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Capa da revista

EDITORIAL

A ideia de uma crise no exercício da crítica de arte ronda o imaginário, as entrelinhas e as manchetes. Alimentando acusações e posicionamentos defensivos, tal “falência da crítica” estaria evidente nos mais diversos âmbitos e teria, como um de seus inequívocos indícios, a rarefação do debate crítico. Ao que parece, aos poucos dissipa-se a experiência de debates publicamente amplificados, que porventura pudessem dar corpo aos pontos de convergência e divergência quanto a questões fundamentais da arte e do pensamento sobre arte. É que, no Brasil, a multiplicação recente dos espaços de criação e difusão da arte não tem garantido a evidenciação de um debate que, sabidamente existente, encontra-se, todavia, disperso.

Intrigada por esse imbróglio e compreendendo que, diante da situação, mais do que nunca é preciso se “restabelecer as condições de inteligibilidade de um debate” (Jacques Rancière), a Tatuí convidou pensadores – entre artistas, críticos e curadores – para integrar o projeto desta 12a  edição, que tem como foco a tentativa de lançar luz sobre alguma parte dos debates críticos desenhados por aqui. Os colaboradores foram convidados a elegerem, entre o conjunto de textos produzidos e publicados no Brasil a partir dos anos 2000, um texto a partir/sobre o qual gostariam de tecer uma análise. Assim, a Tatuí 12 tornou-se um exercício de “crítica da crítica”. Junto às editoras, os colaboradores Lígia Nobre, Luisa Duarte, Paulo Reis, Thaís Rivitti e Tiago Santinho dedicaram-se a abordagens diversas sobre inquietações que lhes pareceram importantes no contexto dessa primeira década do século XXI, pensando a partir dos textos de Daniela Castro, Fernanda Albuquerque, Lisette Lagnado, Moacir dos Anjos, Ricardo Basbaum e Roberto Winter.

No desejo de adensar alguns dos debates apontados nos textos construídos especialmente para esta edição, bem como colaborar na difusão de uma importante discussão internacional da arte, este número traz também o texto Antagonismo e Estética Relacional, de Claire Bishop, uma das mais contundentes críticas à concepção de estética relacional (Nicolas Bourriaud). Traduzido para o português por Milena Durante, esta é a primeira publicação do texto no Brasil.

Com conteúdo expandido para além do habitual da revista Tatuí, esta edição contou com a fundamental colaboração de seus leitores. O valor necessário para impressão da revista foi complementado através de crowdfunding, numa campanha feita por meio da plataforma catarse.me. A Tatuí 12 só foi possível em sua inteireza por conta do desejo coletivo de estabelecer um debate, pelo que agradecemos intensamente a todos os colaboradores, difusores e apoiadores da campanha. O processo de financiamento colaborativo experimentado por esta edição torna clara a necessidade e a relevância da criação de espaços onde um debate crítico possa acontecer de forma menos dispersa – desejo por uma “crítica da crítica” que se mantém insistente, aceso e urgente.

Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz, editoras.

Colaboradores

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Imagens/Vídeos

Conteúdo

Índice
  1. A troca e o troco - Escrito por Lisette Lagnado
  2. Acredite nas suas ações - Escrito por Fernanda Albuquerque
  3. Antagonismo e Estética Relacional - Escrito por Claire Bishop
  4. Como a arte global transforma a arte étnica [1] - Escrito por Laymert Garcia dos Santos
  5. Confusão e intolerância e outras coisas… - Escrito por Tiago Santinho
  6. Feedback - Escrito por Roberto Winter
  7. Lisette Lagnado - Escrito por Lisette Lagnado
  8. Modos de aproximação - Escrito por Lígia Nobre
  9. Olhar a poeira, por exemplo - Escrito por Moacir dos Anjos
  10. A crítica de arte como campo privilegiado para a ficção contemporânea - Escrito por Ricardo Basbaum
  11. Partilha da crise: ideologias e idealismos. - Escrito por Clarissa Diniz
  12. Posturas críticas - Escrito por Paulo Reis
  13. Qual é o compromisso da crítica de arte? - Escrito por Thaís Rivitti
  14. script•para•um•conto•contemporâneo - Escrito por Ana Luisa Lima
  15. Um loop perfeito - Escrito por Daniela Castro
  16. Ver um Mundo num grão de areia - Escrito por Luisa Duarte

A troca e o troco

Originalmente publicado em Rivane Neuenschwander. Ici là-bas aqui acolá. [com textos de Daniel Birnbaum e Akiko Miki] Galeria Fortes Vilaça, São Paulo, 2005.


 

Um sonho recorrente: estou dentro de uma sala grande (talvez mais de uma) com várias instalações de Rivane Neuenschwander e vejo alguém pisando em sua grande área retangular de talco varrido (Lugar-comum é o título desse trabalho). Peço (gentilmente) para a pessoa recuar e prestar mais atenção. De repente, atentados pipocam por todos os lados: indivíduos se apóiam na parede que exibe fitas adesivas horizontais; tropeços acabam dispersando os montículos de pimenta-do-reino que pontuavam o espaço (Attachment); bacias e copos sofrem esbarros, derramando seus líquidos (Continente). Dirijo-me a cada pessoa, explicando a natureza da obra e exigindo mais cautela. Ninguém me dá ouvidos. A situação escapa de meu controle; a exposição desaba. Levo o relato dessa falta de tino do público em relação ao trabalho da artista e eis a resposta que me chega: “É assim mesmo. A vida faz parte. Esta é a medida do trabalho”. E Rivane continua conversando tranqüilamente com seus convidados.

Analisar o conjunto de imagens acima evocado me serve para tratar das diferentes participações, colaborações e parcerias que estão na base da produção criativa da artista. Para uma primeira camada de interpretação daquele sonho, conservo a sensação de que os visitantes da exposição estão presentes no recinto, mas que esse comparecimento é também sinônimo de ausência de clareza. Já não é novidade emitir qualquer observação relativa à tênue visibilidade das pesquisas contínuas de Rivane. É preciso avançar agora e dizer que fazemos parte da ressonância dessa “obra”, do aumento de suas capacidades, venha ela a desabar ou não, e que somos integrados em seu cálculo.

O sonho se desenvolve sob a égide de um encontro mundano, mas mostra tipos de comportamentos diferenciados. Há aqueles que desmancham a forma de um trabalho, passando longe da sutileza de sua existência; e há também aqueles que, ao trazerem e levarem sujeira para dentro e para fora da sala, ignoram o quanto essa ação é bem-vinda. É o caso da instalação (Andando em círculos), de assombrosa simplicidade: a percepção que temos dela cresce à medida que andamos pelo chão e que partículas vêm se acumular sobre inusitadas circunferências de substância adesiva, enegrecendo o pavimento da galeria. O problema é que quando o desenho dessa borra vem à tona, surge a dúvida se esse novo corpo “faz parte”;se uma manifestação tão irrelevante “pertence ou não pertence” a uma vontade artística.[1] Extraída da linguagem matemática, a expressão “pertence / não pertence” dá título a fotografias de besouros presos entre bolhas (2000). Esse trabalho com círculos cheios e transparentes questiona a existência do conjunto vazio. Rivane raciocina em termos de conjuntos e os ordena obtendo uma intersecção, seja ela aposto ou complemento. A exigência semântica está sempre presente, como atestou a organização espacial da mostra no Palais de Tokyo, onde divisas amarelas abriam fronteiras virtuais tal qual um livro com páginas alçadas à escala arquitetônica (Capítulos). É como se, para ela, as coisas fossem mudas ou transparentes – até o momento em que nossas ações sobre elas as extraíssem do fluxo do indeterminado. Nesse cômputo, a menor quantidade, ainda que seja pó, é de enorme valia para a redefinição da riqueza. E por onde passa a teoria do valor na economia artística?

A questão do valor, quando transposta para o comércio da arte, sempre esteve fora de dois critérios de grandeza fundamentais para o tratamento conceitual da mercadoria: seja o custo dos materiais utilizados, seja o tempo dedicado para a fatura da obra. No entanto, é comum ouvir que a arte carrega em si um certo grau de “humanidade”. E agora que um “outro”, muitos até, são chamados a cooperar, essa absorção de uma força de colaboração não indicaria o uso de um capital subjetivo, imaterial digamos? O outro dá suporte para que as proposições de Rivane possam se desenvolver, mesmo que não mobilizem diretamente uma ação social ou a transformação existencial do indivíduo. Nesse modo de produção, a participação nem sempre se manifesta como voluntária, o que não a impede de ser ativa, conforme atesta a emergência de Andando em círculos. Um programa que teria uma finalidade sem fim, talvez esta seja a medida da presente prática artística: alterar percepções e costumes efetuando giros de baixa intensidade, de poucos artifícios. O outro entra com sua competência particular, uma prática da ordem do drive, sem que isso o torne um artista. Ao artista, efetivamente, continua cabendo a responsabilidade da forma, ou da “edição”, do material bruto.

O sonho fala de dois tipos de demolição, uma advinda de fora, súbita e avassaladora, e outra, na boca da artista, mais lenta e fosca, entrópica. Vejo-me na condição de sentinela, cuidando para impedir os “estragos” causados por essas duas forças, enquanto a autora da obra demonstra o mais completo desapego. Uma vez que não acredito numa suposta insignificância do fazer artístico, devo estabelecer uma correspondência entre os signos desse sonho e o plano da realidade.

Sabe-se que uma exposição de arte (de objetos, de sentimentos, de ideias) requer o zelo de um vigilante. Rivane intui, além dos conceitos de frágil e perecível, tantas vezes mencionados em textos anteriores sobre ela, que a responsabilidade abarca outros compromissos que a forma. O problema do público passa por uma necessidade de cuidados. Sem manutenção, a produção do homem desmorona.[2] Este eco nos vem de Paul Ricoeur: “Onde há poder, há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade. Quanto a mim, tenderia mesmo a dizer que o objeto da responsabilidade é o frágil, o perecível que nos requer, porque o frágil está, de algum modo, confiado a nossa guarda, entregue ao nosso cuidado”. A montagem de Chove chuva só é exeqüível se houver um gerenciamento da instalação, isto é, alguém, com disponibilidade, a quem é transferida a tarefa de passar a água dos baldes inferiores para os baldes suspensos a fim de que o processo de gotejamento possa cumprir seu ciclo. A tentativa de “proteger” o trabalho de uma ruína, material e moral, não deixa de ser uma espécie de dispêndio ou de doação. Por isso, sustento que essa modalidade de participação há de ser inserida numa “política da amizade”.

