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Tradução: Milena Durante
Revisão: Clarissa Diniz
Na definição clássica da palavra forma, seu significado refere-se à aparência ou à configuração de um objeto. A forma influencia os sentidos e a percepção. Mas quais são a relação e a diferença, no nível da forma, entre uma observação da realidade (partículas/fragmentos) como percepção e imaginação de algumas-coisas que podem ou não (vir a) ser objetos, uma pesquisa prático-artística como processo (trabalho?), a criação de uma ‘imagem’ (trabalho?) e a percepção de uma imagem?
Uma forma é percebida, experimentada, e pode ser compreendida como precisa e sensível quando existe uma instabilidade no nível de sua imagem. Essa instabilidade não é a contradição de seu estado de equilíbrio, nem uma inversão da estabilidade, nem mesmo um equilíbrio estéril. Ela implica que nem a criação de uma imagem, de um trabalho de arte, nem sua percepção é uma completa representação/apresentação de uma realidade (fragmentos) compreendida como objeto(s) , mas denota uma mudança capaz de desencadear visões, experiências e pensamentos. A instabilidade da imagem poderia ser compreendida como a criação de um espaço-tempo através do qual detalhes específicos podem ser percebidos como se fossem objetos. No nível da própria imagem, a definição desse aspecto se posiciona no ponto entre: a) uma pesquisa artística e de imagens que está em processo e seu diálogo com um espaço físico específico, com um período de tempo específico – essa é a parte realística ou de apresentação/representação da imagem (= tempo-espaço) – e b) um excedente criativo/abstrato, uma espécie de sugestão imaginária, que é a criação de um espaço e tempo (= espaço-tempo) específicos. O espaço não deve ser aqui compreendido em um sentido arquitetônico, mental, medial ou estético, mas no sentido ‘artístico’, ainda que, por hora, esse sentido lhe faça perceber, experimentar ou pensar algo de outra ordem. É impossível construir estratégias para (re)produzir esse espaço-tempo criativo/imaginário em um trabalho de arte e em relação à sua percepção. A parte sugestiva/imaginária da imagem funciona como um disparador para que se veja, pense ou imagine fragmentos específicos da realidade de maneira diferente, de forma ainda mais clara ou precisa, no nível da percepção. É como se aspectos, elementos ou dimensões do trabalho de arte estivessem dialogando ‘ao vivo’ com a realidade, em frente ao observador, como se o artista abrisse algumas portas de percepção da imagem, de um trabalho de arte, e obtivesse através de seu universo, uma oportunidade para perceber alguma(s) coisa(s) de maneira diferente no momento específico do tempo em que o trabalho é exibido (e algum tempo depois). Esse espaço-tempo é “impossível” de ser traduzido em interpretações culturais ou da história (da arte). Também no caso de um artista que tivesse escrito muito sobre seu próprio trabalho, isso não implicaria automaticamente que, mesmo se seus escritos fossem projetados sobre sua produção, teríamos como vê-la ou pensá-la novamente a partir da dimensão de seu autor . O que também não quer dizer que não haja nada de diferente para se ver em um trabalho após um longo período de tempo. Os artistas são conscientes desse conhecimento específico sugerido tanto por seu trabalho quanto pela percepção que se faz dele, por isso a importância daquilo que é experimentado e/ou pensado pelos artistas não acontece como tradução de um determinado aspecto criativo em apresentação/representação, posto que, ademais, esse conhecimento já seria um passado ou futuro impossíveis para o espectador.
Esse tipo de experiência pode se dar de maneira diferente em relação àquele que observa e àquele que cria, apesar de a observação e a percepção possuírem certos níveis de contato. Um fragmento de realidade e imaginação pode repentinamente tornar-se mais inspirador através do espaço e do tempo criados por determinada imagem, por um trabalho de arte. Essa passagem da experiência e da perceçpão ao pensamento não pode ser completamente situado “na” imagem em si, nem pode ser localizada “em” sua percepção – que, por sua vez, também não funciona como projeção integral da opinião/ideia do espectador sobre uma tela (branca). O processo de alcançar maior discernimento a respeito de um aspecto particular da realidade, bem como seu encontro com a imaginação, podem ser percebidos como precisos, no sentido da criação e/ou percepção de uma forma. O que também implica que a “imagem” nunca está completamente desconectada da pesquisa artística de onde surgiu nem da observação de realidade-fragmentos que um artista faz. Essa precisão específica não pode ser ‘objetivamente’ medida em uma imagem; nem pode ser localizada de forma completamente subjetiva no nível da percepção (ela não é, por exemplo, uma interpretação de uma representação). Essa dimensão de precisão como espaço desencadeado pela forma de uma imagem, que pode vir a desencadear a experiência de uma percepção cuidadosa ou esclarecedora, não é assegurada nem pode ser garantida. Apesar de parecer simples, não é fácil criar um trabalho que desencadeie a experiência de um ‘pensamento preciso’. Se uma determinada forma pode ser pensada como forma artística, é mais fácil lidar com a ‘necessidade’ de um espaço imaginário relacionado à observação/percepção de realidade-fragmentos e então trabalhá-los em um processo criativo de pesquisa artística. Algo similar pode ser descoberto no nível de sua percepção, na intenção de lidar com a percepção de modo mais aprofundado. Para tanto, serão necessários observadores críticos, perceptivos, sensíveis e sensatos. Pode-se dizer que uma representação de algo como ‘esse é o ponto’ na imagem não se dê necessariamente no ponto de encontro/concentração que torna algo mais ou menos ‘preciso’. Nesse sentido – ainda que se compreenda a precisão como inacreditável – ainda lida-se com ‘ela’ por ter sido – consciente ou inconscientemente – utilizada como pano de fundo para uma ação específica e para uma produção de forma(to) ou tema. Mesmo que uma prática como a pesquisa artística nunca possa ser objetivamente ‘explicada’ – devido a sua necessidade de estar entre forma e imagem, realidade e imaginação e, mesmo que uma prática artística como pesquisa possa ser facilmente projetada naquilo que ela não é –, acredito e enfatizo que tanto a arte contemporânea quanto sua percepção demandam uma necessidade que vai além da necessidade subjetiva de um artista, de um universo da arte e de um observador/ouvinte. Penso que a criação de um espaço-imaginário/abstrato, como um dom ou uma oferta, não pode acontecer em outro contexto senão naquele da arte contemporânea. A criação desse espaço também desencadeia uma resposta que será devolvida. Assim como canta Sandro Perri, I can’tfillimpossiblespaces [Não posso preencher espaços impossíveis](2011) [1] , nada disso implica que certas coisas não possam mudar ou ser mudadas. Implica, por outro lado, que algum tipo de espaço precisa ser criado e não pode ser preenchido como um formato ou tema, por exemplo. Não estamos falando de um espaço etilista nem de um espaço populista (cultural).
