelo nosso crivo: relevante mesmo é a “certeza de que fizemos nossa parte”. “Agora só depende deles, já demos uma chance, eles só têm que saber aproveitar”. Já podemos dormir com nossas consciências tranquilas. Sobretudo o sistema de arte pode descansar suavemente, sem receios de ser destronado em sua monarquia legitimadora. Também o campo artístico recifense pode orgulhar-se de estar up to date e engajado nas atuais tendências dos discursos de interculturalidade. Estão todos aparentemente felizes — inclusive os artistas da periferia, que contaram com seus quinze minutos de fama. Amanhã, como de costume, tudo voltará ao normal e, o que é mais importante: sem que nada tenha mudado.

É claro que tudo o que disse até então pode estar equivocado. Na próxima abertura de exposição no Mamam, é possível que compareçam, novamente, centenas de moradores da periferia recifense. É possível até mesmo que o museu lhes envie convites e que, a partir de então, eles passem a fazer parte da mala-direta das instituições de arte contemporânea da cidade. É também possível que os adões e evas visitantes da exposição tenham se sensibilizado com o trabalho da curadoria e que passem a respeitar a periferia não em seu exotismo, mas em sua diferença. Quem sabe vejamos Peugeot’s estacionando nas ruas do Alto do Pascoal para que seus proprietários conheçam novas pessoas, abram-se a verdadeiros diálogos mutuamente enriquecedores — além, claro, de trocar a mesmice do ambiente do bar cult-periférico e ecologicamente engajado pela agitação dos botecos onde são abrigados caça-níqueis clandestinos. E, mesmo que nada disso aconteça, terá valido tentar estabelecer um diálogo entre partes habitualmente afastadas (ainda que vizinhas) como o são o centro e a periferia, pois eis a questão que não cala: é melhor não fazer “nada” ou tentar fazer o possível mesmo com a consciência de que haverá falhas, mas também sempre com o intuito de tentar falhar melhor? Sabendo-se da impossibilidade de êxito (pois o problema, de sistêmico que é, não se permitirá corrigir com ações isoladas), deve-se agir da forma que for possível, ou não?

A decisão em resposta a esta questão precisa ser pensada a longo prazo, configurando-se numa aposta. Uma aposta ética. Inspirada pelas idéias de Edgar Morin, eu sustentaria uma ética da resistência — ética do mal menor que, não podendo impedir a existência de um problema, pode, ao menos, tentar impedir seu triunfo.

Abstendo-me das vaidades que, acredito, possui o sistema de arte (do qual eu, como “centro” — em relação à periferia recifense, ao menos — faço parte) e, portanto, admitindo desfazer-me do monopólio em relação ao poder de legitimação artística até então por nós exercido, penso que, retendo as ânsias inclusivas que fazem com que organicamente todo sistema procure arrefecer os pontos entrópicos de seu interior, no desejo de manter-se conservado (no caso do sistema de arte, manter-se uma onipotente instância de validação), pode-se, resistentemente, fortalecer tais esforços entrópicos, de modo que esses, uma vez empoderados, possam realmente causar uma mutação notável no sistema como um todo. Em outras palavras e grosso modo: o Mamam poderia, optando por uma ética da resistência, ter reclinado a participar do Estética da Periferia (nos moldes em que foi aqui realizado – ou seja, simplesmente deslocando objetos da periferia para o museu) por acreditar que, fazendo-o, estaria, em detrimento de relações de dependência, estimulando o desenvolvimento autônomo da produção cultural periférica que, uma vez mantendo seu ritmo exponencial de crescimento, chegaria, por sua vez, a constituir-se num sistema tão forte e estruturado quanto o próprio sistema da arte, podendo, finalmente, com ele igualitariamente rivalizar e gerando, assim, uma outra possibilidade de legitimação artística que não a do sistema “oficial” de arte (até agora onipresente). Excluir-se-ia, assim (teoricamente), através do adensamento de uma outra possibilidade, aquilo que atualmente exclui.

