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Capa da revista

EDITORIAL

Para além de nossos impulsos imersivos de crítica de arte, aprofundar debates sempre foi desejo da Revista Tatuí. Agora, com a oportunidade de contar com o apoio do Sistema de Incentivo à Cultura do Recife, começamos a alimentar ao menos parte desta vontade, lançando, nos próximos meses, quatro novos números da Tatuí dedicados a refletir acerca de questões específicas, dentre as quais a idéia de coerência na arte.

Partindo da provocação que relações você percebe entre arte e coerência?, convidamos artistas, críticos, curadores, sociólogos e professores a refletir sobre a presença de uma suposta demanda por coerência no contexto do campo da arte. O que é ser coerente?; o que seria a coerência artística?; como lidar com a demanda por coerência posta pelo sistema da arte?; o que dizer do uso da idéia de ‘coerência’ como argumento ou mesmo critério de valor?

Seguem, então, respostas, problematizações e devaneios acerca de nossa provocação que, por sua vez, pode parecer bastante ‘incoerente’.

Clarissa Diniz e Ana Luisa Lima, as editoras

Colaboradores

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Conteúdo

Índice
  1. AS DESVENTURAS DA COERÊNCIA - Escrito por Ana Luisa Lima
  2. AVENTURAS ARTÍSTICAS: INCOESÃO E COERÊNCIA - Escrito por Maria do Carmo Nino
  3. COERÊNCIAS - Escrito por Manoel Veiga
  4. Que relações você percebe entre arte e coerência? - Escrito por Moacir dos Anjos
  5. Que relações você percebe entre arte e coerência? - Escrito por Paulo Almeida
  6. Que relações você percebe entre arte e coerência? - Escrito por Artur Barrio e Clarissa Diniz
  7. Que relações você percebe entre arte e coerência? - Escrito por Yuri Firmeza
  8. Recife, 12 de novembro de 2008 - Escrito por Ana Luisa Lima e Jesus Vázquez
  9. SENTIDOS DA COERÊNCIA NA ARTE - Escrito por Paulo Marcondes Soares
  10. TEIMOSIA BIO-CULTURAL - Escrito por Clarissa Diniz

AS DESVENTURAS DA COERÊNCIA

Há muito, a procura por coerência na trajetória de um artista é praxe. Coerência tornou-se moeda de valor nos negócios do mundo da arte. A repetição formal e a insistência dos mesmos assuntos acabam assegurando a permanência dos mesmos nomes dentro desse sistema – complexo pela especulação e miríade de instituições e agentes, mas, superficialmente simples no que diz respeito às suas regras.

Já não é mais tão difícil perceber que uma produção intrinsecamente subjetiva foi tomada de um objetivismo em razão do mercado. Mas, deixar-se enquadrar numa trajetória coerente significa, para o artista, hoje, uma maior probabilidade de encaixar-se na engrenagem chamada sistema de arte contemporânea – em que grande parte da produção, antes, poético- simbólica, dá lugar ao fazer artístico estético-conceitual.

O pensamento crítico em torno das novas questões da arte retirou-se do sistema – o que temos atualmente são manifestações isoladas dessa escrita reflexiva. O comum são os textos que justificam a produção de artistas que vivem pelo e para o conceito. A exclusão (prática) do papel da crítica de arte na equação parece ter igualado tudo a zero. Sem muitas variáveis, ficou fácil, cada vez mais, prever resultados. E a arte que, essencialmente, fora inconformada, nos últimos tempos toma a forma que a convencionalidade dá.

É interessante perceber a reviravolta do modus da arte. Antes absorvidos pela problemática político-social, os artistas modernistas exercitavam e desenvolviam seus pensamentos produzindo obras poético-simbólicas dentro de um projeto estético-político que eles mesmos criavam. O caráter contingente daquelas obras acabou assegurando o caráter imanente delas. A propriedade com que essas obras se (im)punham no mundo era a de terem sido criadas a partir do mesmo substrato político-social daquele determinado espaço-tempo. Entranhadas daquela porção contingente, as obras de arte vanguardistas conseguiram transcender seu tempo pela propriedade com que os artistas se entenderam e se posicionaram dentro do processo histórico do qual faziam parte.

A coerência no artista da modernidade não adivinha da repetição da forma e de assuntos em suas obras, mas pela maneira autônoma de lidar com as questões do seu entorno através de sua arte. Ora, o projeto estético era também político. Assim, objeto estético e discurso estavam juntos numa composição imbricada. Daí, o valor da obra de arte estava não só em ser linguagem poética, mas também na possibilidade desta servir na construção de conhecimento coletivo através do pensamento do artista feito linguagem imagética político-simbólica.

É importante ressaltar que forma e assunto inevitavelmente poderiam se repetir na trajetória daqueles artistas da vanguard. Mas esses aspectos eram resultados de um processo intrínseco ao pensamento que ia tomando forma. Era um processo de criação de força endógena. A coerência se encontrava na substância essencial da obra. Ora, para os vanguardistas, a essencialidade da obra estava no aspecto sócio-político (contingência) que o artista transformava em linguagem simbólica (imanência). E a busca desta essência não atrelava o artista à determinada forma. Prova disto são aqueles artistas que fizeram parte, no decorrer de sua vida, de movimentos com proposições estéticas diametralmente opostas.

Hoje, na contramão do pensamento modernista, os artistas se entregam a um processo de criação de força exógena. Ora, o substrato das obras é o conceito. Os artistas de agora estão empacados numa poética notadamente individual (em detrimento do entorno sócio-político) e vão buscar nos conceitos produzidos por outrem (quase sempre pensadores franceses) a razão de ser de suas obras. O atual modus da arte nega a idéia de autonomia. Embalados pelo jeito que a banda toca no sistema mercadológico, os artistas passam a produzir dentro de formas diagramadas – que se dêem a entender através da linguagem escrita e que caibam dentro dos editais e formulários dos salões e programas bolsas-residências.

O apego ao conceito acabou sendo uma maneira de verticalizar a acessibilidade à obra de arte, partindo, sobretudo, da idéia de que o universalismo também garantiria a imanência desta. O caráter imanente da obra de arte acabou se tornando mito e a busca cega por essa permanência sobre o tempo diluiu os assuntos políticos e sociais na produção artística. Imagino que, para os artistas, tirar as questões político-sociais (contingência) do foco de sua poética e deslocá-las para o conceito garantiria ao trabalho deles a imanência pela assepsia. Pois, tendo uma produção artística livre de elementos culturalmente contingentes, qualquer um poderia acessar suas obras em qualquer lugar do mundo e em qualquer tempo.

A assepsia da obra – em nome do universalismo demandado pelo mercado – pôs em xeque, ao meu ver, a mais nobre razão de ser do artista: sua condição de produtor poético-simbólico. A convergência do processo de criação artística para o conceito redimensionou os significados do ser artista e da razão de ser da obra. O artista já não se (im)põe na obra de modo a deixá-la transparecer um discurso próprio. Longe disto, mergulhado num universo individualista, ele foge de um posicionamento político-social e se inscreve como um ilustrador de verbetes filosóficos. Neste sentido, alguns artistas até conseguem manter uma linguagem poética, mas isto fica longe de ser o produtor simbólico, em que seu trabalho passa a re-definir e fazer re-pensar o modus político-social.

Acredito que a preocupação do artista se voltou para a necessidade de ver seu trabalho continuadamente requisitado pelas grandes exposições. Como se a mera exposição também fosse garantia de uma permanência continuada na história da arte. A sede de “se fazer presente” do sistema inelutavelmente desfez a propriedade do artista e da obra enquanto presença no mundo. Pois a perda de posicionamento dentro do seu processo histórico faz com que ambos (artista e obra) deixem de existir como construtores de um pensamento e passem a figurar como ilustradores daquilo que já foi pensado.

Assim, a arte, que chamávamos de poesia simbólica para a humanidade, passa a ser em-si a maior das incoerências: um mero exercício estético-conceitual para um sistema de arte.

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AVENTURAS ARTÍSTICAS: INCOESÃO E COERÊNCIA

Toda coerência é, no mínimo, suspeita.
Nelson Rodrigues

Rrose Sélavy et moi esquivons les ecchymoses des
exquimaux aux mots exquis.
Marcel Duchamp

 

Procuro sofregamente um dicionário de filosofia ou outro, que possa me iluminar sobre um ponto de partida, e então vislumbro uma saída quando encontro o que diferencia sutilmente coesão de coerência: trabalham juntas em colaboração, na qual esta última sugere união de um conjunto qualquer, de forma que a totalidade se ofereça submetida a certa lógica. O conceito de coerência contribui para o efeito de completude orgânica de uma dada realidade.

Como em uma tessitura, que não por acaso tem a mesma etimologia da palavra texto, a compreensão mais facilitada de algo se dá na medida em que percebo as relações entre as distintas partes componentes da totalidade observada. Assim, consigo entrever aspectos que possam me guiar para um significado mais geral, ou mesmo global.

No entanto, uma diferença sensível parece surgir: na coesão, freqüentemente posso me abrigar em torno de aparências mais facilmente detectáveis, passíveis de serem percebidas a partir de um olhar menos atento, superficial; no entanto, a coerência parece demonstrar mais fôlego, é mais exigente, já que está mais atrelada às deduções que se possa alcançar a partir da busca de uma unidade de sentido que, dentro de um certo número de possibilidades, pode não ser tão obviamente observável.

Na história das artes visuais do século XX, houve um momento particularmente exemplar em que certos artistas, dadas as condições de descontentamento com a situação de uma Europa que se dizimava na guerra iniciada em 1914, além da constatação de que nenhum campo do conhecimento humano – fosse ele advindo da religião, da filosofia, ou da ciência – pudesse impedir a catástrofe, resolveram em 1916 fundar um movimento literário que se rebelava violentamente contra as regras da
coerência do texto poético. No seu primeiro manifesto, através do poeta romeno Tristan Tzara, preconizaram:

Nós não procuramos nada, afirmamos a vitalidade de cada instante, o que
interessa ao dadaísta é sua maneira de viver. Dada não significa nada, é um
produto da boca.