A afirmação “a vida faz parte do trabalho” anuncia a chance de minar a mercantilização que rege as trocas da sociedade. Rivane explora um regime refratário ao sistema monetário e à chancela da assinatura do artista bem-sucedido. Cooperamos para que ela exista e exiba uma coletividade (Eu desejo seu desejo). Foi assim com Ici là-bas aqui acolá e com Imprópria paisagem, dois trabalhos que literalmente não poderiam ter acontecido não fosse o empenho de muitos participantes. Dessa maneira, a artista põe em prática uma sentença conhecida da cultura brasileira: “Só me interessa o que não é meu”.[3]     “… lei do homem, lei do antropófago.” Cf. Oswald de Andrade em: Manifesto Antropófago (1928). Para a autoria ser múltipla, sem ostentar um nome próprio, foi preciso induzir o trabalho alheio (recolher do bar, dar festas); alguns itens foram comprados pelo preço de uma bagatela corroborando o sentido de valor agregado.

A discussão do circuito e do mercado de arte – que nos lembra, sem dúvida, os dispositivos acionados por Cildo Meireles nos anos 70 – conta com instruções e inserções dirigidas. Mas, para Rivane, tirar partido da pluralidade desse “fora” significa absorver também sua subjetividade. Ici là-bas aqui acolá consiste em desenhar de memória um monumento ausente (a Torre Eiffel). Cada um nutre “sua” torre e devolve uma imagem; esta, para participar da mostra, foi selecionada sem indultos em meio a um certame de representações imprevisíveis. Ponto de vista trata de uma questão vizinha: aventa a possibilidade de estar entre quatro paredes e apagar uma construção situada na parte externa mediante um ajuste muito fino da posição do espectador (Ponto de vista – St. Mark’s Episcopal Cathedral, Minneapolis); Esculturas involuntárias são speech acts de contribuintes entregues a suas manias manuais, que percebem que o inconsciente acaba vazando e que o menor monólogo pode ser socializado – Esculturas involuntárias (atos de fala) –; em Sob medida, dispositivo inteligente que inventou uma parede inexistente no espaço do museu a partir de uma rampa de acesso ao mezanino, as pessoas tiveram a experiência de testar sua escala na exposição realizada no Museu de Arte da Pampulha, Belo Horizonte.

E qual a reciprocidade, o troco, para essa gente toda que participa? As “esculturas involuntárias” foram uma vez expostas com suas respectivas autorias (ArtPace Foundation, San Antonio); as marinhas de Imprópria paisagem são devolvidas a seus pintores “amadores” com o carimbo de participação na exposição de alguém que conquistou o trânsito institucional. Caberia lembrar o quanto a marinha pode emblematizar a ocupação sem compromisso do “pintor de domingo” que pinta por hobby, enquanto o nome Rivane Neuenschwander já é em si um capital, pelo calor simbólico conferido ao prestígio de sua carreira. Outro “passatempo” é a limpeza da casa que inspirou O trabalho dos dias. Esse “trabalho”, entendido aqui na dupla acepção da palavra (de atividade e de obra), foi construído a partir de uma coleta de poeira de sua residência em Londres. Módulos de plástico auto-adesivo aspiraram nesse caminho toda sorte de dejetos que ganharam uma configuração espacial em São Paulo, na Bienal de 1998. Decerto, sem alguém passando o mundo a limpo e sem um outro valorando-o, sem o propalado processo civilizatório e sem freqüentes temporadas no estrangeiro, não haveria circulação de linguagem. Isto se evidencia em Palavras cruzadas, quando pessoas andam entre caixas de papelão desdobradas (de transporte), pegando laranjas e toranjas com letras cavadas a fim de formar vocábulos em duas línguas (alemão e português). Rivane encarna muito mais a figura de Ulisses (um “apátrida” com residências em vários lugares) do que a de Penélope: o estorvo da exterioridade lhe serve para sua auto-constituição como sujeito.

Ainda no âmbito do sonho, há uma mensagem camuflada que interessa amplificar: de que a prática artística hospeda potências chamadas de “afeto”.[4] O conteúdo latente desse sonho tornou-se mais claro para mim com o auxílio do texto “Valor e afeto” de Toni Negri, publicado em Exílio (São Paulo: Iluminuras, 2001). Cito o seguinte trecho: “A vida afetiva se torna, portanto, uma das expressões da ferramenta de trabalho encarnada dentro do corpo. Isso significa que o trabalho, da maneira pela qual se exprime hoje, não é apenas produtor de riquezas, mas também, e sobretudo, de linguagens que produzem essas riquezas, as interpretam e delas desfrutam. Essas linguagens são tão racionais quanto afetivas. E tudo isso tem importantes conseqüências na definição dos sujeitos” (p. 28). A maioria das obras depende da implicação pessoal de colaboradores que Rivane consegue mobilizar sem nenhum outro capital que a motivação gerada por seu trabalho. Na realidade, seria mais exato compreendê-los como uma divisão de sua empresa, embora não sejam qualificados como artesãos ou operários (para evitar a longínqua referência das oficinas do Renascimento). Parte do serviço dela consiste em coordenar indivíduos que lhe emprestam de sua energia vital, um eufemismo da ciência biológica para não nomear diretamente o desejo. Subordinados a suas instruções, os cooperantes colocam suas competências à disposição e assim o trabalho de um vai nutrindo o de outro.[5]   Entre as palavras “cooperador” e “cooperante”, escolhi esta última para acrescentar ao texto o sentido do estrangeiro que prestava auxílio com seu trabalho nas ex-colônias, após sua independência. Transplantada na organização política e econômica da sociedade, Rivane Neuenschwander encarnaria a figura exemplar do novo trabalhador. O que isso significa?

Quando convergem a atividade pessoal e a produção de subjetividade, faculdades expressivas e afetivas, será ainda lícito usar a palavra “trabalho”? na origem dessa trajetória, ainda era possível localizar resquícios do romantismo, em querer pôr diretamente a mão na massa e em, graças a um saber-fazer, dar as costas aos efeitos da alienação. Como na cozinha oriental em que tudo é confeccionado um a um, eram inicialmente gestos pequenos e precisos: queimar com incenso tipos diversos de materiais (raiz chinesa, papel-arroz, organza de nylon); fixar formigas com durex; descascar cabeças de alho; aspirar a sujeira ambiental; raspar pratos de porcelana cobertos de polpa de tomate; amaciar sabão de coco e bacia com óleo de girassol; reunir e colar ora flores secas, ora sementes naturais, ora xaxim e cocô de lesmas; inventar um alfabeto de temperos; varrer muito chão…

Se, na acepção marxista, o sujeito que governa suas ações automaticamente salva a dignidade de sua consciência, o que dizer quando essa ação se torna repetição? Como pensar o trabalho livre no limite da neurose? Nas instalações de Rivane, a figura do “um” não existe sem o conceito de “diferença”. Uma letra, uma bola, um país ou uma lesma, nada se basta isoladamente. Há, portanto, um coletivo de saída, um pensamento de espécie, que invalida a terminologia de “série”. Enxergar funções (descascar, colar, amaciar, comprar, reunir, apagar, pintar), ou estabelecer classificações por materiais (orgânicos, industriais), é um julgamento sem erro. Ora, ao contrário do colecionismo, que marca boa parte das estratégias artísticas e onde cada unidade se cristaliza em fetiche, aqui a instabilidade do resultado é determinante para permitir um acesso a uma noção de valor conjugado à temporalidade da vida. Explica-se: não é a espera do colecionar, mas é um trabalhar catando, e catar significa tempo para a observação, a procura e o encontro – catar jabuticaba, cogumelo, morangos, piolho, arroz, feijão, amoras, siri. Qualquer preço para essa alegria seria exorbitante, e então, como ficamos?

Talvez o melhor trabalho para responder a essa pergunta seja _ _ _ _ _ _ _ _ _ (Product of). Rivane escolhe um objeto que prima por seu conteúdo mercadológico, as sacas que transportam grãos de bens alimentícios em geral, e desloca a riqueza material para a imaterial. O exemplo é agudo para falar de vida (a fome) e de política (má distribuição de alimentos e cultivo de transgênicos). Matérias-primas saem de um lugar para outro e passam pela metamorfose do capital. Essas sacolas de mercado (provenientes de Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo) foram convertidas em economia artística: apagar com solvente toda informação impressa, preservando apenas a logomarca ou estampa; pintar com pincel e tinta especial por cima de cada estampa, respeitando as cores originais e o campo onde ficava o texto. É possível aproximar esse trabalho ao procedimento usado para fazer as bandeiras de Globos, em que cada bola virou uma representação nacional por meio de uma interferência em pintura vinílica e fita adesiva.

Onde começaria o território do outro? Um primeiro redige a missiva; um segundo responde; um terceiro desconstrói e embaralha os papéis de remetente e destinatário, origem e fim. Depois, passa-se para outros corpos. No filme Love Lettering, a função de conduzir a seqüência desses fragmentos de correspondência foi delegada a peixes dentro de um aquário. É um recarregamento de sentido, uma vez que seu vai-e-vem havia sido interrompido e que a câmera acompanha o andar desse novo fluxo. Os peixes, com isso, não são meros suportes, mas agentes de fato; eles têm uma competência clara, a capacidade de introduzir uma aleatoriedade externa à vontade artística de Rivane. Esses pequenos animais aquáticos emprestam suas nadadeiras para serviços de comunicação. No final, o espectador assiste a uma troca fictícia, que ninguém descreveu, à qual mensageiros autônomos, mesmo que inconscientes de sua missão, devolveram uma sintaxe possível. Um pouco dessa tática será encontrado mais adiante com as Traduções gastronômicas.

Rivane pegou no ar uma necessidade de participação, traduzida por outros protagonistas da cena em coletivos de artistas. Como atender à demanda do não-artista de escapar de sua condição de homem comum? Como fazê-lo sentir-se parte integrante de uma troca, como mobilizar seu imaginário e tantos desejos não-formulados? A luta contra a contemplação pura e simples do espectador, assim como a utopia de dissolver a distância entre a vida e a arte, encontram agora uma formulação tangível: as práticas, sendo disseminadas entre muitos colaboradores, permitem que o conhecimento dos indivíduos em relação ao funcionamento da arte se amplie e se des-idealize. Não há nada mais retroativo nesse sentido que as “receitas” secretas, as técnicas não abertas à comunidade.