Após um curto período pintando pequenos formatos, a artista Julia Spínola (1979, SP) começou inscrevendo e combinando formas geométricas, detalhes fotográficos e materiais como tinta, lápis e fita adesiva em seus desenhos(colagem). Enquanto os combina, ela o faz de acordo com as leis da física (peso, gravidade, etc.). Ao mesmo tempo, inscreve observações anônimas sobre a dinâmica do movimento em espaços públicos (especialmente situações, ações, posições, códigos, distâncias, etc.) em seu corpo, que produz ‘o gesto’ pelo qual uma série particular de trabalhos será criada. Examinando, em especial, os gestos e códigos que conectam uma ação à seguinte, Julia Spínola afirma:
No ato de observar, extraio alguns detalhes de todo o conjunto. Esses detalhes estão bastante relacionados a atitudes e situações dos corpos das pessoas em relação ao espaço e em relação a outros corpos. É através da observação e do detalhe que posso estabelecer uma ligação específica e emocional com anônimos. A partir dessa observação internalizo um gesto, às vezes repetindo um simples movimento, como numa performance para mim mesma, sintetizando um gesto que será então exercido no plano do papel.
A observação que um artista faz de seu processo de pesquisa pode ser analisada através de um olhar físico, mecânico e relacional. Spínola coloca seu corpo em relação a outros corpos para ajudá-la na obtenção de um eixo de movimento à medida em que diferentes linhas perspectivas partem de suas observações, linhas essas que são internalizadas através de gestos – como infecções poéticas da mão – e trazidas de volta para seu trabalho. No ambiente privado de seu ateliê, performa esses gestos que não pertencem a sua experiência pessoal. O corpo de Spínola serve aqui como testemunha, como instrumento de pesquisa analítica e como um tipo de máquina de criação e escrita completamente comprometido com o trabalho, considerando uma série invisível de códigos e gestos memorizados através do corpo. Depois da pesquisa, do estudo e da realização de performances nesse mesmo ambiente privado do ateliê, ela experimenta esses gestos, ações, códigos e posições. Um desses experimentos toma a invenção/criação de um gesto a partir de elementos do intervalo ou da sequência que se dá entre duas ações, entre dois sistemas, dois códigos ou dois gestos relacionados a situações específicas da realidade e do ato de falar e escrever . Tal “gesto-sequência” específico poderia ser chamado de objeto-figura rítmico, que ela posteriormente investe na atmosfera pública e no mundo da arte contemporânea e, recentemente, insere também como esculturas públicas nas ruas. Esse “gesto-sequência” artístico que pode ser compreendido como uma “ação-código”, se injetado no espaço público, e pode ser chamado de nova forma de dar/receber uma observação, conhecimentos e, ainda, pode ser compreendido em termos de nano-comunicação. Estão imaginariamente posicionados entre duas ações, movimentos, sistemas, códigos para criar um mais físico, diferenciador e relacional. Um gesto-sequência e uma ação-código não precisam ser interpretados como uma ação politicamente (in)correta, nem como uma ação que produz a repetição de uma forma. Também não são psicologia ou arquitetura. Uma ação-código e uma ação-gesto estão, por um lado, ainda conectados ao corpo e, por outro, são mais um objeto que uma ‘coisa’. O foco de Spínola no ritmo de seus objetos-figura não está ligado ao desejo tradicional de harmonia e beleza – no sentido de um ‘estado de espírito’ mental, cósmico, espiritual. Spínola cria pequenos desenhos-colagem, concentrados e frágeis. A precisão e sutileza empregadas por ela para afinar ou sintonizar as colagens em relação às partes pintadas e desenhadas denotam hipersensibilidade e profunda pesquisa artística, que incluem mudanças e saltos que se tornam concretos no sentido de se tornarem objetos-figura.
Em 2010, Spínola criou dois trabalhos de vídeo em loop cujo foco era o aparecimento/desaparecimento do objeto através do movimento de uma máquina giratória e o efeito de espelhamento de uma fonte de luz. Em 2012 ela retorna à pintura, dessa vez utilizando papel cartão. Desde então, também cria tipos específicos de performances particulares e faz esculturas nas ruas, ou esculturas-rua, que fotografa como documentos-pesquisa. Não é que o meio seja a massagem/mensagem, nem que a ação se torne forma e nem mesmo que a intermedialidade em si produza uma forma-conteúdo específica. No caso dessa artista, é o gesto-sequência, como ação-código, que realiza um objeto-figura. Abstrato-realismo, um conceito que desenvolvi para lidar com parte da arte contemporânea (p.e.: Bracha L. Ettinger, JoëlleTuerlinckx, Matt Mullican, AdriaanVerwée, Adriano Costa, Laurent Dupont-Garitte e outros) indica que a própria imagem evidencia uma relação de diferenciação e relacionamento entre uma pesquisa artística baseada na observação, no processo e na experimentação com realidades-fragmento de diferentes tipos e um excedente cambiante criativo/imaginário que não é representação/apresentação nem uma transformação da (assim chamada) etapa inicial da pesquisa artística. O abstrato-realismo de Julia Spínola poderia ser chamado de objeto-figura, tanto apoiado por gestos-sequência e ações-código quanto desencadeando-os.
