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Capa da revista

EDITORIAL

Tematizar a forma talvez seja um “equívoco” formal, se considerado o que esse esforço pode conservar da leitura isolacionista que compreende a “forma” como instância relativamente autônoma – ou contrastante – diante do “conteúdo”. Sem dúvida, esta revista não se reconhece nessa aparente fissura. Contudo, tampouco se satisfaz com a espécie de “conteudização” que marca o pensamento contemporâneo sobre arte, não poucas vezes restrito a gestos retóricos acerca da uma questão qualquer.

Nesse sentido, ansiando aliviar a parte que lhe cabe da ressaca formalista que parece ter se instaurado pós “geração 80”, a Tatuí 14 se dedica a pensar a forma para além da leitura pejorativa oriunda do “formalismo”, ao passo que atentando para os possíveis esgotamentos da forma. Dentre as diversas e espinhosas camadas desse debate, interessa sobremaneira investigar as potencialidades – e os modos possíveis – para o pensamento sobre forma (para alguns, o “pensamento formal”) na atualidade.

Este é menos um “tema” desta edição do que uma concreta e vívida experiência da Tatuí, cujos oito anos de atuação desaguam, hoje, numa encruzilhada que é também formal. Se ao longo de sua trajetória a revista vivenciou formas variadas de proposição e atuação, a experiência dessa pluralidade, atenta ao caráter vital das transformações – ou, como coloca o tema desta revista, às metamorfoses – das subjetividades, é na intenção de salvaguardar a liberdade das mesmas que a Tatuí encerra suas atividades com esta edição.

Ecoando o vazio-pleno de Lygia Clark, trata-se de abrir espaço para outros movimentos do desejo, dos corpos e do tempo, pois, como alertava o editorial da décima edição da Tatuí, o zero – o fim e, ao mesmo tempo, o recomeço – está grávido.

Férteis porque fertilizadas pelos encontros que atravessaram e deram sentido a esta revista, agradecemos intensamente a todos que dela fizeram parte – equipe, colaboradores, leitores, apoiadores, entusiastas: acima de tudo, amigos – e, ansiando pelos reencontros por vir, despedimo-nos.

Ana Luisa Lima, Bebel Kastrup e Clarissa Diniz

 

Colaboradores

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Conteúdo

Índice
  1. “Eu não sei o que é forma”: experiência, pensamento, crítica, história, e a necessidade de “banir o formalismo” – entrevista com Ronaldo Brito. - Escrito por Ronaldo Brito e Tatuí
  2. A dificuldade da forma difícil - Escrito por Sérgio B. Martins
  3. A forma em onicrise, niilismos e a estética de Samuel Beckett - Escrito por Alexandre de Oliveira Henz
  4. Absolutamente, Precisamente! A forma como objeto-figura, (apoiada por e) desencadeando gestos-sequência e ações-código na prática como pesquisa artística de Julia Spínola - Escrito por Sofie Van Loo
  5. Ambiguar [1] - Escrito por Clarissa Diniz
  6. Atrito e existência conversa com Eduardo Frota - Escrito por Eduardo Frota e Tatuí
  7. Num trem pras estrelas* - Escrito por Ana Luisa Lima

“Eu não sei o que é forma”: experiência, pensamento, crítica, história, e a necessidade de “banir o formalismo” – entrevista com Ronaldo Brito.

Rio de Janeiro, 23 de outubro de 2012.

 

Tatuí | Como comentamos, a Tatuí 14 gira em torno do problema da forma.

Ronaldo Brito | Eu acho que esse é o problema.

Tatuí | Talvez um ponto de partida, aproveitando o campo de pensamento ao qual você está dedicado desde sempre – o de pensar a modernidade na perspectiva da contemporaneidade –, seria você falar um pouco sobre a forma enquanto problemática moderna, e enquanto problema, digamos, contemporâneo. Que tipo de continuidades, que tipo de descontinuidades, rupturas, encruzilhadas têm sido atravessadas?

RB | Bom, de uma maneira muito esquemática, e a cada dia mais problemática, vamos partir do pressuposto de que identifico contemporaneidade e experimentalismo. Com o experimentalismo dos anos 1960, que chegou até os anos 1970, dentro do qual me formei. Mas não tenho nenhum saudosismo experimentalista, o que seria um contrassenso. Não estou pedindo esse experimentalismo de volta. O que a gente poderia dizer que unia movimentos, em grande parte antagônicos entre si, como o minimalismo e a arte povera (para citar dois que com certeza influenciaram muitos artistas brasileiros)? A crítica ao idealismo formal, o idealismo da forma e todas as suas ilações, e projeções, podendo culminar, por exemplo, numa utopia construtivista – na utopia da Bauhaus – e configurando um movimento de plena autonomia, que já se revelava problemático em 1960/70 (embora eu só tenha começado a viver isso a partir de 1975). Essa crítica ao idealismo formal estava ligada ao processo maciço de institucionalização da arte moderna, que já não podia – sob o risco de má-fé – achar que era alguma coisa do reino da boêmia, fora do mundo da produção e do consumo. Porque nós já estávamos tratando com uma arte moderna institucionalizada, mercantilizada, e mesmo os movimentos experimentais – os norte-americanos, sobretudo – eram prontamente mercantilizados, institucionalizados, decifrados e teorizados. A crítica a esse idealismo formal passava pela discussão do próprio conceito de arte, como ocorre na arte conceitual.

O conceito de instalação veio daí, sem dúvida. Em função de quê? Da necessidade de destruir o dualismo tradicional, para que os trabalhos tomassem aspecto material, efetivo: instalar significa não aceitar conteúdo/ continente, rejeitar a contemplação, a distância entre sujeito/objeto, enfim, mobilizar um lugar. Uma topologia prática: o trabalho é uma intervenção enquanto lugar, o que inclui desde as suas características físicas até suas inscrições ideológicas e simbólicas. Daí a dificuldade de chamar o que hoje, correntemente, passe por arte contemporânea – o conceito de instalação virou algo banal, 90% das instalações que a gente vê são cenografias, a maioria, baixa cenografia. O contrário daquele experimentalismo – até do projeto moderno que era a conquista de uma dimensão, de um plano, sem perspectiva central, nada desse decorativismo psicológico que traz imagens prontamente comunicáveis e que não ataca o problema da forma. Outra questão, que deixo em suspenso por agora, é a eventual potência estética, potência poética daquele experimentalismo original. Se de fato – e até que ponto – ele marcou uma ruptura em relação ao idealismo formal moderno. A gente tende – talvez para contrapor a um conceito de arte tão risível quanto o que está em vigência hoje –, ao contrário, a ver muito mais aquele experimentalismo como uma continuidade do projeto moderno (que sempre teve por móvel a autocrítica) do que alguma coisa próxima à arte dita contemporânea agora hegemônica. De certa maneira até preparou, porque com essa abertura da forma – com a forma aberta, destinada ao público –, ela acabou por engendrar uma arte publicitária. De fato ela queria ser pública, o problema é o modo como ela veio a ser pública. Hoje artistas – por exemplo, como Donald Judd com seus ObjetosEspecíficos – tomam lugar dentro da tradição da grande forma moderna.

Tatuí | Quando você fala de “querer ser pública”, você distingue algum momento (sobretudo na modernidade) em que essa intenção da arte ia claramente no sentido oposto ao do público?

RB | Não, não claramente oposto. O que acontece na dita arte construtiva – no idealismo formal construtivo que culmina no projeto da Bauhaus de “Espiritualizar o Cotidiano” – como na dita antiarte, misturando a arte e vida, é uma demanda de transformação da arte a partir de sua efetivação pública. Isto se realizou – ironicamente, mais uma vez – quase como uma traição desse projeto. Hoje é mercadoria dócil da indústria do lazer e do turismo. Esse conceito de instalação e a ideia do “Viver no Plano” de fazer tábula rasa da história e da perspectiva (uma ideia muito americana, contra a qual surge um Joseph Beuys…), de deixar para trás todo o passado e viver a experiência do plano, tudo isso era a antítese desse virtualismo anódino que caracteriza o meio de arte hoje. Falta, justamente, a instância crítica.

Por outro lado, é evidente que havia também ali uma utopia irrefletida. Seguia, sem perceber, a inconsciência moderna: a história sempre haverá de pesar. Daí a força da emergência de Beuys: trazer para o cerne dessa linguagem desestruturada contemporânea o problema da história. E a origem romântica da obra de arte moderna, o conflito entre o destino da imaginação num mundo secular, até como substituto da religião, e o caráter patrimonial que foi determinando a arte moderna. Digamos, o autor como proprietário.

O “Viver no Plano” inscreve toda essa contemporaneidade naquele élan moderno, com tudo que tinha de positivo. Mas a história foi desmentindo essa pulsão emancipatória de viver no plano, mostrando como também ela é parte de uma historicidade que não consegue, na medida mesmo em que é historicidade, enxergar todo o campo de ação no qual atua. Nesse sentido, aquele experimentalismo acabou também uma utopia da forma.

Tatuí | Aproveitando sua fala acerca dessa situação histórica e de uma certa estrutura de contingência que é inevitável e que está posta como problema para todos os artistas, você poderia comentar a relação entre um “pensamento formal” e o “formalismo”, considerando o formalismo como esse pensamento (inclusive filosófico, jurídico) que, sendo diferente do formalismo em arte (gostaria que você problematizasse um pouco essa diferença entre um formalismo genérico e o formalismo na arte), se diferencia também do “pensamento da/sobre a forma”?

RB | Formalismo virou adjetivo e, em geral pejorativo. No experimentalismo, uma das questões era se livrar da metafísica criacionista, da metafísica coisificada, que interpreta tudo em termos de forma e matéria; como a razão ocidental iria se livrar de sujeito/objeto, de forma/matéria. O que gera todo o impasse, como você pode distinguir uma coisa de uma obra de arte, se ambas são feitas de forma/matéria? O que remete ao antropomorfismo grecoromano e à metafísica criacionista cristã. Em geral se coloca forma/conteúdo, o que ainda é mais rasteiro, uma interpretação tão banal da forma… Beuys fala, por exemplo, “a forma é o pensamento”. Forma (Eidos) era sinônimo da ideia. Interpretar forma como invólucro, como envelope, é viável. É melhor começar a ler Adorno, distingue pelo menos conteúdo de mensagem, de intenção, e tudo o mais. Forma, evidentemente, é o pensamento. Intrinsecamente vinculado ao tratamento, digamos, da matéria, desmentir a caracterização dualista matéria/ forma. Uma das características da arte moderna é a espiritualização da matéria. Matéria não é coisa. Forma tampouco é o que conforma a matéria.

A acusação de “formalismo” sempre vem em nome da instrumentalização do trabalho de arte. Eis aí, a meu ver, o núcleo do pós-moderno. Instrumentalização de arte que dissolve o trabalho de arte em discurso cultural. A partir daí, o momento do voo cego da obra de arte – o que a distinguia do pensamento instrumental, da lógica custo-benefício, e lhe imprimia o da transcendência na imanência, fica parecendo metafísica porque não se insere num discurso social prontamente reprocessável. Aí aparece o que você chamou de “conteudismo”[1] Em referência ao convite à colaboração enviado ao entrevistado, onde mencionava-se o processo de “conteudização” da arte., se o trabalho não produz uma fala acerca de identidade, gênero, crítica social, enfim…

Tatuí | … com a questão das questões…

RB | … Se ele já não vier falado, vira “formalista”. E os seus defensores, elitistas. Ou metafísicos arcaicos. Isto é a instrumentalização – a linguagem do trabalho de arte passa a ser produzida na forma da mercadoria, sob a forma dominante do discurso de comunicação social e se esgota nesse processo. Já encontrei curadores que só conhecem isso e esse pós-moderno como (ou tal versão do pós-moderno) realmente liquida o salto de transcendência que caracterizava a grande arte moderna. Ela agora parece suspeita, arte que tem que ser de pronto consumo.

Tatuí | E você consegue situar historicamente, ou circunscrever, no Brasil, em que momento essa leitura pejorativa da forma se transforma em formalismo?

RB | O Brasil, como sempre, é mimético. Aquelas coisas não ocorrem de dentro para fora, vêm de fora para dentro. Esse processo é indissociável da globalização, é indissociável do fato que o Brasil – bem ou mal, periférico ou não – é parte desse grande mundo, a grande rede. Não acredito que tenha sido movimento autônomo da arte brasileira, acredito sim – mais e mais, o que está acontecendo com alguns espécimes – que a valorização dessa arte brasileira é engendrada lá fora. A gente pelo menos escolhia os nossos artistas; em geral, escolhia mal, mas escolhia. De um tempo pra cá, muitos artistas são feitos de fora para dentro. Aparentemente isto é inevitável. Mas acho também que há muitos artistas trabalhando (inclusive jovens) em atrito com tal situação; não é fácil, porque não existe mais aquela distância protetora entre produção e consumo. Ao contrário da minha geração, onde o problema da modernidade podia se vincular com a contemporaneidade – e isso foi muito produtivo, estar ali em contato com Mira Schendel, Sérgio Camargo, Amílcar de Castro, Lygia Clark… – A contemporaneidade se misturava com o desejo da afirmação de nossa verdadeira modernidade, no país dos Di Cavalcanti e dos Portinari, ou seja, o país das contrafações.

Tatuí | Em relação a essa culturalização, a essa conteudização do pensamento formal brasileiro ali dos anos 1950/60, você percebe que essa leitura “de fora” é menos culturalizante (ou mais culturalizante) dessa produção do que a leitura que se tenta fazer aqui?

RB | Sempre culturalizante, sempre demandando, por incrível que pareça, os chavões do imaginário tropical, o imaginário do colonizador. Não há nenhum pensamento da forma, há o contrário: a aceitação da forma vigente, não só da mercadoria, como da forma vigente do processo comunicacional em um mundo cada vez mais interativo superficialmente. E não há crítica eficaz, sem uma crítica sobre o seu próprio modo de ser. E esse seu modo de ser envolve o que a gente continua chamando de forma. Embora essa forma não seja mais a gestalt, não seja nenhuma unidade. Acho que há um ensinamento nesse processo de fim da teleologia da história da arte moderna. Mesmo grandes historiadores só faziam “história da arte” europeia, a que se afinava com as articulações daquele momento, naquele lugar. Nesse sentido a arte brasileira ficava sempre como um momento defasado, deslocado. Não pode ser assim a história da arte, não é assim que se lê esse a produção. É um pouco basbaque, mas a gente fica satisfeito quando vê um ObjetoAtivo de Willys de Castro ao lado do BroadwayBoogie-Woogie de PietMondrian, no MoMa. E ele aguenta. Eu não vi (vi só a imagem), mas amigos meus foram lá e disseram; “o Willysaguenta”. Não é de se surpreender, porque ele era um grande artista e trabalhava num modelo de linguagem – com tudo o que isso envolve, porque não é nada simples – de Mondrian.

É ótimo, agora, ainda falta muito. A ideia não é ter retrospectivas de artistas brasileiros e sim artistas como tais. A renúncia do questionamento formal significa a renúncia da arte. Isolar a questão da forma seria isolar a questão do pensamento: “pensamento formal” é quase um pleonasmo porque forma é pensamento.

Tatuí | Ou, talvez, numa outra perspectiva – e usando uma lógica sua (quando afirma que “arte é o que resiste à obra”[2] BRITO, Ronaldo. Símbolos e clichês (1985). In: LIMA, Sueli de (org.). Experiência crítica. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p. 168. ) –, aceitar o “formalismo” talvez não fosse recusar a arte, mas aceitar plenamente a convenção social “arte”, já que podemos considerar que a forma resiste à arte no sentido de que briga com ela, visto que “forma” ou “pensamento formal” não seriam sinônimos de arte. Então, existe uma tensão aí, um conflito que, ao não se encarar o problema da forma, talvez se transformasse numa aceitação da ideia de “arte”.

RB | Se você renuncia a autointerrogação da forma, você evidentemente repete o mundo que pretende criticar, repete o modo de ser acrítico, não reflexivo, não imaginativo do jovem desse mundo. Não há contradição entre exemplares trabalhos de aparência transgressiva serem também trabalhos de enorme sucesso público. Na verdade, falam a linguagem corrente da forma do mundo.

Tatuí | Sim, e isso nos leva para a relação entre forma e ideologia…

RB | É, claro. Arte formalista não é aquela que se concentra na forma, arte formalista é a que não reconhece o dilema da forma – ela é só decorativa – mesmo quando supõe que é denúncia, protesto e lamento.

Adorno fala de um “formalismo crítico”, ele que era um grande esteta, um crítico feroz do capitalismo. Não sei nem se aceito isto porque já é ceder muito a palavra “forma”, mas com isso ele via a diferença, a superioridade de Samuel Beckett em relação a Bertolt Brecht, na medida em que a relação do Beckett com o material era mais livre, digamos, do que o teatro engajado do Brecht, que já cedia à razão instrumental. Parece que não se vê hoje – porque não se pode ou porque não se quer ver – essa brutal instrumentalização da razão: confundir razão com a razão instrumental. E aí a própria questão da ideologia se esvanece, porque tanto faz se é esta ou aquela, se você manipula isso na ordem de uma razão instrumental, então toda essa crítica ao formalismo é uma defesa inconsciente (ou de má-fé) da razão instrumental. Por que não é mais possível eu me entregar a Matisse por Matisse? Ele tem mais potência crítica do que a enorme maioria dessa arte que a gente vê por aí, que não passa de comentários, ociosos e desnecessários, porque ninguém precisa de arte para se inteirar sobre o curso do mundo. Apêndice de livros de divulgação de sociologia e psicologia. Essa entrega, seja no processo do fazer, seja no processo do experimentar – e essa talvez seja uma palavra-chave, experimentar, é justamente a antítese dessa instrumentalização. Entregar-me a uma experiência é não saber onde ou como vai se processar essa experiência. Senão, serão sempre os passos marcados de uma metodologia – um aprendizado, didatismo. Essa é outra das ironias, a de que a crítica institucional mais ou menos latente em todo esse previsto experimentalismo transformou o trabalho num veículo anódino, estéril, e com isso cedeu à própria instituição.

Outro risco corrente é o da arte tornar-se uma rubrica a serviço de uma insaciável voracidade teórica. Tive recentemente algumas experiências em palestras – inclusive com pessoas mais jovens – que submeteram, ironicamente sem querer, a arte a uma articulação conceitual em que ficava faltando justamente a experiência do trabalho, ou seja, o começo de tudo. Desde o momento em que rege o curador – mediador entre a obra e o público –, o trabalho falado não é passível de experiência, a condição institucional do espetáculo o esvazia. O momento cego de embate com o trabalho. E uma das formas de esvaziar esse embate é o discurso acadêmico, que procura articular o mundo do imaginário a instâncias teóricas, experiências. Eu me assustei ainda outro dia com um jovem falando de Foucault e Deleuze (meu Deus do céu!, isso era da minha geração…!), e continua a militar num mundo imaginário onde a arte toma lugar numa constelação que, evidentemente, não está mais vigente. A questão do crítico e a questão da arte começam com a experiência do trabalho. E o dilema é que isto permanece no Brasil quase irreal; a experiência qualificada da arte veio sendo conquistada a duras penas pelos próprios artistas, pelo público, pelos críticos. Mas é uma experiência que, mal começou a acontecer, parece que já está desacontecendo. Porque a arte ameaça diluir-se nesse movimento midiático que é o exato oposto dessa experiência. Eu não estou dizendo que não possa haver uma experiência dessa ordem, ou de qualquer ordem do mundo digital – tem que haver uma realidade estética disso. Até segunda ordem, porém, acho que ela está neutralizando a experiência material da arte sensória. Porque, veja, em toda essa crítica que se faz ao formalismo, só nos deparamos com prisioneiros da metafísica do sensível e do inteligível. Continuam, aparentemente sem desconfiar, sujeitos dessa metafísica. Se houver uma coisa que a arte moderna provou foi o paradoxo da plena inteligibilidade do sensível. Problemas árduos para toda a filosofia, e o lugar onde a própria filosofia aprendeu a desaprender, síntese de um paradoxo, que chocava Platão; o sensível, a “aparência” concilia a “essência”. A filosofia consegue se aproximar – Kant abre esse problemático universo – aos tempos modernos. Mesmo Kant imagina ainda que o belo, a arte, cabe num juízo, por mais que esse juízo seja, como o é em Kant, reflexionante, aberto. Mas a experiência da arte não cabe em juízo nenhum. Quando a arte não desafia o conceito, ela se rende à metafísica da forma e da matéria, cansativo dualismo. A razão instrumental de modo algum supera a metafísica; ao contrário, todo mundo sabe, é o produto acabado dessa metafísica.

Voltando à questão das rubricas, outro dia ouvi Roberto Conduru dizer uma coisa engraçada: os novos artistas repetem a tradição acadêmica, em que você tinha que se exercer em todos os gêneros: o nu, o retrato, a natureza-morta, a pintura histórica e, eventualmente, terminava pintando um grande painel acadêmico… Só que agora é o vídeo, a fotografia, performance, a terminar talvez numa grande instalação… É uma nova academia, um novo protocolo acadêmico porque feito com regras a serem seguidas, pré-dadas, um repertório a ser cumprido. O repertório são as “questões” que invadem o cotidiano da cultura globalizada.

Outra patente, constrangedora, é como muita dessa arte que se pretende crítica social de gênero é egóica, um decorativismo psicológico, um psicologismo que se confunde com o sociologismo. O que é difícil de aceitar é a perda de substância – pelo menos num nível aparente – da arte moderna, da força intrínseca da arte moderna. Se há algo contraditório com o espírito moderno e contemporâneo, é o saudosismo. Não estou pensando em revigorar o experimentalismo; se eu pudesse, ia ver a city de Michael Heizer, não iria à Bienal, porque é chata. Não é lugar para quem gosta de arte. Se for, é pra ver o trabalho de x ou o de y… Aquilo ali é shopping center, não é?

Tatuí | Você costuma situar o problema da forma em termos geométricos, topológicos, de tempo, de espaço – também políticos, ideológicos – em suas análises, que são majoritariamente calcadas em pintura, escultura, gravura, desenho… Queria perguntar como você vê essas instâncias, esses problemas formais, em outras linguagens.

RB | Essa é a questão, porque, na verdade, a maior parte dos artistas brasileiros da minha geração não chegou a produzir grandes instalações. Eu diria – e eu posso falar isso com tranquilidade porque não escrevi sobre ela – que a instalação EurekaBlindhotland, de Cildo Meireles, foi bem-sucedida, uma das poucas bem-sucedidas. Outra que também funciona é Fantasma, de Antonio Manuel. Era muito difícil, para quem estava ainda absorvendo o processo da forma moderna, conseguir dar esse salto. Mas é claro, que não rejeito instalações; o problema é nossa dificuldade de fazer a experiência de verdadeiras instalações.

Tatuí | Você escreveu sobre Nelson Felix, não é?

RB | Escrevi. Até agora, tem sido um trabalho bom. É todo um percurso, um trabalho contemporâneo de que eu gosto muito, um desafio crítico porque escrevo sem ter visto a obra pronta. Escrevo na antecipação, o trabalho pronto chega depois. Depois é que eu vou ver o que acontece.

Tatuí | E como é essa experiência?

RB | Foi uma experiência boa justamente porque foi uma experiência. Creio que está na minha área de competência. Mas a maioria dos vídeos que vi… Nunca fui muito um cara de cinema, a questão do vídeo me desmobiliza muito, fico meio imobilizado. Mas trabalhar com alguma coisa que ainda está se materializando, que lida com o imaterial, não tem problema nenhum, porque está na ordem da imaginação crítica. Tem que ser feito – como foi feito no nosso caso – segundo um conluio poético. Não foi um relato aposteriori, foi vivido ao longo de dois ou três anos, com intensos encontros periódicos.

Uma coisa inevitável é que para o crítico de arte contemporânea entra também em questão a relação do artista com o trabalho. Uma relação bonita do artista com o trabalho – ninguém é Deus para ver do alto – influencia e inspira o texto crítico, independente do alcance que esse trabalho possa vir a ter. E às vezes uma relação feia com um trabalho forte também desarma, porque o cara pode fazer um trabalho forte, mas a relação que estabelece com o crítico é uma relação funcional, sem graça. A relação do artista com o trabalho faz parte do processo poético da crítica, que vai transparecer finalmente no texto ou na fala. A segunda coisa é que o trabalho atual modifica o trabalho anterior, para o bem ou para o mal. Uma poética consistente – por exemplo, a de José Resende –, um trabalho (como o que ele faz há pouco no MAM-Rio) reilumina a obra, repotencializa o trabalho anterior. Enquanto trabalhos que vão se repetindo ou se esterilizam vão cansando o crítico – aquele trabalho que passa a ser o folclore de si mesmo, a alegoria de si mesmo, vai desmoralizando sua própria história. Quando o artista morre, depois de um tempo, é possível talvez fazer essa separação, o trabalho torna a ficar livre. Mas enquanto o artista atua, um momento de trabalho ruim desvitaliza. Para a nossa sorte até – embora fosse uma situação adversa – a gente pôde viver, por exemplo, um Oswaldo Goeldi, num registro de contemporaneidade, porque inexistiu aqui leitura crítica de Goeldi (apesar do poema do Drummond). Nós é que fizemos as leituras de Goeldi, leituras que continuam em vigência. Até o Guignard, que foi um artista mais palatável, fomos nós (ou seja, minha geração) que demos um sentido moderno a ele. Ainda era tarefa contemporânea, decifrar o Milton da Costa geométrico, por exemplo… No final das contas, como toda arte é contemporânea, toda crítica tem que ser contemporânea.