Em suma, por que a servidão voluntária funciona nesse tipo de proposição? Qual a remuneração para o fascínio de integrar o trabalho do outro? Como pagar aqueles que emprestam um pouco de sua subjetividade para desenhar uma Torre Eiffel ou pintar uma marinha, atraídos pelo sonho do outro? O que significa, no mesmo registro de encomenda ou de despacho, um chef (um Exu?) interpretar uma lista de supermercado? Para a realização de Traduções gastronômicas, a lista foi escrita num país, os ingredientes comprados em outro continente, e comeu-se um trivial versado em outra língua. Como as lesmas de Carta faminta, os comensais são agentes formais do trabalho. Sobretudo, passam a constituir-comunidade. Não importa sua escala, pois ela não tem hierarquia, não importa seu poder, mas sua potência, é a comunidade dos “lado a lado”, dos que partilham os mesmos mantimentos, numa composição sempre diferente. Assim como em Oliveira, encomenda específica em torno da árvore do jardim, para um amigo, o cunhado e a irmã. Eles usufruíram de sua sombra para escrever desejos em tiras de papel e foram adornando-a. A moeda não faz mais a troca e a digestão será de cada um. Talvez isso nos garanta alguns anos de vivência num espaço simultaneamente público e estético…

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Acredite nas suas ações

Publicado originalmente sob o título Ternura, humor e pipoca em fanzine do Grupo GIA, em 2006, e republicado em versão modificada na revista Urbânia 3, de abril de 2008, com o título atual.


Pode a arte interferir ou transformar a realidade social? Quais as possibilidades de diálogo entre arte e vida? Questões como essas já incitaram debates inflamados na história da arte e ainda hoje provocam polêmica por onde passam. A razão é simples: o casamento entre arte e política nem sempre é visto com bons olhos por artistas e teóricos. Há um certo temor de que, na dinâmica conjugal, as questões de ordem política se sobreponham às de ordem artística – como se estivéssemos falando de interesses necessariamente dissonantes –, o que acarretaria um inevitável empobrecimento da obra. Para não correr o risco, a solução seria apostar na chamada autonomia da arte e investir em trabalhos que apresentam pouca ou nenhuma relação com seu contexto político, econômico e social. Este é um ponto de vista. Na outra ponta do debate, estão aqueles que não acreditam na possibilidade de uma arte efetivamente neutra e autônoma e que, dadas as profundas desigualdades que caracterizam o mundo de hoje, entendem que os artistas podem, sim, posicionar-se frente a elas. E até mesmo intervir, se esse for o caso.

A discussão dá pano pra manga. E se até pouco tempo atrás podia soar fora de moda, definitivamente varrida do debate artístico após o propalado fim das utopias, não há dúvidas de que ela vem sendo retomada. E com força. Não por acaso foi mote da 11ª Documenta de Kassel, em 2002, e alimentou a concepção da 27ª Bienal de São Paulo, organizada em torno do tema “como viver junto”. A novidade é que as relações entre arte e política já não são mais pensadas como há quarenta anos atrás, quando artistas ligados às novas vanguardas levaram às últimas conseqüências a discussão sobre a natureza da arte e seu papel na sociedade, operando transformações cruciais na produção artística. Findas as grandes utopias, não se trata mais de apostar em uma revolução através da arte, mas de acreditar na possibilidade de intervir, ainda que singelamente, no nosso entorno, defendendo a idéia de uma atitude menos passiva diante da realidade.

É essa a postura expressa pela produção de muitos coletivos da atualidade, agenciamentos formados por jovens artistas que atuam de forma colaborativa no desenvolvimento de propostas artísticas. Exemplo disso são as intervenções do GIA (Grupo de Interferência Ambiental), de Salvador, ou “interferências urbanas”, como prefere chamar o coletivo, criado em 2002 por um grupo de estudantes da Escola de Belas Artes da UFBA [1] Integram o GIA os artistas Cristiano Píton, Everton Marco Santos, Ludmila Britto, Mark Dayves, Pedro Marighella e Tiago Ribeiro.. Executadas quase sempre no espaço urbano, suas ações refletem uma compreensão da arte que se aproxima muito mais da produção de experiências do que da criação de objetos artísticos únicos e acabados. Trata-se, na sua maioria, de trabalhos efêmeros, realizados a partir de materiais simples e baratos, e pautados na elaboração de situações que se infiltram nos espaços da vida e buscam promover um certo estranhamento, encantamento ou indagação por parte do público.

É o caso dos panfletos Acredite nas suas ações, distribuídos pelo GIA no SPA das Artes 2005, em Recife. Em quatro versões, os folhetos convidam o público a realizar pequenas intervenções na cidade. São ações simples e poéticas, que estimulam outros olhares, posturas e envolvimento com o espaço onde as pessoas vivem. Uma das filipetas sugere que amarremos uma mensagem a um balão, preferencialmente vermelho, e o soltemos a partir de um lugar alto, observando as reações das pessoas. Outra versão propõe que se produza um carimbo com uma idéia “positiva e criativa”, imprima o “recado” em sacos de pipocas e ofereça-os a um pipoqueiro da cidade. Já outra filipeta estimula o público a reunir amigos a fim de realizar uma fila para observar algo fantástico, mas que já se tornou comum na cidade, de forma a chamar atenção para esse aspecto.

Afetuosas e muito bem-humoradas, as três propostas encorajam o público a intervir poeticamente no local onde vivem, deixando suas rotinas diárias por um momento para produzir mensagens e lançá-las “ao vento” ou para assinalar determinadas particularidades da cidade onde vivem de forma absolutamente inusitada. Essas intervenções, por sua vez, também se propõem a criar situações que convoquem outras pessoas a suspender suas rotinas por um instante, permitindo-se vivenciar outras experiências – surpreendentes, lúdicas, desviantes, ternas ou simplesmente engraçadas. Trata-se de postular – já não mais no espaço da arte, mas nos espaços da vida – a idéia de uma postura mais ativa e imaginativa diante do cotidiano. Nesse sentido, a “camuflagem” proporcionada pela infiltração do trabalho no dia-a-dia das pessoas dota os panfletos do “conteúdo virótico” de que fala Alexandre Vogler [2] VOGLER, Alexandre. Atrocidades Maravilhosas: Ação Independente de Arte no Contexto Público. In: Arte & Ensaios, n..8. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/EBA/UFRJ, 2001, potencializando seus possíveis desdobramentos. Isto porque não se está atuando em um espaço onde tudo pode acontecer – o espaço artístico por excelência, onde o estranho e o fora do comum já são esperados pelo público –, mas está se estendendo a potencialidade própria do espaço da arte a lugares e situações ordinários da vida. A operação remete à noção de Bernard Lafargue de que “o próprio da arte é criar lugares estéticos sempre novos, que relembram ao homem que ele não pode habitar o mundo a não ser como poeta” [3] LAFARGUE, Bernard. Nom-Lieu et Lieux de l’Oeuvre d’Art. In: L’Oeuvre d ‘Art Aujourd’hui. Paris: Séminaire Interarts, 2000-2001: 95..

O aforismo impresso nas três filipetas é categórico: “Acredite nas suas ações”. E logo após, em letras menores: “Desenvolva e utilize, também, outras formas de se relacionar de forma positiva e criativa com a cidade”. Ora, incitar as pessoas a acreditar nas suas ações é uma proposição extremamente simples, porém de uma potência extraordinária. Significa convocá-las a agir. E mais: a fazerem-se presentes em seus atos e a levarem a sério aquilo que fazem, confiantes no poder que seus gestos mais simples podem ter. Trata-se de estimular as pessoas a tornarem-se, de fato, sujeitos de suas histórias. Há necessidade mais premente que essa?

O trabalho fala, assim, de uma aposta na poesia, no afeto, na delicadeza, na imaginação e no bom-humor como estratégias para interferir, ainda que transitoriamente, na realidade. Ou como estratégia para provocar sensibilidades, questionamentos e atitudes. Trata-se de trabalhar a partir do que é dado – o automatismo e a aspereza do dia-a-dia na cidade – para explicitar o que pode ser feito – sonhado, imaginado e desejado – a partir dali. A estratégia traduz o que Nicolas Bourriaud entende como a ação política mais eficaz que o artista pode realizar hoje: mostrar o que pode ser feito a partir do que nos é dado. Nesse sentido, tal ação não indicaria “a esperança em uma revolução, mas a manipulação das formas e das estruturas que nos são apresentadas como eternas ou ‘naturais’”. Com esse espírito, defende o crítico francês, pode-se efetivamente “mudar as coisas de uma maneira muito mais radical” [4] BOURRIAUD, Nicolas. O Que É um Artista (Hoje)? In: FERREIRA, Glória; VENANCIO FILHO, Paulo (org.). In: Arte & Ensaios, n.10. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/EBA/UFRJ, 2003..

Outra intervenção que exemplifica a atitude artística do GIA é a série Não Propaganda, realizada pelo grupo desde 2003. Nela, o coletivo se apropria de suportes publicitários de baixo custo, tais como cartazes, panfletos, faixas e até mesmo os chamados homens-sanduíches, e subverte sua função comercial, colorindo-os inteiramente de amarelo, sem imprimir qualquer conteúdo em sua superfície. O interessante é que as “não propagandas” são divulgadas da mesma maneira que uma ação de merchandising qualquer. Os artistas já distribuíram panfletos no mercado público, vestiram-se de homem-sanduíche no centro de Salvador, amarraram faixas junto a semáforos e distribuíram cartazes amarelos a foliões em pleno carnaval. São operações simples, que apontam, contudo, para um problema crucial: a presença massiva da publicidade nas grandes cidades. A eliminação dos conteúdos habitualmente impressos nesses suportes ressalta, num efeito reverso, sua própria existência, pois instiga a atenção dos passantes e atenta para o fato de que os discursos publicitários não são tão invisíveis ou inócuos como já nos podem parecer.

Cama, ação executada pelo coletivo desde 2002, é outro exemplo. O trabalho consiste no posicionamento de uma cama com um sujeito dormindo em locais públicos da cidade, como praças, calçadões e cruzamentos. Enquanto a cama apresenta-se cuidadosamente arrumada com lençóis e travesseiro, o sujeito veste pijamas, o que reforça a impressão de que a cena foi transportada diretamente de um quarto de dormir para as ruas da capital. A operação se vale de um procedimento caro ao Surrealismo: a aproximação de duas realidades ou objetos aparentemente inconciliáveis por pertencerem a esferas ou campos da vida absolutamente distintos. A questão é que a “situação surrealista” apresentada pelo coletivo evoca uma problemática dolorosamente real: a indiferença cotidiana em relação aos milhares de moradores de rua que dormem, diariamente, nas praças, calçadas e viadutos das grandes cidades brasileiras. Trata-se de habitantes cuja condição de vida “surreal” já se tornou banal aos olhares apressados da maioria de nós.