Em abril de 2008, em Madri, eu me apaixonei por um trabalho de arte de Julia Spínola, uma colagem com pedaços de papel cartão [2] . Parecia um relógio de sol mas não era exatamente isso. Parecia uma figura geométrica, mas também não era isso. Parecia um diagrama matemático, o que também não era. Seria mais do que apenas uma forma abstrata, uma figura geométrica? Experimentei-a como uma forma precisa de lidar com a realidade. Pedaços de papel cartão foram cortados e colados em um pedaço de papel A4. O papel estava amassado e até um pouco sujo. Essa imagem não parecia um estudo mas, sim, a materialização clara de uma pensamento experimentado. Por que esse trabalho se mostrava e ainda se mostra de forma tão precisa para mim? (imagem 1). E por que essa precisão é capaz de desencadear algo de forma diferente em certo período de tempo – um pouco mais do que quatro anos atualmente – mesmo se tanto a distância entre forma e conteúdo na figura contida na imagem quanto minha percepção permanecem exatamente as mesmas? Gostaria de descrever essa imagem ao leitor como um exercício de formar um objeto a partir do ponto de vista do gesto-sequência e da ação-código. Mudanças e saltos que se dão entre esses espaços. Ação e objeto alternam-se entre distância e relação. Todos esses fatores também influenciam o aspecto do tempo de forma específica.
Não existe diferenciação entre figura e fundo nessa colagem. Há apenas uma figura em um fragmento de papel sujo (é assim que eu me lembro do papel sem título que vi em 2008). Uma linha vertical e outra horizontal se tocam Intothe point[No ponto] em que se encontram. Quanto mais próximas desse ponto de encontro, mais finas as duas linhas se tornam. Do outro lado, essas duas linhas se tornaram mais ou menos triangulares, como dois planos de três pontas. Essas linhas também parecem ser duas setas, uma horizontal e outra vertical que se unem em um ponto ou alvo que parece ser o invisível visível. Mas seria mesmo um ponto de fuga? O foco do próprio desenho-colagem não é esse ponto de encontro específico. O desenho-colagem tem um foco mas ele, em si, não é o ponto de concentração do desenho: que pode ser visto ao mesmo tempo em que outras partes do desenho são vistas; ele não domina a imagem. Alguns centímetros acima desse ponto de encontro, duas formas retangulares se encostam: uma grande e outra muito pequena, que cruza a linha vertical. Um pedaço de papel preto em forma de trapezoide se apoia nessas duas formas retangulares. Mais precisamente: o trapezoide preto se equilibra sobre as duas formas retangulares deixando um pouco de ar embaixo. O apoio parece ser apenas parcial, não completo, não absoluto. Acima desse encontro três pequenas figuras em forma de seta criam, juntas, metade de um círculo. Parece que um par de compassos foi colocado No ponto desenhando uma linha circular partida, interrompida, composta de três pequenas e diferentes partes, que estão posicionadas nessa estrutura que criam coletivamente, mas também cruzam a linha vertical do diagrama – que não é um diagrama. Parece impossível que essas três diferentes formas sejam capazes de cruzar a linha horizontal embora a linha vertical seja por elas atravessada em muitos diferentes pontos. Essa figura poderia ser chamada de uma forma-conteúdo abstrato-realista que não é formalista, nem apresenta conteúdo simbólico. Essa imagem é um pensamento que foi experimentado, o sentimento de um pensamento – porém, esse pensamento em si parece impossível de definir, tematizar e até de conceitualizar. O que pode ser experimentado são distâncias diferentes e particulares, e relações específicas. Essa figura é um disparador e sua percepção parece significar que sua forma-conteúdo pode mudar com o tempo. Por outro lado, essa forma-conteúdo não se trata de uma fantasia do observador projetada na imagem. Eu não preencho essa figura com conteúdos específicos, o que faço é lidar com o ritmo dessas três diferentes distâncias que estão relacionadas umas às outras sem representá-las no sentido de usá-las como um formato. Ter escolhido esse trabalho para a descrição não significa que esse desenho seja o único nem o mais importante trabalho de Julia Spínola. Entretanto, ele de fato funciona como um ponto de apoio específico. O trabalho foi feito em 2008 e refeito em 2011. Entre 2008 e 2009 Spínola pesquisava as relações entre gravidade, poder, valor, peso, deslocamento, tensão e outros aspectos das relações de forte interdependência. Isso significa que a diferenciação não pode ser pensada apenas em um nível objetivo, ainda que pesquisada por um artista cujos parâmetros sejam também científicos. Nesse período, os conceitos de tempo e de imaginação não foram mencionados pela artista. A imagem dessa figura específica parece completamente abstrata, mas trabalha de forma diferente de uma figura abstrata (ou diagrama, por exemplo) por conter a possibilidade de se tornar um diálogo análogo com a realidade para desencadear um objeto-figura. E, em sua percepção, essa figura também pode vir a ser tanto um gesto-sequência quanto uma ação-gesto sem funcionar, em qualquer nível, como uma construção (de mudança ou conservação) que tenha sido empurrada ou forçada para a realidade. Ela não é uma representação, nem uma apresentação, e também não é uma transformação (mimética). É uma figura abstrato-realista que mede a distância de uma forma-conteúdo específica. Poderia ser chamada de estrutura. E não era (ainda) parte de uma ‘série’.