Há que entender também que toda arte é local, deve ser vista sob certas condições, inexiste universalidade absoluta. É claro que o Brasil não gerou trabalhos matriciais, o laboratório aqui não consentia isso, não é? Picasso era espanhol, mas só é Pablo Picasso porque estava em Paris; em Barcelona, ele não seria Picasso naquela época. Arte é produção social. Temos que olhar nossa arte a partir de nosso laboratório, isso não tem nada de elitista. Toda produção social, de certo modo, é produção de laboratório, o mundo não é um quintal. Quando se fala “Brasil”, parece até que isso existe… O “Brasil” não existe, existem situações históricas articuladas, fluidas, sobrepostas, existe uma língua portuguesa, existem códigos comuns. Mas o Recife, por exemplo, é outro laboratório. A globalização, se for uma autêntica mundialização, ótimo; se for globalização sob o signo do consumo, não tenho nada a ver com isso. Toda arte é pessoal e local, nasce de uma esfera de experiência singular, intransferível, e nisso não vai nenhuma metafísica do eu, o artista não pode sequer escolher seu Sujeito de Arte. Ninguém é o artista que quer; é artista porque não consegue se satisfazer consigo mesmo.

Tatuí | Na relação entre forma e subjetividade, e em suas críticas ao egóico (como também à dimensão terapêutica em Lygia Clark), como você essa interface da psicanálise como forma de leitura da arte?

RB | Eu me interessei, num dado momento, por isso. Estava no ar, era fatal. O risco, de novo, é a ladainha da instrumentalização. Enxergar a arte só por esse prisma. Ninguém deve esquecer que tudo estava envolto em algo da ordem da liberação. Tudo estava inscrito, datado historicamente, na sociedade da norma e da hierarquia, enfim tudo isso que terminou: vivemos a era da permissividade. Nada mais patético do que uma arte transgressiva: transgredir o quê?!

Falava-se, e como, de contracultura… Contracultura num país sem cultura? Contracultura pode ter sido – nem sei se foi – um gérmen produtivo em um país saturado de cultura, mas num país saturado de ignorância como o nosso, contracultura é pleonasmo ou o cúmulo do otimismo. É mais uma importação. Esses artistas foram importantes porque viveram plenamente a dissolução da sociedade hierárquica e o ingresso na sociedade de massas. Agora, as ilusões que os acompanharam também têm que aparecer. O que se realizou foi, fora de qualquer dúvida, a normativização da permissividade. Quem quer de volta o regime da repressão? Ninguém, ninguém é louco. Mas quem é que se ilude: houve a rigor uma liberação efetiva, o homem contemporâneo é um homem mais livre? O quê que isso significa? Isso era a matéria da arte deles, matéria empírica, mas não é isso que vai fazer a arte do Hélio, e nem da Lygia – que, aliás, são artistas dos quais eu gosto, embora lamente a fetichização acéfala de costume. Diga-se de passagem, ambos eram de origem contrutivista, portanto, viveram essa experiência de liberação na clave da forma, numa discussão criativa com Mondrian, Malevitch…).

Tatuí | Mas você não acha que há uma dimensão semântica, sobretudo uma visão da cultura, que impõe outras camadas?

RB | Essas coisas não são estanques, não são dissociáveis em absoluto. Mas não acho que sejam o cerne da experiência da arte. Em geral, as pessoas virtualizam a arte em teoria pela incapacidade de empreender uma experiência real e aberta com arte.

Tatuí | Mas você não acha que esse momento do trabalho de Oiticica, pela relação com nosso corpo e experiência direta com a obra (que não é teórica, mas sobretudo perceptual, fenomenológica), de alguma maneira também não atuava no campo das percepções sobre a cultura em seu presente (naquele presente), sem necessitar amparar-se em teorizações?

RB | Sim e não. Sim, porque aquilo se inscreve em todo um horizonte fenomenológico da experiência e corresponde a um momento poético no percurso dele. Não, porque quando é transformado em exemplaridade cultural, fica ridículo. Não fica menos do que ridículo, esse fetiche. Aquilo pertence àquele horizonte cultural dado. Voltamos aqui ao lugar comum de que “a vanguarda envelhece mal”. Hélio Oiticica, que desempenha uma ação de vanguarda, está envelhecendo mal por conta de leituras insignificantes. Envelhece porque essas leituras só atraem espíritos compassivos, não fomenta a curiosidade sobre o trabalho mesmo. A intenção era repotencializar – estética, poeticamente – a experiência da vida. Mas o que acontece, ironicamente, é a banalização da vida e da arte, o que ocorreu também com a dita participação. Alguém pode acreditar em participação nesse sentido: pegar um Bicho e interagir com ele? Primeiro, já nem pode pegar virou mercadoria protegida.

Então, pode-se reconhecer o conteúdo de verdade histórica e cultural da arte da Lygia Clark. Eu gosto, por exemplo, daquelas coisas – que ela não deixava mostrar, aquelas máscaras todas, objetos de uso terapêutico. Leio aquilo esteticamente. Para mim, faz parte do trabalho. Não sei se vai aguentar ou não. Acho que os Bichos aguentam. E quando eu digo “aguentar”, não é seguindo uma hierarquia: é aguentar a visada contemporânea, olhar as coisas como elas se apresentam. Isto é que é o olhar histórico: um olhar do atual. A história da arte não é o Pantheon, coisa móvel – ninguém mais do que o crítico contemporâneo sabe disso –, pois os trabalhos vão sempre mudando e, nessa mudança, vão se autoanulando ou se repotencializando, vão se reapresentando… Eis a diferença da arte e mercadoria. Antes tínhamos o universo da hierarquia e essa hierarquia, entendida negativamente, era cristalização do pensamento crítico e, como tal, o seu esvaziamento. Agora vivemos no regime da diversidade aparente e da recusa da valoração: toda valoração é suspeita. O que também esvazia o pensamento crítico. A palavra “crítica” significa dividir, discernir, avaliar. Criticar, para Kant, é repor em questão o fundamento. Eis o terror do mundo atual, esse pensamento que identifica, divide, discerne, investiga, pergunta, interroga, diferencia… Ofende o senso comum pós-moderno. A diversidade da dita arte contemporânea não é alteridade, é uma diversidade de supermercado. Diversidade é o que choca a identidade do conceito, desafia a identidade do conceito, e assim desafia o pensamento crítico. Com isso não quero dizer que não existam trabalhos – existem, e muitos – que se autocritiquem, se autoinvestiguem, se exerçam nessa dimensão. O modo como eles são apresentados em geral, no entanto (por exemplo, em bienais), tende a apagar justamente o modo poético desse fazer, que pode ser um fazer de qualquer espécie. Não prego o retorno a uma disciplina qualquer. Até para soprar bolinha existe disciplina. Pode ser uma pergunta ingênua, mas eu me pergunto por que aquele Salto no vazio de Yves Klein a cada ano fica melhor? É uma foto banal, montada… Mas tem um poder! É o que desafia o conceito, aquele Salto… Aquilo é forma!

Essa palavra – “formalismo” – deveria ser banida, porque desmoraliza demais a palavra “forma”.

Tatuí | Mas você não acha que, dialeticamente, a ideia de “formalismo” não potencializa a força da forma?

RB | Como? No sentido positivo?

Tatuí | Porque a concepção de “formalismo”, ao trazer à tona o que há de superficial, frágil, pejorativo, pode acabar demonstrando a potência da ideia de “forma”; algo como “culturalismo” e “cultura”, por exemplo…

RB | Culturalismo, o que é? É o esvaziamento das potências latentes das formações culturais, na medida em que você as engloba num todo dado, sublima suas características numa suposta aceitação das diferenças. Não engana ninguém. Da mesma maneira, o uso desse dito crítico do “formalismo”, acusando o processo moderno de dissociação com o processo da realidade – porque esta é a acusação latente –, ignora a própria forma da realidade. E ignora que não há realidade fora do pensamento da forma. Toda realidade é formada. E é justo por achar que a realidade “é” o máximo do conformismo –, tem necessidade de substância que vem do próprio senso comum, da atitude natural, que domina a manifestação pós-moderna: o público. Se a verdade está no público, no sentido de público consumidor, a gente não pode mais esperar pensamento crítico. Ao que parece a verdade do público, hoje, é a mídia.

Tatuí | Como você vê essas experiências – por exemplo, quando Paulo Sérgio Duarte passa pela terapia de Lygia Clark – que imbricam crítica e corpo numa imediaticidade?

RB | Não sei se penso sobre isso. Todo mundo tem é que aprender e se esforçar para ver com o corpo todo. Ver com o corpo todo, escutar com o corpo todo. Participar, como mexer, é secundário… A experiência de Paulo Sérgio Duarte foi ocasional; até muito mais do que eu, ele dissocia completamente esse momento da terapia de Lygia de sua arte. Outra coisa – para o que teríamos que arranjar um nome – é o quanto esse momento – não só inclusão do corpóreo, mas de redimensionamento poético existencial do corpóreo – é constitutivo do trabalho de Lygia Clark. Tanto que ela fez o que fez, e acabou em terapia. Disso resultou um horizonte terminal para o processo da sua arte que é algo que deve ser incluído na avaliação e na experiência do trabalho. Qual a singularidade de um trabalho que termina antes da vida pessoal? Isso deve ser incorporado. É fácil? Não, não é fácil (se eu fosse escrever um livro sobre o trabalho da Lygia, estaria coçando a cabeça). A terapia dela como uma extensão pessoal da sua aventura plástico-formal, mas não querendo ser arte.

Tatuí | Mas é forma.

RB | Bom, forma, no sentido amplo, claro. Mas a Lygia que eu conheci não estava mais preocupada com arte; ao contrário, ela proibia que chamassem seus objetos terapêuticos de arte. Há uma grande ingenuidade, se não burrice, em querer transformá-la em mártir da liberação do corpo. Como Hélio Oiticica, resumido a símbolo da Tropicália. Volta àquele lugar comum de antropofagia… A grande literatura brasileira nunca foi feita em nome da brasilidade. Machado de Assis, Drummond, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Clarice Lispector… Olha quantos nomes eu estou citando… São os grandes artistas brasileiros e não Oswald de Andrade – seja lá qual o mérito que ele tenha. Estou falando dos grandes artistas brasileiros: Iberê Camargo, Sérgio Camargo, Amílcar de Castro, Franz Weissman, Mira Schendel. O próprio Hélio, e Lygia, começam por dar as costas ao nosso modernismo, plasticamente incipiente, ideológico e cego. Lygia Clark é o trabalho de arte dela. O que não quer dizer que seja opaco, né? Você vai lá, experimenta o trabalho e faz os nexos que puder. Sem experimentar os trabalhos, sem a pulsão que o trabalho movimenta, o trabalho vira (como acontece em geral) exemplo disso,exemplo daquilo… Como o Abaporu, uma pintura indiferente, o emblema perfeito de não sei o quê, de não sei quem… Aí você pega uma gravura de Goeldi e a terra treme.

Tatuí | Queremos retomar quando você fala que a terapia de Lygia não é arte – e claro, a questão não é transformar em arte ou não –, mas que é forma. Como o seu pensamento é sobre forma, queremos perguntar como você se relaciona com formas que não estão atreladas à ideia de arte… Como é que uma forma para além da arte se relaciona com seu pensamento formal sobre arte?

RB | A pergunta é espinhosa. Primeiro, devo dizer o seguinte: eu não sei o que é forma. Por issopenso todo dia sobre forma. Ninguém sabe o que é forma. Perguntaram-me outro dia se eu acredito em fato histórico. Eu acredito que exista uma dimensão fática – as coisas ocorrem –, não é sóreconstrução virtual. As coisas acontecem. Só que a forma dadaao fato histórico, uma tradição positivista, é visível. Não existe nenhum fato nesse sentido. Todo fato é topológico e está investido de uma simbolização. Todo fato é escrito, reconstruído, redimensionado. Um problema material – para dar um exemplo primário, mas ilustrativo –, é a preocupação do que é a forma na e da história, seja da história da arte ou seja da historiografia em geral. O pensamento sobre a forma da história, a forma de fazer história, é o dilema, posto que a história não segue nenhum curso linear, teleológico. O historiador está sempre às voltas com a forma. Para começar, com a forma da sua escrita. O historiador que escreve mal, mente. Mente historicamente. Escrever mal desmente a historicidade. Ou, pelo menos, desmoraliza a historicidade.

Tatuí | Porque é querer estabilizar a forma, estancar seu processo de invenção.

RB | É, querer transformar esse processo numa propriedade do eu. Numa propriedade intrínseca do eu. E a atividade da crítica – e eu sempre digo isso, para desgosto de alguns –, é uma atividade que passa muito perto do ridículo. É bom tomar cuidado. Chega a ser engraçado como alguns dos meus textos passaram de herméticos a redundantes ao longo de duas, três décadas… Quando foram escritos ninguém entendia, hoje soam redundantes.

Tatuí | Mas isso é também resultado de sua ação na história, efeito da presença de seu pensamento no mundo…

RB | E o texto continua lá, o mesmo, mas outro.

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A dificuldade da forma difícil

[1] Agradeço a Pedro Duarte e Miguel Conde por discussões particularmente importantes para a elaboração deste artigo.

 

‘Nas artes visuais, não há atualmente admoestação mais grave do que acusar algo ou alguém de formalista.’[2] Ver Rodrigo Naves, A Forma Difícilensaios sobre arte brasileira (São Paulo: Ática, 1996), pp. 9-39 É assim que o crítico Rodrigo Naves inicia seu comentário a respeito da recente exposição do pintor paulista Cássio Michalany, na Galeria Raquel Arnaud. Fica patente já nessa abertura a voltagem polêmica assumida por Naves ao situar o trabalho do pintor na linha de frente do problema da forma na arte contemporânea. Há momentos em que o habitual virtuosismo de sua prosa resvala no exagero retórico (Naves se insurge contra a ‘Disneylândia de “esquerda” em que habitam muitos curadores, críticos e instituições de arte contemporânea’), mas sua petição de princípios é pertinente: ‘precisamos menos de denúncias e mais de uma capacidade de articular a realidade dissipada dos nossos dias. E aí não há como prescindir da noção de forma.’ Não pretendo entrar aqui no mérito da pintura de Michalany. Minhas perguntas são outras: até que ponto esta noção forma, pelo menos do jeito que Naves a desenvolve em sua crítica, é capaz de levar adiante tal articulação? Até que ponto ela é fiel à espinha dorsal do próprio pensamento do crítico? E o que isso nos diz do destino não só da ideia de forma, mas também de outra noção igualmente cara ao modernismo, a de autonomia?

Recapitulemos, em primeiro lugar, o argumento em questão. Segundo Naves, Michalany não cede a modismos; ele ‘pinta faixas há mais de 30 anos’ e ‘não se interessa por mudar seu trabalho à base de chicotadas’. É contra este pano de fundo que sobressai o trabalho da forma, marcado por mudanças sutis, mas significativas. Em 1992, o pintor passa a ocupar-se da ‘permutação entre áreas de cor’, pintando-as ‘sem gestualidade ou fatura’, o que lhes priva de ‘qualquer dimensão expressiva ou pessoal’. Para Naves, tal poética corresponderia ao universo de relações sociais frouxas e desimpedidas que o primado do setor de serviços conferiu à sociedade contemporânea: ‘as identidades individuais já quase não tinham vínculo com aquilo que homens e mulheres faziam, justamente porque já não faziam propriamente nada e sua sociabilidade tinha uma natureza muito diferente do trabalho nas oficinas, nas fábricas ou no campo.’ Passados vinte anos, em sua mais recente exposição, Michalany ainda retém o procedimento, mas introduz uma nova variável:

‘No conjunto, são usadas quatro cores que se permutam: azul, bordô, tabaco e verde. Como em cada uma das telas são empregadas apenas três cores, a visão de conjunto das séries introduz um ruído na reversibilidade dos trabalhos anteriores. Há sempre uma cor que fica de fora.’

Para Naves, essa ausência abala o horizonte inicialmente otimista das permutações de Michalany, sua ‘troca de papéis leve e descomprometida’, que dá lugar então a uma incerteza mais angustiante que liberadora, uma vez que o dado da exclusão frustra quaisquer expectativas de ‘plenitude visual’. O crítico então conclui:

‘Essa exclusão pode dizer respeito à incompletude radical das práticas sociais e às possibilidades que elas mantêm no horizonte. Mas podem também não passar de um jogo de cadeiras em que sempre alguém precisará ficar de fora para que a máquina não pare.’

Concordando ou não com esta leitura, uma coisa é inegável: o formalismo de Naves não acarreta menor atenção às relações sociais contemporâneas e seus dilemas. Aliás, é público e manifesto seu interesse em vincular a forma artística a ‘outras experiências.’[3] Rodrigo Naves, ‘Entrevista com Rodrigo Naves’, Revista Número, número 7,  (2007). A pergunta que resta fazer, portanto, é sobre a feitio de tal vínculo; e cabe fazê-la a partir da principal contribuição conceitual do crítico: a ideia de forma difícil.[4] Ver Rodrigo Naves, A Forma Difícil: ensaios sobre arte brasileira (São Paulo : Ática, 1996), pp. 9-39. Segundo Naves, muito do que de melhor se produziu na arte brasileira do século XX se deu sob o signo da dificuldade de forma, ou seja, de um entrave extrínseco que impunha à obra uma formalização tímida. Tal entrave adviria do déficit de modernidade inerente ao meio social do país, notoriamente atravessado pelo avizinhamento contraditório entre arcaico e moderno. Isso explicaria tanto a ausência de formas fortes e donas de um ‘caráter prospectivo’ mais decidido entre as obras aqui produzidas (dada a inexistência um meio capaz de lhes fazer tal exigência e subsequentemente elevá-las ao embate público com outras obras da mesma estatura) quanto, mais especificamente, o retraimento formal destas mesmas rumo ao íntimo, ao aconchegante e ao nostálgico (dado que estas figuras de uma sociabilidade mais antiquada ainda acenariam com alguma espécie de amparo contra eventuais e desconcertantes lufadas de modernidade, como se formassem um abrigo caseiro de tijolos rústicos, aparentes e suficientemente sólidos para não desmancharem no ar).

Ainda assim, certas obras nascidas em solo brasileiro teriam conquistado cidadania moderna. A peculiaridade é isso implicar não na eliminação do entrave, mas em sua internalização. É esta virada dialética que dá corpo à forma difícil; o entrave é tomado não como fator impeditivo, mas constitutivo. O cerne crítico da forma difícil reside em ser moderna num ambiente que não o é, o que significa que a modernidade deixa de ser vista como um estágio distante a ser alcançado – como algo que ainda não somos. Em outras palavras, cai o imperativo de que, para sermos verdadeiramente modernos, é necessário que antes se tire o atraso; há uma verdade na modernidade brasileira como ela é, e essa verdade é o ponto vista singular que ela é capaz de lançar sobre a modernidade como um todo, uma vez entendido que sua existência, contraditória o quanto for, não deixa de ser parte desse todo. Através da forma difícil, diz Naves, ‘experimentamos uma realidade travada, muito mais próxima das crises e impasses desencadeados pelo desenvolvimento tecnológico do que da maleabilidade que ele introduz em seu manejo da natureza e demais processos. ’[5] Ibid., pp. 34-35.

Nem tolhida pelo arcaísmo circundante, nem à vontade no desembaraço moderno, a forma difícil insere-se negativamente dentro do espírito de seu tempo, e por isso mesmo transforma nosso modo de compreendê-lo. Isso só é possível porque ela opera simultaneamente como fator de autonomia e mediação. Por um lado, uma vez internalizadas o que antes eram determinações externas, está autorizado o formalismo do intérprete, ou seja, a prática da interpretação intrínseca. Por outro, tal internalização absolve a forma da suspeita de solipsismo e dilata seu potencial crítico, já que faz da autonomia artística uma via singular de compreensão do mundo moderno, uma fonte de nexos e insights que sem a arte seriam inconcebíveis.[6] Vide o elogio de Naves ao trabalho de Roberto Schwarz sobre Machado de Assis: ‘Com o livro do Roberto, mas sobretudo com a obra de Machado, se torna possível a compreensão e discussão de aspectos da sociedade brasileira de finais do século XIX que seria impossível de outra maneira. Por exemplo, há uma compreensão moral da sociedade do final do século XIX que seria impossível sem o Machado de Assis.’ Luiz Felipe Alencastro et al., ‘Machado de Assis: um debate – conversa com Roberto Schwarz’, Novos Estudos, número 29 (março de 1991), p. 75. A forma difícil aponta, portanto, para aquilo que Louis Althusser batizou de causalidade estrutural, isto é, para um tipo de relação entre diferentes níveis da estrutura social no qual a autonomia relativa de cada nível é respeitada, mas ao qual também subjaz um dado de consistência do todo (uma ‘causa ausente’, ou seja, o fato eficaz, mas empiricamente indeterminável, de que a sociedade se articula através de suas contradições) capaz de permitir a articulação crítica destes níveis (sem o que tornar-se-ia fútil o desejo, declarado por Naves, de ‘entender as relações das obras com a formação do Brasil’).[7] Para a distinção entre causalidade estrutural e causalidade expressiva, ver Louis Althusser et al., Reading Capital (Londres: New Left Books, 1970), pp. 186-189. Ver também Fredric Jameson The Political Unconscious (Londres: Routledge, 2002), pp. 7-43. Para a citação de Naves, ver ‘Entrevista com Rodrigo Naves’, op. cit.; nessa mesma entrevista, questionado sobre sua noção de forma, o crítico novamente cita o exemplo de Schwarz e prossegue: ‘não me interessa [sic, as formas artísticas que apenas […] acolham ou mimetizem a experiência social. Eu acho que todos os grandes trabalhos de arte também têm uma espécie de dimensão prospectiva […] eu acho que o que nos emociona em um trabalho de arte é esta espécie de dupla permeabilidade, ao mesmo tempo em que traz uma experiência muito concentrada e como que abrir [sic] isso para um buraco, uma dimensão do mundo.’]

A vantagem do modelo althusserianoconsiste em iluminar também o problema central do texto sobre Michalany. Pois sua noção de forma, cuja sofisticação encontra-se visivelmente aquém da forma difícil, alinha-se com o que o filósofo criticava através do conceito de causalidade expressiva. Aqui, ao contrário do que acontece na causalidade estrutural, o segmento específico da experiência (a arte) resume-se a expressar localmente uma essência constante do todo (o universo das relações sociais). Vejamos: mais uma vez, Naves narra um câmbio entre dois momentos, isto é, entre a disponibilidade otimista dos trabalhos de 1992 e o sentido de exclusão da produção atual do pintor. No entanto, e ao contrário do que acontece entre a dificuldade de forma e a forma difícil, esta já não é uma passagem dialética.[8] Pode parecer estranha essa vizinhança entre a dialética e a causalidade estrutural, dado que um dos alvos de Althusser com o conceito de causalidade expressiva é justamente Hegel. No entanto, como argumenta Jameson, essa era uma questão política e contextual: Hegel era, na verdade, uma espécie de codinome para Stálin. ‘O verdadeiro alvo da polêmica de Althusser é o mesmo de Hegel, cuja obra é uma longa crítica ao imediatismo prematuro e ao estabelecimento de unidades não-refletidas.’ Jameson, op. cit., p. 26. Já não se trata mais de um entrave externo que, internalizado e trabalhado na forma, faz com que esta se abra, mediando de modo complexo e diferencial a autonomia relativa da experiência artística e outras dimensões da esfera social. Se as faixas de Michalany são anódinas e intercambiáveis, é porque as relações numa sociedade de serviços também o são; e se incorporam o dado da exclusão, é porque essa fluidez social também não é sem seus excluídos. A mediação entre os diferentes registros de experiência sofre um empobrecimento: ela passa a se dar por homologia, e não mais pela articulação de diferenças.[9] Para Jameson, é a homologia, ou isomorfismo, o grande alvo da crítica de Althusser à causalidade expressiva. Ibid., pp. 28-29. Sofre também – sem dúvida contra o desejo do crítico – a autonomia artística: atada à relação homológica, a forma torna-se um mera versão codificada de um arranjo essencial que a ela nada deve, e cuja cognição dela dispensa. A obra pode até aludir a esse estado de coisas, mas o diagnóstico do afrouxamento das relações sociais, ou da exclusão social, não obtém por essa via qualquer ganho fundamental. Se a forma difícil, como vimos, abre uma nova perspectiva sobre a modernidade no Brasil – uma nova avenida crítica –, aqui o exercício da interpretação, por mais virtuoso que seja, resume-se a estabelecer paralelos a partir de dados já estabelecidos.

Como explicar tal desdobramento? Seria correto, ou suficiente, atribuí-lo a um deslize interpretativo por parte do autor? Penso que o problema é outro; que o texto sobre Michalany é sintoma de uma ruptura histórica que afeta fundamentalmente a validade da noção de forma defendida por Naves. O que está em jogo é o próprio pressuposto histórico desta noção, que passa pela dupla tarefa assumida, segundo o crítico, por sua geração:

‘cujo projeto tácito era tentar promover, no sentido da compreensão, os trabalhos contemporâneos que fossem mais avançados, que não fizessem concessões ao meio e, simultaneamente, também produzir, na medida do possível, uma certa re-interpretação e re-hierarquização da arte moderna brasileira, que nós achávamos totalmente mal posta, mal selecionada.’[10] Naves, ‘Entrevista com Rodrigo Naves’, op. cit.