Radicais ou não em sua atuação politicamente poética, o fato é que as “interferências urbanas” propostas pelo GIA apontam outras possibilidades de se pensar as relações entre arte e política na atualidade. Imbuídas de um certo “espírito utópico”, tal qual a noção é defendida por Ernst Bloch, suas ações refletem não uma postura assertiva de afirmação de um novo horizonte concreto e realizável, mas uma postura reflexiva, de indagação em relação ao presente e de “abertura de um espaço de manifestação daquilo que ainda não é” [5] BLOCH, Ernst apud VERNER, Lorraine. L’Utopie comme Figure Historique dans l’Art. In: BARBANTI, Roberto. L’Art au XXème Siècle et l’Utopie. Paris: L’Harmattan, 2000.. Trata-se de evocar, sim, outras possibilidades de se perceber, vivenciar, desejar e imaginar o real. Porém não através de ações que atuam, objetivamente, na transformação do quadro social em que vivemos, mas através de interferências capazes de provocar fissuras, ruídos ou curtos-circuitos na realidade, ao promoverem, como diria Bloch [6] BLOCH. Ernst. ExperimentumMundi. Paris: Payot, 1981., pequenas “rotações do olhar”: mudanças no modo como observamos e experienciamos o mundo.

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Antagonismo e Estética Relacional

Originalmente publicado na revista October n. 110 (2004). Versão em inglês disponível no website da Tatuí.


Tradução Milena Durante

Revisão Clarissa Diniz

O Palais de Tokyo

Na época de sua abertura em 2002, o Palais de Tokyo imediatamente se mostrava ao visitante como sendo diferente de outros centros de arte contemporânea que haviam sido inaugurados recentemente na Europa. Apesar de um orçamento de 4,75 milhões de euros ter sido gasto para converter o antigo pavilhão japonês para a Feira Mundial de 1937 em um “lugar de criação contemporânea”, a maior parte desse dinheiro havia sido usada para reforçar (em vez de renovar) a estrutura já existente [1] Site de divulgação do Palais de Tokyo, “site de création contemporaine”, <http://palaisdetokyo.com>.. Em vez de paredes lisas e brancas, iluminação discreta e chão de madeira, o interior foi deixado vazio e inacabado. A decisão foi importante, já que refletiu um aspecto fundamental do ethos curatorial do lugar codirigido por Jerôme Sans, crítico e curador de arte, e Nicolas Bourriaud, antigo curador da CAPC Bordeaux (Centre D’Arts Plastiques Contemporains de Bourdeaux) e editor da publicação Documents sur l’art3 – Lewis Kachur, Displaying the Marvelous: Marcel Duchamp, Salvador Dali and the Surrealist Exhibition(Cambridge, Mass.: MIT Press, 2001).].. A relação improvisada do Palais de Tokyo com seu entorno tornou-se, consequentemente, paradigmática de uma tendência visível entre centros de arte europeus: reconceitualizar o modelo “cubo branco” de exibição de arte contemporânea substituindo-o pelo modelo “estúdio” ou “laboratório”[2] Por exemplo, Nicolas Bourriaud sobre o Palais de Tokyo: “Queremos ser uma espécie de kunstverein – mais um laboratório que um museu” (citado em “Public Relations: Bennet Simpson Talks with Nicolas Bourriaud”, Artforum, Abril 2001, p.48); Hans Ulrich Obrist: “A exposição verdadeiramente contemporânea devia expressar possibilidades conectivas e fazer proposições. E, talvez surpreendentemente, tal exposição deveria reconectar com os anos de laboratório da práticas expositivas do século vinte…  A exposição verdadeiramente contemporânea com sua impressionante qualidade de inacabada e incompleta dispararia uma participação pars pro toto” (Obrist, “Battery, Kraftwerk and Laboratory”, in Words of Wisdom: A Curator’s Vade Mecum on Contemporary Art, ed. Carin Kuoni – New York: Independent Curators International, 2001, p.129); em um tele simpósio que discutia o projeto Laboratorium (Antuérpia, 2000) de Barbara van der Linden e Hans Ulrich Obrist, os curadores descrevem sua preferência pela palavra “laboratório” porque é “neutra” e “ainda intocada, intocada pela ciência” (“Laboratorium is the answer, what is the question?”, TRANS 8, 2000, p. 114). Metáforas de laboratórios também surgem nas concepções dos artistas sobre suas próprias exposições. Por exemplo, Liam Gillick, falando sobre sua individual na Arnolfini em Bristol, afirma que “é uma situação de laboratório ou oficina onde existe a oportunidade de testar algumas ideias combinadas para exercitar processos críticos comparativos e relacionais” (citação de Gillick em Liam Gillick: Renovation Filter: Recent Past and Near Future, Bristol: Arnolfini, 2000, p.16). O trabalho de Rirkrit Tiravanija é frequentemente descrito em termos semelhantes: “é como um laboratório de contato humano” (Jerry Saltz, “Resident Alien”, The Village Voice, 7-14 de Julho, 1999, n.p.), ou “experimentos psicossociais em que são criadas situações para encontros, trocas, etc.” (Maria Lind, “Letter and Event”, Paletten 223, Abril 1995, p. 41). É importante notar que “laboratório” nesse contexto não denota experimentos psicológicos ou comportamentais com os observadores mas, em vez disso, refere-se à experimentação criativa em relação às convenções expositivas. experimental. E, assim, esse formato enquadra-se na tradição do que Lewis Kachur descreveu como “exposições ideológicas” da vanguarda histórica: nelas (como na Feira Internacional Dada em 1920 e na Exposição Surrealista Internacional em 1938) a montagem buscava reforçar ou sintetizar as ideias contidas nos trabalhos [3] Lewis Kachur, Displaying the Marvelous: Marcel Duchamp, Salvador Dali and the Surrealist Exhibition(Cambridge, Mass.: MIT Press, 2001).

Os curadores que promovem esse paradigma do “laboratório” – incluindo Maria Lind, Hans Ulrich Obrist, Barbara van der Linden, Hou Hanru e Nicolas Bourriaud – vêm, em grande medida, sendo encorajados a adotar esse modus operandi curatorial como uma reação direta ao tipo de arte produzida nos anos 1990: trabalhos abertos, interativos, resistentes ao fechamento frequentemente parecendo estar “em andamento” ao invés de objetos concluídos. Tais trabalhos parecem resultar de uma má interpretação criativa da teoria pós estruturalista: em vez das interpretações dos trabalhos de arte estarem abertas à reavaliação contínua, diz-se que o trabalho de arte em si é que está em fluxo perpétuo. Há muitos problemas com essa ideia; o mais importante deles é a dificuldade em definir com clareza um trabalho cuja identidade é propositadamente instável. Outro problema é a facilidade com que o “laboratório” torna-se vendável como espaço de lazer e entretenimento. Centros como o Baltic em Gateshead, o Kunstverein Munich e o Palais de Tokyo têm usado metáforas como “laboratório”, “local de construção” e “usina artística [art factory]” para se diferenciar de museus hiper burocráticos cuja base são as coleções; seus espaços dedicados a projetos geram um excitação criativa e uma aura em torno de se estar na vanguarda da produção contemporânea [4] Dirigido por Sune Nordgren, o Baltic, Centro Báltico de Arte Contemporânea em Gateshead recebia três artistas residentes em estúdios mas eles ficavam abertos ao público somente quando o  artista desejasse; geralmente o público tinha que aceitar a explicação do Centro de ser uma “usina artística” baseada em confiança. O Palais de Tokyo, por contraste, recebe até dez artistas residentes por qualquer período. Munich Kunstverein, sob direção de Maria Lind, buscou um tipo diferente de produtividade: a conversão feita por Apoloni a Susteric da entrada da galeria consistia em um “trabalho console” em que membros da equipe curatorial (incluindo Lind) podiam revezar ocupando a recepção, continuando seu trabalho em público.. Pode-se argumentar, nesse contexto, que projetos baseados em “trabalhos em andamento [work-in-progress]” e em “residências artísticas” começam a ficar compatíveis à “economia da experiência”, a estratégia de venda que busca substituir bens e serviços por experiências pessoais encenadas e roteirizadas [5] B. Joseph Pine II e James H. Gilmore, The Experience Economy: Work is Theatre and Every Business a Stage (Boston: Harvard Business School Press, 1999). O Centro Báltico se apresenta como “um local para a produção, apresentação e experiência da arte contemporânea” através de “uma forte ênfase em trabalhos encomendados, convites a artistas e trabalho de artistas residentes” (www.balticmill.com). Ainda que não fique claro qual é o suposto benefício obtido pelo observador a partir de tal “experiência” de criatividade – que nada mais é do que atividade institucionalizada de ateliê.

Aos projetos baseados em “laboratório” está relacionada a tendência em convidar artistas contemporâneos para desenvolver ambientes (ou solucionar seus problemas) dentro do museu, como o bar (Jorge Pardo no K21, Düsseldorf; Michael Lin no Palais de Tokyo; Liam Gillick na Whitechapel Art Gallery) ou a sala de leitura (Apolonia Susteric no Kunstverein Munich ou o programa cambiante “Le Salon” no Palais de Tokyo) que, por sua vez, os apresentam como obras de arte [6] A cada seis messes um artista é convidado ao Palais de Tokyo para desenvolver e decorar um pequeno espaço localizado sob a escada principal no centro dos espaços expositivos: Le Salon. Simultaneamente um espaço de relaxamento e um trabalho de arte, oferece confortáveis poltronas, jogos, material para leitura, um piano, um vídeo ou programa de televisão para aqueles que o visitam” (Palais de Tokyo Website , http://www.palaisdetokyo.com, tradução feita a partir de tradução da autora). As atuais instalações da Portikus Gallery em Frankfurt incluem um escritório, uma sala de leitura e um espaço da galeria criado pelo artista Tobias Rehberger.. Um efeito dessa insistente promoção da ideia de artista-designer, da função sendo superior à contemplação e da inconclusão ou abertura dos trabalhos sobrepujando sua resolução estética é muitas vezes, em última análise, uma ênfase ao status do curador que ganha o crédito por ser o diretor de cena de toda a experiência do laboratório. De acordo com a advertência de Hal Foster em meados dos anos 1990, “a instituição pode vir a ofuscar o trabalho que, de outro modo, seria o destaque: ela se torna o espetáculo, agrega capital cultural e o diretor-curador torna-se a estrela” [7] Hal Foster, “The Artist as Etnographer” in Foster, The Return of the Real (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1996), p198.. Com essa situação em mente, atenho-me ao Palais de Tokyo como ponto de partida para uma inspeção atenta de algumas das reivindicações feitas para trabalhos de arte semi-funcionais e “abertos”, já que um dos co-diretores do Palais, Nicolas Bourriaud, é também seu principal teórico.