O dadaísmo constituiu-se de ações que elevaram, em todos os domínios da arte, a realidade do mundo banal ao nível de material artístico: artes plásticas, fotografia, poesia, teatro. Neste processo de democratização da arte houve a abolição dos gêneros: valores de textura dos materiais, a sílaba a partir da qual se canta o ritmo, o menor fragmento do objeto, ou do objeto achado, do qual se aprecia seu valor absoluto. Esta nova atitude em relação à linguagem os conduziu aos poemas fonéticos, nos quais o tema foi abandonado dando lugar ao acaso, ao acidente, que passou a ser elevado a nível estilístico.

Esta aventura iconoclasta foi a negação de toda lógica. Liberdade pura em cuja dispersão e ausência de coesão pode-se, a posteriori, observar como constituinte uma atitude de grupo que, no entanto, teve a sua coerência.

Quando se trata da obra de arte per se, convém lembrar que ela é freqüentemente abordada na linguagem cotidiana como aquela que chamaremos, para efeito de clareza, de obra específica, que se liga a um momento na carreira artística de um autor, e de obra trajetória, que corresponde ao projeto poético de um dado artista e, como tal, compreende suas diversas fases e séries de obras específicas por ele criadas ao longo de sua carreira. Embora ambas tenham natureza processual, é no caso da obra como trajetória que é posta em evidência a necessidade de um melhor conhecimento e o conseqüente acompanhamento crítico das obras de cada período. Deste modo, compreende-se a coerência interna que mobiliza o artista.

Mas o que dizer de um agente poderosamente transformador de suma importância como Picasso, cuja obra apresenta características estilísticas de tal modo adversas, que foi objeto de um estudo de Meyer Schapiro [1] Meyer Schapiro, A Unidade da Arte de Picasso, tr. Ana L. D. Borges, SP, Cosac y Naify, (2000), 2002. , publicado postumamente? No ensaio que dá nome ao livro, o autor se deu como desafio, através de análises muito consistentes, provar a tese de que o que confere unidade à obra picassiana, o que faz com que possamos considerá-la sob uma luz homogênea e, portanto, dar–lhe o crédito de um legado coerente, é a transformação da figura em abstração e da abstração em figura.

Na esteira de algumas reflexões formuladas anteriormente por Hegel, Arthur C. Danto [2] Arthur C. Danto, Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história, tr. S. Krieger, SP, Odysseus, 2006. postula o fim de uma certa arte, aquela que não pode ser compreendida pelo que denominamos de história da arte, uma história que agrupa estilos, relaciona movimentos, explica obras particulares e, principalmente, pode ser explicada através de manifestos e de narrativas, como aquela que pode ser observada a partir do Renascimento com o surgimento da perspectiva e a Arte Moderna, analisada por Greenberg. Vivemos então, hoje, um período marcado por um direito adquirido pelos artistas na total liberdade de escolha sobre qual tipo de arte acatar na sua produção e quando fazê-lo, potencializando a autoconsciência no processo da escolha.

Logicamente tal estado de coisas coloca em crise as regras do exercício e da práxis da própria arte, por um lado, e a sua recepção, por outro. A prática artística se torna consciente de seu próprio processo. O limite entre aquilo que pode ser visto legitimamente como arte, ou não, se torna indiscernível em algumas circunstâncias, tal a sua proximidade com o que vemos com objetos puramente inseridos na esfera do cotidiano e do banal. A proliferação de estilos põe em evidência a insuficiência de critérios que possam valorar e separar o joio do trigo em termos do que é arte que “mereça este nome”.

A produção das obras deixa conscientemente de lado sua antes louvada e desejada coerência estilística e ainda por cima assume tudo como atitude intencional. Se, para Danto, a Pop Art marca este momento do fim da arte, transformando a narrativa moderna formulada por Greenberg, que passa então de essencial a contingente, nas décadas de 1960 e 1970 a interação entre arte e vida se radicaliza e a integração entre as linguagens se dá com freqüência.

O Fluxus, tendência que abrangeu diversos artistas de vários continentes como Europa, Estados Unidos e Japão, e com influência manifestadamente neodadaísta, vai marcar, a partir de figuras estrelares, verdadeiros guias, como o artista norte- americano John Cage, este momento no qual tudo se torna mais fluido e interpenetrável. A valorização do processo de criação, da precariedade material da obra e do seu conceito torna-se moeda corrente.

A constante migração entre as áreas artísticas, por parte dos artistas, parece relacionar-se especularmente com a multifacetada vida hoje. A reconciliação que se realiza entre o artista e aquilo que o rodeia é verificável também entre o artista e os vários tipos de arte. Este deixa de ser exclusivamente pintor, escultor ou escritor para poder ser todas essas coisas. A arte que envolve meios tecnológicos reforça ainda mais o caráter híbrido, que se refere à dissolução das fronteiras entre os suportes e as linguagens, assim como à constante reciclagem das informações que circulam nos
meios de comunicação de massa.

Ora a obra de um mesmo artista se apresenta como desenho, ora como vídeo, teatro, performance, cinema, modelos gerados em computadores, entre outros. Por sua vez, os sons ora são registros brutos, ou processados, ora edições gravadas. Em várias ocasiões há um complexo misto de linguagens, em que não se dá pra determinar os limites de participação de cada elemento constitutivo.

Trata-se, para o público, de interagir e compartilhar o desafio e a resistência de um objeto híbrido, fundamentalmente múltiplo, sem conceito fixo, de identidade complexa, que tende a se diluir, ou incorporar os modos de constituição de outras linguagens.

Na sua maioria, estas obras provêm de artistas que absorvem e reagem às múltiplas orientações da arte no mundo, cujo amplo leque de interesses individuais mostra a heterogeneidade e a incrível multiplicidade das investigações estéticas contemporâneas.

Some-se a isto tudo a consciência de que a contradição é sem dúvida um comportamento inerente ao homem. Faz parte de sua essência a incorporação de um eterno e irremediável vir-a-ser, na esperança de um processo contínuo que o conduza a uma evolução qualitativa e contribua para seu enriquecimento pessoal.

Na arte esta situação de eterna busca é constantemente reivindicada como catalisador do desejo permanentemente renovável de produção: De onde viemos, o que somos e para onde vamos. É a tríade que permanece no seu posto inatacável de questões essenciais que, mais do que exigir uma resposta definitiva que se sabe de antemão permanecer utópica, busca o prazer da aventura do tatear, descoberta a partir da interioridade da viagem em si mesma.

E se o homo ludens assume o experimental, o prazer do jogo, a dimensão do lúcido tem a ver com o brilhar. Lucidez e luz partilham a mesma raiz etimológica latina. Quando um ser humano aprende algo, ultrapassa uma etapa, se torna mais lúcido e consciente sobre sua própria condição humana. No caso do artista, ao conseguir partilhar eficazmente com sua obra um momento de descoberta, ou mesmo a inquietação de suas dúvidas e questões, os seus neurônios, estimulados, emitem luz e
alimentam a esperança de uma identificação espiritual com outras subjetividades, já que na maioria das vezes ele não chega nem mesmo a conhecê-las pessoalmente.

Pode-se então perguntar em que sentido as promessas sempre renovadas de liberdade atual sem exclusões na práxis artística tornam tão paradoxal pensar que o campo da arte contemporânea encorpa a possibilidade da coerência como uma virtude? E se ela existe, de que natureza seria?

Já o ready made de Marcel Duchamp, no início do século, apontava para uma perda de valor absoluto da obra e a conseqüente valorização do contexto, contexto este definidor da maneira como se tornam indissociáveis o conteúdo da obra e seu modo de apresentação e/ou expressão.

Nenhuma destas duas instâncias, porém, são aprioristicamente apreendidas: a obra deve primeiramente ser entendida à luz de conceitos, ou teorias estéticas vigentes e do seu conhecimento por parte das pessoas que com ela se relacionam.

Cresce, a contragosto de uma boa parte do público, a importância do olhar profissional sobre o objeto estético para mediar seu processo de compreensão em escala mais abrangente junto a uma platéia na maioria das vezes atônita, quando não se sentindo impotente.

No caso de muitos artistas, a incoesão pontual das obras se confronta com uma coerência menos óbvia do conjunto da mesma, embora este como um todo se manifeste no sentido de continuar levando em conta as suas preferências, crenças, desejos, valores éticos e consciência de valores estéticos. A tarefa se complexifica e o fio subterrâneo de transmissão que lhes confere homogeneidade torna-se mais
desafiador para o entendimento do observador. Mas, acredito eu, é preciso apostar que eles existam, caso contrário… A fragilidade aparece.

Apesar do confronto direto com a obra específica propiciar a possibilidade do gozo para todos, o julgamento de valor pertinente da obra de arte é cada vez mais atravessado pela necessidade da compreensão do seu conteúdo à luz da sua adequação aos meios de expressão empregados, como já preconizava Hegel, mas a isto se soma ainda a importância de conhecer e conseguir apreender no universo proteiforme das poéticas contemporâneas a coerência implícita na trajetória individual do artista. É como se, mesmo sob o risco de confrontá-lo com uma crise, pudéssemos dirigir-lhe uma frase como esta:

– É verdade que tudo é permitido, mas…ei, qual é mesmo o seu projeto artístico?

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COERÊNCIAS

Tempos atrás eu trabalhava no depto. de física da Universidade Federal de Pernambuco como bolsista de iniciação científica. Apesar de estudante de engenharia, pensava em filosofia da ciência enquanto submergia naquele mundo da pesquisa básica cujos códigos iam ficando mais claros para mim. Lá aprendi que não só a física se baseia e depende do uso rigoroso de um método, como todo o sistema acadêmico que a contém e cujo objetivo é a clareza na comunicação do conhecimento. Aprendi também que, apesar disso e contrariando um clichê bem difundido, outro elemento fundamental para o desenvolvimento da pesquisa científica é a criatividade e a intuição. Embora essa idéia pareça óbvia para alguns, não deixa de soar paradoxal quando se pensa nesse sistema tão bem “amarrado” ou, melhor dizendo, estruturado, que requer tanta coerência de pensamento e procedimento.

Vários anos se passaram e agora, como artista plástico, relembro aqueles tempos tão interessantes com o objetivo, talvez meio estranho, de pensar a questão da coerência em arte, o lugar da criatividade. E vou fazê-lo do ponto de vista de alguém que atua profissionalmente nesse campo, não só criando, mas também participando de suas outras instâncias tais como exposições, curadorias, relações com galeristas, etc. Não considerarei aqui a produção diletante, ou terapêutica, cujos praticantes têm outros interesses e objetivos.