No entanto, como este raciocínio é apenas uma aposta que, como toda ela, está à mercê da sorte, é preciso esclarecer que minha sugestão por uma ética da resistência vem não de uma concepção ética de responsabilidade — que estabelece compromissos — mas de uma ética da convicção, que os recusa. Resistir à tentação de abrigar o Estética da Periferia seria uma escolha tomada com base numa convicção ética (e política) de que a arte e seu sistema social podem (e em certos momentos, inclusive, devem) ir contra a cultura (no caso, os já referidos discursos de tolerância cultural) — convicção esta que claramente se opõe à idéia de “responsabilidade social” embutida na política e ética gerais do projeto que, de bom-tom, aposta na imediata, efêmera e unicamente simbólica inclusão da produção da periferia no museu (por mais excludente que este procedimento possa vir a se revelar). Desconfio, no entanto, que têm faltado convicções éticas aos membros do nosso sistema de arte que, majoritariamente, têm se pautado numa desenfreada ânsia de inserção de tudo em qualquer coisa ou de qualquer coisa em tudo.

O que no fundo me interessa, ao falar em uma ética da resistência, é analisar criticamente as implicações éticas e políticas do projeto Estética da Periferia e do respectivo comportamento do nosso campo artístico, atentando para desfazer nossos discursos autojustificadores, nossos autoenganos — que, às vezes, vaidosa e insistentemente, teimamos em converter em enganos públicos.

Ressalto, portanto, minha intenção primeira de chamar atenção para as questões éticas deste projeto que, para além da estética ou da arte, têm profundas implicações sociais. Nele, a partir da arte está em jogo um conjunto muito mais complexo de aspectos sociológicos, antropológicos, políticos, históricos, econômicos, éticos, midiáticos, etc., norteadores das relações travadas entre os indivíduos e, mormente, entre as classes sociais. O Estética da Periferia é apenas um exemplo de como tem se tornado cada vez mais urgente que, saindo de nosso fechamento egocêntrico, tornemos a responsabilizar, ética e politicamente, nossa arte e seu respectivo sistema social. A responsabilidade existe, ainda que fragmentada, e urge que, em consequência desta responsabilidade dividida, não diluamos a culpa entre os vazios do sistema. Entropicamente, culpemo-nos! E, contendo nossas ânsias e vaidades, resistamos quando preciso for.

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Balançamdores

E no meio da praça… Um artista pôs um balanço, um balanço… Foi posto pelo artista no meio da praça… O balanço mudou o dia; e o balanço mesmo se modificou… E balançou para frente e para trás a dor… A dor então esvaneceu-se por um instante… Solto no alto, o ar adocicou pelo vento batendo na face, apaziguando a dor. E o balanço já não era agora só balanço… Tornou-se “balançadores.”

Balançadores… Metros de corda, pedaços de pau cobertos de tinta e palavras, palavra e poesia escritas outrora por Manuel Bandeira, que se atualizam no agora, poesia de amor e rima…. A rima que fala… E fala de dor… No centro pulsando e as pessoas passando, todas elas, fora delas, todas elas esquecidas. O rosto é tão estranho… De um, de outro, de todos, na curiosidade de olhar para aquele balanço. A brincadeira de infante, dada como presente ao adulto maltratado, pelos dias de tantos anos balançou… E balançou… Foi lá no alto, esquecendo nem que brevemente sua dor… Porque esta sempre volta para o presente como o peso do corpo por sobre o pé que pisa o chão.

E assim, para frente e para trás, o homem quis ser menino novamente; a mulher que sofre, aquela que é de todos e de nenhum, dos que passam esquecidos, pública e invadida na vida difícil, sorriu… Sorriu na ausência de seus dentes… Esperou e perguntou pelo tempo que teria para embalar a sua dor. Levantou as pernas, deu o impulso, subiu… E o ventre corrompido esfriou na descida do balançador e ela sentiu-se de novo ela, toda ela de novo, pessoa que é… Coisa humana… Com um pouco menos de dor, por um breve instante sentada, divertida num balanço que era um gesto de arte, carregando a mulher para lá e para cá no que agora era muito mais um gesto de amor; o amor balançado no galho da árvore, da árvore onde se balança a dor, brincado no balançador… E tudo termina e começa assim… No meio da praça… Onde um artista pôs um balanço, em um balanço… Que foi posto pelo artista no meio da praça…

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E pancadaria que é bom, nada!

Nunca vi tanta arte meiga, terna, afetuosa, carinhosa, amável, afável, bondosa e suave junta! É tanta delicadeza que irrita. Faz enjoar a palidez de obras que, almejando cultivar boas energias, contentam-se com ínfimas graciosidades e abstêm-se do que realmente interessa.