Em 2008, Spínola fez alguns outros desenhos-colagem que em 2009 foram intitulados Geológicos e expostos com esse mesmo título em 2010, além de ter feito, no mesmo período, desenhos com detalhes fotográficos (mas não colagens) que em 2009 foram intitulados The Leftovers [As sobras]. The Leftovers se seguem num gesto similar àquele dos Geológicos mas mostram os limites de um gesto específico em uma escala nano-real. As consequências desses gestos específicos em seu próprio trabalho/trabalhar podem ser descobertas nessa série. O gesto no trabalho de Spínola funciona primeiramente como uma ferramenta que faz do meio sua intermedialidade. Repentinamente, Spínola possui um gesto – uma mão-olho-anônima (cf. escrita automática) – e com/através desse gesto, faz uma série de trabalhos. Entretanto, o gesto não se trata necessariamente de um ângulo, de uma perspectiva, de um ponto de vista, mas, em vez disso, trata-se de uma estratégia que lida com a realidade física e a realidade da relação em um mesmo nível. Nesse espaço-tempo determinado, o abstrato-realismo passa a ser um objeto-figura através de um gesto-sequência que, no espaço público, pode se tornar uma ação-gesto.
Em 2008, realizei a curadoria de uma exposição coletiva chamada Trigger [Disparador/Gatilho] com Julia Spínola, AdriaanVerwée, Johan De Wilde e Ariel Schlesinger na galeria TatjanaPieters, em Ghent. Foi a primeira viagem de Spínola à Bélgica. Pedi a ela que trouxesse o referido trabalho descrito nesse texto, bem como os Geológicos e The Leftovers. Em 2008 essas colagens-desenho e desenhos com detalhes fotográficos sem colagem ainda não tinham título. Geológicos, entretanto, já tinha um subtítulo: Strong in Warm [Forte em Calor] (tinta a óleo, fita adesiva e colagem sobre papel, 21 x 29,6 cm, 2008), um desenho em que uma mão toca algo que parece/poderia ser a pele de um animal, um elemento que também pode ser interpretado como um globo, tendo ao seu lado direito uma figura retangular ‘pendurada/flutuando’ em um ambiente com diferentes marcas de lápis, fita adesiva e tinta; assim como o trabalho Here [Aqui]. Consequencia (tinta a óleo, fita adesiva e colagem sobre papel, 21 x 29,6 cm, 2008) mostra as costas de uma figura masculina parada em frente a um pilar, algumas palavras recortadas de revistas (mencionadas acima, Carmen), além de algumas formas pintadas com as seguintes cores: preto, verde, vermelho e um branco sujo (imagem 2), Loosening [Afrouxamento] (tinta a óleo, fita adesiva e colagem sobre papel, 2008), Response With [Resposta com] (tinta a óleo, fita adesiva e colagem sobre papel, 21 x 29,6 cm, 2008), Landsite [Terreno]. Dura e Landsite. Caress [Carícia] (tinta a óleo, fita adesiva e colagem sobre papel, 21 x 29,6 cm, 2008) mostra algumas mãos, pernas, um camelo (da marca de cigarros) e algumas listras (imagem 3) e Vertigo [Vertigem] (tinta a óleo, fita adesiva e colagem sobre papel, 21 x 29,6 cm) é uma colagem de uma imagem de um carneiro fixada com fita adesiva em uma pintura preta, verde e branca com alguns sutis toques de amarelo em um dos cantos (imagem 4). The Leftovers foram intituladas em 2008 como Without I [Sem I] (colagem e caneta esferográfica sobre papel, 29,6 x 21 cm, 2008), Without II [Sem II] (colagem sobre papel, 29,6 x 21 cm, 2008), Without III [Sem III] (colagem sobre papel, 29,6 x 21 cm, 2008), Without IV [Sem IV](colagem sobre papel, 29,6 x 21 cm, 2008) e Without V [Sem V] (colagem sobre papel, 29,6 x 21 cm).
The Leftovers são desenhos com detalhes fotográficos que por ela vão sendo movidos na mesa, enquanto trabalha e que, em um certo momento, encontram seu lugar no papel. Por que alguém tem que agir diferentemente para que os detalhes encontrem o lugar que lhes é próprio ? Imediatamente antes do gesto acontecer, há um momento posteriormente descrito por Spínola como ‘discriminação’ – o que demanda uma abordagem hipersensitiva, como resposta a algo, que será feita através da escolha, do ato de escolher e de posteriormente considerar as consequências desse ato. É possível ver a mão como um punho que se combina com duas linhas (imagem 5), os olhos de um lobo, as pernas de dois corpos entrelaçados e assim por diante. O toque com/da mão e com/do olhar parecia ser importante naquele momento. As imagens fotográficas estão tão sutilmente arrumadas em um pedaço de papel (também A4) que é preciso se aproximar bastante para ver alguma coisa.