No convite que recebi das editoras desta revista, me chamou a atenção o argumento de que há uma demanda/necessidade crescente por coerência na arte, “acreditando que tem sido cada vez mais cobrada – sobretudo por parte da crítica e da curadoria – a manutenção, ao longo da trajetória de artistas diversos, de certos aspectos poéticos cuja recorrência parece denotar um caminho ou preocupação geral do trabalho”. Curioso, pois sempre achei que essa demanda/necessidade estava (ou deveria estar) presente desde sempre. Entendo a arte (aquela feita pelos profissionais, insisto) como um subsistema da cultura, que pressupõe grupo social e comunicação. As obras propriamente ditas se constituem em linguagens e como tal são responsáveis pela articulação de sentido, pela geração de reflexão e conhecimento. Mesmo que o artista não se dê conta, ele é formado e trabalha sempre inscrito nesse subsistema que tem questões próprias e desenvolvimentos visuais particulares segundo a época e localização geográfica.

Anacronismos à parte, sabemos existir desde os gregos antigos algum tipo de ensino da arte. Platão já criticava a mimesis na pintura de sua época. Conhecemos textos filosóficos sobre pintura na China há muitos séculos. Quero dizer apenas que o pensamento sistemático sobre a arte e suas questões existe há muito tempo, tanto da parte dos artistas quanto dos teóricos. Este desenrolar, esmiuçado em qualquer manual recente de História da Arte, é que gerou evidentemente nosso panorama atual. Mas o que é mais interessante é conseguirmos resumir mais de dois mil anos de História em algumas dezenas de páginas, dentro de uma narrativa perfeitamente “lógica” e, por isso mesmo, facilmente compreensível: a arte é um sistema estruturado, assim como a ciência ou qualquer outro. Não é de se estranhar o surgimento das academias artísticas européias após o renascimento, o que me parece até previsível face a toda essa tradição da arte e que findou seguindo o caminho de outras disciplinas naquele momento. Essa organização institucional está presente hoje nas universidades e só passou por um período de crise maior durante o auge do modernismo na primeira metade do século XX. Desde os anos 50 nos EUA, com a geração de Robert Morris (artista importante, mas também teórico), os departamentos de artes das universidades (substitutos das antigas academias) no mundo todo passam novamente a ocupar um papel cada vez mais importante no meio artístico, não só em relação à formação dos artistas, como também no âmbito da crítica profissional, editando publicações muito influentes.

Aqui podemos esboçar um paralelo entre ciência e arte, pois ambas são estruturadas em linguagens que seguem certas normas definidas por consenso e que são transmitidas e também criticadas pelas universidades. Na base disso tudo está a noção de comunicabilidade, de onde deriva naturalmente a necessidade de publicações, congressos, serviços educativos e a figura do curador. Através do desenvolvimento de “leituras”, ou interpretações, tanto de teorias da física quanto de trabalhos de artistas, nova informação é gerada de forma articulada e realimenta os respectivos sistemas, torna-se “combustível” para novas ações. Note-se que estas “leituras” normalmente resultam em linguagem diferente da original: pode-se partir da matemática ou da pintura para gerar um texto escrito, ou pode-se partir da matemática para gerar um resultado em pintura, como fez Picasso no Cubismo. Essas trocas tão férteis entre campos em princípio tão díspares são possíveis, pois ambas, ciência e arte, estão organizadas em sistemas conceituais bem-estruturados, embora com objetivos diferentes.

Deixando de lado a confusão causada pelo termo “arte conceitual” – e que se refere a uma parcela muito pequena de uma produção recente –, em minha opinião toda arte instigante e que vai gerar frutos no futuro é conceitual no sentido mais amplo do termo. Não importa se a manifestação visual se dá em forma de pintura, escultura, instalação ou performance. É assim que percebo de onde surge a necessidade de coerência em arte, aqui entendida como uma busca do artista por uma clareza de intenção que possibilita um aprofundamento de questões do seu interesse e que se materializa em obras com grande capacidade de geração de sentido, de discursos. A coerência desejável e enriquecedora aparece como uma conseqüência natural do amadurecimento da poética do artista e não como um fim em si mesmo cujo sentido seria o inverso, o do esvaziamento, que poderia ser traduzido como “academicismo”, herança irrefletida de procedimentos e linguagens enrijecidos sob a forma de cânones. Imagino que a maior demanda por coerência em arte, identificada pelas editoras, talvez esteja ligada ao fato de nos últimos anos no Brasil termos testemunhado uma superexposição de artistas muito jovens, possibilitada por novos prêmios e programas específicos, assim como o surgimento de novas galerias interessadas em carreiras iniciantes e promissoras. É natural que se crie uma expectativa muito grande e uma cobrança obviamente injusta sobre os ombros de quem mal iniciou uma trajetória que é sempre espinhosa e que dificilmente será linear.

Um aspecto dessa discussão sobre coerência em arte que merece ser observado atualmente diz respeito aos processos de criação e ao resultado visual da produção artística. O cenário contemporâneo tornou-se muito complexo a partir dos anos 1960, as estratégias de operação no campo artístico se multiplicaram, muitas novas possibilidades se abriram e em sua raiz está uma mudança estrutural desencadeada por Marcel Duchamp no começo do século XX. Com o “ready-made” surge a noção de “apropriação” e assim nosso tradicional foco de atenção no objeto criado, a obra de arte, foi deslocado para o processo que a gerou. O aspecto mental, intelectual, da criação artística (que sempre esteve presente, vale frisar) é posto em evidência. Aqui, por uma questão de espaço e conforto meu, gostaria de restringir o horizonte de observação à área em que atuo, a pintura. A pergunta que coloco agora é a seguinte: coerência em relação a quê?

É natural pensarmos que um artista maduro, num determinado período de sua carreira, esteja preocupado com certas questões e que estas o conduzam a criar um corpo de trabalho cujo aspecto visual passa a ser identificável. Perceberíamos, nesse caso, uma coerência formal. Lembro imediatamente de Giogio Morandi, artista emblemático do modernismo italiano, que restringiu durante décadas o seu campo de pesquisa à natureza-morta e ao uso de pouquíssimos elementos (principalmente garrafas) e cores, sem diminuir em nada a densidade de conteúdo e vitalidade do resultado ao longo de toda sua carreira. Infelizmente, por conta de uma simplificação de ordem didática, a noção de “estilo”, gerou-se um ruído quando da observação de trajetórias como esta,
pois rotula-se um artista a partir do seu período de produção considerado mais importante. Isso facilmente leva o estudante, ou o amador ainda pouco afeito ao assunto, a inferir erroneamente que os interesses de toda a vida e, por conseqüência todo o trabalho visual do artista, podem ser resumidos aos daquele período. Basta olharmos, literalmente, para o teto da Capela Sistina para constatarmos que o mesmo Michelangelo que iniciou sua grande obra como “renascentista”, vai terminá-la no Juízo Final já completamente “barroco”. Confunde-se, assim, coerência formal com uma espécie de estagnação formal. Coerência dentro de uma produção visual significa nexo, conexão lógica, inteligível, entre momentos distintos da mesma, não a mera repetição de fórmulas.

Acontece que recentemente outra possibilidade abriu-se, muito ligada ao processo criativo do artista em sua acepção mental, intelectual: falo da uma coerência conceitual. Uso como exemplo o artista alemão Gerhard Richter, cuja obra tem gerado diferentes – por vezes conflitantes – interpretações. Pinçarei da sua vasta e complexa produção apenas duas pinturas, a título ilustrativo, ambas realizadas em 1988, mas formalmente bem distintas. A primeira (“AB, St. Bridget”, col. do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona) é abstrata por excelência, onde são articuladas cores e texturas sobre a tela. A segunda (“Funeral”) poderia até parecer abstrata numa rápida passada de olho, mas o próprio título nos alerta que estamos diante uma outra coisa. Aos poucos identificamos formas, pessoas, árvores. Não há cores e tem-se a impressão de que a matriz da pintura foi uma fotografia em preto e branco. Mas tudo é turvo. Algo “corrompeu” aquela imagem a um ponto no limite da compreensão. Percebe-se que a pintura foi construída manualmente como figurativa para depois sofrer uma espécie de apagamento. E é fato. Richter provoca mecanicamente um arraste parcial da tinta, criando uma espécie de véu sobre a imagem, reduzindo drasticamente sua possibilidade de descrição do quer que seja. Ele nos empurra no sentido da abstração para, em seguida, graças ao título, nos trazer de volta ao mundo das coisas. Quando voltamos à primeira tela, notamos que um processo semelhante de arraste também foi usado, mas aparentemente até um ponto no qual qualquer representação deixa de existir. Mas continuamos… E de repente algo de paisagem parece surgir, reflexos, folhas, água. E a mesma sensação de apagamento reaparece. Os dois trabalhos, visualmente tão díspares, parecem agora irmãos indissociáveis, trazendo consigo uma memória de algo indefinível, uma lembrança ao mesmo tempo da fragilidade e da força do mundo das imagens.

Para concluir esse raciocínio, gostaria de dizer que acredito que a necessidade por coerência na arte está intimamente ligada a uma outra necessidade primordial nossa, seres sociais, que é a de comunicação, e sem a qual não sobreviveríamos. As linguagens se desenvolveram para nos unir dentro de nossas diferenças e complexidades. Por isso lembramos que qualquer trajetória artística que mereça esse nome será sempre cheia de nuances, multifacetada, não-linear, gerando sempre abordagens diferentes. A própria maneira pela qual olhamos o mundo assim o é. Em vista disso, o meio artístico se articula sempre em consensos frágeis. Não poderia ser diferente, e acredito que muito do seu interesse decorra desse fato, assim como boa parte da dificuldade de assimilação da arte contemporânea por um público maior. O exercício de criação de discursos sobre arte, em diversos níveis, é fundamental tanto para os artistas como para qualquer outro que se dê ao trabalho de observar qualquer obra. Sem comunicação, por mais cheia de ruídos que seja, não somos nada.

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Que relações você percebe entre arte e coerência?