Em nome da poesia que alguns artistas julgam ter a arte contemporânea bandonado, tem-se produzido trabalhos cujo propósito maior é embelezar e poetizar a vida. Nada contra — a intenção, nesses tempos de prazer mercadológico intenso, faz-se, inclusive, relevante. No entanto, abster-se de um engajamento ético maior não é ingenuidade — ou mediocridade — demais? Desconfio que alguns artistas têm utilizado tal discurso “poetizante” para mascarar reais dificuldades em criar imagens, ações e contextos cujos intuitos sejam muito mais do que somente (bobamente) meigos. E o SPA ‘07 foi um bom laboratório para esta minha desconfiança.

Balanços dependurados de árvores em praça pública é algo, sem dúvidas, afável [1] Balançamdores, intervenção de Nivardo Victoriano Conrado Júnior (CE). Possibilita que convivam, momentaneamente, pessoas de origens diversas, oferecendo a elas um instante de descanso, distração, agrado e, com sorte, até mesmo de interação e diálogo. É bom pensar que “fizemos nossa parte” ao propiciar um momento de poesia no cotidiano de meia dúzia de indivíduos perdidos entre seus seis bilhões de pares. Ainda que saibamos que, em poucas horas, os balanços serão drasticamente retirados pelo dito “vandalismo” comum à nossa sociedade, satisfazemo-nos com a chance de ter propiciado um efêmero alívio de tensão a alguém. Enganamo-nos com um efeito mínimo — e terno, vale lembrar — de nossa arte quando, inversamente, poderíamos interpretar que seu grande resultado não é o de plantar meiguice mas, contrariamente, o de suscitar algum tipo de ação subversiva e violenta, que, entrópica e visceralmente, retira do convívio de todos aquilo que incomoda ou seduz — o tal “vandalismo”. Desse modo, ao preconizar a superficial meiguice fruída pelos pouquíssimos que participaram do trabalho, tal produção artística esquiva-se da mais crua questão: a apatia, a revolta e a indiferença de todos — todos — os outros. E tal abstenção é ética. É a escolha feita por uma arte que, ingênua e irresponsavelmente, creio, se põe a agradar.

Curioso é perceber que, inclusive formalmente, a intenção de tais artistas é, mesmo, agradar. Num período de árduas pesquisas formais em arte — da pintura à arte e tecnologia —, tais obras são realizadas com até mesmo pobres soluções. É este o caso, por exemplo, do empinamento coletivo de pipas impressas com uma imagem de dente-de-leão dourado [2] Jardim Suspenso, intervenção de Naná Janus e Pedro Jaranillo (SP). Tal ação — realizada mediante o recolhimento de desejos (declarados em papel) dos passantes — almejava propiciar um doce momento de reativação de sonhos e de descontração. Frivolamente, no território- mor da burguesia recifense — a praia de Boa Viagem — se falava, comportada e silenciadamente, em esperança quando, ali próximo, num território praeiro outro — Brasília Teimosa — borbulhava a algazarra (sem “arte contemporânea”) daqueles que, por saberem-se na frustração da esperança, agarram-se ferozmente à curtição da realidade. Tal qual os balanços, as pipas, ao abster-se de tal realidade, fazem uma opção ética por estimular apenas o fácil contentamento. Preguiçosamente, evitam o confronto.

Assim, enquanto a intenção original era promover um momento de prazer desinteressado (de vínculos midiáticos e econômicos, sobretudo), a ação em si converte-se não num desvio dessa realidade mercadologicamente dominada, mas em seu implemento: propaga-se a feliz idéia de que, apesar dos pesares, o mundo vai bem. Uma arte, por exemplo, que enfatiza as amabilidades da vida em sociedade e da existência no mundo, ao privar-se de, ao menos simultaneamente, expor também seus conflitos coletivos e egocêntricos, engrossa o caldo dos discursos midiáticos que nos fazem tomar coca-cola como um ato revolucionário e necessário para bem da humanidade. Tal arte acaba por fazer apologia à ditadura dos discursos dominantes da sociedade.

É o caso, por fim, de um esdrúxulo caminho de “duendes” desenhados — traçado entre a Torre Malakoff e o prédio de ocupação do SPA [3] Siga o duende!, intervenção de Anamaria Pinheiro, Tássia Rebelo e Vinícius Lucena (PE). Partindo do observatório astronômico da cidade, o caminho conduz aquele que o segue, tal qual Alice no País das Maravilhas, a um território “mágico” — o da arte contemporânea. Os duendes desde cedo avisam que aquilo é algo especial, transcendente e que, portanto, deve ser encarado com um olhar puro e bom — afinal, os duendes não têm tempo a perder.