É essencial perceber, então, que a forma difícil é um exercício de história prospectiva, ou seja, de uma história na qual a relação entre forma e mundo é construída não somente no intuito de elucidar a realidade social de uma dada época, mas também de apontar uma dimensão da forma que persiste para além desta época.[11] O livro A Forma Difícil foi publicado em 1996, aproximadamente vinte anos após essa época que Naves descreve como sendo a da formação do projeto crítico de sua geração. Vale notar que a década de 1990 marca o início de um maior reconhecimento nacional e internacional da arte contemporânea brasileira quanto à recepção tardia da arte produzida aqui até a década de 1970, o que inclui os artistas próximos de Naves. Tal entrelaçamento radical entre o histórico e contemporâneo dá ainda mais pertinência a um projeto de história prospectiva como o de Naves. Não pretendo argumentar que o exercício de uma história prospectiva tenha perdido todo e qualquer sentido, mas que qualquer alcance prospectivo esbarra, cedo ou tarde, em certos limites históricos que não podem ser ultrapassados sem que sejam reexaminados os pressupostos conceituais do modelo interpretativo em questão. Não se trata apenas de compreender melhor a história para montar com mais perfeição o quebra-cabeça do presente (o que já não seria pouco), mas de compreender, a partir da emergência histórica de uma forma artística, seu modo de seguir abrindo possiblidades formais na direção do presente. Naves quer distinguir na obra ‘uma forma e uma presença que a diferenciam do modo como a sociedade contemporânea aparecia [em seu momento histórico]. E essa diferenciação é ela mesma prospectiva, no sentido de apontar para formas novas possíveis.’[12] Alencastro et al., op. cit., p. 75. Naves fala aqui a partir de um caso para ele exemplar: Matisse. Ora, nada mais antitético à diferenciação do que a homologia; o que a primeira abre, a segunda encerra. Portanto, uma coisa é traçar relações homológicas de alcance local, como parte de uma interpretação mais complexa; outra – e é isto que acontece no texto sobre Michalany – é plantá-la no cerne da formalização.[13] Referindo-se à permutação de áreas de cor no trabalho de Michalany, por exemplo, Naves afirma que a ‘avaliação quase otimista do crescente afrouxamento das relações que mais progrediam na sociedade contemporânea’ é nada menos que ‘a intuição que movia aquelas séries’. Naves, ‘Cássio Michalany explora diferentes cores e formatos em mostra’, op. cit. Se a diferenciação é o motor do poder prospectivo da forma, a homologia o faz engasgar.

Quero concluir fazendo duas observações. A primeira é devedora de um brilhante artigo do teórico norte-americano Nicholas Brown, para quem a insistência no paradigma modernista de autonomia – tanto por parte de apologistas quanto de críticos – em meio a um cenário francamente pós-modernista é um grave erro.[14] Nicholas Brown, ‘The Work of Art in the Age of its Real Subsumption under Capital’, Nonsite.org (13 de março de 2012), disponível em http://nonsite.org/editorial/the-work-of-art-in-the-age-of-its-real-subsumption-under-capital.Como não poderia deixar de ser, minha breve apresentação simplifica brutalmente o argumento de Brown. Brown define este cenário a partir do ponto de vista da produção: se, no modernismo, produção e consumo eram em certa medida etapas isoladas, agora o mercado predetermina de tal modo as vias de circulação da obra que, na vasta maioria dos casos, as decisões envolvidas em sua produção já não conseguem descolar-se minimamente da expectativa de vê-la acolhida pelo mercado. O corolário é o seguinte: enquanto vertentes modernistas e antimodernistas antes davam suas cartadas sobre um pano relativamente amplo de autonomia (cartadas que incluíam não só seus lances formais, mas também suas aspirações utópicas, ainda capazes de projetar um horizonte de relações sociais para além do mercado), agora, com ascendência do mercado sobre a produção, este pano é subitamente puxado da mesa, já que o mercado é o domínio por excelência da heteronomia. Isso significa, por um lado, que a reprise de ataques sessentistas à autonomia artística é ingênua (quando não cínica), uma vez que o horizonte utópico de dissolução da arte na vida, ainda vigente naquela década, já não é mais crível; tal dissolução, hoje em dia, sopra a favor do mercado (vide a eficiente cooptação dos signos de 1968 pela publicidade). Por outro lado, no entanto, a crença na manutenção da autonomia nos moldes modernistas revela-se igualmente ingênua. A autonomia torna-se um gesto defensivo, um entrincheiramento estético cada vez mais especializado, estreito e autorreferencial. O potencial de vinculações complexas entre forma e estrutura social – sem o que o modelo causalidade estrutural cai por terra – torna-se cada vez mais reduzido, tornando difícil para o intérprete a insistência nessa via, a menos que ele opte por compensar tal perda com vínculos mais ou menos arbitrários.[15] Nesse sentido, Naves erra o alvo quando propõe a versão de autonomia implícita no texto de Michalany como antídoto para a cooptação da arte por motivações políticas extrínsecas: ambos são na verdade sintomas do mesmo impasse. Reaparece aí, como vimos, o fantasma da homologia.

Minha segunda observação é que este impasse não implica no abandono da noção de autonomia. Estou novamente de acordo com Brown: no quadro atual, um modelo válido de autonomia artística é condição sinequa non para qualquer dimensão política que se queira da arte (não falo aqui no sentido de uma arte explicitamente política, mas da ideia de que a experiência artística possui implicações políticas relevantes). Mais uma vez, no entanto, é preciso ir além da mera insistência; é preciso, penso eu, atualizar e repor dialeticamente o problema da autonomia.[16] Nesse sentido, e sem nenhuma intenção prescritiva, registro apenas que venho apostando minhas fichas principalmente no caminho da acepção Marxiana de Darstellung – a causalidade estrutural nada mais é que a releitura althusseriana deste conceito –, já que esta entrelaça o problema que expus com a questão mais ampla da representação. Ver meu ensaio curatorial sobre Matheus Rocha Pitta no catálogo da exposição Dois Reais (Rio de Janeiro: Tisara, 2012). Minha ênfase ali recai mais sobre a noção de objeto que de forma. Cabe reconhecer e localizar o interesse da forma difícil: sua virtude é captar o vigor persistente de certas formas modernas. Porém, o fato deste vigor ter nascido por diferenciação perante sua época não o torna imune a certos limites históricos. Chega um ponto em que, se não o reexaminamos, o vigor torna-se rigor.

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A forma em onicrise, niilismos e a estética de Samuel Beckett

Pensar sem princípios, na ausência de Deus, na ausência do próprio homem, tornou-se a tarefa perigosa de uma criança-jogadora que destrona o velho Mestre do jogo e que introduz os incompossíveis no próprio mundo estilhaçado (a mesa quebra-se…). Porém, nessa longa história do “niilismo”, que ocorreu antes de o mundo perder seus princípios? Mais perto de nós, foi preciso que a Razão humana desmoronasse como último refúgio dos princípios, o refúgio kantiano: ela morre de “neurose”.

Gilles Deleuze, em A Dobra, Leibniz e o Barroco.

Alguns aspectos de quatro modalidades de niilismo em Nietzsche e Deleuze, esses niilismos estão justapostos no corpo dos tempos de agora e permanecem em coexistência e simultaneidade. A palavra niilismo conforme enunciada por Nietzsche, vem de um termo em latim nihil que significa, nada, que significa nulidade. O termo niilismo é passível de várias acepções, algumas como regressão e impotência e outras como atividade e afirmação da vida. Samuel Beckett realizou em seu trabalho um movimento que pode ser pensado como o da travessia dos quatro niilismos enunciados por Nietzsche, ele compreendeu que nenhum caminho passa ao largo deles, que se tem que atravessá-los como a criança ao sarampo, padecendo-os inteiramente, sem exterioridade, e ultrapassá-los, sem perecer.

O primeiro niilismo é o niilismo negativo, uma grande negação, mas uma negação de quê? Negação desta vida e deste mundo, uma desvalorização da vida terrena em nome de valores supremos, superiores. Uma desvalorização criada pelo platonismo e reafirmada pelo cristianismo, os quais julgaram e desqualificaram a vida temporal, esta que vivemos, a partir de um mundo suprassensível e eterno (o mundo da ideias, o paraíso..) considerado-os como o ideal, o bom e o verdadeiro. O sentido daqui agora viria de lá e o aqui perderia seu sentido intrínseco. Nesta operação platônica que pretendeu instaurar um fundamento definitivo, tudo devia ser submetido ao mundo do modelo ideal e o que é submetido ao modelo, ao mundo das ideias, torna-se cópia daquilo que é considerado original. Tudo o que está no mundo sensível e que se submete ao que está no mundo perfeito torna-se cópia. Más ou boas, as coisas do mundo onde se vive – o mundo sensível – são cópias. Pretendentes dos modelos do mundo das ideias, elas rivalizam para alcançar a maior proximidade com a perfeição.

Em contraste, as obras de Samuel Beckett são uma espécie de deserção desse platonismo e uma aposta radical nesta vida. Com Beckett, tudo range e estala e acompanhamos o fracasso da instauração dos fundamentos e essências imutáveis. Com efeito, o niilismo negativo, apresenta a busca por fundamentos e identidades como uma questão antiga e totalmente estranha às personagens beckettianas cuja confusão de identidades (é) apenas aparente, devido à pouca aptidão de as ter, conforme refere uma voz (Beckett, 1989. p.47) em O Inominável.

Tentar ser como o modelo, identificar-se com suas características, retificar-se conforme suas formas, copiar sua perfeição, relaciona-se a uma noção de desejo platônico-cristã e moderna. Em Beckett, como em Deleuze e Guattari, encontramos uma outra concepção de desejo não mais marcada pela carência e a falta, mas por uma produtividade e potência coextensiva ao meio natural-social-histórico. Em distintos personagens Beckettianos não há faltas ou escavações interiores: apenas combinatórias e pedras para chupar, à moda Molloy.

Para os gregos trágicos, anteriores ao niilismo negativo, não existia uma doutrina dos dois mundos e eles não propunham um transmundo, um mundo além deste mundo, considerado sob o critério do bem e da verdade, como recompensa depois da morte e ponte para a vida eterna, como na versão do cristianismo. Os gregos, até um momento antes de Sócrates e Platão, tinham uma maneira de enfrentar a dor e a morte sem fugirem delas. Na época trágica, bastante valorizada por Nietzsche, os gregos tinham a compreensão profunda de que a vida, no enfrentamento de maior intimidade com a dor e a morte, extrai delas uma vitalidade ainda maior. Uma espécie de força. Deleuze insiste no viés trágico beckettiano que elevou figuras indomáveis, indomáveis por sua insistência, por sua presença, no momento mesmo em que eles atualizavam o horrível, a mutilação, a prótese, a queda. Beckett, diz Deleuze, deu à vida um novo poder trágico de rir extremamente direto. Sofrendo inúmeras dores, os personagens beckettinos estão livres da pior delas: a autoacusação, a autoflagelação, ou seja, o sentimento de culpa centrado no eu e na identidade.

Para Deleuze é difícil ler Beckett sem rir, (…) chamava isso de “cômico do além-do-humano”, o trágico por excelência. Uma alegria indescritível que jorra dos grandes livros de Beckett, mesmo quando eles falam de coisas feias, desesperadoras ou terríveis. Não se pode deixar de rir quando se embaralham os códigos, diz Deleuze (…) aí nascem os momentos de riso dionisíaco, é o pensamento ao ar livre, também para Nietzsche.

No entanto, houve um momento em que os gregos começaram a se afastar da dor e da morte, e as insígnias que passaram a predominar proclamavam que: Viver é perigoso, é sofrer, então, basta de vida. É quando desistem desse mundo, constroem uma instância transcendente, o mundo das ideias, que lhe doaria sentido. Depois, vêm Deus e o paraíso com o cristianismo, e mais tarde, num salto que com pouca consistência posso ora apresentar, mas que pertence a essa série, tem-se a verdade da ciência. Com todas essas construções do niilismo negativo, uma das questões mais fecundas que Nietzsche e Deleuze nos ensinam é que Platão não venceu. O embate de forças, as vozes, o silêncio, a sujidade da vida – e Beckett soube investir essa sujidade na acoplagem de elementos, sentidos e objetos ao corpo -, essa mistura, essa luta de forças vivas e mestiças, sem expectativa de estabilização, permanece.

Antes de apresentar o que seria o segundo tipo de niilismo é importante ressaltar que não se trata de acabar um niilismo e começar o outro, no sentido de etapas ou progressos; como dito no início, tratam-se de coexistências, de simultaneidades. Então, esse segundo niilismo, começa a esboçar-se no final do século XVII e ganha força nos século XVIII e XIX, é um niilismo que Nietzsche denominou de niilismo reativo e que é uma grande reação. Mas uma reação a quê? Reação aos tais valores superiores, reação contra Deus e a religiosidade cristã na modernidade. Neste momento, há um enfraquecimento de Deus como norteador, e a produção, demarcação da forma-homem, do homem moderno, que passa a ocupar o lugar do fundamento. Os antigos valores superiores (Platônicos e cristãos) esmaecem, na medida em que outros valores emergem e coexistem de forma concorrente a eles. O indivíduo é superinvestido. O homem moderno e o seu suposto livre arbítrio tentam ser um novo trono – embora mais fraco e menos firme – para o absoluto. Inventam-se valores substitutivos e novos artigos de fé. São as marcas da ciência prometeica, do igualitarismo, do familiarismo burguês, da noção de progresso do século XVIII e da busca da felicidade para todos que apostam no futuro como compensação às fraquezas e imperfeições do presente que tem o homem, agora muito interiorizado, inflado de sentimentos, imaginação e consciência, um mestre e dominador da natureza. Este niilismo reativo é o humanismo da modernidade e seu sono antropológico.

Já nos séculos XX e XXI – com alguns começos entre escritores e filósofos do século XIX -, um outro e terceiro movimento emerge. Um niilismo passivo, um terceiro vetor, contemporâneo aos demais. Com ele talvez se possa pensar numa das formas de evasão do psicológico, do voluntarismo e até mesmo do profundo ressentimento moderno, todas marcas do niilismo reativo. O niilismo passivo é causado pela impossibilidade de suportar que não haverá um aperfeiçoamento do homem no sentido de um progresso. Ele acentua a descrença no melhoramento da humanidade; sua passividade é tanto a etapa dos mortos-vivos que se lamuriam pelo homem “não ter dado certo”, quanto a fase da ausência de esperança e até mesmo o desinvestimento no mundo interior. Não se espera um mundo suprassensível, um paraíso com Deus ou um futuro que virá redimir e melhorar a vida.

No niilismo passivo, há um grande cansaço dos valores ideais, da esperança, do eu e suas filiais. Cresce uma espécie de impessoalidade. Impessoalidade porque até a interioridade do eu, a noção de pessoidade, entra em declínio. Há muitos movimentos de superfície sem o jogo dicotômico com a profundidade.

Contemporaneamente, com esta modalidade passiva, podemos tender a uma subjetividade rendida e adoecida. Uma de suas máximas poderia ser: O mundo que existe eu não quero e o mundo que eu quero não existe. Prepondera a desconfiança, a insegurança e a sensação de “tudo é igual, nada vale a pena”. É um momento paradoxal em que podem entrever-se começos de uma grande saúde. Temos aqui, grosso modo, este “estado transitório patológico” em que o indivíduo (aquele do niilismo reativo) que emergiu com a cultura do sentimento (séculos XVIII e XIX) vai, pouco a pouco, adelgando-se. Isso é, talvez, a última agonia da reação, do niilismo reativo. Esses traços vislumbram-se em textos de Beckett, nos estertores de vozes, histórias e fragmentos de memória. Os personagens beckettianos são marcados por essa espécie de nada de vontade, de um mundo sem valor, de uma interioridade corrompida que se esfacela. A vontade e o eu podem tornar-se um pouco menos cheios, menos espessos e inflados (talvez mais delgados, magros… esses eus e essas vontades…). Aqui, todos são decepcionantes e quando o voluntarismo e a esperança entram em declínio, diz Nietzsche (2008, p. 33), não se suporta mais esse mundo, que já não se está disposto a negar. E quem sabe esse grande cansaço e decepção do niilismopassivotenha a ver comummovimentonecessário que Beckett acompanhou até o fim para que outracoisaapareça e outras posibilidades emerjam. Beckett nunca negou a morte, a catástrofe, a dor e o desastre emnome de alguma causa transcendente ouhistoricamente relevante.

Com o declínio do niilismo reativo, o segundo tipo de niilismo, da reação humanista dos séculos XVIII e XIX, resta uma vida fraca, uma modalidade passiva, enfraquecida, que quer o mínimo de tensão e que paradoxalmente mantêm uma excitação constante. É o instante mais aflitivo, patológico e paradoxal, e é importante frisar que é paradoxal. É a oportunidade de uma reviravolta, de uma ruptura, de uma deserção do ensimesmamento produzido no niilismo reativo, é o grande cansaço do homem profundo e psicológico. Há aí a possibilidade de uma desubjetivação também ativa, que Nietzsche e Beckett souberam acompanhar.

Nessa ambiência e em outra região, que enlaça a saúde no contemporâneo, cabe um breve parêntesis e uma problematização entre o niilismo passivo e sua consumação. Ela está relacionada a uma tendência no campo da saúde, contemporaneamente, com ecos na discussãoacerca da produção de singularidades: diz respeito à diferenciação do que se pode chamar monismo reducionista e monismo complexo.

Monismo porque se trata de um, mono, uma substância e não duas. Sem os antagonismos e as bipartições típicas do niilismo reativo. Evidentemente, os movimentos dicotômicos persistem, eles coexistem neste momento, e apontam para o que vem: a tendência à univocidade, o monismo.Com a dissolução contemporânea de determinados dualismos produzidos marcadamente no final do séc. XVIII, tais como natural versus artificial, normal versus patológico, dentro versus fora, público versus privado, o monismo avança e se instala furtivamente. E, uma vez instalado, ele se move sob dois vetores: o monismo reducionista – que opera com generalidades, e o monismo complexo – que opera com singularidades. Em ambos, o centro não é a forma-homem, o indivíduo ou a pessoa.

O monismo reducionista trabalha com fatores, traços, taxas, médias epidemiológicas, e, a atenção é a uma população de risco. Então, nesse monismo reducionista fala-se muito em cérebro, por exemplo, não em mente. É uma chave única, o cérebro e não mais dupla, mente e cérebro. Uma noção recobre a outra e só há cérebro no discurso contemporâneo hegemônico. Isso coincide, por exemplo, com a tendência a transformar qualquer correlação cerebral em causa ou origem cerebral. O cérebro é a base explicativa, a priori, mono, há apenas uma causa, não há correlatos. Daí monismo reducionista, porque não há um pluralismo descritivo. O mundo tende a ser descrito como uma única substância, por exemplo: refere-se muito à depressão não à tristeza ou à melancolia. Encontra-se somente o TDA-Hiperatividade, não um travesso ou bagunceiro. Utiliza-se exclusivamente o termo stress (um termo mais físico, dos estudos biológicos dos anos 50) e não mal-estar ou conflito ou desassossego.

Entre o monismo reducionista e o complexo as discriminações se embaralham. Todos nós estamos expostos e formamos juntos os dois monismos que tendem a se instalar no âmbito das artes, da política, e, especialmente, nas profissões mais tradicionais no campo da saúde. Há nisso um certo cansaço, talvez ontológico-histórico. Em ambos os monismos, a separação público versus privado se reconfigura. O privado vira público quase compulsoriamente. Todo o privado tende a ser publicado. Essa demarcação se hibridiza e vira uma (Não duas. Monismo). Na perspectiva reducionista o monismo faz um estrago com suas descrições simplificadoras e fisicalistas. Daí podermos pensar num monismo reducionista à frio – o coletivo das generalidades epidemiológicas, das origens e localizacionismos, e, num monismo complexo à quente – também coletivo, das singularidades, dos fluxos, diferenças.

Na chave do monismo complexo, há um tateamento das singularidades, distintas das generalidades do monismo reducionista.As singularidades do monismo complexo estão dispostas ao modo do monismo em Espinosa, que não opõe homem e mundo, como formas dadas. Em Espinosa, tudo que existe é uma modificação da substância única que é a natureza. Trata-se de um naturalismo não fisicalista, com uma inseparabilidade do mental e do corporal, do psíquico e do somático. Uma univocidade complexa que subsume indivíduo e ambiente num mesmo todo aberto, uma substância aberta. No contemporâneo podemos acompanhar estas complexidades, trabalhando com uma multiplicidade descritiva. Elas podem seguir uma via interessante, acompanhando e produzindo um monismo complexo – para além do niilismo passivo que compõe com o reducionismo- ao instalarem-se no trabalho de encontrar sob as “aparentes pessoas” (eus, tus, nós) a potência de algo comum, um impessoal interessante, um movimento de “todo mundo”, que de modo algum é uma generalidade, mas uma precisão e singularidades, no mais alto grau.

É também um momento de consumação, quando não reagimos tanto com esperança, quando alguns velhos hábitos não nos impelem mais, não pegam mais, caducaram. Em seu limite extremo, são as possibilidades de travessia do niilismo passivo a um quarto tipo de niilismo, ainda não mencionado aqui, o niilismo ativo que se articula com o monismo complexo.

É interessante acompanhar as possibilidades de passagem do reativo ao passivo, mas para seguir um dos fios mais interessantes e fecundos da obra de Samuel Beckett é preciso não se deter apenas nesta travessia, para então proceder à análise de uma espécie de vontade enfraquecida como abertura. Aquela vontade do eu, típica do romantismo, da disciplina e do liberalismo do séc. XIX e parte do XX, gagueja, perde força e pode tornar-se frágil de um modo também interessante nas personagens de Beckett (e em nós). Na travessia dos dois movimentos, no jogo das modalidades passiva e ativa, niilismo passivo e ativo, instalam-se as forças do contemporâneo antenadas pelo work in regressbeckettiano. Com elas, acompanhamos o crepúsculo do homem diagnosticado por Nietzsche. Como disse antes, no contemporâneo somos muito mais um corpo, divíduos, nas palavras de Deleuze, isto é, amostras, cifras, fluxos, signos, diferenças. No século XXI, o niilismo passivo aumenta sua força. Paradoxalmente, é o aumento de uma certa fraqueza que tem uma força. Esse esboroamento do homem, do niilismo reativo, entendido como homem altamente individualizado e interiorizado, nunca foi lamentado por Nietzsche e Deleuze, e muito menos tratado como um triunfo. Nestas passagens, cujos sinais indicam a possibilidade de um quarto niilismo, um niilismo ativo, é imprescindível a aguda sobriedade dos escritos de Beckett. O niilismo passivo pode se articular no contemporâneo com uma espécie de afundamento. É o enfraquecimento dos fundamentos que também pode permitir um niilismo ativo e as peças e romances de Beckett já operam para além deles.

Acompanhamos atualmente um ocaso dos valores superiores e da aposta no corpo individual como lugar da unidade do ser, a própria sociabilidade rende-se à biologia e mais precisamente à biologia molecular. Este é, talvez, um dos sentidos do molecular e das disjunções em que Beckett inscreve seus personagens e os vários acontecimentos que lhes sobrevêm, neles: tudo se divide, mas em si mesmos, diz Deleuze.

Em várias obras Beckett interfere no jogo do contemporâneo. Nas peças para televisão ele também apresentou suas armas para a culminação do niilismo passivo, jogo de um fim e fim de uma antiga partida. Na peça Quad(Beckett, 1992, p.19) ele se movimenta na chave do dividual e do finito-ilimitado, em que “um número finito de componentes produz uma diversidade praticamente ilimitada de combinações”(Deleuze, 1988b, p. 141). Contemporaneamente, é nesta chave que os componentes genéticos, um corpo e a vida operam e são apresentados.

Nesse momento, a vida, como em alguns escritos de Beckett, pode parecer um filme sem clímax, em que os clichês aparecem como clichês, e aí, talvez, nos permitam reagir menos, com menor prontidão e automatismo. Certos automatismos vão se corrompendo, estão trincados em Beckett, em seus personagens. Neles não há esperança, eles passam pelo grande cansaço do niilismo passivo, mas nele não se detêm demasiadamente, vão de um nada de vontade a um estranho e inocente desinteresse que poderíamos chamar de escrupuloso, e têm em comum o fato de terem visto algo que excedia os dados da situação (Deleuze, 1988, p. 217-18). É a possibilidade de um ponto de viragem. Do nada mais é possível ao tudo é possível, eis um salto ínfimo e decisivo, mas sobretudo reversível e incerto (Pelbart, 2009, p.33), é o pathos dos personagens beckettianos.Eles não chegam a saber o que todo mundo sabe e negam discretamente o que se julga ser reconhecido por todo mundo. É a possibilidade de um niilismo ativo, que diz sim e que nada supõe ou espera, um niilismo que envolve a invenção, o intensivo e ele enreda, talvez, paradoxalmente a “perda” da capacidade de reunir o ser e uma nova formação histórica.

 

Referências bibliográficas

Beckett, Samuel. O Inominável. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

Beckett, Samuel. Fim de Partida. São Paulo. Editora Cosac e Naify, 2002.

Beckett, Samuel. Novelas e Textos para nada. Lisboa. Editora Assírio e Alvim. 2006.

Nietzsche, Friedrich. Vontade de Potência, Rio de Janeiro: Contra Ponto, 2008.

Deleuze, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988 a.

Deleuze, Gilles. “Sobre a morte do homem e o super-homem”In. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988 b.