Menos do que uma resposta, algumas poucas notas (entre outras várias possíveis):

1. A questão da coerência deve, a meu ver, ser deslocada da poética para a ética da produção. Nesse sentido, ser coerente com o processo criativo pode implicar, em certas situações, abandonar traços característicos de uma produção anterior e consagrada.

2. A busca por essa coerência (ou essa criação feita contra o próprio passado) é, porém, muitas vezes sabotada por instituições artísticas acomodadas e por um mercado de arte que visa o lucro imediato; que rejeitam, por ignorância e aversão ao risco, a irrupção do novo, abrigando-se no conforto do conhecido e do testado. Nesse sentido, a força entrópica que toda invenção artística carrega é contraposta à força conservadora, que busca preservar um mundo ordenado sob convenções que
já não o suportam mais.

3. Se existe cobrança por coerência, portanto, ela é invocada principalmente pelos agenciadores institucionais e econômicos da produção artística já bem colocada no mercado. Para estes agenciadores, é mais cômodo e fácil colecionar e vender o decodificado e consagrado, do que aquilo que resiste a classificações fáceis e que desarruma hierarquias engessadas. No âmbito da valoração simbólica e mercantil de obras artísticas, o novo – a despeito da mítica que o embala – é tratado mais como descendência, do que como invenção, ou, parafraseando Deleuze, mais como ramo de árvore, do que como erva que surge do nada.

4. Quando (e se) críticos e curadores prestam mais atenção na suposta coerência da produção de artistas contemporâneos, em relação àquela feita por eles e por outros no passado, do que nas articulações desorientadoras que porventura esboçam agora, estão olhando menos para um trabalho em progresso e mais, por preguiça, ou pura incapacidade de enxergar, para uma obra que julgam,
erroneamente, estar já acabada.

5. Quando (e se) críticos e curadores buscam a todo custo identificar elementos de ruptura na produção de artistas contemporâneos, porém descuidam de identificar elementos de continuidade e de afirmação desta produção em relação a uma história artística pregressa (destes e de seus pares), estão cedendo ao desejo impossível de livrar-se do passado.

6. Não custa nada lembrar a definição genial de Godard para cultura e arte, na qual a primeira se impõe como regra e a segunda sempre como sua irredutível exceção. E também não custa repetir a obstinação criativa de Beckett, segundo quem a cada fracasso de algo sucede uma nova tentativa e, como resultado, um fracasso ainda melhor. Se há relação entre arte e coerência, talvez estas sejam boas pistas de onde encontrá-la.

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Que relações você percebe entre arte e coerência?

É difícil determinar como se forma o que costumam chamar de ‘poética do artista’. Acredito que isso se forme como um processo de seleção no qual o artista começa a trabalhar de maneira mais ou menos sistemática em volta de questões de seu interesse, durante o seu período de formação. Depois de já definido esse campo de interesse, o trabalho segue como que um rumo natural. A expansão deste campo e as inovações propostas pelo artista dependem muito das próprias circunstâncias em que está envolvido e do que já foi feito e proposto por sua produção.

No meu caso, as idéias sempre surgem na execução, ou reflexão de um projeto. A partir disto, sempre se abre uma porta para uma nova possibilidade que não foi bem explorada. Em vez de alterar o projeto inicial, eu o executo como havia pensado de antemão e me aproveito desta nova informação para desenvolver um próximo. Esta coerência na produção do artista poderia ser considerada como uma grande obra, que vai além da leitura individual de seus trabalhos e é o que acaba por definir sua posição frente a questões próprias de sua época.

Claro, tal coerência sempre deve vir acompanhada de inovação, sem deixar que o trabalho estagne em um território protegido.

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Que relações você percebe entre arte e coerência?

R. A CERTEZA de que o trabalho,
passado o estágio mental/reflexivo não depende
mais do processo físico/criativo, e é dado como terminado
no tocante à minha participação………………………..

Artur Barrio
[Rio de Janeiro, 21 de Setembro de 2008]

 

Os pensamentos que seguem são trechos extraídos de uma troca espontânea e calorosa de e-mails, ocorrida em setembro de 2008.

CLARISSA DINIZ. Essa sua posição de “lavar as mãos” diante da interpretação/recepção de seus trabalhos faz ver uma concepção de ‘coerência’ que, em última instância, seria domínio do olhar alheio, e não nosso.

ARTUR BARRIO. Pitagoricamente, diria que o espectador faz a obra, já que o centro é determinante e suscetível à crítica do entorno ao contrário do não situar-se desse ou desses mesmos espectadores em relação às “Situações”. Daí o surgimento de que “o espectador não faz a obra”.

CLARISSA. Tem uma idéia de que gosto muito, e que diz que “é preciso ser dependente para ser autônomo” (Edgar Morin). É uma concepção de grande complexidade, e faz com que fujamos do duopólio obra-espectador que normalmente ainda nos guia. Você, a meu ver, faz isso em seu comentário anterior ao analisar simultaneamente o espectador como capaz e incapaz de fazer a obra.

BARRIO. A minha relação é com a Arte, com o momento da criação e conseqüente ruptura dos limites inerentes a esse momento,…….no que toca à questão espectador/entorno é algo que não me interessa, o que não quer dizer que já não tenha sido do meu interesse em situações anteriores.

Quanto a Edgar Morin, de que “é preciso ser dependente para ser autônomo”, estou de acordo, mas dentro de um estágio de tempo limitado aos processos iniciais, diria que em nossa condição isso é extremamente evidente sendo que essa autonomia encontra a sua maior força no gesto artístico que por si só é político, mas não determinante ou determinador de uma Arte política, mas simplesmente Arte, que por si só é política/etc., ou está a ser ou já foi criado, um novo “ismo”? Um modelo/forma de fazer Arte política? Uma “outra arte acadêmica”? A verdadeira Arte sempre foi política; ou o “homem” não é um animal político?

CLARISSA. Me intriga ouvir de tantos que sua arte agora são suas viagens, seus mergulhos. É?

BARRIO. Sim a humanidade inventou tudo, inclusive a política. Não pensei na humanidade, mas somente numa ínfima partícula que é o artista que sou e produziu o que produziu,………!
Quanto à humanidade, apesar de acreditar profundamente no ser humano, penso que o número dos mesmos não pára de aumentar nesse delírio/carnal/explosivo/demográfico……
……….somos nove bilhões. Os problemas de base dessa mesma humanidade continuam a ser sempre os mesmos….
….,há progressos, sim, mas quantos retrocessos!
É difícil sair da caverna, a luz elétrica foi inventada há tão pouco tempo, a metralhadora primeiro que a máquina de escrever, etc. Além do efeito-elástico em relação à Idade Média.
Não sou otimista.
A minha arte, hoje, não é os mergulhos submarinos ou a navegação, continuo isso sim os associando, em alguns poucos casos, ao meu trabalho. A minha idéia era e ainda é que a partir dessas experiências possa tirar algo que acrescente e dê outro rumo ao meu trabalho, o que espero que aconteça.
Em 15 de Maio de 2009 inaugurarei uma mostra na parte subterrânea do M.A.C. de
Serralves/Porto/Portugal,…………….intitulada ADEUS PORTUGAL.
…..gostaria de apresentar um trabalho que tivesse uma relação forte com essa fusão de experiências e não registros disso ou daquilo,…tenho algumas idéias, tentarei e caso não o consiga, o trabalho voltará a ser o que sempre foi nestes últimos anos o que para mim transformou-se em algo imbuído de uma
certa monotonia devido ao uso dos mesmos materiais, abrir buracos/escarificações nas paredes, etc. /Veremos.

CLARISSA. Gosto de ver sua idéia de que a repetição de procedimento criativo deixa a produção monótona. É essa uma das discussões que estamos levantando na revista Tatuí sobre coerência. Interessa-nos muito pensar como é que os artistas lidam com a repetição (que pode ser vista por uma perspectiva essencialista) e com o método na arte. Identificamos muita produção que se assemelha a um passo-a-passo extremamente metódico e metodológico e, diante de uma concepção mais visceral/catártica/expressiva da arte, tais concepções são um grande ruído. É isso que nos atrai na discussão….

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Que relações você percebe entre arte e coerência?

Acredito que subordinar o processo criativo ao crivo da coerência é o ápice da incoerência. Estabelecer limites através da exigência de manutenção de um estilo cerceia a possibilidade da invenção inerente à arte.

A crítica, os curadores, o mercado de arte, cada qual ao seu modo, reiteram o discurso sobre a coerência poética do artista pautada na maturidade e profissionalismo em seu percurso de produção. O problema é que tal discurso se baseia em uma lógica de progresso oriundo de um aprofundamento do artista acerca de seu trabalho. O risco gritante que percebo em tais operações é a redução do potencial poético que cada trabalho é, em si, enquanto sintaxe, a um evolucionismo da obra do artista ao longo do tempo. Ora, no meu ponto de vista essa é uma visão que, ao contrapor profundidade à superfície, cria níveis hierárquicos verticais em um campo de força que, ao contrário, se expande horizontalmente. Não acredito, portanto, no percurso da obra como progresso, mas, sim, no processo de inventividade constante. Nessa perspectiva, o entendimento da obra deve ser redimensionado sem sujeitar-se a nexos forjados e aproximações deturpadoras entre uma situação e outra, na tentativa de impor um norte sobre a obra do artista através de um evolucionismo tacanho que não é outra coisa senão mero subterfúgio retórico alheio à própria potência da arte.

Por outro lado, é evidente que todas as obras de um artista dialogam entre si, mesmo que seja um diálogo conduzido pela diferença.

Na modernidade, constatamos uma infinidade de artistas que criaram uma identidade a partir de uma produção pautada pela repetição de formas e fórmulas, indicando, assim, uma linha poética harmônica que percorre as obras dos artistas por décadas. Cada qual com sua determinada preocupação plástica-poética muitas vezes autônoma e confinada sobre si mesma.