Apelo para que deixemos de fantasia e caiamos na real, assumindo a responsaiblidade social de nossa arte, e não temendo em ir contra a cultura da felicidade pregada pelos meios de comunicação de massa. Basta desta meiguice displicentemente irresponsável, pálida e enjoativa. Eu quero é pancadaria!

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Fardo

Manhã feita, no corredor central da avenida de trânsito intenso.

Pesada peça branca, bloco de gesso moldado à forma de um imenso dedo. Impossível içá-la. Para arrastá-la, tamanha força o corpo enverga que o esforço transparece no rosto, no torso, nos braços, na planta descalça dos pés.

O artista [1] Sérgio Vasconcelos, em performance intitulada Linhas do imaginário se impõe o sacrifício como uma forma de expurgo, depuração. O corpo não subleva, é posto a serviço de algo maior. A medida em que ocorre o deslocamento, a matéria no asfalto se desgasta e deixa a marca de uma linha ambiguamente rígida e oscilante. O traço se vai criando certo, ângulo reto, atravessando a via, vencendo a aspereza da superfície. Repete-se o ato à exaustão.

O desenho surge. Corpo em risco, mas atento, em meio ao fluxo. Não vemos o que está pré-determinado, o motivo que lança o artista na busca do traçado, com ímpeto obsessivo. Desvelá-las, as linhas, é preciso.

Desde cedo, poderosos vetores imaginários tomam de assalto o seu campo de visão, atrapalham o passo, alteram-lhe o ritmo. O fardo auto-imposto remete à intensidade da interferência com a qual convive. Como em um rito, invoca a cura a cada novo traço empreendido pelo corpo extenuado.

Contudo, ainda que porventura pudéssemos atribuir à arte um potencial curativo por meio da catarse, a ação não se resume a isto.

Para além das motivações individuais do artista, seu ato recobra e amplifica o desejo humano básico, universal, por expressar-se. Em meio ao anonimato da urbe, o sujeito insiste em deixar a marca de sua passagem, sua singularidade. O risco, índice desta presença, permaneceu por alguns dias visível após a ação, e deu corpo a um desenho de grandes dimensões só passível de ser percebido como um todo do alto.

Revertendo a obsessão em afrontado a normalidade do fluxo cotidiano da cidade, mesmo efêmera, a ação do artista gerou interferência e impregna na memória de quem a presenciou.

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As entrevistadeiras em& Histórias sem fim com Aslan Cabral

por Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz, cansadas após mais um dia de maratona de um SPA que nunca, nunca, nunca relaxa ninguém…

 

É, pode ser de fato complicado assimilar de pronto a performance de Aslan Cabral.

Estava tudo bem planejado… Ele disse que “o trabalho é muito bem pensado, e por várias cabeças. Tem muitos atravessamentos. É muita gente. A coisa é muito fracionada. Ai meu deus, é tanta coisa…! (…) Eu comecei a escrever sobre os processos de busca, comecei a conversar com as pessoas, pesquisar… deixei ali aquele arquivo aberto… e depois comecei a pensar como materializar isso como ação artística.”

O artista criou Search, performance que apresentou às cinco e pouca do dia de hoje (21 de setembro). [Algumas caixas de papelão fechadas. O artista chega e, com uma faca, começa a rasgá-las. De dentro das caixas sai espuma (daquelas de enchimento de ursinho de pelúcia), e, no meio delas, vários sacos plásticos contendo livros de arte, jornais, revistas e outros objetos menos intelectualizados, mas tão do cotidiano quanto].

A ação — uma busca pelo conteúdo das caixas — não se propõe a achar muita coisa. Quer mesmo é fazer ver o ato da procura e suas virtudes e frivolidades todas – as últimas especialmente levadas em conta no atual contexto de “verticalização” e virtualização dos processos de construção e difusão do conhecimento… Aí ele, ao não fechar sentidos ou ordens para seu trabalho, quer desenvolver (para criticar)“uma preservação da ignorância”. Aslan quer fazer ver os problemas de “conservar a forma fácil de achar as respostas e as informações… Eu gosto de ver cada um ter um processo pessoal de busca para encarar aquilo como arte…”.

Por isso também sua performance é estruturada de modo a tentar se “afastar” dos modelos cênicos habitualmente utilizados na performance… “Como eu não vim vestido como “artista”, as pessoas nem mesmo sabem se sou eu ou não o artista. Queria que as pessoas não soubessem ao certo se o trabalho acabou ou não etc. Dessa vez, eu tava meio nervoso, e ainda cravei a faca, aí deu um fechamento mais triunfal, e isso marcou muito, mas eu nem queria que fosse assim…”.