Quando Spínola chegou a Ghent, ela não havia trazido o exato conjunto de trabalhos de arte que eu havia pedido, descritos nesse texto. Em especial esse trabalho, que havia desencadeado algo importante e agora não estava presente para a exposição Trigger. Os outros desenhos-colagem estavam presentes. Geológicos e The Leftovers foram expostos na mostra da cena contemporânea de arte espanhola Antes Que Todo no CA2M em Mostóles, próximo a Madri em 2010. Eles foram combinados no CA2M com dois novos trabalhos, dois filmes sem som, Lapso Vertical (2010) (imagem 6) e Lapso II (2010) (imagem 7). Em Lapso Vertical, o primeiro filme de Spínola, um loop de 1’29”, a importância do gesto e do espaço entre aquelas mãos/gestos foi explorada em relação à ideia de ‘lapso’ e ‘verticalidade’. A câmera se aproxima das mãos de um homem que está sentado e falando à mesa, suas mãos se movem. É um filme mudo, o que aumenta a importância dos gestos e aumenta ainda mais o vazio entre suas duas mãos (imagem 6). Em Lapso II (2010), um filme em loop de 11’05”, um gravador giratório é transformado em um zootropo através de espelhos e um spot de luz. No meio desse mecanismo é possível perceber o aparecimento e o desparecimento de um objeto. A percepção desse objeto é interrompida pelo ritmo rápido e regular do mecanismo. Nesse trabalho, o observador vê o processo através do qual um objeto se torna uma imagem que aparece e desaparece (comparação com o filme em loop) (imagem 7). Vale notar que a exposição Antes Que Todo não tinha um tema específico; ela apresentava a cena artística contemporânea espanhola. Manuela Moscoso, uma das curadoras, convidou-me para escrever um ensaio para o catálogo dessa exposição coletiva. Fiquei impressionada com os títulos dos trabalhos que vinham dos diferentes artistas incluídos na exposição que tinham vários pontos em comum e, então, comecei meu ensaio a partir desse aspecto, que estava presente no conceito de ‘borderlinking-in-differentiation‘ [conexões-fronteiriças-em-diferenciação] de Bracha L. Ettinger e em alguns conceitos do livro Ser e tempo de Heidegger. Entretanto, esse ensaio partiu da colagem sem título de Spínola mencionada acima (imagem 1). Fiz menção ao “Desenho sem Título” sem me referir especificamente a sua imagem – pois não estava representada na exposição nem mesmo através de uma descrição – entretanto, o “gesto-sequência” como “objeto-figura” desse desenho específico me pareceu importante para tratar de algo na própria exposição coletiva para o qual eu estava respondendo em meu texto e também como possível ponto de encontro em que Bracha L. Ettinger e Heiddeger poderiam se tocar e, assim, eu poderia retornar a esse ponto, após a própria artista retornar a ele também. Cito aqui um excerto no qual me refiro a esse desenho de Spínola:
Julia Spínola: Dibujosin título [Desenho sem Título]; quando a imaginação faz ‘sexo’ partindo de duas (ou mais) direções, de maneira profunda demais para aquela maneira, partindo dos dois (e diferentes) lados, por exemplo: afastados um do outro e profundamente inclinados um na direção do outro, como sugeri nos desenhos e colagens de Spínola – mas quando nenhum dos dois poderia ser pensado como “pura filosofia” ou como “estética impura” – pergunto-me se, nessa ocasião, essa experiência da imaginação poderia ser sentida, experimentada, pensada e conceitualizada sem recair na síntese de Hegel? [3] BeforeEverything/ Antes que todo, curators: AimarArriola e Manuela Moscoso, CA2M, Madrid, 2010, p. 66.]
Nesse contexto, também escrevi:
A partir do momento em que tentamos ‘traduzir’ o complexo matricial afetivo-não-cognitivo em logos é que ‘precisamente’ desaparece o conhecimento afetivo do campo matricial, um conhecimento que Heidegger não pode imaginar ser ‘conhecimento’. Mas depois de ler Heidegger, torna-se claro que em termos de logos, também há espaço para silêncio, para um logos como escuta que poderia se abrir em direção ao ‘matricial’ que nesse sentido não é apenas silencioso mas aquele cujas suas ressonâncias são desencadeadas para que se pronuncie. [4]
Robert: “Elle est sortie?” [tradução: Ela saiu?]
Paulette: “Oui, acheter un jaune, un rouge et quelques bleus pour achever son tableau” [5] .
[tradução: Sim, para comprar um amarelo, um vermelho e alguns azuis e terminar sua pintura]
Guy De Cointet
Em abril de 2011, Julia Spínola escreveu-me:
Depois do modo “psicose” de pensar o espaço do ouvido como uma espécie de vazio (de sua série de cinco desenhos intitulada OrejaVaciamiento, 2011, imagem 8), fiz um movimento com minha cabeça que envolvia uma rota que ia da orelha ao pé. Quando estava tentando recriar essa rota no meu corpo, toquei minha orelha e então preciseiparar no quadril para seguir em direção ao pé. No processo fiquei consciente de que estava tentando colocar de volta a figura em minha vida, a ideia de figura e pensando em sentimentos sobre o centro do papel como um estômago (de sua série de sete desenhos com guache e colagem, intitulada Oreja. Cadera. Pie, 2011). [6]