Certamente a repetição pode e deve abrir fissuras. “Repetir repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo”, como sugere Manoel de Barros. E, as técnicas de respiração circular dos orientais, que possibilitaram, para os músicos,estender a duração do som. E, a criação do loop graças a um erro de gravação. E, mais recentemente, a repetição do sample. E, os Dervixes Giradores da Ordem Sufi Mevlevi. E, a história de Muskil Gusha, contadas todas as quintas-feiras em todo o mundo. E, os 100 metrônomos de György Ligeti. E, as óperas minimalistas de Philip Glass. E, nas palavras de Daniel Buren, “A repetição que nos interessa é um método, e não um tique; é uma repetição com diferenças. Podemos até dizer que são essas diferenças que fazem a repetição, e que não se trata de fazer o mesmo para dizer que é idêntico ao precedente, o que é uma tautologia, mas sim de uma repetição de diferenças objetivando um mesmo”. A aparente aridez da repetição se substancia a cada dobra, a cada volta na agulha um pequeno ruído insurge.

O problema que estou apontando é de outra natureza. Não está na repetição ad infinitum, mas, sim, no desejo de fixar, de forma tão precisa, tal linha poética a partir de uma unidade estrutural. É de fato um desejo da obra? Ou seria um desejo autoritário do artista que não ouve a própria obra? É uma necessidade do trabalho? Ou são estratégias de um mercado perverso e de uma crítica de arte com objetos de pesquisa extremamente específicos, pré-determinados? Essa unidade encorpa a pesquisa? Ela se faz necessária? Existe? Ou é garantida por práticas curatoriais enrijecidas a ponto de se machucarem com qualquer farpa que escape da homogeneidade e previsibilidade? E quando escapa – ótimo que escape – é sinal de ameaça? Para quem?

São operações demasiadamente sutis pelo simples fato de se situarem em um sistema que atua por modulações cambiantes. Sistema esse que incessantemente anula, ou, ainda mais agravante, captura as forças que escapam, convertendo-asem motriz legitimadora de sua onipotência. É por fagocitose que o sistema opera. E esse é justamente um dos motivos pelo qual a produção de um artista não pode ser “coerente” ao longo dos anos. Refiro-me ao termo coerência no sentido de uma âncora fixa e visível que situe todos os trabalhos sob um mesmo prisma ditado de forma ideológica. Não, um trabalho de arte, no meu ponto de vista, não pode ser um campo definido a priori. Um trabalho não pode ser estável, pois a vida assim não é. Coisas em repouso por muito tempo gangrenam, atrofiam, tornam-se
estéreis, à semelhança de boa parte da produção de arte no país – seja por parte da crítica, que muitas vezes não se debruça sobre o que pesquisa e esvazia conceitos através de discursos recheados de clichês, seja pela escassez de políticas públicas menos comprometidas com “responsabilidades sociais politicamente corretas”, seja pelo deslumbre dos artistas com as cifras crescentes do mercado.

A conversão em artigos decorativos daquilo que irrompeu como força desestabilizadora é fator circunstancial para pensarmos outro aspecto, a questão referente ao lugar da obra. A direção de condutas operada pelos sistemas, qualquer seja, requer atenção redobrada. Tais condutas são impostas ideologicamente ou emergem a partir da empiria no interior do sistema? Prima facie penso em uma soberania do sistema que dita as normas do jogo antes mesmo do apito inicial ser
efetuado. Porém, parece-me que a operação ocorre através de outros estratagemas. As farpas que desgarram são rapidamente absorvidas, convertidas em acessórios e incluídas como parte integrante do jogo – tais dispositivos são criados ao longo da partida. Operação assegurada graças à flexibilidade da regulamentação, na qual pode tudo, desde que… O exemplo mais recente para ilustrar tal procedimento é a situação do grafite. A revista da Folha de 27 de julho de 2008 apresenta como matéria central a “discussão” em torno do grafite. O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, convocou recentemente os grafiteiros osgêmeos para uma reunião com o intuito de “pedidos de desculpa” por conta do apagamento de alguns grafites da dupla e de outros grafiteiros na cidade. A sugestão do secretário Andrea Matarazzo é a de criar uma lista de locais reservados a pinturas do gênero. “Com essa lista em mãos, podemos controlar melhor os espaços que vão ou não ser pintados” (…) “o grafite de São Paulo é muito bonito, tem cores e desenhos muito interessantes”.

Há alguns anos, no Rio de Janeiro, discurso semelhante esteve em pauta. Tratava-se da construção da Cidade do Sexo. Recordo-me dos elogios do prefeito Cesar Maia ao projeto do arquiteto Igor de Vetyemy, que consistia na criação de um espaço com estudos educativos sobre práticas sexuais, comércio ligado a objetos e ao tema da sexualidade, museu do sexo, área médica e cabines para, mediante pagamento, a realização do ato sexual.

Estes são apenas exemplos isolados dentre milhares de situações que poderiam ser citadas. Em ambos, percebemos a inclusão das diferenças com o intuito de amortizar suas singularidades. Seja a manifestação “marginal” do grafite reduzida a artigo de decoração, controlado, na cidade – e nem entrarei no mérito de discutir a legitimação dessa prática garantida pelo sistema da arte – ou, no segundo caso, na produção de sexualidade através de uma Cidade do Sexo… Gerido.

Incoerência entre o discurso e o ato?

Mediante esse tipo de dispositivo, eu insisto em perguntar onde é o lugar da obra? Ela tem um lugar? Ou irrompe nessas fricções não mapeadas? Esse lugar existe? Ou é preciso ser criado? E de que forma criar? É ela, a obra, em si um lugar?

Acredito no caráter totêmico da situação-obra, que age por várias frentes, que desmantela por vários canais, que coloca uma sujeirinha bem lá no meio… No campo invisível. Antes de tudo, a relação com a obra deve ser coerente com as forças que a trespassam. O potencial de mudança da obra reside em um campo não visível, como os totens, tóxicos. O que pode a obra é desconhecido; situa-se no “ar”, esperando um ninho para pousar. É tal pouso que produz efeito no ninho a ponto de fazê-lo esvoaçar. É isso que entendo como dimensão política de uma obra e é nesse ponto que talvez seja possível falar em coerência da obra com as forças das quais ela irrompeu e, muito mais que isso, do potencial que ela é na relação experimentada. Não se pretende, penso eu, mudar toda a lógica de um sistema através de um trabalho. Já nos anos 1960 -70, em meio à ditadura, artistas como Cildo Meireles realizavam ações simbólicas que visivelmente não aspiravam ter a dimensão macropolítica dos movimentos sociais. Através de operações mais sutis – por exemplo, as Inserções em circuitos ideológicos – giravam a chave de alguns mecanismos e com isso possibilitavam a proliferação de pequenos levantes, curtos- circuitos.

Estes artistas, no meu entendimento, não pretendiam ocupar o lugar do poder. A resistência não almeja tomar o poder, justamente por saber que quando isso ocorre perde-se a potência. É saudável que se crie movimentos de trânsito e derivas extraterritoriais – termo cunhado por Brian Holmes e trabalhado por Suely Rolnik em seu texto “Memória do corpo contamina museu” – que façam com que o centro perca tanto as referências, quanto a possibilidade de permanecer enquanto foco. Tais movimentos não têm absolutamente nada a ver com êxodo. Não significa fugir do problema. Consiste, inversamente, em criar rebuliços nas estruturas que desvitalizam e homogeneízam as formas de vida.

Pois bem, estamos na era do Botox, dos seios duros, siliconados, do rosto espichado pelas plásticas e pelo photoshop, todavia, dentro das condições apresentadas, percebemos o oposto. Até mesmo as arapucas não são rígidas. Por esse motivo a virulência do trabalho pode estar em sua maleabilidade. Caso contrário, corre-se o sério risco de, através da manutenção da poética em detrimento de um processo de inventividade, operarmos com as armas erradas e, com isso, o trabalho findar como mimeses defasadas de operações extremamente deslocadas da experiência sensível que forçou a criação da obra.

É delicado tecer um pensamento sobre essas questões, pois o risco de generalizá-las é constante. Não quero aqui imprimir um juízo de valor sobre os métodos de trabalho, ou práticas de cada artista. Sei que muitas vezes a repetição é condizente com as necessidades vitais do trabalho – ou é o próprio trabalho – e admiro a produção de muitos artistas que trabalham dessa maneira. Isso não quer dizer que são piores ou melhores do que aqueles que agem de outro modo. Os métodos de trabalho são diversos. Reforço: não pretendo estabelecer padrões, modelos e graus de qualidade na forma de atuar. Proponho vasculharmos a genealogia dessas práticas. Levanto essa interrogação por conhecer artistas que, devido a meses de trabalhos encomendados, têm seu campo de experimentação limitado, uma produção ecolálica regida pela lógica do mercado.

Tal prática vale para alguns críticos e/ou curadores que aplicam na obra dos artistas aquilo que acabaram de ler. Por isso a febre de Rizomas, de Cartografias, de Devires, de Líquidos, de Estados de Exceção… O que pode ser ótimo quando é condizente com a obra e a potencializa. Caso contrário, não: é incoerência, é impermeabilidade. Utilizam as obras para ilustrarem teses que nem sequer são deles.

O mesmo é pertinente para os artistas que não têm tal linha poética visivelmente demarcada. Os trabalhos podem ser constantes insights desprovidos de pensamento. Mera fabricação de objetos, à maneira da produção de bens de consumo, na tentativa de introduzir nas obras elementos das mais “novas tendências”.

O problema é que cada vez mais os artistas “trabalham” incessantemente e esquecem que é preciso deixar de ser artista para ser artista. A social nos vernissages, as noites de padê, o dinheiro, os contatos, as roupas de grife, as baladas descoladas, as trepadas bem-sucedidas… Tudo está agregado à construção da obra.

Dentro dessas condições essas palavras perigam serem apenas palavras – algo qualquer que não lateja. Mas vai que elas encontram seus ninhos e aí…

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Recife, 12 de novembro de 2008

Ana Luisa Lima Como é que a filosofia poderia pensar sobre a coerência na arte?, se é que há uma coerência ou necessidade dela. Ou a arte, por si mesma, é incoerente? Como poderia se dar essa relação? Você acha que há uma coerência na arte, no fazer artístico, no ser artista?

Jesus Vázquez Um conceito que poderia ser mais aplicável, talvez mais rico, é o conceito de consistência, que seria uma espécie de aplicação do que Heidegger chama de consistência e que substitui o conceito de entidade na metafísica. A consistência seria o estar posto conjuntamente, no caso da arte, numa determinada atividade de produção artística; nela estariam presentes todos os elementos que, ao mesmo tempo, estão presentes na existência como unidade e do ponto de vista da temporalidade. Isso quer dizer que um artista não pode evitar expressar, em tudo que fizer, seja em termos teóricos ou práticos, no seu universo cotidiano, toda sua história, desde o passado até o fim, na medida em que esta temporalidade há de querer esta presença em cada momento de toda temporalidade do Dasein.