E essa estrutura pouco catártica, aliada à clara conceitualização do trabalho, dá a impressão de certa “secura”… [seriam também secos os processos de busca?] Performance sem maiores espaços para o desvio da ação… Tudo muito bem pensado, será? Mas não é esse o papel do artista — pensar previamente na sua ação? E diz o artista que o bom é isso: não saber ao certo do que se trata aquilo que se vê. Não saber encaixar direito as ações nos parâmetros previamenteexistentes — tanto o é que falamos, no início deste breve depoimento, que Aslan escapa aos “habituais” modos de fazer performance…

Enfim. Alvinho questiona a facilidade de encontrar as informações. Critica os processos de criação de difusão de conhecimento. Por isso também seria preciso que não fosse muito fácil “deglutir” seu trabalho. É bom o engasgo que nos faz pensar. E também esse engasgo tem a ver com as pretensões do artista: “eu quero tratar de verticalização de pensamento, de produção de conhecimento, do que for. Eu acho que é tudo muito global, muito igual. Muito higienizado.”

E o que seria o não higienizado da digestão? O vômito?

Aslan declara que não quer “controlar as articulações [cognitivas] das pessoas… Se alguém ri enquanto eu estou fazendo um trabalho, tudo bem. Quem sou eu para querer controlar isso?” Liberdade, portanto, inclusive para digerir.

E fica a reflexão… “Nós elitizamos a experiência artística à seriedade… Como se não pudesse haver o desvio — como o riso… Talvez porque as pessoas achem que a lágrima é mais profunda que a risada… Mas é uma convenção. E a gente vai ficar só convencionando na arte contemporânea?”

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Do que não passa

Será que, no contexto de um SPA de duração expandida, os artistas especialmente se interessaram pela questão do tempo?

Uma hora e meia

Com as madeixas circundadas por pedras de gelo, João Manoel Feliciano espera. Aguarda, em seu lento silêncio, a liquefação do que então é pedra. Sua performance Crystallus Capillus parece metaforizar a tendência à liquidez (e consequente caos e maleabilidade) do mundo e dos seres.

Seu corpo vivo aquece o gelo que, fazendo ver as relações de interdependência entre as partes do todo (artista-gelo-artista), reversamente esfria-se. Com o passar do tempo, a resistência do artista mostra sinais de exaustão: seu corpo treme, seus músculos fatigados e tensos já não o sustentam tão ereto quanto inicialmente, a respiração se aprofunda, a roupa encharca-se.

Em silêncio, observamos a também muda ação do tempo que, incapaz de produzir revoluções, vai apostando na continuidade das metamorfoses que se mantêm ininterruptas ao longo dos instantes.

A obra se faz no embate do artista com a matéria de seu próprio trabalho — a água em pedra, a água em fluido.

 

Dez minutos

Partilhando de similar embate entre a água e a resistência do corpo, o coletivo Soco na Pomba, em sua performance Dispositivo de Interação Combinada, faz com que sintamos o peso emudecido, ainda que angustiado, do tempo.

A partir de um objeto que, ligado às bocas e narizes dos três artistas do coletivo, conecta a respiração de todos de modo que, para que um possa inspirar, os outros dois precisem conter — por conta da água que lhes invade — sua respiração, a performance grita, através do corpo e ações daqueles artistas, que somos todos interdependentes.

A sobrevivência de todos depende da harmonia — inclusive respiratória — das interações travadas e, quando não resiste o equilíbrio, parte-se o sistema e finda-se a performance.

Em cerca de dez minutos, a interdependência pressionou demais o tempo dos corpos que, então, tudo que desejavam era um pouco de solidão — respiro.

 

Três minutos

Por três reais, três minutos de solidão eram comprados por Daniel Aragão em sua intervenção Solidão Pública.

Paradoxalmente, enquanto cada indivíduo vivenciava, também em silêncio, a solidão do tempo e do ser no mundo, o artista simultaneamente projetava (em telão em plena praça pública do centro da cidade) sua imagem, tornando pública e midiática a solitude.

E assim, mesmo que propositadamente isolados do mundo e dos outros, ficava metaforizada a real impossibilidade da utopia eremita. Somos, por fim, todos interdependentes. Entre nós mesmos e em relação ao tempo — como o gelo, o cabelo e o corpo de João Manoel Feliciano; como a respiração dos membros do Soco na Pomba; como os voluntários de Daniel Aragão que, na crua intimidade de seus eus, naquela noite impregnaram a cidade com um pouco mais de solidária solidão.

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