 

Estética relacional

Esthétique Rélationnel [NT – Todas as citações do presente artigo foram traduzidas para o português a partir do artigo original em inglês. Para citações originais, conferir o artigo em inglês – e suas notas – no website da revista Tatuí (www.revistatatui.com).] é o título da coletânea de ensaios de Bourriaud de 1997 em que ele tenta caracterizar a prática artística dos anos 1990. Como houve muito poucas tentativas de se criar um panorama da arte dos anos 1990, especialmente no Reino Unido onde a discussão acaba girando de forma míope em torno do fenômeno dos jovens artistas britânicos, os Young British Artists (YBA), o livro de Bourriaud é um passo inicial importante para a identificação de tendências recentes na arte contemporânea. Ele também surge em um momento em que muitos acadêmicos no Reino Unido e nos EUA parecem relutantes em abandonar a pauta politizada e as batalhas intelectuais dos anos 1980 (na verdade, para muitos, da arte dos anos 1960) e condenam tudo, de instalações à pintura irônica, como sendo celebrações despolitizadas e superficiais, cúmplices do espetáculo do consumo. O livro de Bourriaud – escrito a partir de sua abordagem prática de curador – promete redefinir o que a crítica de arte contemporânea considera importante, já que seu ponto de partida é que não podemos mais abordar esses trabalhos por detrás de um “escudo” da história da arte e dos valores dos anos 1960. Bourriaud busca oferecer novos critérios pelos quais abordar tais trabalhos de arte – em geral um tanto obscuros – enquanto também afirma que não são menos politizados que o de seus precursores dos anos 1960 [8] “Contemporary art is definitely developing a political project when it endeavors to move into the relational realm by turning it into an issue” (Bourriaud, Relational Aesthetics. Dijon: Les Presses du Réel, 2002, p. 17). Citado a partir daqui no texto como ER, com base na edição brasileira do livro: Bourriaud, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. “A arte contemporânea realmente desenvolve um projeto político quando se empenha em investir e problematizar a esfera das relações”, p. 23.

Bourriaud afirma, por exemplo, que a arte dos anos 1990 toma como horizonte teórico “a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado” (ER, p.19). Em outras palavras, a arte relacional busca estabelecer encontros intersubjetivos (sejam eles literais ou potenciais) em que o sentido é elaborado coletivamente (ER, p. 21) e não realizado em um espaço privatizado de consumo individual. A implicação é de que esse trabalho inverte os objetivos do modernismo greenberguiano [9] Essa mudança de “privado” para “público” no modo de abordagem vem sendo associada há algum tempo a uma quebra decisiva com o modernismo; ver Rosalind Krauss, “Sense and Sensibility”, Artforum (Novembro de 1973), pp. 43-53 e “Double Negative: A New Syntax for Sculpture”, em Passages in Modern Sculpture (London: Thames and Hudson, 1977).. Em vez de um trabalho de arte discreto, portátil e autônomo que transcenda seu contexto, a arte relacional fica inteiramente sujeita às contingências do ambiente e do público. Além disso, esse público é visto como uma comunidade: em vez de uma relação individual entre trabalho de arte e observador, a arte relacional estabelece situações em que se dirige aos observadores não apenas como a uma entidade social, coletiva, mas de modo que a eles estivessem sendo dados os meios para criar uma comunidade, por mais temporário ou utópico que isso venha a ser.

É importante enfatizar, entretanto, que Bourriaud não considera a estética relacional como uma simples teoria de arte interativa. Ele a considera como um meio de localizar a prática contemporânea dentro da cultura de modo geral: a arte relacional é vista como uma resposta direta à mudança de uma economia baseada em bens para uma economia de serviços [10] Isso está refletido no número de artistas cuja prática toma a forma de oferecer um “serviço”, como a artista americana Christine Hill, baseada em Berlim, que oferecia massagens nas costas e nos ombros para os visitantes da exposição e quem, mais tarde, organizou um brechó de roupas que de fato funcionava em Berlim e na Documenta X (1997), a Volksboutique.. Também é vista como resposta às relações virtuais da internet e da globalização, que por um lado estimularam um desejo por interações mais físicas, interações cara a cara entre as pessoas enquanto, por outro lado, inspiraram artistas a adotar uma abordagem faça-você-mesmo, ou do-it-yourself (DIY) e moldar seus próprios “universos possíveis” (ER, p.18). Essa ênfase na urgência nos é familiar desde os anos 1960, relembrando a importância dada pela performance à autenticidade de nosso embate direto com o corpo do artista. Mas Bourriaud se esforça enormemente para distanciar o trabalho contemporâneo daquele das gerações anteriores. A principal diferença, em seu ponto de vista, é a mudança de atitude em relação à transformação social: em vez de uma pauta “utópica”, os artistas de hoje buscam apenas encontrar soluções provisórias aqui e agora; em vez de tentar transformar seu ambiente, os artistas hoje estão simplesmente “aprendendo a habitar melhor o mundo”; em vez de ansiar por uma utopia futura, essa arte estabelece “microutopias” funcionais no presente (ER, p. 18). Bourriaud resume vividamente essa nova atitude em uma única frase: “Parece mais urgente inventar relações possíveis com os vizinhos de hoje do que entoar loas ao amanhã” (ER, p.62). Esse ethos de um faça-você-mesmo microutópico é o que Bourriaud percebe como o significado político central da estética relacional.

Bourriaud cita vários artistas em seu livro, a maioria europeus e muitos dos quais presentes em Traffic, sua exposição seminal no CAPC Bordeaux em 1993. Certos artistas são mencionados com regularidade metronômica: Liam Gillick, Rirkrit Tiravanija, Phillippe Parreno, Pierre Huyghe, Carsten Höller, Christine Hill, Vanessa Beecroft, Maurizio Cattelan e Jorge Pardo – todos soarão familiares para quem frequenta bienais internacionais, trienais e Manifestas que se proliferaram na última década. O trabalho desses artistas difere daquele de seus contemporâneos mais conhecidos, os YBA, em vários aspectos. Diferentemente do trabalho autossuficiente (e formalmente conservador) dos britânicos, com suas referências acessíveis à cultura de massa, a aparência do trabalho europeu é bem menos impactante e inclui fotografia, vídeo, textos nas paredes, livros, objetos para serem usados e sobras da abertura do evento. O formato é basicamente o mesmo da instalação, mas esse é um termo a que muitos de seus praticantes resistiriam; em vez de formarem uma transformação coerente e distintiva do espaço (como a “instalação total” de Ilya Kabakov, uma encenação teatral), trabalhos de arte relacional insistem no uso em detrimento da contemplação [11] Por exemplo, o trabalho Pier de Jorge Pardo para Skulptur. Projekte Münster (1997). Pier consistia em um píer de 50 metros (feito a partir da madeira de sequoias canadenses da Califórnia) com um pequeno pavilhão no final. O trabalho era um cais funcional que oferecia ancoradouro para barcos enquanto uma máquina de vender cigarros presa à parede estimulava as pessoas a pararem e admirarem a vista.. E diferentemente das personalidades distintas e marcadas da jovem arte britânica, é geralmente difícil identificar quem fez uma obra de arte “relacional”, já que tendem a fazer uso de formas culturais já existentes – incluindo outros trabalhos de arte – e remixá-los como um DJ ou programador [12] Bourriaud se refere a essa estratégia como “pós-produção” e é elaborada em seu livro seguinte, Estética Relacional: “Desde o início dos anos noventa um número crescente de trabalhos de arte vem sendo criados a partir de trabalhos preexistentes; mais e mais artistas interpretam, reproduzem, reexpõem ou usam os trabalhos feitos por outros artistas ou produtos culturais disponíveis… Esses artistas que inserem seu próprio trabalho naquele feito por outros contribuem para a erradicação da distinção tradicional entre produção e consumo, criação e cópia, readymade e trabalho original. O material que eles manipulam não é mais primário.” Bourriaud argumenta que a pós produção difere daquela do readymade que questiona autoria e a instituição da arte porque sua ênfase é a recombinação de artefatos culturais existentes para imbuí-los de novos significados.” Ver Bourriaud, Postproduction (New York: Lukas and Sternberg, 2002).. Além disso, muitos artistas mencionados por Bourriaud colaboraram uns com os outros, borrando ainda mais o distintivo de status autoral individual. Muitos também já realizaram curadorias uns dos trabalhos dos outros – como por exemplo uma “filtragem” da curadoria de Maria Lind em What if: Art on the Verge of Architecture and Design (Moderna Museet, Estocolmo, 2000) e Utopia Station de Tiravanija para a Bienal de Veneza de 2003 (co-curada por Hans Ulrich Olbrist e Molly Nesbit) [13] O melhor exemplo para a atual obsessão pela colaboração como modelo encontra-se em No Ghost Just a Shell, um projeto em andamento de Pierre Huyghe e Philippe Parreno, que convidaram Liam Gillick, Dominique Gonzalez-Foerster, M/M, François Curlet, Rirkrit Tiravanija, Pierre Joseph, Joe Scanlan e outros para colaborarem com eles e criar um trabalho em torno da extinta personagem japonesa de mangá, AnnLee.. Pretendo me ater ao trabalho de dois artistas em particular, Tiravanija e Gillick, visto que que Bourriaud considera ambos como paradigmas da “estética relacional”.