Deleuze, Gilles. L’épuisé, que se segue a Quad et autres pièces pour la télévision, de Samuel Beckett. Paris: Minuit, 1992.

 

Pelbart, Peter Pal. “Imagens do (nosso) tempo”. In: Furtado, Beatriz (org). Imagem Contemporânea. Vol. II. São Paulo. Editora Hedra. 2009.

 

 

 

 

 

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Absolutamente, Precisamente! A forma como objeto-figura, (apoiada por e) desencadeando gestos-sequência e ações-código na prática como pesquisa artística de Julia Spínola

Tradução: Milena Durante

Revisão: Clarissa Diniz

Na definição clássica da palavra forma, seu significado refere-se à aparência ou à configuração de um objeto. A forma influencia os sentidos e a percepção. Mas quais são a relação e a diferença, no nível da forma, entre uma observação da realidade (partículas/fragmentos) como percepção e  imaginação de algumas-coisas que podem ou não (vir a) ser objetos,  uma pesquisa prático-artística como processo (trabalho?), a criação de uma ‘imagem’ (trabalho?) e a percepção de uma imagem?

Uma forma é percebida, experimentada, e pode ser compreendida como precisa e sensível quando existe uma instabilidade no nível de sua imagem. Essa instabilidade não é a contradição de seu estado de equilíbrio, nem uma inversão da estabilidade, nem mesmo um equilíbrio estéril. Ela implica que nem a criação de uma imagem, de um trabalho de arte, nem sua percepção é uma completa representação/apresentação de uma realidade (fragmentos) compreendida como objeto(s) , mas denota uma mudança capaz de desencadear visões, experiências e pensamentos. A instabilidade da imagem poderia ser compreendida como a criação de um espaço-tempo através do qual detalhes específicos podem ser percebidos como se fossem objetos. No nível da própria imagem, a definição desse aspecto se posiciona no ponto entre: a) uma pesquisa artística e de imagens que está em processo e seu diálogo com um espaço físico específico, com um período de tempo específico – essa é a parte realística ou de apresentação/representação da  imagem (= tempo-espaço) – e b) um excedente criativo/abstrato, uma espécie de sugestão imaginária, que é a criação de um espaço e tempo (= espaço-tempo) específicos. O espaço não deve ser aqui compreendido em um sentido arquitetônico, mental, medial ou estético, mas no sentido ‘artístico’, ainda que, por hora, esse sentido lhe faça perceber, experimentar ou pensar algo de outra ordem. É impossível construir estratégias para (re)produzir esse espaço-tempo criativo/imaginário em um trabalho de arte e em relação à sua percepção. A parte sugestiva/imaginária da imagem funciona como um disparador para que se veja, pense ou imagine fragmentos específicos da realidade de maneira diferente, de forma ainda mais clara ou precisa, no nível da percepção. É como se aspectos, elementos ou dimensões do trabalho de arte estivessem dialogando ‘ao vivo’ com a realidade, em frente ao observador, como se o artista abrisse algumas portas de percepção da imagem, de um trabalho de arte, e obtivesse através de seu universo, uma oportunidade para perceber alguma(s) coisa(s) de maneira diferente no momento específico do tempo em que o trabalho é exibido (e algum tempo depois). Esse espaço-tempo é “impossível” de ser traduzido em interpretações culturais ou da história (da arte). Também no caso de um artista que tivesse escrito muito sobre seu próprio trabalho, isso não implicaria automaticamente que, mesmo se seus escritos fossem projetados sobre sua produção, teríamos como vê-la ou pensá-la novamente a partir da dimensão de seu autor . O que também não quer dizer que não haja nada de diferente para se ver em um trabalho após um longo período de tempo. Os artistas são conscientes desse conhecimento específico sugerido tanto por seu trabalho quanto pela percepção que se faz dele, por isso a importância daquilo que é experimentado e/ou pensado pelos artistas não acontece como tradução de um determinado aspecto criativo em apresentação/representação, posto que, ademais, esse conhecimento já seria um passado ou futuro impossíveis para o espectador.

Esse tipo de experiência pode se dar de maneira diferente em relação àquele que observa e àquele que cria, apesar de a observação e a percepção possuírem certos níveis de contato. Um fragmento de realidade e imaginação pode repentinamente tornar-se mais inspirador através do espaço e do tempo criados por determinada imagem, por um trabalho de arte. Essa passagem da experiência e da perceçpão ao pensamento não  pode ser completamente situado “na” imagem em si, nem pode ser localizada “em” sua percepção – que, por sua vez, também não funciona como  projeção integral da  opinião/ideia do espectador sobre uma tela (branca). O processo de alcançar maior discernimento a respeito de um aspecto particular da realidade, bem como seu encontro com a imaginação, podem ser percebidos como precisos, no sentido da criação e/ou percepção de uma forma. O que também implica que a “imagem” nunca está completamente desconectada da pesquisa artística de onde surgiu nem da observação de realidade-fragmentos que um artista faz. Essa precisão específica não pode ser ‘objetivamente’ medida em uma imagem; nem pode ser localizada de forma completamente subjetiva no nível da percepção (ela não é, por exemplo, uma interpretação de uma representação). Essa dimensão de precisão como espaço desencadeado pela forma de uma imagem, que pode vir a desencadear a experiência de uma percepção cuidadosa ou esclarecedora, não é assegurada nem pode ser garantida. Apesar de parecer simples, não é fácil criar um trabalho que desencadeie a experiência de um ‘pensamento preciso’. Se uma determinada forma pode ser pensada como forma artística, é mais fácil lidar com a ‘necessidade’ de um espaço imaginário relacionado à observação/percepção de realidade-fragmentos e então trabalhá-los em um processo criativo de pesquisa artística. Algo similar pode ser descoberto no nível de sua percepção, na intenção de lidar com a percepção de modo mais aprofundado. Para tanto, serão necessários observadores críticos, perceptivos, sensíveis e sensatos. Pode-se dizer que uma representação de algo como ‘esse é o ponto’ na imagem não se dê necessariamente no ponto de encontro/concentração que torna algo mais ou menos ‘preciso’. Nesse sentido – ainda que se compreenda a precisão como inacreditável – ainda lida-se com ‘ela’ por ter sido – consciente ou inconscientemente – utilizada como pano de fundo para uma ação específica e para uma produção de forma(to) ou tema. Mesmo que uma prática como a pesquisa artística nunca possa ser objetivamente ‘explicada’ – devido a sua necessidade de estar entre forma e imagem, realidade e imaginação e, mesmo que uma prática artística como pesquisa possa ser facilmente projetada naquilo que ela não é –, acredito e enfatizo que tanto a arte contemporânea quanto sua percepção demandam uma necessidade que vai além da necessidade subjetiva de um artista, de um universo da arte e de um observador/ouvinte. Penso que a criação de um espaço-imaginário/abstrato, como um dom ou uma oferta, não pode acontecer em outro contexto senão naquele da arte contemporânea. A criação desse espaço também desencadeia uma resposta que será devolvida. Assim como canta Sandro Perri, I can’tfillimpossiblespaces [Não posso preencher espaços impossíveis](2011)[1] PERRI, Sandro. Impossible Spaces, Trapeze Music, Ontario Arts Council, 2007-2011., nada disso implica que certas coisas não possam mudar ou ser mudadas. Implica, por outro lado, que algum tipo de espaço precisa ser criado e não pode ser preenchido como um formato ou tema, por exemplo. Não estamos falando de um espaço etilista nem de um espaço populista (cultural).

Após um curto período pintando pequenos formatos, a artista Julia Spínola (1979, SP) começou inscrevendo e combinando formas geométricas, detalhes fotográficos e materiais como tinta, lápis e fita adesiva em seus desenhos(colagem). Enquanto os combina, ela o faz de acordo com as leis da física (peso, gravidade, etc.). Ao mesmo tempo, inscreve observações anônimas sobre a dinâmica do movimento em espaços públicos (especialmente situações, ações, posições, códigos, distâncias, etc.) em seu corpo, que produz ‘o gesto’ pelo qual uma série particular de trabalhos será criada. Examinando, em especial, os gestos e códigos que conectam uma ação à seguinte, Julia Spínola afirma:

 

No ato de observar, extraio alguns detalhes de todo o conjunto. Esses detalhes estão bastante relacionados a atitudes e situações dos corpos das pessoas em relação ao espaço e em relação a outros corpos. É através da observação e do detalhe que posso estabelecer uma ligação específica e emocional com anônimos. A partir dessa observação internalizo um gesto, às vezes repetindo um simples movimento, como numa performance para mim mesma, sintetizando um gesto que será então exercido no plano do papel.

 

 

A observação que um artista faz de seu processo de pesquisa pode ser analisada através de um olhar físico, mecânico e relacional. Spínola coloca seu corpo em relação a outros corpos para ajudá-la na obtenção de um eixo de movimento à medida em que diferentes linhas perspectivas partem de suas observações, linhas essas que são internalizadas através de gestos – como infecções poéticas da mão – e trazidas de volta para seu trabalho. No ambiente privado de seu ateliê, performa esses gestos que não pertencem a sua experiência pessoal. O corpo de Spínola serve aqui como testemunha, como instrumento de pesquisa analítica e como um tipo de máquina de criação e escrita completamente comprometido com o trabalho, considerando uma série invisível de códigos e gestos memorizados através do corpo. Depois da pesquisa, do estudo e da realização de performances nesse mesmo ambiente privado do ateliê, ela experimenta esses gestos, ações, códigos e posições. Um desses experimentos toma a invenção/criação de um gesto a partir de elementos do intervalo ou da sequência que se dá entre duas ações, entre dois sistemas, dois códigos ou dois gestos relacionados a situações específicas da realidade e do ato de falar e escrever . Tal “gesto-sequência” específico poderia ser chamado de objeto-figura rítmico, que ela posteriormente investe na atmosfera pública e no mundo da arte contemporânea e, recentemente, insere também como esculturas públicas nas ruas. Esse “gesto-sequência” artístico que pode ser compreendido como uma “ação-código”, se injetado no espaço público, e pode ser chamado de nova forma de dar/receber uma observação, conhecimentos e, ainda, pode ser compreendido em termos de nano-comunicação. Estão imaginariamente posicionados entre duas ações, movimentos, sistemas, códigos para criar um mais físico, diferenciador e relacional. Um gesto-sequência e uma ação-código não precisam ser interpretados como uma ação politicamente (in)correta, nem como uma ação que produz a repetição de uma forma. Também não são psicologia ou arquitetura. Uma ação-código e uma ação-gesto estão, por um lado, ainda conectados ao corpo e, por outro, são mais um objeto que uma ‘coisa’. O foco de Spínola no ritmo de seus objetos-figura não está ligado ao desejo tradicional de harmonia e beleza – no sentido de um ‘estado de espírito’ mental, cósmico, espiritual. Spínola cria pequenos desenhos-colagem, concentrados e frágeis. A precisão e sutileza empregadas por ela para afinar ou sintonizar as colagens em relação às partes pintadas e desenhadas denotam hipersensibilidade e profunda pesquisa artística, que incluem mudanças e saltos que se tornam concretos no sentido de se tornarem objetos-figura.

Em 2010, Spínola criou dois trabalhos de vídeo em loop cujo foco era o aparecimento/desaparecimento do objeto através do movimento de uma máquina giratória e o efeito de espelhamento de uma fonte de luz. Em 2012 ela retorna à pintura, dessa vez utilizando papel cartão. Desde então, também cria tipos específicos de performances particulares e faz esculturas nas ruas, ou esculturas-rua, que fotografa como documentos-pesquisa. Não é que o meio seja a massagem/mensagem, nem que a ação se torne forma e nem mesmo que a intermedialidade em si produza uma forma-conteúdo específica. No caso dessa artista, é o gesto-sequência, como ação-código, que realiza um objeto-figura. Abstrato-realismo, um conceito que desenvolvi para lidar com parte da arte contemporânea (p.e.: Bracha L. Ettinger, JoëlleTuerlinckx, Matt Mullican, AdriaanVerwée, Adriano Costa, Laurent Dupont-Garitte e outros) indica que a própria imagem evidencia uma relação de diferenciação e relacionamento entre uma pesquisa artística baseada na observação, no processo e na experimentação com realidades-fragmento de diferentes tipos e um excedente cambiante criativo/imaginário que não é representação/apresentação nem uma transformação da (assim chamada) etapa inicial da pesquisa artística. O abstrato-realismo de Julia Spínola poderia ser chamado de objeto-figura, tanto apoiado por gestos-sequência e ações-código quanto desencadeando-os.

Em abril de 2008, em Madri, eu me apaixonei por um trabalho de arte de Julia Spínola, uma colagem com pedaços de papel cartão[2] Harder, better, slower, stronger! Simpósio Internacional de curadores organizado por  29Enchufes-Madrid, SMAK-Ghent em Matadero-Madri, 11-13 de abril de 2008.. Parecia um relógio de sol mas não era exatamente isso. Parecia uma figura geométrica, mas também não era isso. Parecia um diagrama matemático, o que também não era. Seria mais do que apenas uma forma abstrata, uma figura geométrica? Experimentei-a como uma forma precisa de lidar com a realidade. Pedaços de papel cartão foram cortados e colados em um pedaço de papel A4. O papel estava amassado e até um pouco sujo. Essa imagem não parecia um estudo mas, sim, a materialização clara de uma pensamento experimentado. Por que esse trabalho se mostrava e ainda se mostra de forma tão precisa para mim? (imagem 1). E por que essa precisão é capaz de desencadear algo de forma diferente em certo período de tempo – um pouco mais do que quatro anos atualmente – mesmo se tanto a distância entre forma e conteúdo na figura contida na imagem quanto minha percepção permanecem exatamente as mesmas? Gostaria de descrever essa imagem ao leitor como um exercício de formar um objeto a partir do ponto de vista do gesto-sequência e da ação-código. Mudanças e saltos que se dão entre esses espaços. Ação e objeto alternam-se entre distância e relação. Todos esses fatores também influenciam o aspecto do tempo de forma específica.

Não existe diferenciação entre figura e fundo nessa colagem. Há apenas uma figura em um fragmento de papel sujo (é assim que eu me lembro do papel sem título que vi em 2008). Uma linha vertical e outra horizontal se tocam Intothe point[No ponto] em que se encontram. Quanto mais próximas desse ponto de encontro, mais finas as duas linhas se tornam. Do outro lado, essas duas linhas se tornaram mais ou menos triangulares, como dois planos de três pontas. Essas linhas também parecem ser duas setas, uma horizontal e outra vertical que se unem em um ponto ou alvo que parece ser o invisível visível. Mas seria mesmo um ponto de fuga? O foco do próprio desenho-colagem não é esse ponto de encontro específico. O desenho-colagem tem um foco mas ele, em si, não é o ponto de concentração do desenho: que pode ser visto ao mesmo tempo em que outras partes do desenho são vistas; ele não domina a imagem. Alguns centímetros acima desse ponto de encontro, duas formas retangulares se encostam: uma grande e outra muito pequena, que cruza a linha vertical. Um pedaço de papel preto em forma de trapezoide se apoia nessas duas formas retangulares. Mais precisamente: o trapezoide preto se equilibra sobre as duas formas retangulares deixando um pouco de ar embaixo. O apoio parece ser apenas parcial, não completo, não absoluto. Acima desse encontro três pequenas figuras em forma de seta criam, juntas, metade de um círculo. Parece que um par de compassos foi colocado No ponto desenhando uma linha circular partida, interrompida, composta de três pequenas e diferentes partes, que estão posicionadas nessa estrutura que criam coletivamente, mas também cruzam a linha vertical do diagrama – que não é um diagrama. Parece impossível que essas três diferentes formas sejam capazes de cruzar a linha horizontal embora a linha vertical seja por elas atravessada em muitos diferentes pontos. Essa figura poderia ser chamada de uma forma-conteúdo abstrato-realista que não é formalista, nem apresenta conteúdo simbólico. Essa imagem é um pensamento que foi experimentado, o sentimento de um pensamento –  porém, esse pensamento em si parece impossível de definir, tematizar e até de conceitualizar. O que pode ser experimentado são distâncias diferentes e particulares, e relações específicas. Essa figura é um disparador e sua percepção parece significar que sua forma-conteúdo pode mudar com o tempo. Por outro lado, essa forma-conteúdo não se trata de uma fantasia do observador projetada na imagem. Eu não preencho essa figura com conteúdos específicos, o que faço é lidar com o ritmo dessas três diferentes distâncias que estão relacionadas umas às outras sem representá-las no sentido de usá-las como um formato. Ter escolhido esse trabalho para a descrição não significa que esse desenho seja o único nem o mais importante trabalho de Julia Spínola. Entretanto, ele de fato funciona como um ponto de apoio específico. O trabalho foi feito em 2008 e refeito em 2011. Entre 2008 e 2009 Spínola pesquisava as relações entre gravidade, poder, valor, peso, deslocamento, tensão e outros aspectos das relações de forte interdependência. Isso significa que a diferenciação não pode ser pensada apenas em um nível objetivo, ainda que pesquisada por um artista cujos parâmetros sejam também científicos. Nesse período, os conceitos de tempo e de imaginação não foram mencionados pela artista. A imagem dessa figura específica parece completamente abstrata, mas trabalha de forma diferente de uma figura abstrata (ou diagrama, por exemplo) por conter a possibilidade de se tornar um diálogo análogo com a realidade para desencadear um objeto-figura. E, em sua percepção, essa figura também pode vir a ser tanto um gesto-sequência quanto uma ação-gesto sem funcionar, em qualquer nível, como uma construção (de mudança ou conservação) que tenha sido empurrada ou forçada para a realidade. Ela não é uma representação, nem uma apresentação, e também não é uma transformação (mimética). É uma figura abstrato-realista que mede a distância de uma forma-conteúdo específica. Poderia ser chamada de estrutura. E não era (ainda)  parte de uma ‘série’.

Em 2008, Spínola fez alguns outros desenhos-colagem que em 2009 foram intitulados Geológicos e expostos com esse mesmo título em 2010, além de ter feito, no mesmo período, desenhos com detalhes fotográficos (mas não colagens) que em 2009 foram intitulados The Leftovers [As sobras]. The Leftovers se seguem num gesto similar àquele dos Geológicos mas mostram os limites de um gesto específico em uma escala nano-real. As consequências desses gestos específicos em seu próprio trabalho/trabalhar podem ser descobertas nessa série. O gesto no trabalho de Spínola funciona primeiramente como uma ferramenta que faz do meio sua intermedialidade. Repentinamente, Spínola possui um gesto – uma mão-olho-anônima (cf. escrita automática) – e com/através desse gesto, faz uma série de trabalhos. Entretanto, o gesto não se trata necessariamente de um ângulo, de uma perspectiva, de um ponto de vista, mas, em vez disso, trata-se de uma estratégia que lida com a realidade física e a realidade da relação em um mesmo nível. Nesse espaço-tempo determinado, o abstrato-realismo passa a ser um objeto-figura através de um gesto-sequência que, no espaço público, pode se tornar uma ação-gesto.

 

Em 2008, realizei a curadoria de uma exposição coletiva chamada Trigger [Disparador/Gatilho] com Julia Spínola, AdriaanVerwée, Johan De Wilde e Ariel Schlesinger na galeria TatjanaPieters, em Ghent. Foi a primeira viagem de Spínola à Bélgica. Pedi a ela que trouxesse o referido trabalho descrito nesse texto, bem como os Geológicos e The Leftovers. Em 2008 essas colagens-desenho e desenhos com detalhes fotográficos sem colagem ainda não tinham título. Geológicos, entretanto, já tinha um subtítulo: Strong in Warm [Forte em Calor] (tinta a óleo, fita adesiva e colagem sobre papel, 21 x 29,6 cm, 2008), um desenho em que uma mão toca algo que parece/poderia ser a pele de um animal, um elemento que também pode ser interpretado como um globo, tendo ao seu lado direito uma figura retangular  ‘pendurada/flutuando’ em um ambiente com diferentes marcas de lápis, fita adesiva e tinta; assim como o trabalho Here [Aqui]. Consequencia (tinta a óleo, fita adesiva e colagem sobre papel, 21 x 29,6 cm, 2008) mostra as costas de uma figura masculina parada em frente a um pilar, algumas palavras recortadas de revistas (mencionadas acima, Carmen), além de algumas formas pintadas com as seguintes cores: preto, verde, vermelho e um branco sujo (imagem 2), Loosening [Afrouxamento] (tinta a óleo, fita adesiva e colagem sobre papel, 2008), Response With [Resposta com] (tinta a óleo, fita adesiva e colagem sobre papel, 21 x 29,6 cm, 2008), Landsite [Terreno]. Dura e Landsite. Caress [Carícia] (tinta a óleo, fita adesiva e colagem sobre papel, 21 x 29,6 cm, 2008) mostra algumas mãos, pernas, um camelo (da marca de cigarros) e algumas listras (imagem 3) e Vertigo [Vertigem] (tinta a óleo, fita adesiva e colagem sobre papel, 21 x 29,6 cm) é uma colagem de uma imagem de um carneiro fixada com fita adesiva em uma pintura preta, verde e branca com alguns sutis toques de amarelo  em um dos cantos (imagem 4). The Leftovers foram intituladas em 2008 como Without I [Sem I] (colagem e caneta esferográfica sobre papel, 29,6 x 21 cm, 2008), Without II [Sem II] (colagem sobre papel, 29,6 x 21 cm, 2008), Without III [Sem III] (colagem sobre papel, 29,6 x 21 cm, 2008), Without IV [Sem IV](colagem sobre papel, 29,6 x 21 cm, 2008) e Without V [Sem V] (colagem sobre papel, 29,6 x 21 cm).

The Leftovers são desenhos com detalhes fotográficos que por ela vão sendo movidos na mesa, enquanto trabalha e que, em um certo momento, encontram seu lugar no papel. Por que alguém tem que agir diferentemente para que os detalhes encontrem o lugar que lhes é próprio ? Imediatamente antes do gesto acontecer, há um momento posteriormente descrito por Spínola como ‘discriminação’ – o que demanda uma abordagem hipersensitiva, como resposta a algo, que será feita através da escolha, do ato de escolher e de posteriormente considerar as consequências desse ato. É possível ver a mão como um punho que se combina com duas linhas (imagem 5), os olhos de um lobo, as pernas de dois corpos entrelaçados e assim por diante. O toque com/da mão e com/do olhar parecia ser importante naquele momento. As imagens fotográficas estão tão sutilmente arrumadas em um pedaço de papel (também A4) que é preciso se aproximar bastante para ver alguma coisa.

Quando Spínola chegou a Ghent, ela não havia trazido o exato conjunto de trabalhos de arte que eu havia pedido, descritos nesse texto. Em especial esse trabalho, que havia desencadeado algo importante e agora não estava presente para a exposição Trigger. Os outros desenhos-colagem estavam presentes. Geológicos e The Leftovers foram expostos na mostra da cena contemporânea de arte espanhola Antes Que Todo no CA2M em Mostóles, próximo a Madri em 2010. Eles foram combinados no CA2M com dois novos trabalhos, dois filmes sem som, Lapso Vertical (2010) (imagem 6) e Lapso II (2010) (imagem 7). Em Lapso Vertical, o primeiro filme de Spínola, um loop de 1’29”, a importância do gesto e do espaço entre aquelas mãos/gestos foi explorada em relação à ideia de ‘lapso’ e ‘verticalidade’. A câmera se aproxima das mãos de um homem que está sentado e falando à mesa, suas mãos se movem. É um filme mudo, o que aumenta a importância dos gestos e aumenta ainda mais o vazio entre suas duas mãos (imagem 6). Em Lapso II (2010), um filme em loop de 11’05”, um gravador giratório é transformado em um zootropo através de espelhos e um spot de luz. No meio desse mecanismo é possível perceber o aparecimento e o desparecimento de um objeto. A percepção desse objeto é interrompida pelo ritmo rápido e regular do mecanismo. Nesse trabalho, o observador vê o processo através do qual um objeto se torna uma imagem que aparece e  desaparece (comparação com o filme em loop) (imagem 7). Vale notar que a exposição Antes Que Todo não tinha um tema específico; ela apresentava a cena artística contemporânea espanhola. Manuela Moscoso, uma das curadoras, convidou-me para escrever um ensaio para o catálogo dessa exposição coletiva. Fiquei impressionada com os títulos dos trabalhos que vinham dos diferentes artistas incluídos na exposição que tinham vários pontos em comum e, então, comecei meu ensaio a partir desse aspecto, que estava presente no conceito de ‘borderlinking-in-differentiation‘ [conexões-fronteiriças-em-diferenciação] de Bracha L. Ettinger e em alguns conceitos do livro Ser e tempo de Heidegger. Entretanto, esse ensaio partiu da colagem sem título de Spínola mencionada acima (imagem 1). Fiz menção ao “Desenho sem Título” sem me referir especificamente a sua imagem – pois não estava representada na exposição nem mesmo através de uma descrição – entretanto, o “gesto-sequência” como “objeto-figura” desse desenho específico me pareceu importante para tratar de algo na própria exposição coletiva para o qual eu estava respondendo em meu texto e também como possível ponto de encontro em que Bracha L. Ettinger e Heiddeger poderiam se tocar e, assim, eu poderia retornar a esse ponto, após a própria artista retornar a ele também. Cito aqui um excerto no qual me refiro a esse desenho de Spínola:

 

Julia Spínola: Dibujosin título [Desenho sem Título]; quando a imaginação faz ‘sexo’  partindo de duas (ou mais) direções, de maneira profunda demais para aquela maneira, partindo dos dois (e diferentes) lados, por exemplo: afastados um do outro e profundamente inclinados um na direção do outro, como sugeri nos desenhos e colagens de Spínola – mas quando nenhum dos dois poderia ser pensado como “pura filosofia” ou como “estética impura” – pergunto-me se, nessa ocasião, essa experiência da imaginação poderia ser sentida, experimentada, pensada e conceitualizada sem recair na síntese de Hegel?[3] VAN LOO, Sofie. ‘Home(lessness)/(Des)hogar(idad)’. In:[ex.cat. BeforeEverything/ Antes que todo, curators: AimarArriola e Manuela Moscoso, CA2M, Madrid, 2010, p. 66.]