O movimento das mãos, presente no vídeo, retornou nessas duas séries de desenhos mas de forma diferente. OrejaVaciamiento partiu da relação das mãos de alguém andando e do espaço que foi criado sob as mãos durante esse movimento. Spínola chegou à conclusão de que esse tipo de espaço específico é ‘esvaziado’ através do movimento no ritmo de caminhar, passo a passo. Essa intuição confluindo em (direção a) um ponto de concentração corre em paralelo ao mecanismo do próprio ouvido. Pensar o ouvido como uma forma pura que se esvazia, ajudou-a a encontrar (nela mesma) também o gesto pelo qual formas são esvaziadas no papel, em um tipo de movimento de forças contraditórias/opostas. Esse espaço específico de esvaziamento centrífugo correspondendo ao (ato de) desenhar pode criar uma mão que pende de corpo em movimento, de uma pessoa caminhando. Na série de sete desenhos, Oreja. Cadera. Pie (2011) ela pesquisa a relação entre o ouvido, a cabeça, o quadril e os pés. Através de sua pesquisa artística de duas séries de trabalhos ela parece sugerir que a diferença conceitual está especialmente relacionada a uma pequena distância de tempo entre ouvido-mão-cabeça-pensamento/criação e ouvido-(mão)-pés-pensamento/criação e movimento. Nos sete desenhos de Oreja. Cadera. Pie (2011) ela usou as orelhas e os pés como pontos cardeais, como um rascunho de uma linha imaginária que, partindo de um ponto ao outro, cria (em parte) uma relação similar àquela do ponto de partida inicial (assim como no efeito espelhado já mencionado). Spínola esclareceu que, enquanto internalizava a experiência da distância percorrida e ensaiada por essa linha imaginária, o gesto de tocar a orelha com a mão e em seguida tocar o pé acontece facilmente, pois de modo involuntário a mão continua seguindo a orelha quando a pessoa se senta. Mas o que exatamente acontece no nível dos desenhos OrejaVaciamiento (2011) (imagem 8)? Sobre o papel, muitos pontos pretos de tinta foram soprados como pó de estrelas. Algumas dobras sulcaram o papel formando diferentes quadrados e partes dele estão coladas umas às outras – em vez de novos pedaços de papeis terem sido colados – dando forma à superfície do desenho. Algumas linhas pretas, listras e curvas fechadas estão entrelaçadas em um diálogo análogo com linhas ocre-amareladas, luas crescentes, quarto crescentes, quarto minguantes e minguantes como se fossem círculos mordidos e triângulos que parecem ser sobras de formas retangulares. Há um pouco de tinta avermelhada e amarelo-sujo no fundo – ou seria na frente? – assim como na pintura negra de Goya O Cão [El Perro, El Perro Semihundido, ac. 1819-1823]. No desenho-colagem Oreja. Cadera. Pie (I) boa parte dos pontos de tinta preta ainda aparecem, assemelhando-se a uma planta baixa com pessoas se movendo. Também é possível notar interações com a escolha de um sutil amarelo e polígonos de cor de concreto. Em Oreja. Cadera. Pie (II) alguns pontos pretos ainda estão presentes mas uma linha vertical grossa assume o controle e cruza diversas listras horizontais. O desenho não tem uma superfície mas é formado pela superfície de diferentes pedaços de papel colados juntos. Em Oreja. Cadera. Pie (III), o desenho se complexifica: muitas pequenas formas retangulares com pontos pintados são a superfície e linhas em diferentes direções tentam se manter juntas de forma bastante dominante. [7] É como se ela não quisesse desenhar a realidade em um pedaço de papel mas quisesse objeto-figurar realidade-fragmentos. Em Oreja. Cadera. Pie (IV) um sutil ponto de tinta azul e quatro retângulos de cor de cimento, além de algumas formas de diamante, criam uma figura imaginária que parece estar em relação com pontos dentro de suas fronteiras imaginárias, mesmo que essas fronteiras não estejam claras no desenho e mesmo que ainda existam pontos fora dessas linhas imaginárias. Todas as listras desparecem nesse momento. Elas são apenas dobras e algumas linhas ‘perdidas’ que encontraram para si um lugar (imagem 9). Em Oreja. Cadera. Pie (V) algumas linhas verticais e horizontais parecem sugerir uma espécie de estrutura por debaixo delas, uma estrutura que é parte visível e parte invisível – devido aos diferentes retângulos de papel colados na estrutura inferior. Todos os pontos parecem ‘acontecer’ no fundo, exceto alguns ‘gordos’ bem na frente. Oreja. Cadera. Pie (VI) parece ser, por sua vez, uma repetição de Oreja. Cadera. Pie (IV) mas com pontos de pó de estrela, sem a cor azul, com uma dobra no canto esquerdo, uma forma de V no canto superior, uma linha em forma de gancho do lado direito e uma linha reta chanfrada embaixo.
Assim, o desenho-colagem sem título tornou-se a imagem do convite da exposição individual Intothe Point (Vibration) na galeria TatjanaPieters em Ghent (de 15 de maio a 20 de junho de 2011). E seus desenhos-colagem foram refeitos em 2011 e intitulados: LenghtDrawing [Desenho Comprimento] (2011), fita adesiva e cola sobre papel (29,6 x 21 cm). Os dois filmes em loop (2010) da CA2M foram mostrados em conjunto com doze LenghtDrawings em sua exposição individual Intothe Point (Vibration) [Vibração] (2011). Na verdade, havia treze desenhos-colagem mas LenghtDrawing foi exposto ‘sozinho’ do lado de fora de seu videoespaço (imagem 10). Nos LenghtDrawingso que se tornou mais importante foi o ritmo das diferentes linhas horizontais coladas com fita adesiva no papel. Cada desenho reagiu de forma diferente à existência da linha vertical, que foi colocada ela própria em um lugar diferente em cada desenho. Em outras palavras, Intothe Point (Vibration) parece ter desencadeado doze desenhos rítmicos com fita adesiva, mas novamente um desenho em especial mantinha certa distância dos demais.Esses Lenght Drawings não eram apenas mais rítmicos que aqueles da série anterior com linhas e pontos mas também pareciam mais estruturados. No mesmo ano, Spínola criou uma série de desenhos com fita adesiva sobre papel, intitulada Circular. Punto y caída[Circular. Ponto e queda]. É uma série de desenhos que pode ser compreendida como o estudo dos possíveis movimentos de um objeto leve enquanto cai. Spínola relaciona a figura, o corpo humano em movimento, a linha vertical e a linha como espaço mas tendo, cada vez mais, movimento do objeto como foco principal.