Então, o artista, na produção da obra, tem que mostrar – não é uma questão voluntária, é uma necessidade existencial –, todas as suas raízes, todas as suas experiências, todo seu processo de formação estética, e todo o seu sentir: sua afetividade está relacionada com sua vida cotidiana. Tudo isso recolhe, por um lado, toda sua tradição – porque ele é esta tradição – e necessariamente vai se mostrando em tudo que produzir. Seja um artista, um filósofo, um engenheiro, ou qualquer outra coisa, todos vão mostrar, em toda sua produção, suas historicidades, diríamos assim.

É isso que constituiria a consistência da produção estética de um artista. Assim como, analogamente, a gente diz que todo grande pensador no fim das contas, ao longo da sua obra, procura explicitar ângulos distintos, aspectos e perspectivas distintas, uma determinada experiência fundamental acerca da vida, acerca do ser, acerca do que é em todos os sentidos. Então, há sempre em cada pensador uma idéia-força, ou uma experiência de base forte, e na medida em que ele tiver condições conjunturais de refletir, de tematizar sobre isso, então vai dar lugar a toda sua produção teórico- filosófica. Como o artista também, num outro plano, num outro registro de atividade, não pode menos expressar, ao longo de sua vida, essa sua experiência estética do mundo. Isso é que eu chamaria, mais do que coerência – que parece estar carregado de conotações, vamos dizer, lógicas – o conceito de consistência, que é muito mais rico do ponto de vista da experiência.

Ana Exato, eu estava pensando justamente sobre isso. De fato, acho que esse conceito é mais abrangente e significativo, sobretudo se você for pensar, por exemplo, num Picasso. Ele passou por várias fases e por isso mesmo não é possível ver uma coerência estética. Ele foi de uma experiência estética à outra (falo de uma experiência estética racional, formal).

Jesus A consistência estética de vida pelo Picasso, você pode estabelecer ao longo de suas diversas fases.

Ana Exatamente, porque os questionamentos são os mesmos apesar da proposta formal se modificar durante o tempo.

Jesus Sim, ele atravessou diversas etapas na sua produção estética e provavelmente estas diferenças podem ser bem compreendidas a partir do momento que você entende a experiência fundamental da vida vista esteticamente pelo Picasso. Então, esta experiência, vamos dizer, de fundo, é que vai determinar tanto as etapas, quanto a passagem de uma etapa para outra, os ensaios, as tentativas, os projetos estéticos dele. Você vê num Picasso várias etapas, mas percebendo as obras, reconhecemos que há uma continuidade nisso aí, embora inicialmente possa parecer que não.

Eu me lembro que o Picasso que conheci primeiro foi aquele Picasso das deformações, daquelas figuras femininas com um olho pr'aqui, outro pra lá; então eu, na minha ingenuidade, pensava: “que bom, ser artista! Assim é muito fácil, qualquer um faz! Deve ser porque ele não sabia desenhar”. Aí, logo depois fui ao Museu de Picasso em Barcelona, onde estão aquelas primeiras obras (a fase azul, a fase rosa) onde você percebe uma perfeição e um domínio fantástico do desenho e do corpo. Daí, vi: não é por que o cara não sabia pintar e desenhar e por isso fez essas coisas meio esquisitas aí. Você vai começando a perceber e ir entrando no mundo do artista e entender não o porquê, mas o sentido das próprias mudanças dele – que vai passar para o cubismo, essa coisa toda…

Através dessas diferenças todas, podemos observar num grande artista uma consistência em modo de estar no mundo, em modo de conceber o mundo, em modo de sentir o mundo. Nisso, acho que há essa consistência. O que não significa dizer que, do ponto de vista crítico, toda obra apresente a mesma qualidade ou a mesma força estética, ou algo parecido. Há algumas obras que, bom, você as reconhece como Picasso, mas que isoladamente não teríamos grande coisa não, mas que cabem no conjunto da obra. Então, desde aqueles gorilas que fez, que me chamou a atenção no Museu de Picasso em Paris, em que as mandíbulas eram dois carrinhos de brinquedo, e utilizava todos os elementos para compor uma coisa através de cada informação em cima dos instrumentos e materiais utilizados, e que é a mesma deformação que você encontra em obras mais significativas, diríamos assim.

É que, às vezes, o Picasso parece que está fazendo o tempo todo experimentos, mas experimentos recolhidos pelos museus, não porque eram grandíssimas obras, mas porque eram dele. Aquela outra escultura da cabeça de touro é uma coisa fantástica, com uma simplicidade extraordinária, mas que mantém o mesmo projeto, o mesmo caminhar, o mesmo olhar estético sobre elementos corriqueiros, banais, etc.

Eu diria que o conceito de consistência me parece reconhecível em todo artista porque é reconhecível necessariamente – não é uma questão planejada e consciente de vontade em manter uma consistência –, pois o próprio modo de ser da existência humana se encarrega de dar essa consistência: mais frágil, mais forte, mais densa, menos densa. É inevitável a consistência, pelo fato de que nós somos o nosso tempo todo. E o nosso tempo todo não apenas no ponto de vista de uma espécie de subjetividade já
desconstruída por ele, mas a maneira de sentir e de viver as coisas do mundo, tanto do ponto de vista interno, quanto do ponto de vista do contexto do artista.

Você percebe que fatalmente não poderia existir um Picasso fora dessa conjuntura e dessa configuração da existência na dimensão do impessoal. Um Picasso não poderia existir no século XII, assim como um Giotto não poderia existir no século XX. Então, a contextualidade tanto interna do ponto de vista de experiência que o homem tem da vida e do modo de postar-se na vida, quanto do contexto que a existência se dá, faz com que a coerência na produção – seja cética, seja não-ética, intelectual, profissional, ou o que for – seja inevitável. Não é um privilégio, ou um problema exclusivo do artista, mas de qualquer ser humano.

A acontecência, do ponto de vista da produção, se enraíza na consistência como dimensão da existência humana. A consistência é uma construção (embora eu não goste muito da palavra), mas não é planejada. A consistência é dada pelo fato de que existir consiste na possibilidade de sempre haver um assumir-se de uma maneira mais própria, mais autêntica, sem nenhuma conotação moral, ou na forma de um fazer de conta que existência é de outra maneira e, neste sentido, uma forma de fuga da realidade. Então, a consistência é sempre algo aberto, permanentemente em construção, mas não gosto da palavra porque dá uma idéia de planificação de projeto consciente, ou coisa parecida.

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SENTIDOS DA COERÊNCIA NA ARTE

Como toda linguagem, a arte é resultante de um arbitrário cultural que se funda num sistema de signos comunicantes, dotados de certas especificidades, a ponto de demarcar padrões de distinções relativamente a outras formas de linguagens. Tais padrões são o que normalmente identificamos como convenções, acordos, vocabulário próprio. O reconhecimento disso nos leva ao entendimento de que a arte é expressão de uma construção social, e não uma imanência. Nestes termos, falar de coerência na arte pode dizer respeito apenas a unidades relacionais desentenças que, como modalidades formais, estabelecem significados passíveis de compartilhamento entre sujeitos envolvidos nesse espaço institucional a que estamos nos referindo: a instituição arte.

Por outro lado, fixar-se em tal formalismo resulta, não raro, num tipo de abordagem eminentemente essencialista, capaz de resvalar nosso argumento por um processo de reificação da arte como instância dotada de uma imanência e uma aura que ela não dispõe. Como linguagem, a arte se manifesta, primordialmente, por seus usos. O que implica, de imediato, constatar a não existência de um modelo único e correto do ser artístico. Afirmar um modelo único, nesse sentido, é correr o risco de transformar o hegemônico no correto, o que não seria mais do que um modo de pura legitimação.

Sociólogos e filósofos têm argumentado em defesa de uma orientação tipicamente construtivista da arte e, por conseguinte, anti-essencialista. De um modo geral, observam que por arte devemos entender conjuntos de atitudes e objetos socialmente legitimados no interior de um campo, mundo ou sistema da arte. Por diversos caminhos, esses autores identificam tais processos de legitimação seja por convenções estabelecidas no mundo da arte (BECKER, 1982), seja por delimitações de posições distintas no interior do campo artístico (BOURDIEU, 1996 e 2007), seja pelo pressuposto que define arte especificamente pelo seu funcionamento simbólico e não como uma entidade em si (GOODMAN, 1978).

Se tomarmos por certas tais tendências argumentativas, falar de coerência na arte diz muito mais respeito a formas de disputas por posições de prestígio no interior do seu espaço social, do que a uma suposta identificação de suas propriedades inatas. Ao cabo e ao fim, coerência passa a ser uma condição necessária para se alcançar um dado objetivo: o reconhecimento e, mesmo, a canonização de tendências ou modalidades estéticas socialmente justificadas por pares envolvidos assimetricamente no circuito da produção, circulação e consumo de bens simbólicos.

A rigor, portanto, definir coerência na arte é, no mínimo, algo incoerente. Pois, do contrário, o que significaria coerência na arte? Ora, afirmar tal coisa não significa titubear diante de problemas sobre racionalidade e irracionalidade. Longe disso, significa ter bastante clara a necessidade de se ter parâmetros para uma definição de algo como coerente. Neste caso, entre outras questões, tem-se que identificarno próprio circuito da arte os critérios estabelecidos para esse estado de coisas: com efeito, o velho dilema autor-obra-público está dialogicamente enredado nas estruturas de produção, circulação e consumo, como já aludimos.

Assim, como vimos, a arte seria coerente por estabelecer unidade com os padrões tradicionais de representação, por ter uma função social clara, ou por seguir as novas convenções estabelecidas pela arte contemporânea – que é justamente a de por em questão regras delimitadoras dos espaços de arte e não-arte. Aliás, este questionamento nos remonta ao período das vanguardas históricas, quando a tendência era a de negação do caráter orgânico da obra, com a conseqüente afirmação de sua inorganicidade. Esse foi o primeiro momento de descrédito quanto à separação entre as especificidades da arte e não-arte do esteticismo.