            Nesse contexto, também escrevi:

 

A partir do momento em que tentamos ‘traduzir’ o complexo matricial afetivo-não-cognitivo em logos é que ‘precisamente’ desaparece o conhecimento afetivo do campo matricial, um conhecimento que Heidegger não pode imaginar ser ‘conhecimento’. Mas depois de ler Heidegger, torna-se claro que em termos de logos, também há espaço para silêncio, para um logos como escuta que poderia se abrir em direção ao ‘matricial’ que nesse sentido não é apenas silencioso mas aquele cujas suas ressonâncias são desencadeadas para que se pronuncie.[4] Id, p. 70.

Robert: “Elle est sortie?” [tradução: Ela saiu?]

Paulette: “Oui, acheter un jaune, un rouge et quelques bleus pour achever son tableau”[5] DE BRUGEROLLE, Marie. ‘Who’s that guy? Portrait de l’artisteencryptographe’. In: Guy De Cointet, JRP/ RingierKunstverlag AG-Air de Paris, 2011, p. 80-81: Excerto de páginas do script das performances De toutes les couleurs, 1981 (excerto: 29.7 x 21 cm.).

[tradução: Sim, para comprar um amarelo, um vermelho e alguns azuis e terminar sua pintura]

Guy De Cointet

 

Em abril de 2011, Julia Spínola escreveu-me:

 

Depois do modo “psicose” de pensar o espaço do ouvido como uma espécie de vazio (de sua série de cinco desenhos intitulada OrejaVaciamiento, 2011, imagem 8), fiz um movimento com minha cabeça que envolvia uma rota que ia da orelha ao pé. Quando estava tentando recriar essa rota no meu corpo, toquei minha orelha e então preciseiparar no quadril para seguir em direção ao pé. No processo fiquei consciente de que estava tentando colocar de volta a figura em minha vida, a ideia de figura e pensando em sentimentos sobre o centro do papel como um estômago (de sua série de sete desenhos com guache e colagem, intitulada Oreja. Cadera. Pie, 2011).[6] Correspondência eletrônica entre Julia Spínola e a autora, 12 de abril de 2011.

 

O movimento das mãos, presente no vídeo, retornou nessas duas séries de desenhos mas de forma diferente. OrejaVaciamiento partiu da relação das mãos de alguém andando e do espaço que foi criado sob as mãos durante esse movimento. Spínola chegou à conclusão de que esse tipo de espaço específico é ‘esvaziado’ através do movimento no ritmo de caminhar, passo a passo. Essa intuição confluindo em (direção a) um ponto de concentração corre em paralelo ao mecanismo do próprio ouvido. Pensar o ouvido como uma forma pura que se esvazia, ajudou-a a encontrar (nela mesma) também o gesto pelo qual formas são esvaziadas no papel, em um tipo de movimento de forças contraditórias/opostas. Esse espaço específico de esvaziamento centrífugo correspondendo ao (ato de) desenhar pode criar uma mão que pende de corpo em movimento, de uma pessoa caminhando. Na série de sete desenhos, Oreja. Cadera. Pie (2011) ela pesquisa a relação entre o ouvido, a cabeça, o quadril e os pés. Através de sua pesquisa artística de duas séries de trabalhos ela parece sugerir que a diferença conceitual está especialmente relacionada a uma pequena distância de tempo entre ouvido-mão-cabeça-pensamento/criação e ouvido-(mão)-pés-pensamento/criação e movimento. Nos sete desenhos de Oreja. Cadera. Pie (2011) ela usou as orelhas e os pés como pontos cardeais, como um rascunho de uma linha imaginária que, partindo de um ponto ao outro, cria (em parte) uma relação similar àquela do ponto de partida inicial (assim como no efeito espelhado já mencionado). Spínola esclareceu que, enquanto internalizava a experiência da distância percorrida e ensaiada por essa linha imaginária, o gesto de tocar a orelha com a mão e em seguida tocar o pé acontece facilmente, pois de modo involuntário a mão continua seguindo a orelha quando a pessoa se senta. Mas o que exatamente acontece no nível dos desenhos OrejaVaciamiento (2011) (imagem 8)? Sobre o papel, muitos pontos pretos de tinta foram soprados como pó de estrelas. Algumas dobras sulcaram o papel formando diferentes quadrados e partes dele estão coladas umas às outras  – em vez de novos pedaços de papeis terem sido colados – dando forma à superfície do desenho. Algumas linhas pretas, listras e curvas fechadas estão entrelaçadas em um diálogo análogo com linhas ocre-amareladas, luas crescentes, quarto crescentes, quarto minguantes e minguantes como se fossem círculos mordidos e triângulos que parecem ser sobras de formas retangulares. Há um pouco de tinta avermelhada e amarelo-sujo no fundo – ou seria na frente? – assim como na pintura negra de Goya O Cão [El Perro, El Perro Semihundido, ac. 1819-1823]. No desenho-colagem Oreja. Cadera. Pie (I) boa parte dos pontos de tinta preta ainda aparecem, assemelhando-se a uma planta baixa com pessoas se movendo. Também é possível notar interações com a escolha de um sutil amarelo e polígonos de cor de concreto. Em Oreja. Cadera. Pie (II) alguns pontos pretos ainda estão presentes mas uma linha vertical grossa assume o controle e cruza diversas listras horizontais. O desenho não tem uma superfície mas é formado pela superfície de diferentes pedaços de papel colados juntos. Em Oreja. Cadera. Pie (III), o desenho se complexifica: muitas pequenas formas retangulares com pontos pintados são a superfície e linhas em diferentes direções tentam se manter juntas de forma bastante dominante. [7] OrejaNaufragio. Mauro Cerquiera/ Julia Spínola (curador: Pablo Flórez), Galéria Heinrich Ehrhardt, Madri, 2 de abril -14 de maio de 2011. É como se ela não quisesse desenhar a realidade em um pedaço de papel mas quisesse objeto-figurar realidade-fragmentos. Em Oreja. Cadera. Pie (IV) um sutil ponto de tinta azul e quatro retângulos de cor de cimento, além de algumas formas de diamante, criam uma figura imaginária que parece estar em relação com pontos dentro de suas fronteiras imaginárias, mesmo que essas fronteiras não estejam claras no desenho e mesmo que ainda existam pontos fora dessas linhas imaginárias. Todas as listras desparecem nesse momento. Elas são apenas dobras e algumas linhas ‘perdidas’ que encontraram para si um lugar (imagem 9). Em Oreja. Cadera. Pie (V) algumas linhas verticais e horizontais parecem sugerir uma espécie de estrutura por debaixo delas, uma estrutura que é parte visível e parte invisível – devido aos diferentes retângulos de papel colados na estrutura inferior. Todos os pontos parecem ‘acontecer’ no fundo, exceto alguns ‘gordos’ bem na frente. Oreja. Cadera. Pie (VI) parece ser, por sua vez, uma repetição de Oreja. Cadera. Pie (IV) mas com pontos de pó de estrela, sem a cor azul, com uma dobra no canto esquerdo, uma forma de V no canto superior, uma linha em forma de gancho do lado direito e uma linha reta chanfrada embaixo.

Assim, o desenho-colagem sem título tornou-se a imagem do convite da exposição individual Intothe Point (Vibration) na galeria TatjanaPieters em Ghent (de 15 de maio a 20 de junho de 2011). E seus desenhos-colagem foram refeitos em 2011 e intitulados: LenghtDrawing [Desenho Comprimento] (2011), fita adesiva e cola sobre papel (29,6 x 21 cm). Os dois filmes em loop (2010) da CA2M foram mostrados em conjunto com doze LenghtDrawings em sua exposição individual Intothe Point (Vibration) [Vibração] (2011). Na verdade, havia treze desenhos-colagem mas LenghtDrawing foi exposto ‘sozinho’ do lado de fora de seu videoespaço (imagem 10). Nos LenghtDrawingso que se tornou mais importante foi o ritmo das diferentes linhas horizontais coladas com fita adesiva no papel. Cada desenho reagiu de forma diferente à existência da linha vertical, que foi colocada ela própria em um lugar diferente em cada desenho. Em outras palavras, Intothe Point (Vibration) parece ter desencadeado doze desenhos rítmicos com fita adesiva, mas novamente um desenho em especial mantinha certa distância dos demais.Esses Lenght Drawings não eram apenas mais rítmicos que aqueles da série anterior com linhas e pontos mas  também pareciam mais estruturados. No mesmo ano, Spínola criou uma série de desenhos com fita adesiva sobre papel, intitulada Circular. Punto y caída[Circular. Ponto e queda]. É uma série de desenhos que pode ser compreendida como o estudo dos possíveis movimentos de um objeto leve enquanto cai. Spínola relaciona a figura, o corpo humano em movimento, a linha vertical e a linha como espaço mas tendo, cada vez mais, movimento do objeto como foco principal.

No tipo de revolução acontecida entre 2011 e 2012 na pesquisa artística em processo de Spínola. Revolução essa que foi introduzida por alguns trabalhos feitos com lixa e guache sobre papel cartão e intitulados Figura/Frase (imagem 11). A relação entre ‘a figura’ e ‘a frase’ (ouvir, escrever, repetir, comer) com uma fascinante parada na letra ‘R’ do alfabeto, desencadeia o primeiro objeto-figura escultural, aquele com arame e papel cartão intitulada R (objet 1) (2012). Sobre essas pinturas Figura/Frase com lixa e guache, Julia Spínola escreveu:

 

Cada uma das linhas verticais tracejadas deveria ser entendida como uma figura humana. Nesse caso, a figura é encarada de duas formas. Por um lado, ela forma o sentimento do ato de falar através do corpo, assim como a vibração dos sons à medida que as palavras passam por ele: o centro está, então, em movimento. Além disso, o sistema de construção dos três papeis-cartão correspondem aos ritmos da escrita convencional, nesse caso uma escrita vertical. […] Nos testes preliminares para essa série, desenhei letras, especialmente a letra R, associando-as à figura humana, por exemplo um R que se comporta de acordo com relações nervo, ou incluindo um centro, uma barriga que funciona como metade da letra, e um ponto de ação ou estruturação. (Incluo fotos dos rascunhos, a primeira evidência para uma escultura-em-processo de ferro forjado. A altura de fato do R desenhado na parede corresponde a minha, 1,62 m). Ao mesmo tempo, tirei a foto que chamei de Frase e que é inseparável dessa série. É uma imagem de duas mãos da mesma pessoa, uma delas está SOBRE um objeto REDONDO que força a mão a tomar sua FORMA. A mão direita está ABERTA sob uma corrente de água que CORRE POR seus dedos. É a imagem de um momento no qual duas sensações materiais contraditórias ocorrem simultaneamente por todo o corpo e se encontram em um centro que agora está se movendo. A linguagem ou a frase é movimento, passando de uma coisa a outra, uma transformação que acontece e é perdida no momento. Em certo sentido pode ser um pouco bobo dizer mas quando se começa uma frase, quando alguém ousa começar uma frase, em primeiro lugar se pega alguma coisa, no começo da frase que então se solta, que se deixa ir quando a frase termina. […] Acredito que exista uma relação na construção de uma frase e um movimento que acontece em dois tempos, em dois golpes… mão fechada (pãm) mão aberta (pãm). Em relação ao processo, o intuito não era representar mas fazer novamente, pintar ou construir a imagem em dois movimentos ou dois golpes. Quase como falar. Eu também queria experimentar o momento, a imagem final que se uniria a tudo. Foi tão importante o momento de começar cada um dos papeis-cartão que fui obrigada a preparar uma estrutura ou sistema anteriormente, como se eu praticasse um esporte, fizesse um movimento para conseguir alguma outra coisa e não tivesse opção a não ser entre dois ou três gestos, rápido. E penso, algo que me ocorreu agora, que há uma relação-espelho com as três pinturas, elas todas são figuras. Eu sou eu-fazendo-as, não em um sentido pessoal mas em um nível material.[8] Correspondência eletrônica entre Julia Spínola e a autora, 26 de janeiro de 2012.

 

Não seria exatamente esse ‘eu-fazendo’ que teria se tornado um tabu tão grande nas primeiras décadas do século XXI, cujo foco se concentra tanto no (existir muito menos/muito mais) ‘ego’ do ser humano? Talvez a partir do momento em que o ego (como uma falsa auto-imagem) assume o controle como um tipo de (identidade) ação, devemos então nos esquecer do eu-fazendo-forma. Se existe uma eu-forma, pode existir também um modo (objeto-)físico e relacional (aéreo, cf. Ettinger) de considerar coisas em alguns corpos e objetos.

No período entre maio e julho de 2012, Spínola realizou algumas performances-particulares e um evento-leitura público chamado de Charla 1 que aconteceu em seu ateliê/sala de estar em Madri. O projeto se intitulava A KASSEN e foi realizado em colaboração com Christian Bretton-Meyer, Morten Steen Hebsgaard, SørenPetersen e Tommy Petersen. Essas performances privadas sem público feitas por Spínola parecem ser a formação e a visualização de uma linha imaginária inspirada por alguma coisa que a artista experimentou ou ouviu em alguma rua à noite. Ela escreve:

 

Um bêbado está na rua, ele fala muito alto. É difícil entender qualquer coisa que diga. Às vezes ele cobre sua boca com a mão mas continua falando, repetindo essa sequência por um tempo. Sua voz se torna um som rítmico que, para mim, parece o começo de um outro tipo de comunicação.

 

Através da performance privada de um “gesto-sequência” Spínola fez o primeiro rascunho de um novo tipo de escultura: a escultura-figura que poderia ser instalada como “ação-código” no espaço público. Essa performance privada (também fotografada como documento) mostra diferentes pares de sapatos, jornais, alguns quiuís, roupas e batatas. A linha imaginária torna-se um conjunto ou constelação tridimensional na qual ela integrou os ladrilhos de sua sala. A artista/performer intervém nesses diferentes pares de sapatos, adentrando-os e criando uma agrupamento deles com as roupas, quiuís, jornais e batatas; uma constelação que procura encontrar a mais precisa posição de forma que um andar, um falar, uma queda de objeto-figura possam criar espaço-tempo. A queda da figura que caminha e a queda do objeto se unem, nesse trabalho, em certo lugar de sua sala de estar que funciona como uma superfície, como o papel/página de um desenho. Pode-se experimentar um certo conflito entre a linguagem e o material resistente do objeto. Entretanto, o ato de combinar os objetos nessa figura-frase-linha poderia ser comparado a estratégias linguísticas, como por exemplo analogia, metáfora e estruturas hiperbólicas. Seu lugar na linha vertical é influenciado por características físicas específicas e relacionadas às capacidades de cada objeto em particular. Esses objetos-figura como frase/traç(ad)o-objetos poderiam ser percebidos como um ensaio sobre o sapato ao mesmo tempo em que uma tensão entre a imagem e a sugestão do texto escrito pode ser notada. Através dessa escultura performativa, Spínola conecta ‘o fim da frase’ com ‘a queda no chão’ que um objeto faz. Em suas quatro esculturas-rua Frase (objeto) Vertical HozirontalCalle [Frase (objeto) Vertical Horizontal Rua] (2012) ela apresenta uma composição com barras de metal e blocos de concreto (imagem 12). Os blocos de concreto estão ligados ao topo, ao meio e no fim das barras de metal. Essas formas estão dispostas apontando para diferentes direções ou de forma vertical. Ainda que as estruturas pareçam um tanto pesadas, o conjunto do trabalho tem um ar leve e brincalhão. A instalação temporária, ou melhor, o agrupamento desses trabalhos esculturais no espaço público sempre aconteceu sem um público específico – exceto passantes ocasionais. O trabalho foi realizado em quatro ambientes diferentes. A escultura funciona como uma série de desenhos dispostos na calçada de uma rua, com a grade fazendo parte da composição. Na documentação fotográfica o trabalho parece um obstáculo vívido, humorístico, como os restos de uma composição performativa na calçada. No experimento escultural seguinte, a performance privada ganha repercussão. Gestos-sequência, ações-código e objetos-figura são combinados em uma constelação escultural tridimensional seguindo a estrutura de uma linha em zigue-zague e cuja linguagem é o diálogo análogo. Na escultura-calçada Frase (objeto). Boca. Linea[Frase (objeto). Boca. Linha] (2012) (image 13) uma linha reta cruza o padrão de linhas em zigue-zague da calçada. Diferentes objetos, dois pares de sapatos (um branco e outro marrom), um pequeno jarro com arroz e um grande jarro cheio de terra estão em composição com uma xícara de café. Esse desenho-colagem escultural feito de café continua e cruza a grade da calçada. Parece refletir no gesto-sequência e ação-código de lidar com dois diferentes gestos acontecendo ao mesmo tempo, que está ecoa no derramamento do conteúdo de dois diferentes jarros, principalmente arroz e terra. Algumas marcas coloridas de vermelho e azul também se integram ao desenho de Spínola. A terceira escultura-calçada Frase Objeto Cuerda [Frase Objeto Corda] (2012), uma composição de cinco variações, é mais abstrata mas ainda muito rítmica e até mesmo musical. Cada corda está pintada de diferentes cores como preto, azul, verde, marrom e vermelho. Estão combinadas em um agrupamento que funciona como uma passagem sendo que, de cada um dos lados, há uma parede de concreto construída de material diferente. O chão se parece com primeiro plano de tijolos de lego (imagem 14). Na recente exposição individual de Julia Spínola Habla Se Tapa La Boca/The Drum in theMouth [O Tambor na Boca] (2013, galeriaTatjanaPieters, Ghent) a ação-código se apoia em alguns desenhos em movimento pintados na superfície de cor de concreto, como se a própria rua escorregasse para dentro dos desenhos. Cada vez mais os objetos-figura funcionam como a ação-código d’O Tambor na Boca que não quer se fixar nas palavras escritas de um manifesto (pseudo-)político. Talvez pelo fato de Spínola ter criado essas esculturas performativas nas calçadas de Madri, a cidade onde vive e trabalha, essa capital em crise social e econômica, venha a sugestão de que de que esse seria o momento para se criar gestos-sequência e usar ações-código. Talvez essa não seja uma ação que cria forma mas um imaginado/imaginário-realismo criando uma forma-conteúdo precisa como possíveis e diferentes objetos-figura realizados. No nível da forma, objetos-figura – tanto apoiados por gestos-sequência quanto desencadeadores deles (pesquisa artística em processo) e de ações-código (o espaço-tempo criativo que desencadeia uma imaginação ativa relacionada às realidades no nível da percepção) – podem ser compreendidos como formas-conteúdo à beira da sutileza e da precisão que lidam com a realidade do ponto de vista da observação, da pesquisa em processo, da experimentação, de algum humor sutil e da criação. Mas que também partem da ideia de que se algo está faltando (ou pode ser experimentado como excessivo) nesse tempo, nessa sociedade – o que sempre tem a ver com espaço (tempo) – por que não imaginarmos, por que não criarmos essa coisa chamada ‘espaço(-tempo)’ nós mesmos com O Tambor na Boca de Julia Spínola como uma nova forma de comunicação?

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Ambiguar [1]

[1] Os parágrafos que se seguem devem ter tido suas primeiras contrações em 2009, numa noite recifense em que, havendo tomado emprestado o livro Arte brasileira hoje (org. Ferreira Gullar), Vitor Cesar e eu lemos juntos o Brasil Diarreia de Oiticica. Ainda que ambos já tivessem lido o famigerado texto, parece-me que foi apenas naquela leitura a dois que incorporamos as inquietações de Hélio: dali em diante, a ambivalência alojou-se entre nós como força propulsora para pensar a vida e, consequentemente, a arte. Considero este texto como uma das camadas dessa conversa que se desdobra infinita e insuficientemente, informada – além da anfibologia tão cara a Vitor Cesar – também pelo duplipensar ativado por Jonathas de Andrade, pela economia do corte que faz mover Pablo Lobato, pelo grau zero narrativo ansiado por Sofia Borges, pela exterioridade imanente da forma experimentada por Cristiano Lenhardt e, especialmente, mediada livre e inventivamente pela filosofia da linguagem de Wittgenstein II e pelo perspectivismo ameríndio tal como colocado por Eduardo Viveiros de Castro.

 

É preciso entender que uma posição crítica implica em inevitáveis ambivalências; estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto às ambivalências, já que valores absolutos tendem a castrar quaisquer dessas liberdades; direi mesmo: pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente; – envelhecer fatalmente; conduzir-se a uma posição conservadora (conformismos; paternalismos; etc.); o que não significa que não se deva optar com firmeza: a dificuldade de uma opção forte é sempre a de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço por pedaço cada problema. Assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão. Eis a questão.

Hélio Oiticica. Brasil diarreia (1973).

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Como não poderia deixar de ser, a “virada linguística” que emancipou a linguagem de sua unívoca vinculação aos referentes[2] Nem tudo o que tem sentido tem referência; não é preciso referir para significar. continua virando. A “desontologização” linguística [3] Não sendo preciso referir-se a algo para significar (gerar/fazer sentido), a linguagem prescinde de uma lógica identitária totalizante (de uma ontologia): palavras podem ter muitas faces, múltiplos significados. instaurada por esforços – tão diversos quanto vizinhos – como os de Duchamp ou de Wittgenstein II parece estar, sobretudo no que concerne à sua socialização, ainda numa primeira dentição. Assim é que, inclusive para nós, predadores do campo simbólico, as consequências da roda de bicicleta duchampiana e da (auto)crítica wittgensteineana ao racionalismo lógico-estrutural se mostram tímidas. É bem possível que nunca vivenciemos a “anarquia ontológica”[4] HakimBayapud Eduardo Viveiros de Castro em Uma boa política é aquela que multiplica os possíveis. In: SZTUTMAN, Renato. Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. p. 241. que através delas se anuncia, “simetrizando”[5]  Cf. Bruno Latour em Jamais fomos modernos – ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. a existência ao depor verdades, princípios, fins. De toda maneira, o abalo que a revolução linguística impôs ao essencialismo, à metafísica e à representação se desdobrou por toda parte, levando a arte do século XX a fervorosamente recriar ideias de criação.

 

Nesse processo, a linguística passa a habitar o campo das análises da linguagem ordinária que, como tal, está posta, sem origens ou finalidades: “a imagem está ; e não contesto sua justeza. Mas o que é o seu emprego?”[6] Ludwig Wittgenstein emInvestigações filosóficas. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1975. p. 134. O uso (“todo signo sozinho parece morto. (…) No uso, ele vive”[7] Idem) – aplicação, emprego – é alçado a protagonista da linguagem e seus jogos, num movimento profanatório que, também na arte, desierarquiza e transforma: “que mais se desejaria criar? tudo já está aqui. (…) criar não é a tarefa do artista. sua tarefa é a de mudar o valor das coisas”[8] Hélio Oiticica em Experimentar o experimental (1972). In: OTICICA FILHO, César (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p. 108.. Assim é que, para Oiticica e tantos outros, criar se torna “dar uma posição” face ao que está posto – “assumir uma posição crítica diante de um fato é propor uma mudança; propor uma mudança é mudar mesmo”[9] Hélio Oiticica em Brasil Diarreia (1973). In: OTICICA FILHO, César (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p. 113.. E, como tal, “implica em inevitáveis ambivalências”.

 

Linguística e politicamente, nessa reviravolta, as ambivalências parecem fazer-se necessárias; aos poucos vão positivando-se. Deixam de ser consideradas como resíduos (“erros”, “falácias”, “confusões”, “efeitos colaterais”) do processo de objetivação para afirmarem-se como território mesmo de qualquer “objetividade” que não poderia, por sua vez, ambicionar-se como irrevogável verdade. Também junto à virada histórico-sociológica da ciência (que passava a compreender suas implicações contextuais)[10] Cf. Thomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas (1962)São Paulo: Perspectiva, 1992. 3ed., esse chacoalho no status da linguagem e do conhecimento vai tornando protagonistas as descoincidências de resultados, discursos e ações: ainda que lentamente, as ambiguidades não apenas deixam de ser marginalizadas como, mais adiante, se tornam ponto de partida para pensar a vida e suas dinâmicas. Pois, para Hélio Oiticica, assumir as “inevitáveis ambivalências” seria produzir uma “posição crítica” na medida em que, sendo o “discurso ideológico aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser (…), [engendrando] uma lógica de identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade”[11] Marilena Chauí em O discurso competente (1977). In: CHAUÍ, Marilena. O discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2011. p. 15., apenas um contradiscurso que trouxesse à tona as contradições internas (do próprio (contra)discurso ideológico) seria capaz de “colocar as coisas em questão”. É que, se a ideologia oculta diferenças através da construção de uma totalidade imaginária que seria supostamente capaz de explicar a realidade, a posição crítica primeira está em colocar em descrédito quaisquer “valores absolutos”, abrindo-se às ambivalências.