Rirkrit Tiravanija é um artista que vive em Nova Iorque, nascido em Buenos Aires em 1961 de pais tailandeses e criado na Tailândia, na Etiópia e no Canadá, conhecido por seus híbridos de instalação e performance em que prepara legumes com curry ou pad thai (prato tailandês feito com macarrão) para as pessoas que visitam o museu ou a galeria onde foi convidado a trabalhar. No trabalho Untitled (Still) [Sem título (Ainda)] (1992) na 303 Gallery em Nova Iorque, Tiravanija tirou tudo que encontrou no escritório e no depósito da galeria e colocou na sala principal do espaço expositivo, incluindo o galerista, que foi obrigado a trabalhar em público em meio ao cheiro de comida e acompanhado por comensais. No depósito, ele organizou o que foi descrito por um crítico como uma “cozinha de refugiados improvisada” com pratos de papel, garfos e facas de plástico, fogareiros, utensílios de cozinha, duas mesas portáteis e alguns banquinhos dobráveis [14] Jerry Saltz, “A Short History of Rirkrit Tiravanija”, Art in America (Fevereiro de 1996), p. 106.. Na galeria ele preparou legumes com curry para os visitantes e os detritos, utensílios e embalagens de comida tornaram-se a exposição de arte enquanto o artista não estava lá. Muitos críticos e o próprio Tiravanija observaram que esse envolvimento do público é o foco principal de seu trabalho: a comida é um meio que permite o desenvolvimento de uma relação de convívio entre o público e o artista [15] Se pretende-se identificar os precursores históricos desse tipo de arte, há ampla variedade de nomes a citar: a instalação sem título de Michael Asher na Clare Copley Gallery, Los Angeles, em 1974 na qual ele removia a divisão entre o espaço de exposição e o escritório da galeria ou o restaurante Food que Gordon Matta-Clark abriu com seus colegas artistas no início dos anos setenta. Food era um projeto coletivo que permitia que artistas recebessem não muito dinheiro mas o suficiente para financiar sua prática artística sem sucumbir às demandas ideologicamente comprometedoras do mercado da arte. Outros artistas que apresentavam o consumo de comida e bebida como arte nos anos sessenta e no início dos anos setenta eram: Allan Ruppersberg, Tom Marioni, Daniel Spoerri e o grupo Fluxus..

Subjacente à maior parte da obra de Tiravanija fica o desejo de não apenas desbastar a distinção entre o espaço institucional e o espaço social mas também aquele entre o artista e o observador; a expressão “muita gente” aparece com frequência em sua lista de materiais. No final dos anos 1990, Tiravanija se ateve cada vez mais à criação de situações em que o público poderia inventar seu próprio trabalho. Uma versão mais elaborada da performance-instalação na 303 Gallery foi realizada com Untitled (Tomorrow Is Another Day) [Sem Título (Amanhã é outro dia)] (1996) no Kölnischer Kunstverein. Nesse trabalho, Tiravanija construiu uma réplica de madeira de seu apartamento em Nova Iorque que ficava aberta ao público 24 horas por dia. As pessoas podiam usar a cozinha para preparar alimentos, podiam usar seu banheiro, dormir no quarto ou ficar conversando na sala de estar. O catálogo que acompanhava o projeto de Kunstverein cita uma seleção de artigos de jornal e críticas, todas reiterando a afirmação do curador de que “essa combinação única de arte e vida oferecem um experiência impressionante de união a todos” [16] Udo Kittelmann, “Preface”, in Rirkrit Tiravanija: Sem título, 1996 (Tomorrow is Another Day) (Colônia: Salon Verlag e Kölnischer Kunstverein, 1996), n.p. Como notou Janet Kraynak, o trabalho de Tiravanija gerou algumas das críticas de arte mais idealizadas e eufóricas dos últimos tempos: seu trabalho é anunciado não apenas como lugar de emancipação e de liberdade das restrições mas também como uma crítica da mercantilização e uma celebração da identidade cultural – ao ponto em que esses imperativos finalmente rendam-se ao engolfamento institucional da própria figura de Tiravanija como um bem. Ver Janet Kraynak, “Tiravanija’s Liability” (A responsabilidade de Tiravanija), Documents 13 (Fall 1998), pp 26-40. Vale incluir da citação completa de Kraynak: “Enquanto a arte de Tiravanija compele ou provoca uma série de preocupações relevantes para o grande circuito das práticas contemporâneas artísticas, a condição de sua singularidade na imaginação do público deriva, em parte, de uma certa naturalização das leituras críticas que acompanharam o trabalho e, de certa forma, construíram-no. Diferentemente de trabalhos anteriores semelhantes em seu utopismo de vanguarda, em que a arte funde-se com a vida de maneira alegre e em que há uma criticidade anti-institucional, em que objetos de arte se constituem como e em espaços sociais, o que supostamente garante a produção de práticas sociais não contaminadas no trabalho de Tiravanija é a marca singular do artista, cuja generosidade tanto anima quando unifica estilisticamente as instalações. Uma série de artigos chamaram a atenção para a atmosfera familiar da galeria onde ele é representado e para outros detalhes biográficos de sua vida, conferindo uma equivalência velada entre o trabalho de Tiravanija e ele mesmo. Essa projeção idealizada parece derivar do próprio trabalho, à medida em que o artista tematiza detalhes étnicos de sua ascendência em suas instalações através de referências à cultura tailandesa… O artista, reposicionado tanto como fonte quanto juiz desse significado, é abarcado como a pura corporificação de sua identidade sexual, cultural ou étnica, garantindo tanto a autenticidade quanto a eficácia política de seu trabalho” (pp.28-29).. Apesar de os materiais do trabalho de Tiravanija terem se tornado mais diversos, a ênfase permanece no uso sobre a contemplação. Para o projeto Pad Thai, realizado no De Appel, em Amsterdã em 1996, ele disponibilizou uma sala com guitarras, amplificadores e uma bateria, permitindo que visitantes pegassem os instrumentos e fizessem sua própria música. Pad Thai inicialmente incorporou uma projeção de Sleep (1963) de Andy Warhol e entre as aparições seguintes via-se um filme de Marcel Broodthaers no Speaker’s Corner – no Hyde Park em Londres (em que o artista escreve em um quadro negro “vocês são todos artistas”). Em um projeto em Glasgow, Cinema Liberté (1999), Tiravanija pediu ao público local indicações de quais eram seus filmes preferidos, que foram projetados em uma tela ao ar livre no cruzamento de duas ruas em Glasgow. Conforme escreveu Janet Kraynak, apesar de os projetos desmaterializados de Tiravanija reviverem estratégias de crítica dos anos 1960 e 1970, pode-se argumentar que, no contexto atual do modelo econômico dominante do mundo globalizado, a ubiquidade itinerante de Tiravanija não está de fato questionando essa lógica de forma crítica mas apenas a reproduzindo-a [17]   Ibid., pp. 39-40.. Ele figura entre os artistas mais estabelecidos, influentes e onipresentes no circuito internacional da arte e seu trabalho tem sido crucial tanto para o surgimento da estética relacional como teoria quanto para o desejo curatorial de exposições “abertas” no estilo “laboratório”.

Meu segundo exemplo é o artista britânico Liam Gillick, nascido em 1964. A produção de Gillick é interdisciplinar: seus interesses altamente teorizados são disseminados através de esculturas, instalações, design gráfico, curadorias, crítica de arte e pequenos romances. Um tema corrente em sua carreira nos mais diferentes meios é a produção de relações (especialmente relações sociais) através de nosso ambiente. Exemplos incluem Pinboard Project [Projeto Mural] (1992), um mural ou quadro de avisos contendo instruções para serem seguidas, outros itens que tenham potencial para serem incluídos no mural e ainda uma recomendação de assinatura de certos periódicos especializados; e Prototype Erasmus Table #2 (1994), uma mesa “criada para preencher uma sala quase completamente” e para ser “o lugar de trabalho em que fosse possível terminar o livro Erasmus is Late” (publicação de Gillick de 1995), mas que também está disponível para o uso de outras pessoas “para depósito e exibição de trabalhos sobre a mesa, embaixo ou em volta dela” [18] Gillick, citado in Liam Gillick, ed. Susanne Gaensheimer and Nicolaus Schafhausen (Colônia: Oktagon, 2000), p. 36..

Desde meados da década de 1990, Gillick tornou-se mais conhecido por seu trabalho tridimensional de design: telas e plataformas suspensas feitas de alumínio e acrílico colorido que são geralmente mostradas ao lado de textos e desenhos geométricos pintados diretamente na parede. As descrições de Gillick desses trabalhos enfatizam seu potencial valor de uso, mas de modo a cuidadosamente lhes negar qualquer agenciamento específico; o significado de cada objeto é tão exageradamente determinado que seu trabalho parece parodiar tanto afirmações do design modernista quanto a linguagem de consultoria empresarial. Seu cubo de acrílico de 120 cm de lado e aberto em cima intitulado Discussion Island: Projected Think Tank [Ilha da Discussão: espaço criativo projetado] (1997) é descrito como “um trabalho que pode ser usado como objeto que pode significar uma zona delimitada para a consideração de troca, transferência de informação e estratégia” enquanto a Big Conference Centre Legislation Screen [Tela de Legislação do Grande Centro de Conferência] (1998), uma tela de 3 x 2 m de acrílico colorido “ajuda a definir a localização em que ações individuais são limitadas por regras impostas pela comunidade como um todo” [19] Ibid., pp. 56, 81..