A esse respeito, caberia a alusão a três estudos distintos a propósito dos processosde legitimação histórica da arte na constituição da modernidade. Refiro-me ao ensaio sobre as vanguardas artísticas em Bürger (1993), à pesquisa de Bourdieu (1996 e 2007) sobre a formação do campo literário na França e ao estudo sobre processos estruturais e imaginários na sociologia da arte de Francastel (1973).

Em seu estudo, Bürger identifica que, após relativa decadência do sistema das academias e da emergência de um corpo de críticos independentes e negociantes, a autonomia da arte perdeu sua substância e seu contato político com a praxis-vital, em particular, dado o predomínio da lógica instrumental da racionalidade meios-fins dominante nas interações da vida cotidiana da economia capitalista (HEYWOOD, 1997). Com efeito, a crença da arte em sua liberdade e distinção teria representado uma perda do seu horizonte crítico e político, sendo a “vacuidade” o “custo” a ser pago por essa autonomia. Em reação a tal “vacuidade”, sentida pelos artistas de vanguarda da virada do século XIX para o século XX como uma traição à arte, os movimentos de vanguarda assumiram uma postura de destruição da arte autônoma, através de trabalhos e eventos que procurassem afirmar o primado da unidade arte-vida como intento fundamental (p.46-7).

Como indica Heywood, para Bürger a vanguarda falhou em sua tentativa de destruição da arte, visto que trabalhos que se punham antiteticamente em relação ao mercado e às tradições findaram sendo cotados por altas cifras, além de terem sido saudados pela crítica e eventualmente exibidos em importantes galerias e museus. Por outro lado, apesar do seu fracasso, as vanguardas mudaram significativamente a fisionomia da arte na Europa e nos EUA (1997).

Entre outros aspectos, esse fato tornou visível a consideração da arte como instituição social, com sérias conseqüências para a arte e a possibilidade de se formular uma proposição científico-social crítica da mesma. Ademais, mostrou a ineficácia política e social da arte na sociedade burguesa. Gerou um pluralismo estético e abriu espaço para um novo tipo de objeto artístico: a obra de arte inorgânica (1997).

Seguindo mais de perto os argumentos de Bürger, pode-se perceber que sua tese central é a de que devemos nos deslocar de um campo de visão dos movimentos de vanguarda baseado em avaliações de tipo negativas ou positivas, para uma percepção desses movimentos em termos de sua transgressão face à instituição arte. Seu modelo teórico, portanto, visa articular a interpretação histórica com o estudo sistemático do campo em pauta (sd, p.16-7).

Neste ponto, ele põe em cheque o caráter absolutista da tradição sob uma hermenêutica convencional, ao considerar que a ela falta o entendimento do presente histórico como instância de motivação e guia do processo interpretativo, o que a leva a ignorar as contradições e divisões presentes no interior da própria sociedade. A questão fundamental para o autor é que uma sociedade de classes não pode dispor de um ponto de vista universal, o que impossibilita ao intérprete assumir tal perspectiva. Com efeito, uma hermenêutica crítica fica idêntica a uma crítica da ideologia, na medida em que o olhar sobre a tradição ou terá o ponto de vista do opressor ou do oprimido (HEYWOOD, 1997, p.53-4).

De fato, Bürger assevera que uma hermenêutica crítica, não submetida a uma simples “legitimação das tradições”, será “substituída pela crítica da ideologia”.

Neste ponto, o autor dá inicio à discussão a propósito da historicização das categorias estéticas. Para ele, podem-se investigar objetos artísticos à parte da história, mas o mesmo não é possível para com as teorias estéticas. Estas traduzem a marca de uma época (BÜRGER, 1993, p.43).

Com esse argumento, Bürger vê no projeto de arte-vida das vanguardas históricas o momento crucial de desfetichização dos objetos estéticos que, em todo caso, se esgotou no próprio movimento, na medida em que tais manifestações são absorvidas e logo fetichizadas pelo sistema de arte, transformando-se em obras de grande valorização mercantil e cultuação estética. É seguindo este raciocínio que o autor não percebe outro mecanismo que não o de uma re-auratização do objeto artístico na neovanguarda, em termos do que se poderia chamar de uma reprodução pacífica de moda daquela antiarte histórica, como que por uma mera pastichização dos intentos da vanguarda histórica. Isso é revelador, em certo sentido, de uma limitação no ponto de vista alimentado pelo autor.

Ora, é justamente em relação à questão da fetichização que parece se encontrar uma das chaves para o entendimento não apenas das vanguardas históricas, mas, também, da potencialidade crítica das neovanguardas. Quer dizer, é justamente em consideração à relação entre vanguardas e cultura de massa que parece existir o que Huyssen (1997) chama de “dialética oculta”. Outra chave fundamental para o entendimento do declínio das vanguardas e da posterior emergência das neovanguardas é a que possibilita estabelecer tal discussão à luz da crise da modernidade e o surgimento da pós-modernidade. Infelizmente, essas são questões às quais não teríamos espaço para discussão neste ensaio.

Por outro lado, caso se queira refletir um caminho efetivo de estruturação de um campo artístico a partir da ruptura modernista com o academicismo oficial, pode-se recorrer a Bourdieu (1996), que apresenta, no seu As Regras da Arte, uma questão fundamental para se pensar o processo genético de constituição da autonomia estética. Para ele, tal processo se deu por uma virada reflexiva e crítica que os produtores assumem sobre o que eles mesmos produzem. Isso os levou a especificar princípios e pressupostos próprios à sua produção que, por seu turno, querendo se apresentar como autonomia do campo, de sua produção e de sua recepção, manifestam-se como ruptura para com as “exigências exteriores” e para com os que a seguem e como afirmação da “forma sobre a função” e do “modo de
representação sobre o objeto da representação”. Uma segunda razão da virada crítico-reflexiva da arte sobre si mesma estaria motivada pelo fato da especificidade do campo de produção gerar as condições de “circularidade” e “reversibilidade” das relações de sua própria produção e consumo (p.337-9).

Caberia aqui tomar como referência última os ensinamentos de Francastel (1973), que procura reconhecer a legitimidade do conhecimento produzido com o estudo das imagens e dos objetos, desde um ponto em que não se os confunda. Em outras palavras, o autor parece indicar o caminho de uma abordagem estrutural baseada na homologia entre a estrutura da obra artística e a estrutura social, quando assinala que, diante do objeto figurativo, que nessa definição deve ser apreendido como objeto de civilização, deparamo-nos com “um vasto domínio que reproduz, de certa forma, na sua complexidade, a textura das sociedades” (p.25-6).

Por fim, Francastel vai fazer referência ao caráter de duplicidade da arte, cujo significado pode representar para um dado grupo a função de “memória”, ou de“projeto”; ambos, não sendo propriamente excludentes entre si, se apresentam como expressão da autonomia “entre as atividades comuns da sociedade”. Sua afirmação está ancorada numa obviedade: a de que o sentido dos objetos criados pelos homens encontra-se vinculado às suas atividades socializadas.

Contudo, para ele, o duplo sentido em que os objetos figurativos são criados é o da “manutenção das estruturas” mantenedoras da sociedade, ou a “antecipação de outras estruturas que integram as atividades de um grupo à experiência pessoal de um indivíduo”. Por outras palavras, a arte pode atuar segundo um parâmetro de coesão, ou dissociação social. Com efeito, a arte se manifesta, simultaneamente, tanto em nível concreto quanto abstrato: seja realizando “objetos representativos das crenças mais sólidas de um grupo”, seja criando “esquemas de representação imaginários” (p.29-30).

Neste ponto, vislumbro pessoalmente a inocuidade de quaisquer reivindicações de coerência na arte, sobretudo hoje, quando o acesso às novas tecnologias tem possibilitado uma incomensurável expansão do objeto artístico, em termos do que os críticos caracterizam como uma verdadeira sinergia de linguagens e tendências. Outra questão importante na revelação da impropriedade do sentido de coerência na arte se refere ao caráter universalista que esse valor traduz. Elemento esse que nos remete ao início deste ensaio, no tocante à discussão sobre o essencialismo na arte. Algo que caberia ser discutido, se houvesse espaço, é o problema da mímesis como legado fundamental na história da arte no Ocidente, mas isso fica como pauta para outro momento.

 

Bibliografia
BECKER, Howard (1982), Art worlds. Berkeley e Los Angeles, University of California Press.
BOURDIEU, Pierre (1996). As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo, Companhia das Letras.
_____________ (2007). A Distinção: critica social do julgamento. São Paulo, Edusp/Porto Alegre, Zouk.
BÜRGER, Peter (1993), Teoria da Vanguarda. Lisboa, Vega.
FRANCASTEL, Pierre (1973). A Realidade Figurativa: elementos estruturais de sociologia da arte. São    Paulo, Perspectiva/EDUSP.
GOODMAN, Nelson (1978). Modos de Fazer Mundos. Porto, Edições ASA.
HEYWOOD, Ian (1997), Social Theories of Art: a critique. New York/Washington Square, New York         University Press.

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TEIMOSIA BIO-CULTURAL

Já faz algum tempo que, sobretudo nos Estados Unidos, tem se dissipado com espantosa força uma concepção criacionista de vida outrora ‘cientificamente’ descartada do leque das teorias explicativas da ‘origem’ e do ‘destino’ dos seres e seus ecossistemas. Esta retomada de um modelo essencialista de mundo – pautado na concepção platônica de formas ideais e, portanto, perenes – novamente acende, em âmbito não-científico, o debate que coloca tal modelo em confronto com as diversas teorias que, notadamente após Darwin, têm negado a estase como dinâmica existencial para enfatizar a mutabilidade e, inclusive, a deriva da vida, que incorporaria mutações e acasos de todos os tipos.

Para além das motivações ideológicas e, sobretudo, religiosas, que fizeram renascer e reverberar essa idéia criacionista da vida – e que, portanto, precisam ser consideradas numa contextualização desse ressurgimento – interessa-me a constatação de sua persistência, mesmo face à ampla difusão de teorias a ela contrárias. Pesa enfaticamente, para a perpetuação dessas concepções, a crença – herdada de Platão e ainda lugar-comum – de que a ordem é superior à desordem, sendo a primeira uma virtude e a segunda, um distúrbio. Neste sentido, as variações seriam consideradas ‘inferiores’ diante das essências que, entendidas como próximas da ‘verdade’ e da ‘perfeição’, por sua vez encontrariam, na natureza, metáfora apropriada: aquilo que se distanciasse de seu estado ‘natural’, estaria, assim, cada vez mais potencialmente deturpado, doente.