 

Desafiando conformismos ou absolutismos, a atenção às ambivalências, ao evitar o “vício metafísico da fundamentação e do terreno comum, até mesmo da visão de conjunto”[12] Inês Lacerda Araújo em Do signo ao discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p. 108., implica numa revisão das estruturas de oposição na medida em que não toma uma linha divisória como princípio ordenador. Desautorizando o Grande Divisor diante do qual tudo se relativizaria, o território da ambiguação depõe o ponto de vista ideal, constituindo-se como relações (in)constantes de perspectivas diferenciantes que nunca se estacionam. Tal desontologização faz vislumbrar a possibilidade de modos existenciais “cujo (in)fundamento é a relação com os outros, não a coincidência consigo mesmos”[13] Eduardo Viveiros de Castro em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (1993). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 195., desobrigando-se da remissão a instâncias totalizantes (como Deus ou Estado, referências ou significantes) para lançar-se prioritariamente ao terreno do “uso” e da “posição” – às relações. Do ready-madeduchampiano à crítica da linguagem privada wittgensteineana, como sublinha Eduardo Viveiros de Castro, ao invés do complexo modernista da produção, estamos no campo da predação [14] Eduardo Viveiros de Castro em Prólogo. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 15.: “só me interessa o que não é meu”[15] Oswald de Andrade em Manifesto Antropófago (1928). In: ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011. p. 67..

 

O deslocamento da ênfase na produção ao consumo (noutra dimensão, à devoração) – corroborado por Oiticica[16] “Por acaso fugir ao consumo é ter uma posição objetiva? Claro que não. É alienar-se, ou melhor, procurar uma solução ideal, extra – mais certo é, sem dúvida, consumir o consumo como parte dessa linguagem [linguagem-Brasil”. Hélio Oiticica em Brasil Diarreia (1973). In: OTICICA FILHO, César (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p. 114.] e já formulado por Oswald de Andrade em 1929, quando afirma que Marx havia errado ao privilegiar os “meios de produção” ao invés da finalidade da mesma, o consumo[17] “O que interessa ao homem não é a produção e sim o consumo”. Oswald de Andrade em Os erros de Marx. In: ANDRADE, Oswald de. Os dentes do dragão. São Paulo: Globo, 2008. p. 81. – impõe uma condição outra. Diferentemente do que ocorre na produção, no campo da predação, consumir é estar consumível: comer é estar aberto à inevitável ambivalêcia de ser comido. Se o foco na produção mantém estável a linha divisória da propriedade, o consumo responde com a posse (donde o bradado “a posse contra a propriedade” dos modernos antropófagos brasileiros); a tomada – ocupação, possessão – do que “está posto” que é capaz de transformar a linha numa cama de gato, como em 1970 percebera Cildo Meireles [18] No texto Cruzeiro do Sul (1970), “cama de gato” é a resposta de Cildo Meireles ao problema da linha divisória. Prenunciando a invasão do oeste sobre a terra à sua direita – “azar para o leste” –, em tom fabulístico, senão praguejador, o artista reage às linhas divisórias com a ameaça de uma insurgência do oeste, identificado pelas pulsões selvagens: “A selva continuará se alastrando sobre o leste e sobre os omissos até que todos que esqueceram e desaprenderam como respirar oxigênio morram (…)”. Contra as divisões artificiais feitas sobre a terra (“seus primitivos habitantes jamais a dividiram”) – em oposição, portanto, a marcos de autoridade como Greenwich ou Tordesilhas –, e a despeito de toda vontade civilizatória de ordenação e racionalidade, Cildo Meireles falará da força do desconhecido e da matéria, das “cabeças enterradas na terra e na lama”, “cabeças dentro de suas próprias cabeças”, “sem o brilho da inteligência ou do raciocínio”.  Em continuidade à veemência antropofágica da cultura brasileira – “nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós”, “o espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo”, como em Oswald de Andrade que, numa crítica ao colonialismo cultural, buscara reabilitar o primitivo –, em Cruzeiro do Sul Cildo Meireles performa intencionalidade similar. Revoltando-se contra a imposição da linha divisória – portanto, contra a separação primeva entre direita e esquerda, uns e outros –, desobedecerá a tradição dialética hegeliana do sobrepujamento da tese pela antítese (dominação do elemento da direita sobre aquele da esquerda) ao professar a contaminação do leste pelo oeste. Assim, antropofagicamente, América contamina Europa; certo e errado, sim e não se imiscuem; a tese insiste sobre a antítese. Em sua crítica à racionalidade (para Oswald, por exemplo, “não tivemos especulação, mas tínhamos adivinhação”), as concepções evolutivas do pensamento, da subjetividade e da sociedade são postas em questão. Com o comprometimento do processo dedutivo – alcance da síntese –, tal como sugerido por Cildo Meireles em sua reversão da “flecha do tempo” da dialética moderna através da insurreição do oeste, problematiza-se, por fim, a própria ideia de verdade (outrora expectada a partir da síntese): “Acreditem sempre em boatos. Porque na selva não existem mentiras, existem verdades pessoais”. Ou ainda, nas palavras de Oswald, “contra a verdade dos povos missionários, (…) a mentira muitas vezes repetida”.. Há, contudo, uma nuance que não se pode perder de vista: a cama de gato é menos o território da diversidade, que o terreno da diferença.

 

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Na diferenciação entre um copo de água benta e um copo de água comum, contraste e contexto são as “ferramentas” fundamentais; wittgensteineanamente, apenas em seu uso é que teríamos alguma chance de diferir um copo d’água do outro. Por sua vez, a encruzilhada colocada por Deyson Gilbert – ao retirar os copos de um contexto significante para lançá-los às suas próprias coincidências – coloca-nos diante de uma situação de alteridade absoluta: sem uma teia de sentidos que constitua identidades (portanto, em meio a uma situação de anarquia ontológica), nada nos garante que a água benta não seja comum; nada nos leva a crer que haja alguma diferença possível entre uma e outra. Em Copo de água benta ao lado de copo de água comum (2009), não há sequer evidências que exista algo como “um” e “outro”. Sem linha divisória, a situação nos devolve à cama de gato.

 

A ambiguação instaurada pelo artista no momento do ocultamento da dimensão de exterioridade (contexto e contraste) que salvaguardaria a alteridade diferenciada entre as águas (benta ≠ comum; ou, ainda, roda de bicicleta e obra de arte) nos faz experimentar, por sua vez, o processo de alteração diferencial [19] Eduardo Viveiros de Castro em Prólogo. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 19.: sem essências distintivas, qualquer diferenciação se fará pela configuração de uma exterioridade. Para distinguir as águas, seria preciso constituir um fora no seio do qual pudessem alterar-se diferencialmente – somente na criação de exterioridade (diferença) seria possível produzir descoincidência (alteração).

 

Com Wittgenstein II e sem as armadilhas do “platonismo” lógico-estrutural, sabemos, todavia, que não há distanciamento possível entre essa exterioridade e qualquer dimensão que se imagine como “interna”(a linguagem não está nos referentes ou na gramática, senão em seu uso, em jogo). Como ainda mais contundentemente demonstra o canibalismo ameríndio, o interior depende de um sair de si: “a religião tupinambá, radicada no complexo do exocanibalismo guerreiro, projetava uma forma onde o socius constituía-se na relação ao outro, onde a incorporação do outro dependia de um sair de si – o exterior estava em processo incessante de interiorização, e o interior não era mais do que o movimento para fora”[20] Eduardo Viveiros de Castro em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (1993). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 220..

 

[Breve digressão antropofágica] Diante da tendência da arte (não da moderna, mas da atual) em culturalizar a antropofagia, talvez a radical contribuição – no que concerne às discussões do campo da arte – da antropologia brasileira[21] Cf Eduardo Viveiros de Castro em A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. esteja em reposicionar o canibalismo para além dos dois devires comumente a ela atribuídos, o “tornar-se outro” e, ainda mais superficialmente, o “tornar-se um”. Enquanto ronda – entre o outro e o um – uma espécie de fantasma hegeliano (algo como “tornar-se antítese” ou “síntese”), o argumento antropológico ecoa a crítica oswaldiana a essa dialética[22] “A transformação permanente do Tabu em totem. Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico”. Oswald de Andrade em Manifesto Antropófago (1928). In: ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011. p. 69. ao fazer ver que o complexo do canibalismo “permitia nem mais nem menos que a perpetuação da vingança. (…) O ódio mortal a ligar os inimigos era o sinal de sua mútua indispensabilidade; este simulacro de exocanibalismo consumia os indivíduos para que seus grupos mantivessem o que tinham de essencial: sua relação ao outro, a vingança como conatusvital”[23] Eduardo Viveiros de Castro em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (1993). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 232-234.. Nesse sentido, matar, comer e vingar produziam menos um corpo-outro ou único do que tempo: “só quem está para matar e quem está para morrer é que está efetivamente presente, isto é, vivo”[24] Idem, op. cit, p. 238.. O complexo antropofágico produzia, assim, continuidade e, com ela, tempo histórico. Ao passo que constituía futuro (no qual já era sabido que o matador se tornaria vítima), impossibilitava também o assentamento das identidades ou dos poderes, visto que configurava, através do vínculo à tribo inimiga, uma relação de exterioridade que se tornava imanente à própria existência: “os inimigos eram também os guardiões da memória coletiva, pois a memória do grupo (…) era a memória dos inimigos. (…) A guerra de vingança tupinambá era a manifestação de uma heteronomia primeira, o reconhecimento de que a heteronomia era a condição da autonomia”[25] Idem, op. cit,  p. 241.. A vingança – complexo às vezes ocultado pela tantas vezes harmonizadora “culturalização da devoração” – era, assim, a “forma pura do tempo, a desdobrar-se entre os inimigos”[26] Idem, op. cit, p. 240..  [Fim da digressão]

 

Tal qual para comer é preciso estar comível, voltando às águas, compreendemos que, para ser comum, é preciso estar “beatificável”. A aparente inversão da ordem dos termos (a abertura ao “beatificável” como condição prévia ao ser comum, a heteronomia como condição da autonomia) advém de um regime de alteridade absoluta: sem metafísica ou essencialismos, inclusive o ser comum é uma conquista: justamente porque as coisas estão postas, nada há de a piori. Consequentemente, não haveria, portanto, um estado de diversidade – há apenas a infinita cama de gato da ininterrupta alteração diferencial, do diferir.

 

3

Uma possível diferença primordial entre “assumir ambivalências” e “aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas” reside na não-garantia do comum. Ainda que saibamos que obras de arte ou significados existem apenas no seio de uma comunidade cujos participantes os presentifiquem (os usem, tornando-os vivos) – que não há, portanto, qualquer terreno comum para a linguagem e para a criação –; e a despeito de compreendermos que a ideologia (através da ideia de Estado, por exemplo) é a tentativa de fazer “com que o ponto de vista particular [daquele] que exerce a dominação apareça para todos os sujeitos sociais e políticos como universal[27] Marilena Chauí em Crítica e ideologia (1977). In: CHAUÍ, Marilena. O discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2011. p. 31., talvez apenas a descrença na unidade ou na comunhão permita-nos “abrir mão” das aspirações à estabilidade ou à totalidade. Havendo a anarquia sido uma das tentativas ocidentais de refutar (através da abolição do Estado e da propriedade privada) esses sentimentos de ordem, na invasão do leste pelo oeste, talvez reste no perspectivismo ameríndio uma instância mais radical desse ímpeto anárquico, a ontológica: onde o que faz os copos d’água benta e comum (in)distinguirem-se transborda também para a própria condição de humanidade.

 

Pois, enquanto nós vivenciamos um multiculturalismo – regime de natureza unívoca, cujas variações são de ordem interpretativa, representacional (relativismo) –, a cultura ameríndia se sustenta num multinaturalismo: são múltiplas as naturezas. Como salienta Eduardo Viveiros de Castro, diante do pluralismo natural há, todavia, uma única cultura, a da humanidade: “o referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição”[28] Eduardo Viveiros de Castro em Perspectivismo e multinaturalismo (1996). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 356.. A questão é que, se todos os seres se sentem humanos em seus pontos de vista, nunca se pode estar certo acerca de quem é humano [29] “Quem responde a um tu dito por um não-humano aceita a condição de ser sua “segunda pessoa”, e ao assumir, por sua vez, a posição de eu já o fará como um não-humano (…). As aparências enganam porque nunca se pode estar certo sobre qual é o ponto de vista dominante, isto é, que mundo está em vigor quando se interage com outrem. Tudo é perigoso; sobretudo quanto tudo é gente, e nós talvez não sejamos”. Eduardo Viveiros de Castro em Perspectivismo e multinaturalismo. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 397.: a “humanidade de fundo torna problemática a humanidade de forma”[30] Eduardo Viveiros de Castro em Perspectivismo e multinaturalismo (1996). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 377.. Assim, a despeito de ser a condição originária de todos os seres, a humanidade permanece uma conquista cotidiana – “é necessário se fazer humano”: “(…) Você não é um verdadeiro humano se seu corpo não é diferenciado; o corpo humano enquanto tal é demasiado genérico. (…) Quando nasce uma criança, a primeira coisa que os que estão em volta fazem é ver se ela é humana ou não. (…) Deve-se, pois, tomar todas as providências para que ela seja, de forma clara, definida como humano. Para isso, é preciso raspar-lhe o cabelo, pintá-la, furá-la, moldá-la para que se torne humana como nós. Tudo se conecta: portanto, é preciso diferenciar; é preciso distinguir.”[31] CASTRO, Eduardo Viveiros de. Se tudo é humano, então tudo é perigoso. Entrevista concedida a Jean-CristopheRoyoux. In: SZTUTMAN, Renato. Eduardo Viveiros de Castro. Coleção Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. p. 111-112. Como só é possível distinguir a partir da constituição de uma exterioridade, toda a ontologia será necessariamente relacional.

 

Entretanto, sem a linha divisória primeira – a da humanidade, que nos diferenciaria de todo o restante –, o caráter relacional dessa ontologia não se dá como relativismo, mas como perspectivismo. Na ausência de uma Natureza única e separada em torno da qual tudo se relativizaria[32] Aparentando ser mais ou menos “verdadeiro” na medida em que estivesse mais ou menos próximo ao conhecimento e domínio dessa natureza, cujo vértice seria a ciência., e diante de um fundo comum a tudo e todos – a cultura da humanidade – que, como tal, nada distingue, o perspectivismo reorganiza enfaticamente os modos dessas relações. Sem linha divisória – natureza ou humanidade –, as relações estabelecidas entre os diversos seres são simétricas e cambiáveis, perspectivas sem ordenação hierárquica que, por não serem originariamente distintas entre si, metamorfoseiam-se constantemente como forma de gerar diferenciação e subjetividade: cama de gato.

 

Por sua vez, o ponto de partida desse contínuo processo de alteração diferencial será aquilo que singulariza (através da pluralidade de suas formas e afecções) a humanidade de fundo – o corpo, habitat do ponto de vista: “se a alma é formalmente idêntica entre as espécies (…), a diferença deve então ser dada pela especificidade dos corpos. (…) Não diferenças de fisiologia (…), mas afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário (…), um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus. (…) O corpo (…) é a origem das perspectivas. Longe do essencialismo espiritual do relativismo, o perspectivismo é um maneirismo corporal”[33] Eduardo Viveiros de Castro em Perspectivismo e multinaturalismo (1996). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 380.. Portanto, a humanidade se faz como problemática formal vinculada ao uso: não como antropocentrismo, senão como antropomorfismo [34] Eduardo Viveiros de Castro em Perspectivismo e multinaturalismo (1996). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 375..

 

Sendo o corpo o ponto de vista, tem-se que as perspectivas não são representações – não há perspectivas sobre o mundo (relativismo). No perspectivismo ameríndio, as perspectivas são os mundos: portanto, quem ocupa um ponto de vista é sujeito. Assim como – também para Wittgenstein II – não há separação entre linguagem e mundo, entre discurso e ação (falar é agir o mundo), para Oiticica, “assumir uma posição crítica diante de um fato é (…) mudar mesmo”[35] Hélio Oiticica em Brasil Diarreia (1973). In: OTICICA FILHO, César (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p. 113. na medida em que se trata da produção de uma perspectiva que é, em si, a criação de um mundo. “Assumir as ambivalências” – inclusive uma possível ambivalência “originária”, a anarquia ontológica que não salvaguarda identidades, nem mesmo a humana – torna-se, assim, por sua radical instabilidade, o avesso do conformismo.

 

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É notória a “inconstância selvagem” – manifestação discursiva da instabilidade topológica ameríndia – que, sobretudo no processo de conversão dos índios brasileiros ao cristianismo, foi ao mesmo tempo obstáculo e resistência: nosso gentio era “receptivo a qualquer figura, mas impossível de configurar”[36] Eduardo Viveiros de Castro em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (1993). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 184.. Do mesmo modo que demonstravam-se convertidos, na sequência desacreditavam do Deus que haviam recém acatado – como notava Padre Antônio Vieira, “outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos”[37] Padre Antônio Vieira em Sermão do Espírito Santo (1657). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 185.. O problema não era um “dogma diferente” mas, como aponta Eduardo Viveiros de Castro, “uma indiferença ao dogma, uma recusa de escolher”[38] Eduardo Viveiros de Castro em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (1993). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 185. que estava vinculada à ausência de sujeição. Sem a cultura de um poder soberano (Rei, Lei, Estado, Deus, Natureza, etc.) e com a humanidade como fundo, ser sujeito passava inclusive pela possibilidade de ocupar diversos pontos de vista ao longo do tempo. Numa ontologia relacional, não há porque fixar-se: a troca – e não a acumulação – é o valor fundamental.

 

Nesse contexto, além do complexo da vingança, também a descoincidência consigo mesmo é um modo de produção de tempo. A constante ambiguação, algo como a ativação “da dimensão de exterioridade que nos é imanente”[39] Eduardo Viveiros de Castro em Prólogo. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 19. – não ser cristão ao sê-lo, ou ao mesmo tempo estar água benta e comum –, ao não permitir que fixemo-nos em identidades estanques (ao forçar a contínua transformação do Tabu em totem), faz correr o tempo e, mais adiante, dá a ver outra temporalidade. Distinta de sua versão moderna, essa temporalidade revê o estatuto da memória, da repetição e da sincronicidade, criando uma cama de gato também na “flecha do tempo” de outrora: “Como conceber um tempo devolvido a si mesmo, portanto não esquematizado, não direcionado, puro campo de vetores sem orientações determinadas? Não assistiríamos aí a emergência de um tempo flutuante, não pulsado, mutliplamente vetorizado, quase enlouquecido? (…) O tempo como Desigual-em-si. Apenas na sua modalidade incondicionada, imanente, positiva, pode ele conquistar-se como potência genética, como virtualidade pura, como variação infinita”[40] Peter PalPélbart em Imagens do (nosso) tempo. In: FURTADO, Beatriz (org). Imagem contemporânea: cinema, TV, documentário, fotografia, videoarte, games… Vol. 2. São Paulo: Hedra, 2009. p. 31-32..

 

A produção de uma temporalidade em ambiguação (ou, noutra direção, a ambiguação do tempo) – e, com ele, a liberação do compromisso ontológico de continuarmos sendo quem somos agora – dá as bases, assim, para a metamorfose primordial: a do impossível em possível. É o caso do tempo produzido pelo complexo da vingança tupinambá que, através de seu singular regime de memória, converte “a fatalidade natural da morte em necessidade social e, desta em virtude pessoal”[41] Eduardo Viveiros de Castro em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (1993). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 233., possibilitando a imortalidade. É o caso, também, da conversão retroativa entre água benta e água comum tornada possível através da obra de Deyson Gilbert – que, ao mesmo tempo produto e produtora de um processo de ambiguação, ao instaurar uma temporalidade e uma ontologia flutuantes entre a coincidência e o descoincidir, não permite estacionar-se na estabilidade de um hipotético “caráter ambíguo”, abrindo espaço para um contínuo revolver-se. Noutras palavras, para uma retro-auto-eco-revolução. Pois, assim como é preciso fazer-se humano para manter sua humanidade, também para haver ambiguidade é preciso constante ambiguação.

 

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Ainda que apenas por alguns instantes, em Copo de água benta ao lado de copo de água comum (2009), a sensação de “ausência” de linha divisória pode ocultar a anterior operação de ambiguação que tornou possível a situação montada por Deyson Gilbert: previamente, foi preciso reconhecer a dimensão lacunar do aparato cultural que distingue água benta de água comum. É por obscurecer a dimensão de exterioridade-comum que é imanente a toda água benta – ou, mais amplamente, a dimensão de exterioridade da cultura como sistema religioso que é imanente à religião como sistema cultural[42] Idem, op.cit, p. 191. – que ideologicamente se faz possível sustentar (através dessa operação lacunar[43] Cf. Marilena Chauí em Crítica e ideologia (1977). In: CHAUÍ, Marilena. O discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2011. p. 32.que a conversão do comum em bento seria assimétrica: um caminho sem volta. Assim, o “desaparecimento” da linha divisória entre as águas não acontece por meio de um dispositivo que apague suas diferenças mas, fundamentalmente, pela evidenciação do espaço em branco do discurso (como tal, ideológico) que visa incluir essa diferença numa flecha do tempo irreversível. Noutras palavras: a cama de gato se dá na criação de uma situação que enuncie o comum no interior da dimensão de exterioridade que é imanente ao bento. Se dá através do vislumbre de uma existência simetrizada, de conversão retroativa (onde comer é estar comível). Nesse sentido, a ambiguação constitui-se não no apagamento da linha divisória[44] Publicado primeiramente no catálogo da mostra Information, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA, 1970), o antropófago texto Cruzeiro do Sul recoloca a questão do “imperialismo” numa chave antieconômica, de contaminação. Divergente da posição “de subtração anti-imperialista” então comumente entrevista – que previa “que o progresso [nacional resultaria (…) da expulsão dos invasores (…), [esperando] achar o que buscavam com a eliminação do que não é nativo. O resíduo, nesta operação de subtrair, seria a substância autêntica do país” [SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 114] –, a estratégia de Cildo Meireles será operar por irrestrita adição. Ciente de que a operação de subtração da linha divisória incorreria noutra linha – portanto, numa configuração subjetiva recalcada –, sua opção antieconômica, antropófaga e globalizada se faz clara: “cama de gato”.], mas através de sua metamorfose – que, em última instância, é a alteração de (nossa) perspectiva – em linha orgânica.

 

Como “linha-espaço” que “aparece quando duas superfícies planas e da mesma cor são justapostas”, a linha orgânica percebida por Lygia Clark (1954) é a própria dimensão de exterioridade imanente a todo interior – do encontro entre “dois tacos” à aproximação entre “quadro e moldura”, entre dois copos d’água ou, mais fundamentalmente, no encontro entre seres que, não sendo “superfícies planas e da mesma cor”, têm, contudo, uma equivalente humanidade como fundo. Fazendo vazar exterioridade para o “interior” – como tal, atuando numa topologia moebiana –, diferentemente do caráter separatista e relativista da linha divisória, a linha orgânica conecta sem unir: enquanto a primeira separa quando está presente e, quando ausente, gera indistinção; a linha orgânica nunca está lá. Ela é uma perspectiva. Uma perspectiva surgida na aproximação entre formas equivalentes que, todavia, não coincidem. Como a ontologia relacional ameríndia, a linha orgânica está no espaço do entre. Assim como o sujeito não é uma entidade, mas existe como ponto de vista, a linha orgânica – a ambiguação – “é menos uma física das substâncias do que uma geometria das relações”[45]  Eduardo Viveiros de Castro em A imanência do inimigo (1992). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 291.. Como adverte Lygia Clark, “esta linha não aparece quando as duas superfícies são de cores diferentes. (…) Você verá a linha orgânica desaparecer. Ela foi absorvida pelo contraste entre o branco e o preto”[46] Lygia Clark em A descoberta da linha orgânica (1954). Disponível em http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=6..

 

É menos nos grandes contrastes – como nos já estabelecidos regimes de oposição –, mas sobremaneira onde aparentemente residem as equivalências, que se dá, portanto, a potência da ambiguação. É ali, onde parece existir unidade (e consenso), que se faz urgente (e talvez politicamente eficaz) exercitar modos de percepção que nos tornem atentos não apenas às distâncias extensivas e extrínsecas, mas à “diferença intensiva, imanente a uma singularidade dividida”[47] Eduardo Viveiros de Castro em A imanência do inimigo (1992). In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 292.desigual-em-si. Sem metafísicas ou essencialismos, e no seio de uma ontologia relacional, já que nada necessariamente coincide ou difere (tudo pode ambivalentemente ser humano, significado ou obra de arte) – donde decorre que o problema da forma das coisas e dos seres é o problema de suas perspectivas (não sobre, mas das mesmas; algo que nossa inexperiência xamânica por hora nos impede de averiguar) –, a questão que parece se impor é como “(re)posicionar-se” para não apenas “assumir” mas, principalmente, para “colocar em questão” essas ambivalências. Quando “a humanidade de fundo torna problemática a humanidade de forma”, pós-oiticiqueanamente, “assumir as ambivalências” como fundo torna igualmente problemáticas as ambivalências como forma.

 

Portanto, “criar como mudar o valor das coisas” não seria a instauração de “ambiguidades” como nova linha divisória – anseio que tão corriqueiramente se pode testemunhar no campo da arte, dada a transformação da “ambiguidade” numa espécie de licença poética (e formal) contemporânea. Antes – e inclusive para além da cama de gato –, criar talvez seja metamorfosear a linha divisória em linha orgânica:contínua ambiguação da ambiguidade, ação no interior da dimensão de exterioridade que é imanente, descoincidência entre diversidade e diferença, produção de tempo e temporalidades. Ambiguar a ambivalência: eis aí outra questão.