As estruturas de design de Gillick foram descritas como construções tendo uma “semelhança espacial aos espaços de escritórios, abrigos de pontos de ônibus, salas de reunião e cantinas” mas eles também herdam o legado da escultura minimalista e da instalação pós minimalista (Donald Judd e Dan Graham imediatamente vêm à mente) [20] Mike Dawson, “Liam Gillick”, Flux (Agosto-Setembro 2002), p. 63.. Embora o trabalho de Gillick seja diferente daquele feito por seus predecessores na história da arte: enquanto as caixas modulares de Judd faziam com que o observador percebesse seu movimento corporal em torno do trabalho ao mesmo tempo em que também chamavam a atenção para o espaço em que estavam expostos, para Gillick basta que os observadores “deem as costas para o trabalho e conversem uns com os outros” [21] Gillick, Renovation Filter, p. 16.. Em vez de o observador “completar” o trabalho, à maneira dos corredores de Bruce Nauman ou as vídeo-instalações de Graham em 1970, Gillick busca uma abertura perpétua em que sua arte seja um pano de fundo para outras atividades. “Eles não funcionam necessariamente melhor sendo apenas objetos de análise”, afirma. “Algumas vezes são um pano de fundo ou decoração em vez de serem puros provedores de conteúdo” [22] Gillick, The Wood Way (Londres: Whitechapel, 2002), p. 84.. Os títulos de Gillick refletem esse movimento de afastamento da crítica direta dos anos 1970 em seu uso irônico e brando do jargão empresarial: Ilha da Discussão, Equipamento de Chegada, Plataforma de Diálogo, Tela de Regulação, Tela de Atraso e Plataforma de Renegociação Geminada [23] Todos esses trabalhos foram exibidos em The Wood Way, uma exposição na Whitechapel Art Gallery em 2002.. Essas alusões corporativas claramente distanciam o trabalho daquele feito por Graham, que expunha como materiais arquitetônicos aparentemente neutros (como vidro, espelho e aço) são usados pelo estado e pelo comércio para exercer controle político. Para Gillick, a tarefa não é insultar tais instituições, mas negociar formas de melhorá-las [24] Entretanto, deduz-se a partir dos exemplos de Gillick que “melhoria” signifique mudança apenas em nível formal. Em 1997 ele foi convidado para produzir um trabalho para um banco de Munique e descreveu o projeto da seguinte maneira: “Identifiquei uma zona morta e problemática no prédio – um descuido dos arquitetos – que pretendi resolver com as telas. Elas iriam subitamente transformar o modo como funcionava o espaço. O curioso, entretanto, foi que minha proposta fez com que os arquitetos repensassem aquela parte do edifício… Os arquitetos chegaram a uma conclusão melhor sobre como resolver seu projeto sem a necessidade de arte nenhuma” (Gillick, Renovation Filter, p.21). Um crítico desconsiderou essa modalidade de trabalho chamando-a de “feng shui empresarial” (Max Andrews, “Liam Gillick”, Contemporary 32, p.73), e levando o foco para as formas como as mudanças propostas foram primariamente cosméticas em vez de estruturais. Gillick responderia que a aparência de nosso ambiente condiciona nosso comportamento e, portanto, os dois são indivisíveis.. Uma palavra frequentemente usada por ele é “cenário” e, de certa forma, toda a sua produção é governada pela ideia de uma “lógica de cenário” como modo de visualizar mudança no mundo – não como uma crítica direcionada à ordem atual, mas para “examinar até que ponto o acesso da crítica é possível, caso seja” [25] Liam Gillick, “A Guide to Video Conferencing Systems and the Role of the Building Worker in Relation to the Contemporary Art Exhibition (Backstage)”. “Um guia para conferências de vídeo e o papel do funcionário do prédio em relação à exposição de arte contemporânea (Bastidores)”,  em Gillick, Five or Six (Nova Iorque: Lukas and Sternberg, 2000), p. 9. Como nota Gillick, a criação de cenários é uma ferramenta para a proposição de mudanças, mesmo quando está “inerentemente ligada ao capitalismo e às estratégias que vêm em seu bojo” porque inclui “um dos principais componentes exigidos para manter o nível de mobilidade e reinvenção exigidas para dar uma aura dinâmica às assim chamadas economias de livre mercado” (“Gillick, “Prevision: Should the Future Help the Past?”, Five or Six, p. 27).. Vale notar que apesar da frustrante intangibilidade da escrita de Gillick – cheia de adiamentos e possibilidades em vez do presente e do real – ele foi convidado para solucionar problemas em projetos práticos como um sistema de tráfego para a Porsche em Sttutgart e para desenvolver sistemas de comunicação eletrônica para um projeto de moradia em Bruxelas. Gillick é um típico retrato de sua geração ao não encontrar conflito entre esse tipo de trabalho e exposições convencionais no “cubo branco”; ambas são vistas como formas de continuar sua investigação sobre “cenários” hipotéticos futuros. Em vez de determinar um resultado específico, Gillick gosta de desencadear alternativas abertas de modo que outras pessoas possam contribuir. O que mais o interessa são acordos e possibilidades de se chegar a um meio termo.

Escolhi falar de Gillick e Tiravanija porque eles parecem a mais clara expressão da afirmação de Bourriaud de que a arte relacional privilegia relações intersubjetivas em vez de uma visualidade impessoal. Tiravanija insiste que o observador esteja fisicamente presente em uma situação e em um momento específicos – comendo o que ele prepara, ao lado de outros visitantes em uma situação em comum. Gillick alude a relações mais hipotéticas que, em muitos casos, não precisam nem existir mas ainda insiste que a presença de um público é um componente essencial de sua arte: “Meu trabalho é como a luz de uma geladeira, só funciona quando existem pessoas lá para abrirem a porta. Sem as pessoas, não é arte – é uma outra coisa – coisas em uma sala” [26] Gillick in Renovation Filter, p16. Como notou Alex Farquharson, “A expressão em vigor aqui é ‘pode ser possível’. Enquanto Rirkrit pode de forma sensata esperar seus visitantes comerão o macarrão tailandês que prepara, é improvável que o público de Liam esteja avaliando seu trabalho. Em vez de atividade real, ao observador oferece-se um papel ficcional, uma abordagem compartilhada com Gonzalez-Foerster e Parreno” (Alex Farquharson, “Curator and artist”, Art Monthly 270. Outubro 2003, p. 14).. Esse interesse nos imprevistos de uma “relação entre” – em vez do próprio objeto – é uma característica de seu trabalho e de seu interesse na prática colaborativa como um todo.

Essa ideia de considerar o trabalho de arte como um disparador potencial para a participação não é exatamente nova – pense nos happenings, nas instruções do grupo Fluxus, na performance dos anos 1970 e na declaração de Joseph Beuys de que “todo homem é um artista”. Cada uma delas foi acompanhada pelo discurso da democracia e da emancipação que é muito similar à defesa que Bourriaud faz da estética relacional [27] Beuys é mencionado poucas vezes em Estética Relacional e em uma delas ele é especificamente evocado para cortar qualquer conexão entre “escultura social” e estética relacional (p.30).. É fácil seguir o fio condutor que nos leva à base teórica desse desejo de ativação do observador: “O autor como produtor” de Walter Benjamin (1934), “A morte do autor” e “nascimento do leitor” (1968) de Roland Barthes  e – ainda mais importante para esse contexto – A obra aberta de Umberto Eco (1962). Ao escrever sobre o que compreendeu ser o caráter aberto e aleatório da literatura, da música e da arte modernista, Eco resume sua discussão sobre James Joyce, Luciano Berio e Alexander Calder em tais termos que faz-se difícil não evocar o otimismo de Bourriaud:

A poética da “obra em movimento” (e em parte a poética da obra “aberta”) colocam em movimento um novo ciclo de relações entre o artista e seu público, uma nova mecânica da estética da percepção, uma condição diferente para o produto artístico na sociedade contemporânea. Ela abre uma nova página na sociologia e na pedagogia assim como um novo capítulo na história da arte e coloca novos problemas práticos através da organização de novas situações de comunicação. Em suma, essa nova poética instala uma nova relação entre a contemplação e a utilização de um trabalho de arte [28] Umberto Eco, “The Poetics of the Open Work” (1962), in Eco, The Open Work (Boston: Harvard University Press, 1989), pp. 22–23..

Analogias a Tiravanija e Gillick são evidentes no modo como Eco privilegia o uso de valor e o desenvolvimento de “situações comunicativas”. Entretanto, Eco afirma que todo o trabalho de arte é potencialmente “aberto”, já que pode produzir uma gama ilimitada de leituras possíveis; a conquista da arte, da música e da literatura contemporâneas é justamente essa: ter trazido esse fato à tona [29] Eco cita Merleau-Ponty em A Fenomenologia da Percepção: “Como poderá então – pergunta-se o filósofo – uma coisa apresentar-se verdadeiramente a nós, já que a síntese nunca se completa… Como posso ter a experiência do mundo como de um indivíduo existente em ação, quando nenhuma das perspectivas segundo as quais o vejo consegue esgotá-lo e quando os horizontes permanecem sempre abertos?… Esta ambiguidade não é uma imperfeição da consciência ou da existência, mas sua própria definição” (Eco, “The Poetics of the Open Work,” p. 17).. Bourriaud se equivoca na interpretação desses argumentos aplicando-os a um tipo específico de trabalho (aqueles que requerem interação literal) e portanto redireciona seu argumento de volta para a intencionalidade artística e não para as questões de recepção [30] Poderia-se argumentar que essa abordagem na verdade impede leituras “abertas” de trabalhos já que seu significado torna-se assim consoante com o fato de que o significado é aberto..

Seu posicionamento também difere de Eco em outro aspecto importante: Eco considerava o trabalho de arte como um reflexo das condições de nossa existência em uma cultura moderna fragmentada enquanto Bourriaud vê o trabalho de arte como produtor dessas condições. A interatividade da arte relacional é portanto superior à contemplação ótica de um objeto, que é considerado passivo e desengajado porque o trabalho de arte é uma “forma social” capaz de produzir relações humanas positivas. Como consequência, o trabalho é automaticamente político em implicação e emancipatório em efeito.

 

Julgamento estético

Para quem está familiarizado com o ensaio “A Ideologia e os Aparatos Ideológicos de Estado” essa descrição de formas sociais que produzem relações humanas soarão familiares. A defesa de Bourriaud da estética relacional está em dívida com a ideia de cultura de Althusser – assim como um “aparato ideológico de estado” – não reflete a sociedade mas a produz. Da forma como foi utilizado por artistas feministas e críticos de cinema nos anos 1970, o ensaio de Althusser permitiu uma expressão mais matizada daquilo que é político na arte. De acordo com Lucy Lippard, foi através da forma (mais do que pelo conteúdo) que grande parte da produção artística do fim dos anos 1960 aspirava a um alcance democrático. A principal compreensão desse ensaio de Althusser foi ter reconhecido que uma crítica institucional circunscrita às instituições precisaria ser aprimorada [31] Aqui, estou pensando em boa parte da arte conceitual, vídeo, performance, instalação e trabalhos do tipo site-specific que expressaram sua política ao recusar gratificação ou conivência com o mercado da arte mas que permaneceram autorreferenciais em nível de conteúdo. Ver Lucy Lippard, “A Desmaterialização do objeto de arte 1966-1972”. Six Years: The Dematerialization of the Art Object 1966–1972 (Berkeley: University of California Press, 1996), pp. vii–xxii.. Não era suficiente mostrar que o significado de um trabalho de arte está subordinado à sua forma de apresentação (seja um museu ou uma revista); a própria identificação do observador com a imagem estava fadada a ser igualmente importante. Rosalyn Deutsche resume essa mudança de maneira muito útil em seu livro Evictions: Art and Spatial Politics (1996) quando compara Hans Haacke à geração seguinte de artistas: Cindy Sherman, Barbara Kruger e Sherrie Levine. O trabalho de Haacke, ela escreve, “convidava observadores a decifrar relações e encontrar conteúdos já inscritos em imagens mas não lhes pedia que examinassem seu próprio papel e esforço ao produzir imagens” [32 – Rosalyn Deutsche, Evictions: Art and Spatial Politics (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1996), pp. 295–96. Grifos de Claire Bishop.. Por contraste, a geração de artistas seguinte “tratava a imagem como uma relação social em si e o observador como um sujeito construído pelo próprio objeto do qual ele anteriormente afirmava estar separado” [33] Ibid., p. 296..