No tipo de revolução acontecida entre 2011 e 2012 na pesquisa artística em processo de Spínola. Revolução essa que foi introduzida por alguns trabalhos feitos com lixa e guache sobre papel cartão e intitulados Figura/Frase (imagem 11). A relação entre ‘a figura’ e ‘a frase’ (ouvir, escrever, repetir, comer) com uma fascinante parada na letra ‘R’ do alfabeto, desencadeia o primeiro objeto-figura escultural, aquele com arame e papel cartão intitulada R (objet 1) (2012). Sobre essas pinturas Figura/Frase com lixa e guache, Julia Spínola escreveu:
Cada uma das linhas verticais tracejadas deveria ser entendida como uma figura humana. Nesse caso, a figura é encarada de duas formas. Por um lado, ela forma o sentimento do ato de falar através do corpo, assim como a vibração dos sons à medida que as palavras passam por ele: o centro está, então, em movimento. Além disso, o sistema de construção dos três papeis-cartão correspondem aos ritmos da escrita convencional, nesse caso uma escrita vertical. […] Nos testes preliminares para essa série, desenhei letras, especialmente a letra R, associando-as à figura humana, por exemplo um R que se comporta de acordo com relações nervo, ou incluindo um centro, uma barriga que funciona como metade da letra, e um ponto de ação ou estruturação. (Incluo fotos dos rascunhos, a primeira evidência para uma escultura-em-processo de ferro forjado. A altura de fato do R desenhado na parede corresponde a minha, 1,62 m). Ao mesmo tempo, tirei a foto que chamei de Frase e que é inseparável dessa série. É uma imagem de duas mãos da mesma pessoa, uma delas está SOBRE um objeto REDONDO que força a mão a tomar sua FORMA. A mão direita está ABERTA sob uma corrente de água que CORRE POR seus dedos. É a imagem de um momento no qual duas sensações materiais contraditórias ocorrem simultaneamente por todo o corpo e se encontram em um centro que agora está se movendo. A linguagem ou a frase é movimento, passando de uma coisa a outra, uma transformação que acontece e é perdida no momento. Em certo sentido pode ser um pouco bobo dizer mas quando se começa uma frase, quando alguém ousa começar uma frase, em primeiro lugar se pega alguma coisa, no começo da frase que então se solta, que se deixa ir quando a frase termina. […] Acredito que exista uma relação na construção de uma frase e um movimento que acontece em dois tempos, em dois golpes… mão fechada (pãm) mão aberta (pãm). Em relação ao processo, o intuito não era representar mas fazer novamente, pintar ou construir a imagem em dois movimentos ou dois golpes. Quase como falar. Eu também queria experimentar o momento, a imagem final que se uniria a tudo. Foi tão importante o momento de começar cada um dos papeis-cartão que fui obrigada a preparar uma estrutura ou sistema anteriormente, como se eu praticasse um esporte, fizesse um movimento para conseguir alguma outra coisa e não tivesse opção a não ser entre dois ou três gestos, rápido. E penso, algo que me ocorreu agora, que há uma relação-espelho com as três pinturas, elas todas são figuras. Eu sou eu-fazendo-as, não em um sentido pessoal mas em um nível material. [8]
Não seria exatamente esse ‘eu-fazendo’ que teria se tornado um tabu tão grande nas primeiras décadas do século XXI, cujo foco se concentra tanto no (existir muito menos/muito mais) ‘ego’ do ser humano? Talvez a partir do momento em que o ego (como uma falsa auto-imagem) assume o controle como um tipo de (identidade) ação, devemos então nos esquecer do eu-fazendo-forma. Se existe uma eu-forma, pode existir também um modo (objeto-)físico e relacional (aéreo, cf. Ettinger) de considerar coisas em alguns corpos e objetos.
No período entre maio e julho de 2012, Spínola realizou algumas performances-particulares e um evento-leitura público chamado de Charla 1 que aconteceu em seu ateliê/sala de estar em Madri. O projeto se intitulava A KASSEN e foi realizado em colaboração com Christian Bretton-Meyer, Morten Steen Hebsgaard, SørenPetersen e Tommy Petersen. Essas performances privadas sem público feitas por Spínola parecem ser a formação e a visualização de uma linha imaginária inspirada por alguma coisa que a artista experimentou ou ouviu em alguma rua à noite. Ela escreve:
Um bêbado está na rua, ele fala muito alto. É difícil entender qualquer coisa que diga. Às vezes ele cobre sua boca com a mão mas continua falando, repetindo essa sequência por um tempo. Sua voz se torna um som rítmico que, para mim, parece o começo de um outro tipo de comunicação.