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Atrito e existência conversa com Eduardo Frota

Tatuí | Na discussão sobre forma, muitas vezes chegamos numa aparente “encruzilhada da forma”, do pensamento formal e do interesse da forma fora do campo da arte, desespecializada. Às vezes, vemos críticos não se interessarem mais pela forma quando ela se coloca para além do campo da arte ou, especialmente, da história da arte ocidental. Então, esse lugar de uma preocupação, de um pensamento, de uma sensibilidade formal fora da restrita “chave da arte”, ou da história da arte ou da teoria da arte – de uma genealogia artística da forma –, é talvez um problema para nós. Um problema instigante, que nos retira de uma lógica internalista. Como seu trabalho tem um processo formal completamente implicado na dimensão sociocultural, me parece que você coloca a forma em outro lugar, um lugar que também se deseja para além da arte. Queria que você comentasse isso. Como que a forma, ou não, te interessa na vida? Onde e como ela está? – para além da história da arte, do modernismo, do que quer que seja…

Eduardo Frota|Essa sua primeira pergunta é estrutural e penso que vou respondê-la em todas as perguntas no decorrer da entrevista, mas vamos começar pelo início. Quando eu cheguei ao Rio, tive esse impacto de uma cidade histórica em que sua produção, mal ou bem, se fazia entre parâmetros pré-estabelecidos, numa incipiente e mal alinhavada história da arte do modernismo de 22 pra cá, da produção da cidade e do país, mas por isso mesmo, por uma necessidade de se fazer construir como categoria do pensamento da arte e da cultura do Brasil, dentro de certos cânones historicizados da arte ocidental. Com isso, a margem de manobra inclusiva era muito restrita. Basta pensarmos que no final dos anos 70 e início dos 80, a produção da década de 70 pós-vanguardas neoconstrutivas estava sublimada em detrimento da volta esfuziante e frívola da pintura como quase totalidade das linguagens artísticas daquela nascente década. Também naquele momento, como um contraponto histórico, a então recente tradição das vanguardas construtivas volta como valor ideologizado para a atualização de um programa pós-modernista, com todos os paradoxos que esse termo dividirá com o movimento internacional da volta da pintura, robustecida e recodificada através do novo mercado de arte neoliberal e financista por excelência. No Rio daquela época, atuar fora desse contexto era muito complicado. Havia uma insistência quase cruel de já se fazer parte de uma história. Com isso, penso que muita coisa boa morreu na praia, e aponta para um problema grave do Brasil institucional até hoje: ele é conservador, patrimonialista e amplamente excludente.

Quando passei no vestibular para a Escola de Belas Artes da UFRJ, fiquei somente dois meses no curso e abandonei pra sempre. Também saí dos cursos do Parque Lage quando se desenhava o movimento da geração 80. Em ambas as instituições não enxergava qualquer natureza de conflito, era uma festa só. Não podia entender todo aquele movimento festivo, quase um entretenimento na produção da arte. Naquele terreno sem conflito, eu estava cheio deles – porque deixei amigos e um sonho feliz de cidade, me desentendi com parte da família, e me larguei pro Rio de Janeiro. Tudo tinha uma proporção diferente, e se encarnava em mim que fazer arte era radical e amplamente uma experiência de vida, de deslocamentos físicos, culturais, psicológicos, espirituais e assim por diante. Mas para não fugir o interesse da sua pergunta, termino esta com outra pergunta – e o que isso tem a ver com a forma? Tudo. Voltei-me para casa numa experiência solitária do desenho como construção sensível do sujeito artista.

Saindo dos primeiros questionamentos e ampliando o conhecimento histórico e teórico da arte, é fato que dois dados importantes vão me dar condições de participar do circuito da arte, inicialmente na cidade do Rio de Janeiro – a própria cidade do Rio de Janeiro como um campo formador da experiência artística e o conhecimento da produção de todos os neoconstrutivos e, principalmente, a Linha orgânica de Lygia Clark para mim um dos conceitos mais fecundos não só da arte brasileira, mas da arte ocidental dos anos 50 pra cá. Conhecer essa ideia, essa matriz conceitual fecunda foi o norte e guia da minha produção inicial, desde as primeiras verticais expostas no Programa da Galeria Macunaíma, da Funarte, na coletiva Rio Hoje (MAM-RJ e Centro Cultural São Paulo). Não quero me deter em alguns trabalhos, porque acho que é reduzir a questão, mas falar da inflexão que essa ideia provocou propositivamente em mim. Mais do que uma aproximação, o entendimento da Linha orgânica de Lygia Clark teve a importância de me permitir fugir dessa questão estritamente dogmática de exercícios geométricos formais e redundantes, que não inflexionam uma subjetividade para além do campo da arte, ou seja, o valor social, político e econômico do trabalho na sua construção material, que provoque atritos através de uma produção em constantes tangenciamentos com vários outros campos de conhecimentos produtivos, materiais e teóricos, como a sociologia, a economia, a antropologia, a educação e a psicologia social. Do entendimento amplo e desmedido da forma em processo contínuo, tendo na construção material/escultórica da linha suas extensividades físicas a invadir espaços da arquitetura, ampliando o entre dos planos virtuais de origem, veio que o conceito/produção da série Intervenções Extensivas que invadiu espaços pelo Brasil afora (Torreão – Porto Alegre, 2000; MAC Dragão do Mar – Fortaleza; CCBB SP, 2003; Fundação Joaquim Nabuco – PE, 2002; CCBB – Brasília, 2004; entre outros). É o exemplo mais agudo dessa linha dilatada como tubos condutores, vasos comunicantes, que expande e adensa não somente relações simbólicas da produção da arte com o lugar instituído da arquitetura, como também a produção em atrito com o mundo social e político da arte e da cultura.

Tatuí | Mas o que você está chamando de forma quando diz que a Linha orgânica leva para a fuga, para fora da fuga, para além da fuga?

EF| A Linha orgânica leva para outras possibilidades de desdobramentos, de invenção, e isso é fecundo porque ela foi uma abertura imensa para gerações como a minha e outras que vieram depois; e continua até hoje… Penso que ela desregularizou processos, deu vida onde não se imaginava que tinha, fez respirar vísceras e atomizou os planos antes definidamente construídos, canalizou energias profundas e propulsoras para novas inteligências. Deu um amálgama de sofisticada intuição para a produção da arte no Brasil. É essa invenção que penso ser o ponto zero da arte contemporânea brasileira. E quebrou de vez a matriz cartesiana.

Tatuí | Acho que tenho, talvez, uma compreensão diferente de forma porque, pra mim, é a partir da Linha orgânica que você começa a chegar num pensamento da forma, propriamente. Quando você fala que o seu trabalho não é lido como uma questão formal ou como forma, percebo nossas diferentes concepções sobre o pensamento da forma, que para mim é o lugar mais ambíguo – porque aberto – da experiência sensível. É nesse sentido que penso a forma como a grande potência, não como algo que reduz…

EF| Você tem toda razão. E não é só o lugar que é ambíguo, a natureza mesma da ideia é prenhe de ambiguidade e é por isso que é bonita e interessante, desata o formal estereotipado. Mas também quero chamar atenção a um preconceito que no Brasil se acentuou contra uma discussão mais rica sobre a potência da forma, depois dos estudos da Gestalt, através de Mario Pedrosa, no Brasil, dos dois lados, tanto pró e contra, é um horror a mediação que se faz através de Greenberg no meio dessa história toda. Inibe e despotencializa uma discussão que poderia ser muito mais inventiva, mesmo que arriscada, mas que não fosse tão colonizada e dogmática.

A minha experiência fundamentalmente vem da linha. Quando eu fazia as verticais muito finas, aquilo tinha um reducionismo formal importante para ser um quase nada que cortasse o plano da parede ou se verticalizasse do chão para o espaço. Uma transmutação da linha reta para as linhas curvas, dando organicidade para outra expansão dela em relação ao espaço, precisou de operações inventivas de trabalhar o plano da madeira em novos cortes e repetição de módulos, desconstruindo o monólito da linha fina vertical. Essa operação desregula de vez o limite formal da minha experiência.

Tatuí | Por que você acha que estava idealizando a forma? Em que sentido?

EF| Isso foi antes dos tubulares, com os nós. Desconfiava que pudesse estar idealizando o processo formal. Não produzi quantitativamente muito desses trabalhos. Apesar de tudo, nunca fiz nenhum desenho que fosse um construtivo geométrico somente. Eu achava que a questão era o material e o corte, o corte erótico e sexual na matéria, daí o suporte em madeira e depois ele sendo a própria estrutura da linha. Daí é que eu me invento artista, quando eu saio da superfície mesmo e corto o suporte. Como disse, nunca fiz geometrismos de retórica numa superfície planar. Só que eu percebi que a linha/estrutura desses trabalhos davam nós por conta dos cortes e ela mesma se tornava borda, não estava mais entre planos, e sim despencando do plano da parede para o mundo. Foi então que pensei que poderia criar respiro dentro dessa linha/estrutura, extensiva, invadindo a arquitetura.

Digo também que em todo o meu trabalho, eu nunca abusei do volume, as pessoas entendem mal isso, penso que eles não têm excesso de volume, ou seja, o peso tradicional do volume, ou a tradicional operação escultórica clássica, o desbastamento do cubo. Nada disso. Tudo sempre é vazado, inclusive os eixos/lunetas não normativos dos carretéis, como bem lembrou Paulo Herkenhoff. Ainda sobre os nós, durante o processo de construção e colagem, percebo ter surgido um embate vertiginoso entre matéria (obra) e corpo (artista). Era um grande empenho cortar aquilo. Eu saía exausto, porque passava um dia somente para colar um trabalho, depois de mais de vinte dias construindo o mesmo. Esses cortes tinham que ser muito precisos e sua colagem idem, já que um centímetro de diferença desmontava a operação por inteiro. Eu me preparava física e psicologicamente para a sessão de colagem de tão esgotante que era. Suava muito em cima do trabalho, que retinha o suor do meu corpo adentrado na madeira… Era uma relação muito sexualizada, erótica mesmo. E o que eu entendi desse processo é que esse trabalho era essencialmente corpo!

Então eu voltei de novo com certa potência de não idealizar a forma, o que quer dizer travar um diálogo com a obra num processo a partir do corpo, não ser tão impositivo com um resultado formal. Era um embate muito visceral, de corpo, de dobras. Eu saquei essa coisa não através da teoria, mas por meio de meu esgotamento físico e mental, todo o corpo. Quando quebrei a concisão da forma a partir de um corte na grade estrutural da obra – nessas linhas de madeira maciças cilíndricas e retas com suas emendas em ângulos pontiagudos –, suas extremidades agora apartadas por um corte impositivo se apresentam de imediato como uma autonomia em expansão para o espaço.

Fiquei pensando como fazer expandir no espaço aquela operação. Peguei esse tronco, essa linha, dei uns furos – só que era madeira dura, e eu queria fazer uma curva maleável, mais orgânica, sem pontas. Então tinha que ser vísceras. Vendi meu carro para comprar material que me possibilitasse fazer uma nova tradução dessa experiência, inventar ferramentas e máquinas para equalizar operações conceituais e materiais. Cortei umas arruelas num plano de compensado industrial e com isso tive vários módulos iguais. E depois chanfrando as laterais desses módulos/arruelas, colei vários deles e consegui a soltura de linhas curvas ao infinito. Ali havia criado uma máquina de fazer vísceras porque, quando acumulava os módulos, a linha virava órgãos rastejando dentro do corpo da arquitetura. A linha/forma não tinha mais começo nem fim, e toda a operação de corte e sutura era adensamento. Ainda devo acrescentar que a unidade modular desaparecia por conta da junção anônima de milhares delas. Isso processava seu transbordamento como uma unidade física de autonomia material.

Outro dado diante dessa questão de uma forma para além da arte é minha relação com a geografia, a história, a antropologia e a experiência do corpo em deslocamento por diversas cidades. No Rio de Janeiro, por exemplo, a primeira imagem que vivenciei ainda quando menino foram os seus túneis urbanos. Foi um espanto! Aquilo era a experiência de outra geografia, uma topografia completamente acidentada, diferente da cidade de Fortaleza – muito plana, como que esse plano de sertão que se estende até a beira do mar. Ora, essa linha orgânica que se faz respiro em túneis no Rio de Janeiro, elas são também linhas de respiração/movimento entre o plano do sertão extensivo até Fortaleza e o plano/mar do oceano atlântico. Essas percepções de natureza e cultura construíram os meus vetores sensoriais e espaciais. De retorno ao Rio para morar, permanecia gravada em mim a imagem impactante que experimentei aos 7, 8 anos: seus túneis de ar furando monólitos de pedras e montanhas. Essas primeiras experiências no Rio, recodifiquei-as como neoconcretas pelas relações sensoriais que a geografia da cidade em mim se revelou; as intensidades de luz fora e escuridão dentro, a sonoridade acústica dos motores e olfativa dos cheiros queimados de combustíveis, tudo isso foi uma experiência sem limites. Essas experiências de geografias constroem também uma forma não reducionista de sentidos, memórias e transmutação; sol, luz, vento, horizontalidade, e pedra, furo, verticalidade. O dado geográfico como expansão do plano da paisagem engendra para mim um conceito de espacialidade afetiva e emocional, tanto da horizontalidade planar de Fortaleza, como da verticalidade física do Rio de Janeiro. Voltando às questões operativas da forma, digo que minha incisão no plano industrial é para quebrá-lo, desmontá-lo, fatiá-lo e esgarçá-lo para transverter suas partes e seus módulos cortados em círculos que vão ser colados aos milhares para a construção dessa linha extensiva e anônima, invadindo qualquer corpo/espaço arquitetural que se apresente, e ela se infiltrando como coisa viva e autônoma. Ainda devo dizer que é caro a mim desregularizar as medidas ideologizadas do plano/compensado como uma invenção da indústria objetivando um produto bem-acabado, bonito e perfeito. Essas laterais bem acabadinhas é exatamente a parte anulada do material. Elas vão ser o lado de uso da cola que vai fazer o aporte de acumulação uma em outra, visceralmente. Esse dado do belo vai ser de fato sublimado. Do olhar tátil até o atrito com o corpo, é o miolo, o refugo, a mistura do que está escondido que agora se apresenta como estrias, marcas, perfurações, suturas, etc.

Hoje, não consigo pensar a produção simbólica do Brasil excluindo o semiárido. Confluir esses propósitos, suas falhas, produções e circunstâncias é enlarguecer o horizonte. Por exemplo, quando fui expor no Museu da Vale, em Vila Velha, percebi a importância daqueles carretéis no porto e subi no lugar mais alto da cidade e foi a partir dessa apresentação do lugar, tanto cultural (porto) quanto natural (montanha), que projetei a construção e o empilhamento dos carretéis anárquicos no Museu. O trabalho tem a ver com essa topologia.

Em todo o percurso que fiz até agora, o que importa foi ter indicado possibilidades através dessas intervenções em várias cidades, não a conclusão do projeto. Mesmo porque o bom projeto tem que se negar a uma facilidade que o domestique, do mesmo modo como uma boa produção tem que dar o bote no artista, ela tem que ir mais além, muito além do que seu criador desejava. Eu não posso pensar nenhuma experiência dessas que realizei que não tenha se voltado como um aprendizado existencial. Cada projeto – desde a primeira ideia, a pesquisa aprofundada, as condições estruturais, a formação da equipe, as ferramentas inventadas, as máquinas de corte, as mesas de colagens, os deslocamentos com as viagens, a equipe de um lugar a migrar e coexistir em outro lugar e montar o trabalho tudo é complexidade e etapas fundamentais do projeto.

Tatuí | Você poderia falar um pouco desse projeto que lhe ocupou os últimos anos? Falar da relação entre trabalho e intensividade – de como o fazer artesanal de sua obra, em substituição ao trabalho industrial, tinha implicações sobre a briga corporal e se tornava um território de ação sociocultural, envolvendo um grupo significativo de pessoas…

EF| Essa complexidade eu chamo de corpo coletivo. No ateliê, a questão maior era que esse trabalho não fosse alienado, anônimo, mas que politizasse a posição de qualquer um que ali tivesse. Ninguém era especialista em nada. A gente trabalhava uma proposição como potência. Sempre se lia algo, se conversava muito, muitas vezes parando a produção para uma questão que se apresentasse como um valor de troca – podia ser um texto do Guimarães Rosa; uma palestra de interesse público com professor convidado; ou dados do cotidiano mais urgentes (política, violência, religião, Brasil, mundo); ou questões suscitadas pelo próprio trabalho, como pra quê, por que, como, pra quem, aonde; ou simplesmente pensar o que é uma linha ou um bom desenho. Qualquer troca de saberes cabia nessa organização de trabalho – lúdico, consciente e plural. Não tinha uma só pessoa que não pudesse compartilhar um conhecimento, ou um dado de sua inteligência, e aquilo voltar em potência coletiva como um bem comum a todos.

Para realizar projetos, recebia dinheiro das instituições, mas não acumulava bens com isso. Esses trabalhos não eram commodities. O dinheiro era desviado para dar emprego e compartilhar conhecimentos. Era uma utopia do possível e o ateliê era uma nave propulsora de “fazimentos”. A biblioteca era aberta na hora do almoço – alguns liam, outros folheavam, e o Wagner leu muito, principalmente literatura. É claro que essa experiência foi inconclusa, mas também, na mesma medida, bem-sucedida durante 14 anos. O sistema não absorveu essa produção, que não se apresentava como uma commodity de valor acumulativo e de velocidade fugaz. Foi uma experiência a contrapelo de uma especulação meramente comercial. A primeira coisa era dar emprego, e esse dinheiro chegava na casa do cara inclusive pra comprar telha pra casa da mãe, etc. Muitas vezes, para manter o ateliê entre uma proposta e outra – e a maioria dos processos construtivos no ateliê duravam de 6 a 10 meses, para cada grande trabalho – era necessário segurar a equipe para dar seguimento a todo o processo em andamento. Era difícil partilhar essa experiência, que se tornava um paradoxo dentro do sistema de arte brasileira (conservador e excludente). Quase toda a totalidade dessas intervenções foram feitas em instituições públicas, exceto uma Extensões da Fenda, numa galeria particular em São Paulo. Muitas vezes deixei de ser convidado para exposições porque produzia longe, o transporte seria caro; e isso é cruel. Mas o bom de tudo era que quando o convite se firmava, o impacto que a intervenção gerava na instituição era de deslocamentos e desarranjos em muitos sentidos, para receber um projeto que envolvia uma equipe que sabia questionar, que tinha saberes pra dialogar com a equipe do lugar. Não havia espaço para baixa autoestima, porque esse processo de conhecimento adquirido produzia uma alta autoestima. Era um saber de bom posicionamento e enfrentamento às situações adversas. Como disse acima, penso que o circuito de arte e a política constitutiva de seus acervos não incorporou, como se presumiria, algumas produções feitas exclusivamente para esses espaços. Se eu te falar a quantidade de trabalhos meus que foram destruídos, você não acredita. Mas disso tenho uma nítida conclusão: problematizar o circuito é politizá-lo.

Tatuí | E você fez tudo isso através de um trabalho que é formal, também. Tudo isso são questões extremamente importantes e abordadas de uma maneira muito direta, sobretudo em trabalhos dos anos 90 pra cá, que operam num nível mais semântico, discursivo, argumentativo, criando situações de conversas, de falas, que envolvem grupos sociais vulneráveis, e tentando instaurar esse processo de emancipação de uma maneira mais direcionada, às vezes arriscadamente assistencialista. E você chega nesse lugar de outra maneira, por outro percurso – e consequentemente com outros interesses –, que a meu ver tem a forma como elemento designador. Isso pra mim é algo extremamente significativo de uma potência da forma para além do formalismo, hoje. Ao mesmo tempo, isso é muito difícil de ser acessado sem uma esfera de mediação, na relação direta com a obra, quando deslocada de toda essa contextualização, o que é um problema da forma, aliás, talvez o problema histórico da forma por excelência.

EF| Eu detesto coisa piegas, coisa de tirar retratinho de gente pobre… Tem que dar emprego digno, reativar a economia como um fato político, sociabilizar o capital, conferindo conhecimento. Pobre não é pra ficar batendo tambor… Isso é recreação, exclusão e assistencialismo do mais barato. O ateliê chegou a empregar 18 pessoas. Tinha projetos para mais de 20, mas não teve uma instituição que nos financiasse sistematicamente por um bom tempo. A ideia era trabalharmos diariamente até 14h30 e estudar de 15h às 17h: filosofia, os intérpretes do Brasil do modernismo pra cá, história da arte, tecnologia, inglês e outras áreas afins. Esse projeto não aconteceu plenamente, mas até hoje tenho todo o seu programa pensado e concluído como proposta sociocultural e coletiva. Eu detesto essa coisinha de fazer recreação, eu sou contra dar bolsinha de R$150. Dê emprego digno e nesse emprego crie possibilidades para ser igual e potencialmente diferente. É disso que surge a riqueza mais produtiva.

E voltando à questão da forma: ora, o que eu vi no Rio de Janeiro, que já vinha desde Hélio e Lygia, foi um processo de desmaterialização na produção da arte. Achei que não poderia sublimar meu embate inventivo por conta de uma tradição na cidade do Rio que já se desenhava histórica.

Na minha época, vários amigos estavam indo pra Nova Iorque, e eu preferi voltar pro Ceará, montar um ateliê, arriscar um projeto que julguei ser mais difícil, porém não menos contundente e vertical, e quebrar o campo circunscrito de uma produção linear e historicizada, que me amarrava mais do que soltava. Fiz a opção pelo embate existencial e pulsional com o trabalho, e não por uma vocação dita profissional ou de inserção desmedida num circuito. “O Ceará é longe pra danado!”. E quando eu falo trabalho em arte, eu falo de tudo: é você pensar, pesquisar, dar sentido a uma invenção conceitual e material, é esbarrar com a gestação de uma produção numa cidade materialmente pobre, mas rica em inventividades populares. O trabalho, pra mim, é esse campo de potência existencial em atrito com o mundo.

Eu gostaria que alguém fizesse um texto um dia que desse leitura à complexidade de funcionamento do ateliê, porque aquilo era uma inflexão política alterada num lugar – uma leitura que pensasse o trabalho e o capital não como um confronto, mas como um desvio, diria até anárquico ao establishment. Alterar o percurso do dinheiro, fazer um desvio inclusivo, evitar as mesmas práticas de alienação social: não é um fato político? E que fique bem claro, sempre através de uma proposição artística.

Tatuí | Temos aí outro ponto, porque o problema da forma, mesmo no mundo da arte, tendeu a se colocar como um problema cognitivo, conceitual. Quando você fala em fisicalidade, você traz isso pra um campo mais materialista que me faz pensar também no embate entre um capitalismo cognitivo/criativo, calcado num capitalismo abstrato que muitas vezes obscurece o capitalismo das grandes indústrias, o dinheiro pesado que ainda pauta a nossa vida social. Capitalismo esse que muitas vezes nós mesmos – produtores do campo simbólico e da arte preferimos não abordar sob a escusa de ideologia ou anacronismo conceitual, focando nossas atenções em outras dimensões do capitalismo cognitivo, que tem talvez um modo discursivo mais próximo à versão formalista da forma quando é teorizado à distância da carne e da máquina. Talvez seu trabalho, quando se prega na fisicalidade, trate da forma em seu peso, retirando-a desse perigo abstrato, atentando para a questão materialista, que é também um materialismo da forma, com todas as implicações sociais, econômicas, etc., e, claro, de percepção…

EF| Para mim, a questão da forma é a materialidade incorporada de subjetividade, não separadamente. A fisicalidade do novo que se apresenta é o algo inventado, transmutado e traduzido. O trabalho é subjetivo na sua porção maior: não está na mesma ordem o valor que vai afetar a todos de maneira diferente, cada um terá uma solução a compartilhar e aprenderá a dialogar com o outro. No nosso grupo de trabalho, por exemplo, existiam arestas quando se botam 10 pessoas, 8 ou 16 para fazer algo juntos, aquilo tem que ser negociado para a experiência se tornar um bem comum, coletiva e socialmente. Eu não posso ter uma experiência valiosa, na minha mesa de trabalho, sem outros saberes. Na produção da arte não pode haver fordismo: assim não causa torção, revirão, corte… Entende? Fazia questão nas negociações com as instituições para que parte da equipe viajasse para a montagem do trabalho. Iam no máximo 5 e no mínimo 2 algumas vezes em revezamento. Porque montar o trabalho em outra cidade era parte do percurso das ideias e da expansão do conhecimento sociocultural. Isso, para que a pessoa não fosse alienada na produção, e para entender que aquilo, naquele lugar, desloca tudo, muda a percepção de lugar e a leitura de mundo… Que existe um museu naquela cidade, e que a cidade é de tal e tal maneira. Na verdade, essa coisa de ir costurando um circuito público com o meu trabalho é uma posição política, de fato. Eu não estou brincando com isso quando faço opções em intervir em instituições públicas, isso faz parte da filosofia gerencial do trabalho. Quando eu recebo um dinheiro da Vale, ou do Banco do Brasil, etc., para fazer uma intervenção artística, eu não estou alienado do que é um dinheiro público para fazer funcionar uma experiência coletiva no ateliê. O dinheiro era para gerar aquela proposição ateliê/corpo/coletivo. No contrafluxo de uma tradição que se encaminha para uma desmaterialização fácil e sem caráter (o capitalismo funciona porque desvia o capital produtivo para o mundo da especulação financista e de valor quase sempre duvidoso), optar por uma nova fisicalidade é inventar uma condição erótica da obra de arte num mundo cada vez mais assexualizado e evasivo das tensões que uma complexa produção engendra.

