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Ana Luisa Lima Como é que a filosofia poderia pensar sobre a coerência na arte?, se é que há uma coerência ou necessidade dela. Ou a arte, por si mesma, é incoerente? Como poderia se dar essa relação? Você acha que há uma coerência na arte, no fazer artístico, no ser artista?
Jesus Vázquez Um conceito que poderia ser mais aplicável, talvez mais rico, é o conceito de consistência, que seria uma espécie de aplicação do que Heidegger chama de consistência e que substitui o conceito de entidade na metafísica. A consistência seria o estar posto conjuntamente, no caso da arte, numa determinada atividade de produção artística; nela estariam presentes todos os elementos que, ao mesmo tempo, estão presentes na existência como unidade e do ponto de vista da temporalidade. Isso quer dizer que um artista não pode evitar expressar, em tudo que fizer, seja em termos teóricos ou práticos, no seu universo cotidiano, toda sua história, desde o passado até o fim, na medida em que esta temporalidade há de querer esta presença em cada momento de toda temporalidade do Dasein.
Então, o artista, na produção da obra, tem que mostrar – não é uma questão voluntária, é uma necessidade existencial –, todas as suas raízes, todas as suas experiências, todo seu processo de formação estética, e todo o seu sentir: sua afetividade está relacionada com sua vida cotidiana. Tudo isso recolhe, por um lado, toda sua tradição – porque ele é esta tradição – e necessariamente vai se mostrando em tudo que produzir. Seja um artista, um filósofo, um engenheiro, ou qualquer outra coisa, todos vão mostrar, em toda sua produção, suas historicidades, diríamos assim.
É isso que constituiria a consistência da produção estética de um artista. Assim como, analogamente, a gente diz que todo grande pensador no fim das contas, ao longo da sua obra, procura explicitar ângulos distintos, aspectos e perspectivas distintas, uma determinada experiência fundamental acerca da vida, acerca do ser, acerca do que é em todos os sentidos. Então, há sempre em cada pensador uma idéia-força, ou uma experiência de base forte, e na medida em que ele tiver condições conjunturais de refletir, de tematizar sobre isso, então vai dar lugar a toda sua produção teórico- filosófica. Como o artista também, num outro plano, num outro registro de atividade, não pode menos expressar, ao longo de sua vida, essa sua experiência estética do mundo. Isso é que eu chamaria, mais do que coerência – que parece estar carregado de conotações, vamos dizer, lógicas – o conceito de consistência, que é muito mais rico do ponto de vista da experiência.
Ana Exato, eu estava pensando justamente sobre isso. De fato, acho que esse conceito é mais abrangente e significativo, sobretudo se você for pensar, por exemplo, num Picasso. Ele passou por várias fases e por isso mesmo não é possível ver uma coerência estética. Ele foi de uma experiência estética à outra (falo de uma experiência estética racional, formal).
Jesus A consistência estética de vida pelo Picasso, você pode estabelecer ao longo de suas diversas fases.
Ana Exatamente, porque os questionamentos são os mesmos apesar da proposta formal se modificar durante o tempo.
Jesus Sim, ele atravessou diversas etapas na sua produção estética e provavelmente estas diferenças podem ser bem compreendidas a partir do momento que você entende a experiência fundamental da vida vista esteticamente pelo Picasso. Então, esta experiência, vamos dizer, de fundo, é que vai determinar tanto as etapas, quanto a passagem de uma etapa para outra, os ensaios, as tentativas, os projetos estéticos dele. Você vê num Picasso várias etapas, mas percebendo as obras, reconhecemos que há uma continuidade nisso aí, embora inicialmente possa parecer que não.
Eu me lembro que o Picasso que conheci primeiro foi aquele Picasso das deformações, daquelas figuras femininas com um olho pr'aqui, outro pra lá; então eu, na minha ingenuidade, pensava: “que bom, ser artista! Assim é muito fácil, qualquer um faz! Deve ser porque ele não sabia desenhar”. Aí, logo depois fui ao Museu de Picasso em Barcelona, onde estão aquelas primeiras obras (a fase azul, a fase rosa) onde você percebe uma perfeição e um domínio fantástico do desenho e do corpo. Daí, vi: não é por que o cara não sabia pintar e desenhar e por isso fez essas coisas meio esquisitas aí. Você vai começando a perceber e ir entrando no mundo do artista e entender não o porquê, mas o sentido das próprias mudanças dele – que vai passar para o cubismo, essa coisa toda…
Através dessas diferenças todas, podemos observar num grande artista uma consistência em modo de estar no mundo, em modo de conceber o mundo, em modo de sentir o mundo. Nisso, acho que há essa consistência. O que não significa dizer que, do ponto de vista crítico, toda obra apresente a mesma qualidade ou a mesma força estética, ou algo parecido. Há algumas obras que, bom, você as reconhece como Picasso, mas que isoladamente não teríamos grande coisa não, mas que cabem no conjunto da obra. Então, desde aqueles gorilas que fez, que me chamou a atenção no Museu de Picasso em Paris, em que as mandíbulas eram dois carrinhos de brinquedo, e utilizava todos os elementos para compor uma coisa através de cada informação em cima dos instrumentos e materiais utilizados, e que é a mesma deformação que você encontra em obras mais significativas, diríamos assim.
É que, às vezes, o Picasso parece que está fazendo o tempo todo experimentos, mas experimentos recolhidos pelos museus, não porque eram grandíssimas obras, mas porque eram dele. Aquela outra escultura da cabeça de touro é uma coisa fantástica, com uma simplicidade extraordinária, mas que mantém o mesmo projeto, o mesmo caminhar, o mesmo olhar estético sobre elementos corriqueiros, banais, etc.
Eu diria que o conceito de consistência me parece reconhecível em todo artista porque é reconhecível necessariamente – não é uma questão planejada e consciente de vontade em manter uma consistência –, pois o próprio modo de ser da existência humana se encarrega de dar essa consistência: mais frágil, mais forte, mais densa, menos densa. É inevitável a consistência, pelo fato de que nós somos o nosso tempo todo. E o nosso tempo todo não apenas no ponto de vista de uma espécie de subjetividade já
desconstruída por ele, mas a maneira de sentir e de viver as coisas do mundo, tanto do ponto de vista interno, quanto do ponto de vista do contexto do artista.
Você percebe que fatalmente não poderia existir um Picasso fora dessa conjuntura e dessa configuração da existência na dimensão do impessoal. Um Picasso não poderia existir no século XII, assim como um Giotto não poderia existir no século XX. Então, a contextualidade tanto interna do ponto de vista de experiência que o homem tem da vida e do modo de postar-se na vida, quanto do contexto que a existência se dá, faz com que a coerência na produção – seja cética, seja não-ética, intelectual, profissional, ou o que for – seja inevitável. Não é um privilégio, ou um problema exclusivo do artista, mas de qualquer ser humano.
A acontecência, do ponto de vista da produção, se enraíza na consistência como dimensão da existência humana. A consistência é uma construção (embora eu não goste muito da palavra), mas não é planejada. A consistência é dada pelo fato de que existir consiste na possibilidade de sempre haver um assumir-se de uma maneira mais própria, mais autêntica, sem nenhuma conotação moral, ou na forma de um fazer de conta que existência é de outra maneira e, neste sentido, uma forma de fuga da realidade. Então, a consistência é sempre algo aberto, permanentemente em construção, mas não gosto da palavra porque dá uma idéia de planificação de projeto consciente, ou coisa parecida.