Através da performance privada de um “gesto-sequência” Spínola fez o primeiro rascunho de um novo tipo de escultura: a escultura-figura que poderia ser instalada como “ação-código” no espaço público. Essa performance privada (também fotografada como documento) mostra diferentes pares de sapatos, jornais, alguns quiuís, roupas e batatas. A linha imaginária torna-se um conjunto ou constelação tridimensional na qual ela integrou os ladrilhos de sua sala. A artista/performer intervém nesses diferentes pares de sapatos, adentrando-os e criando uma agrupamento deles com as roupas, quiuís, jornais e batatas; uma constelação que procura encontrar a mais precisa posição de forma que um andar, um falar, uma queda de objeto-figura possam criar espaço-tempo. A queda da figura que caminha e a queda do objeto se unem, nesse trabalho, em certo lugar de sua sala de estar que funciona como uma superfície, como o papel/página de um desenho. Pode-se experimentar um certo conflito entre a linguagem e o material resistente do objeto. Entretanto, o ato de combinar os objetos nessa figura-frase-linha poderia ser comparado a estratégias linguísticas, como por exemplo analogia, metáfora e estruturas hiperbólicas. Seu lugar na linha vertical é influenciado por características físicas específicas e relacionadas às capacidades de cada objeto em particular. Esses objetos-figura como frase/traç(ad)o-objetos poderiam ser percebidos como um ensaio sobre o sapato ao mesmo tempo em que uma tensão entre a imagem e a sugestão do texto escrito pode ser notada. Através dessa escultura performativa, Spínola conecta ‘o fim da frase’ com ‘a queda no chão’ que um objeto faz. Em suas quatro esculturas-rua Frase (objeto) Vertical HozirontalCalle [Frase (objeto) Vertical Horizontal Rua] (2012) ela apresenta uma composição com barras de metal e blocos de concreto (imagem 12). Os blocos de concreto estão ligados ao topo, ao meio e no fim das barras de metal. Essas formas estão dispostas apontando para diferentes direções ou de forma vertical. Ainda que as estruturas pareçam um tanto pesadas, o conjunto do trabalho tem um ar leve e brincalhão. A instalação temporária, ou melhor, o agrupamento desses trabalhos esculturais no espaço público sempre aconteceu sem um público específico – exceto passantes ocasionais. O trabalho foi realizado em quatro ambientes diferentes. A escultura funciona como uma série de desenhos dispostos na calçada de uma rua, com a grade fazendo parte da composição. Na documentação fotográfica o trabalho parece um obstáculo vívido, humorístico, como os restos de uma composição performativa na calçada. No experimento escultural seguinte, a performance privada ganha repercussão. Gestos-sequência, ações-código e objetos-figura são combinados em uma constelação escultural tridimensional seguindo a estrutura de uma linha em zigue-zague e cuja linguagem é o diálogo análogo. Na escultura-calçada Frase (objeto). Boca. Linea[Frase (objeto). Boca. Linha] (2012) (image 13) uma linha reta cruza o padrão de linhas em zigue-zague da calçada. Diferentes objetos, dois pares de sapatos (um branco e outro marrom), um pequeno jarro com arroz e um grande jarro cheio de terra estão em composição com uma xícara de café. Esse desenho-colagem escultural feito de café continua e cruza a grade da calçada. Parece refletir no gesto-sequência e ação-código de lidar com dois diferentes gestos acontecendo ao mesmo tempo, que está ecoa no derramamento do conteúdo de dois diferentes jarros, principalmente arroz e terra. Algumas marcas coloridas de vermelho e azul também se integram ao desenho de Spínola. A terceira escultura-calçada Frase Objeto Cuerda [Frase Objeto Corda] (2012), uma composição de cinco variações, é mais abstrata mas ainda muito rítmica e até mesmo musical. Cada corda está pintada de diferentes cores como preto, azul, verde, marrom e vermelho. Estão combinadas em um agrupamento que funciona como uma passagem sendo que, de cada um dos lados, há uma parede de concreto construída de material diferente. O chão se parece com primeiro plano de tijolos de lego (imagem 14). Na recente exposição individual de Julia Spínola Habla Se Tapa La Boca/The Drum in theMouth [O Tambor na Boca] (2013, galeriaTatjanaPieters, Ghent) a ação-código se apoia em alguns desenhos em movimento pintados na superfície de cor de concreto, como se a própria rua escorregasse para dentro dos desenhos. Cada vez mais os objetos-figura funcionam como a ação-código d’O Tambor na Boca que não quer se fixar nas palavras escritas de um manifesto (pseudo-)político. Talvez pelo fato de Spínola ter criado essas esculturas performativas nas calçadas de Madri, a cidade onde vive e trabalha, essa capital em crise social e econômica, venha a sugestão de que de que esse seria o momento para se criar gestos-sequência e usar ações-código. Talvez essa não seja uma ação que cria forma mas um imaginado/imaginário-realismo criando uma forma-conteúdo precisa como possíveis e diferentes objetos-figura realizados. No nível da forma, objetos-figura – tanto apoiados por gestos-sequência quanto desencadeadores deles (pesquisa artística em processo) e de ações-código (o espaço-tempo criativo que desencadeia uma imaginação ativa relacionada às realidades no nível da percepção) – podem ser compreendidos como formas-conteúdo à beira da sutileza e da precisão que lidam com a realidade do ponto de vista da observação, da pesquisa em processo, da experimentação, de algum humor sutil e da criação. Mas que também partem da ideia de que se algo está faltando (ou pode ser experimentado como excessivo) nesse tempo, nessa sociedade – o que sempre tem a ver com espaço (tempo) – por que não imaginarmos, por que não criarmos essa coisa chamada ‘espaço(-tempo)’ nós mesmos com O Tambor na Boca de Julia Spínola como uma nova forma de comunicação?
[1] — PERRI, Sandro. Impossible Spaces, Trapeze Music, Ontario Arts Council, 2007-2011.
[2] — Harder, better, slower, stronger! Simpósio Internacional de curadores organizado por 29Enchufes-Madrid, SMAK-Ghent em Matadero-Madri, 11-13 de abril de 2008.
[3] — VAN LOO, Sofie. ‘Home(lessness)/(Des)hogar(idad)’. In:[ex.cat.
[4] — Id, p. 70.
[5] — DE BRUGEROLLE, Marie. ‘Who’s that guy? Portrait de l’artisteencryptographe’. In: Guy De Cointet, JRP/ RingierKunstverlag AG-Air de Paris, 2011, p. 80-81: Excerto de páginas do script das performances De toutes les couleurs, 1981 (excerto: 29.7 x 21 cm.)
[6] — Correspondência eletrônica entre Julia Spínola e a autora, 12 de abril de 2011.
[7] — OrejaNaufragio. Mauro Cerquiera/ Julia Spínola (curador: Pablo Flórez), Galéria Heinrich Ehrhardt, Madri, 2 de abril -14 de maio de 2011.
[8] — Correspondência eletrônica entre Julia Spínola e a autora, 26 de janeiro de 2012.