Tatuí | A ideia do atrito é muito boa para pensar mesmo a questão formal, porque é outra ordem da forma, né? No sentido que não é aquele formalismo normatizador, universalista, que tenderia a tudo estruturar, organizar e modelar. Não um formalismo paradigmático, mas contingente, que cria atrito, que existe para e pelo atrito.

EF| Pois é, acho que uso muito essa palavra porque penso mesmo que a produção de arte é atrito, e aí eu sou passional com isso. As pessoas dizem “faz os trabalhos menores…”, e eu respondo: a escala é fundamental para essa descostura de borda escrever no intangível, essa é a grande questão, e não se trata de pequena e de máxima escala, simplesmente eu não poderia reduzir, em qualquer dos sentidos, o fluxo daquele conhecimento. Isso é uma relação de espaço, de corpo, de escala de semiárido, de plano de sertão incandescente, de linha nômade anônima e extensiva. Mas eu também tive consciência de que estava esticando a corda e ela podia quebrar a qualquer momento, como de fato ela quebrou. O importante é que esse processo se construiu na radicalidade e se quebrou na mesma radicalidade que o seminou. E isso acho muito pertinente.

Porque pensar a forma é engendrar uma potência inventiva para além dela mesma – complexa e prenhe de paradoxos e contradições. Eu nunca produzi nada sem risco de transbordamento. É como oCubocor, de Aluísio Carvão, um gesto de sofisticado transbordamento. Aquilo dança o samba de João Gilberto, tem batida e voz dissonantes, é tão seminal quanto indicador da futura produção experimental da arte brasileira (tão importante quanto a Linha orgânica, os Bichos, o Caminhando, de Lygia Clark; os Relevos espaciais, os Parangolés, os Bólides, a Tropicália e Outras bossas, de Hélio Oiticica), gestos simples e sofisticados, como um ato de coragem e inventividade ímpar. Ele pinta aquele cubo de cimento e dá uma guinada em toda a tradição ocidental do construtivismo eurocêntrico: aquilo é samba, com grande dose de miscigenação. Ele não inventou o cubo, mas o colocou em outro percurso – um desvio seminal. E como João Gilberto, que também não inventou o samba, mas seminou aquela batidinha de descaminho e fez aparecer uma percepção quase abstrata de uma cultura oral, semianalfabeta, mas sofisticadíssima. O Cubocor impõe uma questão além-forma, é obra de miscigenada invenção e síntese poética. Aquele gesto só poderia ser mesmo um descuido de um poeta (quem o conheceu sabe que Carvão era um poeta), nunca uma formulação de um cientista ou matemático. O Cubocor não tem o dado da razão do construtivismo internacional. É um gesto poético à deriva, nunca uma fórmula de matemática aplicada. Pensar aquela invenção como uma simples operação escultórica é não entender um dado fundamental da arte: a liberdade.

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Num trem pras estrelas*

“Tudo era suficientemente real na medida em que ocorreu publicamente; nada havia de secreto ou misterioso sobre isso. E no entanto não era em absoluto visível para todos, nem foi tão fácil percebê-lo; pois, no momento mesmo em que a catástrofe surpreendeu a tudo e a todos, foi recoberta, não por realidades, mas pela fala e pela algaravia de duplo sentido, muitíssimo eficiente, de praticamente todos os representantes oficiais que, sem interrupção e em muitas variantes engenhosas, explicavam os fatos desagradáveis e justificavam as preocupações.”

Hannah Arendt, em Homens em tempos sombrios.

 

Para falar de forma, dentro da inteireza e profundidade que esse tema pede, seria preciso, antes de tudo, já termos reinventado a escrita, e seus modos de abrigo que potencializassem sua recepção. Seria necessário que os pontos e acentos gráficos tivessem autonomia. Que o circunflexo pudesse ser lido de maneira um pouco mais aguda, e as reticências tivessem ares de ponto final. Seria necessário que as vozes não fossem nem em primeira, ou em terceira pessoa. Que vós tivesse uma fala menos arcaica. E que nós não fosse sujeito de verbos tão intransitivos.

Porque o que temos de impávido na linguagem é sua possibilidade de se manter informe. Mas a escrita e toda sorte de formas que encontramos no mundo “codificado” jaz, hoje, de maneira irreparável, mediada – por aquilo que deveria ser apenas uma sub-linguagem – pelos modos de serno-mundo do capital. E quando falo irreparável é que, do jeito que esse sistema nos incorporou a todos, de maneira global, sem precedentes, nos é mais natural pensar o fim do mundo, mas não do capitalismo – parafraseando Zizek.

Trazer de volta a discussão da forma de maneira atualizada: não seria preciso distanciar-se do pensamento modernista? Porque, sendo esse modo de pensar as formas ainda o parâmetro de atuação e legitimidade das artes, voltaremos constantemente aos discursos paralisantes das impossibilidades. Pois, na jogatina mercantil, na qual há muito nos metemos, não existe dentro e fora. A contemporaneidade é pura contradição. E a grande pergunta é: há do que ainda escapar?

Para alguns de nós, (ainda) herdeiros dos desejos revolucionários da modernidade, é difícil, quiçá impossível, contemplar qualquer frescor nas produções artísticas das últimas décadas. Isso é, se a forma revolucionária deve estar constituída de uma abertura que torne possível o vislumbre de um mundo novo por vir, essa mesma forma não deveria estar tão comprometida em ser representação e ao mesmo tempo (ser ela mesma) modo de permanência desse sistema.

Nem mesmo repetir as formas que outrora foram revolucionárias conseguem infringir qualquer tipo de fissura ideológica, nesse dentro-e-fora que faz de tudo matéria de mercado. Ora, a arte nos últimos tempos ocupou-se tanto em se autorreferenciar que os contextos político-sociais foram paulatinamente deixados ao largo.

A autorreferência em demasia, pelo menos no que diz respeito às artes visuais, que inclui essas importações de modelos passados, acabou criando construções esquizofrênicas de fortalezas da solidão. Tornaram-se elaborações estéticas trazidas do passado para o presente sem ressignificações, deixando visível suas espécies de des-conteúdos.

Daí o que fica são os abrigos mudos, feitos de passado (um mundo que não existe mais), onde quase ninguém visita, tampouco se abriga, dada a estranheza fria da forma visivelmente deslocada que, por isso mesmo, não produz empatia. A falta de empatia do público com essa arte contemporânea é menos a inabilidade de acessar os códigos da arte, e mais o reconhecimento de que se trata de uma construção que se volta ao passado e que não convida, no “hoje”, a um diálogo com o atual tempo-espaço. Seria possível demarcar algum ponto de partida em que a arte voltasse a ser um paradigma para um futuro diferente do que está posto?

 

Verbete

Não faz muito, e um amigo** me perguntou: – Sujeito, subjetividade e subjetivismos são temas constantes na arte contemporânea. Na Tatuí 7 [1] O texto referido se chama Nova Subjetividade: o esboço de uma possibilidade, publicado na Tatuí 7, em setembro de 2009, que trazia o tema Algumas organizações e outras arrumações sociais da arte de agora., você fez um interessante trocadilho do legado da Nova Objetividade incitando-nos a uma nova subjetividade de posição artística menos individualista. Com isto, questionando a influência do autor no mercado da arte em defesa da formação estética em colaboração. Para além do problema da especulação de autoria entre o singular e o plural, não seria importante refletirmos sobre uma reconfiguração de formas enquanto commodities? Isto não estaria na base da situação de boom das feiras de arte? Fiquei me questionando o que é possível auferir sobre esse respeito no atual cenário.

Respondi que, de fato, os verbetes que se inscrevem no mesmo campo semântico de sujeito cada vez mais são invocados nos eventos[2] Nessa ideia de evento cabem os mais diversos tipos de exposições: em instituições, galerias comerciais, bienais, feiras de arte; tanto quanto festivais de performance, audiovisual, etc. de artes. Infelizmente, menos para serem discutidos, questionados, ampliados, e mais para servirem de justificativa enquanto “qualidade filosófica” de tais eventos – que usam as proposições artísticas (objetos, instalações, vídeos, performance…) como “imagens” ilustrativas de tais verbetes.

Na verdade, essa incitação a uma nova subjetividade tem menos a ver com a discussão de autoria e mais com a necessidade de se (re)pensar os valores da obra de arte enquanto construção de um imaginário simbólico coletivo. Porque acredito que nos termos que a arte tem sido criada, sob demanda institucional-mercadológica, cada vez mais tem perdido sua potência dialógica passando a figurar apenas como objeto fetichizado. Em outros termos, seria a necessidade de assegurar a preponderância da experiência estética em-si-mesma, no lugar de (re)naturalizar a áurea do caráter objetual da obra.

A formação estética em colaboração, naquele momento, era algo que parecia tomar uma forma interessante de possibilidade de entropia, porque ainda não era engolfada completamente pelo mercado. Hoje já não é o caso. As proposições artísticas tanto individuais tanto coletivas tomam formas semelhantes quando parte das engrenagens mercantis.

O conceito de nova subjetividade ainda é algo em construção (requer ainda muita pesquisa) e cuja base se encontra no legado da Nova Objetividade, que segundo Oiticica se estrutura a partir das seguintes ideias:

“1- vontade construtiva geral;

2- tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete;

3- participação do espectador (corporal, táctil, visual, semântica, etc.);

4- abordagem e tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos;

5- tendência para proposições coletivas e consequente abolição dos “ismos” característicos da primeira metade do século na arte de hoje (tendência esta que pode ser englobada no conceito de “arte-pós-moderna” de Mário Pedrosa);

6- ressurgimento e novas formulações do conceito de antiarte.”

Penso que embora Oiticica tenha conseguido clarificar bem os termos da produção artística daquele momento como “um estado típico de arte brasileira”[3] “(…) Sendo um estado, não e pois um movimento dogmático, esteticista (como por exemplo p.ex. o foi o Cubismo, e também outros “ismos” constituídos como uma “unidade de pensamento”), mas “uma chegada”, constituída de múltiplas tendências, onde a “falta de unidade de pensamento” e uma característica importante, sendo entretanto a unidade desse conceito de “nova objetividade”, uma constatação geral dessas tendências múltiplas agrupadas em tendências gerais a(l)i verificadas.” Hélio Oiticica, em Esquema Geral da Nova Objetividade., ainda assim, recorrentemente quando se volta para aquele momento histórico da arte, isto é feito cada vez mais sob termos formalistas e menos políticos. Como se o contexto histórico daquela produção fosse mero substrato da obra e não parte integrante de sua própria constituição.

Ao que parece, o mesmo acontece com a tentativa de abordar a produção atual. Sob a égide do pensamento do finis lato sensu (fim da história, das utopias, da arte…), construiu-se uma categoria geral para arte-agora como da ordem da micro-política, do relacional. A construção teórica de Borriaud [4] “Em outros termos, as obras já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista.” Nicolas Bourriaud, em Estética Relacional, pág. 18. não poderia ser mais cúmplice dos modos de pensar e agir do capital. Embora uma vasta produção siga esses termos, não é possível generalizar. Acredito que algumas manifestações artísticas atuais estão profundamente entranhadas do legado deixado pela Nova Objetividade, ainda que o ponto de partida não seja mais um desejo de objetividade, mas de subjetividade.

Como disse, toda engrenagem sistêmica mercantil da arte cada vez mais tem feito das proposições artísticas meros objetos de fetiche. Nesse sentido, paulatinamente as obras de arte deixam de aportar um imaginário simbólico coletivo para se comportar como mero capital especulativo (commodity). Sintoma disso são, cada vez mais, as celebrações em torno do sucesso de venda nas feiras de arte (vide ArtRio 2011), ou pior, ser o sucesso das Bienais medido por cifras monetárias, como a exemplo da Bienal de São Paulo

[5] Nas palavras de Heitor Martins, presidente da Fundação Bienal: “A produção artística é uma das atividades de maior valor agregado na economia. A obra de arte materializa o capital intelectual. Quanto maior valor as obras de arte de nossos artistas adquirem, maior a riqueza gerada para o país, e tal riqueza acaba sendo distribuída entre todos no mundo das artes -artistas, galerias, instituições culturais etc. (…) Uma Bienal forte interessa a toda a sociedade, na medida em que permite que nossa cidade se posicione como um dos grandes polos mundiais de arte contemporânea, gerando riqueza, progresso e benefícios para todos.” (ler mais em: http://sergyovitro.blogspot. com/2010/07/importancia-da-bienal-desp-para-o.html)

Nas palavras de Nizan Guanaes, publicitário e presidente do Grupo ABC, conselheiro da Bienal de São Paulo: “ARTE É um termômetro tão bom quanto qualquer outro para medir o ânimo de uma economia. (…) Não estou defendendo que a arte seja apenas mercadoria – ela é muito mais que isso, claro. Mas, os puristas que me desculpem, ela é também mercadoria. (…)E aqui cabe um esclarecimento: neste ano estou no conselho da Bienal de São Paulo. Sou parte interessada. Interessadíssima. Trabalho para que a Bienal de arte mais importante do país recupere vigor e frescor com o Brasil.” (ler mais em: http://sergyovitro. blogspot.com/2010/08/nizan-guanaes-otermometro-da-bienal-de.html).

Formatividade

Acredito que, intrigado pelo eterno imbróglio da relação arte-mercado, foi buscar em Luigi Pareyson[6] Luigi Pareyson em Teoria da Formatividade. o pensamento sobre as formas, mais especificamente de como o artista produz durante o fazer, e assim evitar o equívoco do pensamento da forma como formalismo. Ele me disse que, segundo o autor, a forma está voltada às vontades tentadas, ou inventadas, durante o fazer e não às condições pré-estabelecidas. Considerando então uma visão crítica da forma enquanto matéria de criação e menos de commodities, me questionou sobre o experimental nas formas da arte contemporânea brasileira. E mais ainda, que identidade eu poderia observar nelas.

Na verdade, não sei se na atualidade é possível separar uma coisa da outra. O caráter experimental da arte brasileira em nada assegura sua não inserção no mercado especulativo, muito pelo contrário. A produção artística feita no Brasil parece ganhar cada vez mais interesse nas negociações de mercado internacional, inclusive com grandes esforços do Estado nesse sentido[7] O Ministério da Cultura, ao longo do Governo Lula e com seus dois ministros – Gilberto Gil e Juca Ferreira –, implantou o Programa Brasil Arte Contemporânea, “destinado ao fortalecimento das artes plásticas e visuais brasileiras no mercado internacional”. Para pensar políticas de internacionalização para a arte brasileira, foi instituído também o Comitê Brasileiro de Internacionalização e Economia da Arte Contemporânea (CBIEAC), que visa, em especial, criar estratégias para a “normatização do comércio internacional” de arte, além de apoiar galerias e instituições colecionadoras como forma de fomento ao lugar da produção brasileira no mercado internacional. Nessa perspectiva, o apoio à participação brasileira na Arco 2008, promovido pelo Ministério da Cultura em ação conjunta com a Fundação Athos Bulcão, foi um dos esforços-chave, reposicionando as concepções de Estado e mercado, público e privado, fomento e lucro etc. (http://www.fbsp.org.br/projetos_ especiais-pt.html).. Ademais, tudo hoje é passível de tornar-se substrato do capital especulativo. Nossas construções mais simples de subjetividade foram capitalizadas. Não há melhor exemplo do que o facebook estimado valer, ao final do ano passado, mais de 50 bilhões.

A grande questão da potência crítico-transformadora na arte hoje não está apenas na sua forma-conteúdo, mas também nas relações institucionais e mercadológicas que estabelece por sua necessidade de visibilidade e legitimidade. Acredito que a arte sempre correrá sério risco de agregar os valores sócio-políticos dos lugares em que se deixa abrigar em nome da visibilidade.

Se por um lado o experimental na arte brasileira resguarda a esperança de que tal exercício da experimentação seja um dia também revolucionário; por outro, esse caráter experimental já foi embutido como elemento constituinte de sua forma. Nesse sentido, para o mercado o caráter experimental da obra é possivelmente também seu coeficiente especulativo.

No que diz respeito, sobretudo, à produção artística contemporânea, a pesquisa acadêmica ainda não deu conta de trazer subsídios suficientes para que tal análise de uma identidade fosse possível.

Má-fé [8] Segundo Vladimir Safatle em Cinismo e falência da crítica: “Má-fé e hipocrisia são atos de fala cujo sucesso depende de uma operação de mascaramento, já que pressupõem que o Outro não é capaz de desvelar a clivagem entre o valor ao qual o enunciado aspira e o interesse que anima a enunciação. Nesse sentido, a má-fé quanto hipocrisia devem aparecer como casos típicos de insinceridade. Elas são figura de um falar e de um agir que se organizam como arte da camuflagem de clivagens. A exposição da clivagem anula a força perlocutória do ato.”

Eu deveria supor que a partir dali discutir arte e política seria inevitável. Mas as perguntas me vieram à queima-roupa: como você pensa a ligação da arte implicada à política? Qual sua visão sobre a influência deste tema recorrente nos discursos curatoriais? Não há uma espécie de banalização ou até mesmo correspondência do tema arte-política enquanto cotação de formas em positividade às instituições culturais, sobretudo, os bancos? Estas [instituições] não seriam também “o mundo” a questionar, ou nos tornamos passivos pela subvenção financeira?

Respondi sem titubear que tem sido recorrente a posição esquizofrênica trazida pelas exposições de “arte-e-política”.

Penso que se trata de má-fé conferir uma agenda política à arte dentro de espaços institucionais notadamente mercadológicos. Visivelmente se vê aí um manejo retórico no sentido de tentar trazer, pelo menos no discurso, alguma ativação política que, no entanto, foi cerceada no momento mesmo da inserção do trabalho de arte nos próprios termos dessas instituições no que diz respeito à visibilidade e à (não) fruição. Por exemplo, na 29ª. Bienal de São Paulo [9] 29a Bienal de São Paulo que trouxe o título Há sempre um copo de mar para um homem navegar., quando os trabalhos chegavam a despertar algum estado emocional de inquietude, isso logo era apaziguado pelo excesso de paredes, de obras, de discursos em forma de bula. A subjetividade era impedida de ser construída por ela mesma. Havia um agenciamento para o consumo do “modelo” bienal e não à criação de um espaço para a fruição de fato das obras. Aquela situação era uma engrenagem ideal para as várias espécies de transe.

Ora, mascarado pelo discurso de “arte e política”, aquele aparato levava a uma dessubjetivação, na medida em que qualquer tentativa de atuação subjetiva era cooptada pelos modos de agir/pensar (ou não agir/pensar) sugeridos pelas bulas, ou pelas falas, nem sempre gentis, de homens-segurança e arte-educadores.

Na verdade, ali, as implicações do “modelo” bienal somado ao rótulo de “arte política” são ainda mais pro – fundas. O chamamento perverso dos “lugares de encontros” de terreiros, acrescentando – pelo manejo retórico – que estes eram “a ágora brasileira”, demonstrava claramente a intenção de mascaramento daquele “convívio”. Maldosamente, forjou-se um discurso que levava as pessoas (em sua maioria branca, renda per capita considerável) a acreditarem que participavam de um modelo democrático, enraizadamente brasileiro. Mal sabiam elas que o faziam de maneira homogeneizada. Penso isso ser o sequestro da cultura para fins de rápido consumo.

E fica claro que a experiência do “modelo” bienal investe-se para que seja consumido e não usufruído – nos termos de uma liberdade plena de uso e abuso dos espaços, trabalhos de arte, etc. –; ali, o Ninho não era ninho; nos terreiros, não baixavam santos. Havia, tão somente, regras de comportamentos previstas e um aparato “educacional” assistencialista, que cuidava de dizer como deve-se ler aqueles trabalhos de arte – que de tão espremidos num espaço, faziam-se pouco eloquentes.

Categorizar a arte no termo de “ar – te-política” já o é em si mesmo a completa despolitização do sujeito.

Fui ao evento Caos e efeito, Itaú Cultural – SP [10] Detalhes sobre o evento ver em: http://www.itaucultural.org.br/index. cfm?cd_pagina=2688&cd_materia=1740. Sobretudo, movida pela comoção criada em torno do “sucesso” [11] Em conversa com a curadora da mostra “selva…” da qual a referida publicação faz parte. Clarissa Diniz conta que as revistas foram tiradas de circulação por um bom tempo e que parte da expografia foi alterada pela instituição. da curadoria de uma das exposições ali abrigada em fazer a instituição publicar um texto que fazia um balanço entre o discurso institucional pró-cultura/arte e o real investimento orçamentário feito. Não vou nem entrar na questão de que não consigo acreditar em qualquer vislumbre de eficácia política deste ato (interferir numa situação não é mudar o sistema). Mas passo a relatar a primeira frase que se vê ao se pôr os pés na exposição: “Advertência: este recinto e, em especial, as atividades nele realizadas estão sendo filmados/fotografados. As imagens captadas poderão, eventualmente, ser utilizadas na produção de audiovisual e gráfica ou exibidas publicamente. Caso não concorde com o registro de sua imagem, não permaneça neste ambiente.”

Sem mais, resta apenas a pergunta: que ato político é esse que se deixa vergonhosamente aceder à imposição de que o público se torne, de maneira inescapável, propaganda veiculada de uma instituição financeira, privada, que usa dinheiro público para se autopromover?

É sem receio que não me é possível acreditar que qualquer instituição, sobretudo financeira (tampouco “o mundo”), esteja preocupada em nos questionar sobre coisa alguma. Creio que essa, tacitamente, apenas zomba de nossa estupidez.

Vigiar

Fez sua última pergunta desejoso de um diálogo mais próximo com a questão que batia de frente com seu trabalho. Como performer, as formas do corpo que experimenta (via fazeres maquinados para tensionar o outro do físico ao visual, disse ele) o instigam a refletir sobre temas entre o cultural e o natural. O corpo está assim na base de práticas motivadas por uma vontade física, iconográfica e em parte existencialista, anacrônica se vista ao lado de atuais teorizações voltadas ao corpo pós-humano, biológico etc. Assim, pensando foucaultianamenteo tema “corpo” para além de Vigiar e Punir, mas enquanto nome em operação na ordem dos discursos da arte, perguntou: como você desenharia um diagrama de “o corpo” como nome influente na atual arte brasileira?

É sempre um risco falar de assuntos assim porque na generalidade própria da fala está o equívoco. Mas partir do pressuposto de que a ideia seria analisada pela reincidência de determinados tipos de trabalho e não em relação à totalidade da produção de arte. Assim, passei a discorrer sobre os motivos que me levaram a acreditar que há certa ingenuidade quanto aos discursos sobre o corpo = subjetividade.

Ora, digo isso porque tudo o que se refere ao corpo, ultimamente (nos últimos 10 anos pelo menos), associa-se ao político. Como se a exposição deste por-si-mesma o tornasse politizado. Há um excesso de trabalhos relacionais e de intenções micropolíticas que me faz desconfiar nos termos desse modo político. Penso que a arte só aporta o político quando consegue estabelecer um espaço público capaz de trazer luz para os assuntos dos humanos: o melhor e o pior, quem são e o que podem fazer dentro desse complexo sistema há muito ditado pela economia. Ao contrário disso, a maioria dos trabalhos não revela as coisas como são, fazem exortações, morais ou não, degradando a verdade a uma trivialidade sem sentido[12] Uma paráfrase do pensamento de Hannah Arendt no livro Homens em tempos sombrios. .

Há um excesso de trabalhos de autorretratos, tanto quanto um excesso de trabalhos performáticos nos quais, em ambos, o corpo do artista metaforiza situações das desventuras humanas. O que essa metaforização em-si-mesma traz de político? Politizar o corpo não é apenas colocá-lo em exposição, mas fazê-lo capaz de conscientizar-se do todo, sobretudo daqueles discursos por trás dos discursos próprios da trivialidade.

Há que considerar também que o corpo político prescinde de sua exposição, como aponta Agamben em O autor pelo gesto. Acredito que a potência mesma do trabalho político não é daquele que põe o corpo em jogo, ou ainda requer “participação”. Mas o que torna o corpo consciente (de si e do todo) e o põe em movimento crítico-reflexivo.

Sombrio

Ao final, depois de ter me debruçado em suas perguntas, quedei com um tanto de perplexidade. Tal jornada me fez parar e ponderar sobre que tipo de conhecimento estamos construindo. Por quais discursos estão entranhados os nossos gestos? Me peguei pensando que a ficção da morte de todas as coisas trouxe consigo a morte real de nossa capacidade de lidar com a mais ardil das ideologias criadas: a de que não há mais ideologias.

Se penso que há alguma possibilidade de escape, é onde a linguagem consiga se manter informe. Sem se deixar capturar pelos discursos e modos de visibilidade mercadológicos. Há que se deixar a linguagem ser linguagem, na qual significante e significado não estejam sempre de mãos dadas. Um lugar onde a forma seja a arquitetura que abrigue a exercício do pensar e esse exercício ser o bastante.

Mas, no momento, estamos ocupados com outras coisas. Estamos morrendo de excesso.

 

* Há um título homônimo de uma canção de Cazuza.

** Este é um texto adaptado: construído a partir de um diálogo que ocorreu de fato com Jorge Soledar. Em pleno mergulho na sua dissertação, mandou-me uma entrevista com as perguntas que são a base desse texto. Ao que agradeço profundamente pela generosidade da troca.

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