Mesmo após os esforços de Darwin – cujas teorias da evolução e seleção natural evidenciaram a inexistência e a impossibilidade de perenidade na natureza, apontando sua ininterrupta dinâmica de transformação – modelos culturais ordenadores enxergaram virtude e, portanto, hierarquia, não no ‘começo’, mas no ‘fim’ das dinâmicas transformadoras da vida, correlacionando, numa leitura distraída da obra darwiniana, evolução e progresso. Assim, deslocando o ideal de perfeição existencial da ‘origem’ ao ‘destino’ da vida, foi tomado como metáfora o ‘processo evolutivo’ humano, por tal ótica entendido como um percurso linear e progressivo da natureza à cultura.

Nesse modelo pós-darwiniano, mesmo que assimilada a mudança como elemento fundante da existência, há ainda pouco espaço para a mutação e seus dissensos, visto que esta, de ilógica que é, não obedece à idéia de progresso. Desta forma, o espaço para a incorporação do acaso na dimensão evolutiva – já bastante indicado em Darwin e enfaticamente corroborado nas teorias modernas da evolução – que faz tender ao zero a possibilidade de traçar uma lógica generalizável e hierárquica aos processos de transformação dos seres e ecossistemas, apenas inicia sua legitimação expandida, estando ainda distante dos debates corriqueiros acerca das dinâmicas existenciais nos seres vivos, como demonstra o ressurgimento criacionista norte-americano.

A concepção de vida entendida em desvínculo de quaisquer pré, ou pós-determinações – para a qual concorre o reconhecimento do protagonismo da contingência existencial em toda sua crueza e urgência – apesar de encontrar amplo respaldo biológico, desafia cotidianamente a cultura ocidental que, ainda intensamente pautada pelos modelos evolutivos ordenadores como forma de atribuir sentido às frenéticas transformações que vivencia, constrói-se pouco afeita ao descontrole senão como exceção (erro). Encontrando sentido evolutivo em nossas mudanças por acreditar que a natureza não opera também por excesso ou sorte, mas unicamente através de uma lógica funcionalista de sobrevivência que tudo reduz ao essencial (adaptação), construímos nossas vidas em torno de pensamentos como o ‘nada acontece por acaso’, o que, em última instância, faz ver a crença (ainda que tácita) de um controle geral e ordenador sobre a vida. Assim, tendemos a escantear o descontrole. Na arte, inclusive.

Ainda que o século XX tenha testemunhado uma arte que, conscientemente, evocou o inconsciente e o acaso – como o fizeram os surrealistas e dadaístas – ele também foi cúmplice do esforço geral de desconstruir a imagem do artista como ser inspirado por forças a ele estranhas, buscando desfazer a aura de genialidade que, todavia, ainda hoje perpassa a produção em arte. A adoção do termo ‘produção’ em referência à criação da obra – por sua vez compreendida como ‘trabalho’ –, ápice linguístico dessa transformação paradigmática acerca da concepção de arte (e de artista), denota o caminho racionalizador percorrido pela arte ao longo do século XX que, por fim, encerrou-se menos com os chamados do inconsciente com os quais se iniciara, e mais com preocupações conceituais, metalingüísticas e, inclusive, socialmente relacionais. O artista, portanto, retomou o ‘controle de si’ e, obviamente, de suas idéias e obras que, não tendo mais uma ‘origem’ perfeita e intocável (criacionismo, essencialismo, inspiração), hoje teriam, contudo, ‘missão evolutiva’ diante do campo da arte e da sociedade (variação, adaptação, progresso). O descontrole de uma deriva genética aleatória (gatilho das mutações ao acaso) e a observação de Darwin de que a seleção natural não tem propósito, ou direção (nem mesmo a sobrevivência da espécie) – ou seja, a incorporação de aspectos de aleatoriedade existencial – encontram ainda pouco espaço nas corriqueiras concepções de arte.

O escanteio do descontrole – existente em grande parte da produção dos artistas de hoje e endossado por um sistema da arte que demanda margens de segurança para operar suas dinâmicas legitimadoras – reverte-se na crença do domínio do artista sobre sua criação, para a qual corrobora a idéia de ‘poética’, intensamente difundida nas últimas décadas do século passado e cuja presença no âmbito da teoria da arte potencializa uma expectativa de ‘coerência’ da produção artística que, outrora – quando, por exemplo, entendida em suas ‘fases’, ou ‘estilos’ – esteve atenuada.

No corrente constructo social de artista como aquele cujo trabalho gera produtos (obras) que estão sob seu domínio de consciência – ainda que passíveis de serem semanticamente recombinados a partir do olhar do outro – toda ‘matéria’ utilizada na arte tende a figurar de modo funcionalista, posta à disposição da ação ‘poderosa’ (e, por vezes, autoritária) do artista, cada vez mais voltado a lógicas de agenciamento e articulação que, em sua trajetória de desenvolvimento, vão construindo um corpo
comumente ‘coerente’, marcado pela sobreposição de camadas de significação. Nesse sentido, operando por agenciamento, a arte se torna crescentemente mais racional. E, ao adotar um procedimento criativo comum ao cotidiano (re-criação do mundo a partir da articulação de elementos nele já disponíveis), torna-se inclusive mais ‘social’ e funcional, como sinaliza a proliferação das “questões” – da mulher, do corpo, da violência, do espaço, etc. – pela arte abordadas.

Parece-me evidente que, diante de tal contexto de exploração da faceta racional da arte, haja cada vez menos espaço para o surgimento do descontrole. Ainda que Darwin tenha demonstrado a importância da deriva para a evolução dos seres vivos, nossa cultura tende a abafar as possibilidades mutacionais do ser e das coisas. A arte, domesticada pela cultura e sua lógica interna de evolução por superação, encorpa o sentido de ‘coerência’ do mundo ao lidar com ele de modo funcionalista, visando, mesmo no campo do simbólico, a sobrevivência por meio da adaptação do ser ao ambiente – daí, talvez, a recente proliferação da ‘re-articulação do mundo’ como estratégia construtiva na arte e sua relação utilitarista com o campo das idéias.

Edgar Morin, entretanto, propõe [1] MORIN, Edgar. O método 4, as idéias. 4ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2005. que reconheçamos “a soberania e a dependência das idéias, seu poder e sua debilidade”. Segundo o autor, as idéias, dotadas de poder de auto-eco-organização, são não apenas ‘produtos’, mas produtoras de nós. O autor defende a concepção de noosfera, habitat das idéias, por onde elas circulam autonomamente, copulando entre si e gerando entes outros, distantes do controle humano, mas que, ainda assim, nos influenciam. Sua noosfera reconfigura o ‘mundo das idéias’ de Platão, propondo um modelo desordenador, sem princípio essencial, ou fim evolutivo e que, por sua vez, está em consonância com as modernas teorias da evolução que sinalizam a vulnerabilidade dos seres diante da aleatoriedade, ou anti-economia não só de sua ontogenia, como, mormente, do movimento evolutivo de sua população como um todo.

Assim, considerando a realidade de uma noosfera, assume a possibilidade de não-autonomia do ser diante de seu pensamento – no caso específico da arte, o não-domínio do artista sobre sua criação, a impossibilidade de manter sob controle sua obra não a partir de uma explicação imanente, ou transcendente (como em certa medida o fez a cultura renascentista, por exemplo), mas absolutamente contingente: as idéias, matéria da forma e da arte, têm vida própria. E, assim, lidando com as idéias de modo não-funcionalista – elas nos servem tanto quanto a elas servimos – Morin assimila um modelo existencial não-hierárquico e retroativo, sem ‘origem’, ou ‘destino’, e no qual, em sua radicalidade, não cabe, portanto, a insistência na demanda por ‘coerência’, ainda que esta possa ser percebida, voluntária, ou conseqüentemente surgida.

Nossa cultura, entretanto, não possui, ao que me parece, suficientes ‘estruturas cognitivas’ capazes de dar conta da ‘deriva genética aleatória’ do pensamento humano, habitualmente entendido, quando assim procedendo, como nonsense, provocador de estranhamento, ou quaisquer outros rótulos (como ‘incoerência’) que mais sinalizam uma não-adaptação aos padrões culturais corriqueiros, do que a possibilidade de instauração de um padrão outro. Mesmo que a biologia, a filosofia, ou os ‘fatos’ apontem para a tendência à complexificação do mundo, ainda nos faltam aparatos cognitivos e culturais para lidar com a vida em complexidade. Mesmo que saibamos que a natureza também opera em saltos, permanecemos adesivados a uma lógica ‘evolucionista’ linear da vida.

No campo da arte, a crítica, a curadoria e a teoria da arte em geral demonstram equivalente dificuldade. Eminentemente sistematizadoras e normalmente pouco íntimas dos processos criativos e seus aspectos de deriva, essas instâncias, não sabendo como lidar com as  mutações genéticas’ da arte, apostam em discursos que atribuem sentido à produção artística com base em ‘critérios’ ordenadores – dentre eles, a coerência. E, assim, o descontrole e a autonomia das idéias em seus delírios criativos vão sendo crescentemente escanteados também na arte. E então, diante de cobranças por coerência, faz-se presente o perigo do retorno, mesmo que inconsciente, ao essencialismo em seu pavor pela variação e pelo desvio, tratado como distanciamento da perfeição.

Ainda que a força entrópica – e de resistência – como é habitual, se concentre em indivíduos isolados, configurando-se como exceção, temos a sorte de, no campo da cultura e da arte, incorporá-la de forma variada. Se a biologia aponta que a ontogenia de um indivíduo não pode ser considerada evolução – evolutivas são aquelas mudanças populacionais que podem ser herdadas via material genético, de uma geração para a outra – na arte essa regra se desfaz e ações individuais podem reverberar para além de sua incorporação cromossômica, como ocorre com as idéias na noosfera. É que elas, as teimosas idéias, são – já diria Morin – certamente menos biodegradáveis que o homem e, cientes disso, sustentam suas “incoerências” com mais afinco. O criacionismo que o diga.

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