Mais tarde voltarei à questão da identificação levantada por Deutsche. Enquanto isso é necessário observar que considerar a imagem como relação social está a apenas um passo do argumento de Bourriaud de que a estrutura de um trabalho de arte produz uma relação social. Entretanto, identificar o que é a estrutura de um trabalho de arte relacional não é uma tarefa fácil precisamente porque o trabalho se diz aberto. Esse problema é exacerbado pelo fato de que trabalhos de arte relacional sejam derivados das instalações artísticas, uma forma que desde o princípio solicita a presença literal do observador. Diferentemente da geração “Public Vision” de artistas cujas conquistas – principalmente em fotografia – foram assimiladas pela ortodoxia histórico-artística sem problemas, a instalação tem sido frequentemente denegrida como apenas mais uma forma de espetáculo pós-moderno. Para alguns críticos, notavelmente Rosalind Krauss, o uso que a instalação faz de diversos meios a separa de uma tradição de meios específicos; não possuindo, portanto, convenções próprias contra as quais possa operar com autocrítica nem critérios com os quais possamos avaliar seu êxito. Sem um sentido claro de qual seja o meio da instalação, o trabalho não consegue obter o santo graal da autocrítica e da reflexão [34] Rosalind Krauss, A Voyage on the North Sea (London: Thames and Hudson, 1999), p. 56. Em outro texto, Krauss sugere que depois do fim dos anos 1960, era em relação a um local [site “conceitual e arquitetônico que a prática artística se tornaria ‘específica’ [specific] em vez de ser em relação a um meio estético” – como mais bem exemplificado no trabalho de Marcel Broodthaers (Kraus, “Performing Art”, London Review of Books, 12 de novembro, 1998, p.18). Enquanto concordo em certa medida com Krauss a respeito do ponto de autocrítica e reflexão, fico incomodada com sua relutância em aceitar outras formas em que a instalação possa operar com êxito.]. Sugeri em outro artigo que a presença do observador poderia ser uma forma de se considerar o meio da instalação mas Bourriaud complica essa afirmação [35] Ver a conclusão em meu livro Installation Art and the Viewer (Londres: Tate Publishing, 2005).. Ele argumenta que os critérios que deveríamos usar para avaliar trabalhos de arte abertos e participativos não são meramente estéticos mas políticos e até éticos: precisamos julgar as “relações” que são produzidas pelos trabalhos de arte relacional.

Quando confrontados com um trabalho de arte relacional, Bourriaud sugere que façamos as seguintes perguntas: “esta obra me dá a possibilidade de existir perante ela? Eu poderia viver num espaço-tempo que lhe correspondesse na realidade?” (ER, p. 80). Ele se refere a essas perguntas que deveríamos fazer frente a qualquer produto estético como “critérios de coexistência” (ER, p.79). Teoricamente quando olhamos para qualquer trabalho de arte podemos perguntar qual tipo de modelo social aquele trabalho produz: eu poderia viver, por exemplo, num mundo estruturado pelos princípios organizadores de uma pintura de Mondrian? Ou qual “forma social” é produzida por um objeto surrealista? O problema que surge com a noção de “estrutura” de Bourriaud é que ela estabelece uma relação errática com o tema ou o conteúdo visíveis do trabalho. Por exemplo, valorizamos o fato de que os objetos surrealistas reciclam bens antiquados – ou o fato de que seu conjunto de imagens e justaposições desconcertantes exploram os desejos inconscientes e ansiedades de seus realizadores? Com o híbrido performance-instalação da estética relacional, que depende tão fortemente do contexto e do engajamento literal do observador, essas perguntas são ainda mais difíceis de responder. Por exemplo, o que Tiravanija cozinha, como e para quem é menos importante para Bourriaud do que o fato de que ele distribui os resultados do que cozinha de graça. O mural de Gillick pode ser questionado da mesma maneira: Bourriaud não discute os textos ou imagens a que se referem cada um dos elementos pregados no quadro nem a organização formal e a justaposição desses elementos, mas apenas a democratização que Gillick propõe com o material e seu formato flexível. (Quem possui o trabalho tem a liberdade de modificar esses vários elementos a qualquer momento de acordo com seu gosto pessoal e os acontecimentos do momento.) Para Bourriaud, a estrutura é o tema – e nisso ele é muito mais formalista do que percebe [36] Eric Troncy, “London Calling,” Flash Art(Summer 1992), p. 89.. Desarticulados tanto da intencionalidade artística quanto do ato de considerar o contexto mais amplo em que operam, os trabalhos de arte relacional se tornam, assim como os avisos no quadro de Gillick, apenas um “retrato constantemente mutável da heterogeneidade da vida cotidiana,” e não examinam sua relação com ela [37] Para Lacan, o sujeito não é equivalente a um senso de agenciamento consciente: “O ‘sujeito’ de Lacan é o sujeito do inconsciente… inexoravelmente dividido, castrado, dividido” como resultado de sua entrada na linguagem (Dyle Evans, An Introductory Dictionary of Lacanian Psychoanalysis. Londres: Routledge, 1996, pp. 195–96).. Em outras palavras, apesar de os trabalhos afirmarem depender de seu contexto, eles não questionam sua imbricação nesse contexto. Os avisos de Gillick são compreendidos como democráticos em sua estrutura – mas apenas aqueles que os possuem podem interagir com sua organização. Precisamos perguntar, como o Group Material fez nos anos 1980, “Quem é o público? Como é feita a cultura e para quem?”

Não estou sugerindo que trabalhos de arte relacional precisem desenvolver maior consciência social – fazendo murais com recortes de jornal sobre terrorismo internacional, por exemplo, ou distribuindo legumes com curry a refugiados. Estou simplesmente me perguntando como decidimos o que constitui a “estrutura” de um trabalho relacional e se isso é separável do tema visível no trabalho ou se é permeável a seu contexto. Bourriaud quer igualar o julgamento estético ao julgamento ético-político das relações produzidas por um trabalho de arte. Mas como medimos ou comparamos essas relações? A qualidade das relações em “estética relacional” nunca são examinadas ou colocadas em questão. Quando Bourriaud afirma que “encontros são mais importantes que os indivíduos que os compõem”, percebo que essa questão (para ele) é desnecessária; todas as relações que permitem “diálogo” são automaticamente presumidas democráticas e, portanto, benéficas. Mas o que “democracia” de fato significa nesse contexto? Se a arte relacional produz relações humanas, então, a próxima pergunta lógica a se fazer é quais tipos de relações estão sendo produzidas, para quem e porquê.

 

Antagonismo

Rosalyn Deutsche declarou que a esfera pública permanece democrática apenas na medida em que suas exclusões naturalizadas são levadas em conta e colocadas em aberto para contestação: “Conflito, divisão e instabilidade, então, não destroem a esfera pública; são condições para sua existência”. Deutsche se baseia em Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Publicado em 1985, é um dos primeiros livros a reconsiderar a teoria política esquerdista pelas lentes do pós-estruturalismo de acordo com o que os autores perceberam como sendo um impasse na teorização marxista nos anos 1970. Seu texto é uma releitura de Marx através da teoria de Gramsci de hegemonia e da compreensão de Lacan da subjetividade como dividida e descentrada. Muitas das ideias que Laclau e Mouffe apresentam nos permitem reconsiderar as afirmações de Bourriaud sobre a política da estética relacional a partir de um ponto de vista mais crítico.

A primeira dessas ideias é o conceito de antagonismo. Laclau e Mouffe afirmam que uma sociedade democrática em pleno funcionamento não é aquela em que todo o antagonismo desaparece mas aquela em que novas fronteiras políticas são constantemente traçadas e colocadas em debate – em outras palavras, uma sociedade democrática é aquela em que as relações de conflito são sustentadas e não apagadas. Sem antagonismo existe apenas um consenso imposto por uma ordem autoritária – uma total supressão do debate e da discussão, que é desfavorável à democracia. É importante enfatizar em seguida que a ideia de antagonismo não é compreendida por Laclau e Mouffe como sendo uma aceitação pessimista de um beco sem saída político; antagonismo não sinaliza “a expulsão da utopia do campo do político”. Pelo contrário, eles sustentam que sem o conceito de utopia não há possibilidade de um imaginário radical. A tarefa é equilibrar a tensão entre o imaginário ideal e o gerenciamento pragmático de uma positividade social sem cair no totalitarismo.

Essa compreensão do antagonismo é baseada na teoria da subjetividade de Laclau e Mouffe. A partir de Lacan, eles argumentam que a subjetividade não é transparente, racional e pura presença mas que é irremediavelmente descentrada e incompleta[38] Eric Troncy, “London Calling,” Flash Art(Summer 1992), p. 89.. Entretanto, é mesmo certo que haja conflito entre o conceito de sujeito descentrado e a ideia de agenciamento político? “Descentramento” implica a falta de um sujeito unificado enquanto “agenciamento” implica um sujeito completamente presente, um sujeito autônomo com vontade política e autodeterminação. Laclau afirma que esse conflito é falso pois o sujeito não é nem completamente descentrado (o que implicaria psicose) nem inteiramente unificado (como, por exemplo, o sujeito absoluto). Ainda a partir de Lacan, Laclau afirma que temos uma identidade estrutural falha e portanto dependente de identificação para seguir em frente [39] “(…) o sujeito é parcialmente autodeterminado. Entretanto, como essa autodeterminação não é a expressão do que o sujeito já é mas, em vez disso, o resultado de daquilo que falta em seu ser, a autodeterminação só pode prosseguir em processos de identificação” (Ernesto Laclau, New Reflections on the Revolution of Our Time (1990), citado em Deconstruction and Pragmatism, ed. Chantal Mouffe [Londres: Routledge, 1996, p. 55).]. Pelo fato de a subjetividade ser esse processo de identificação, somos entidades necessariamente incompletas. Antagonismo, portanto, é a relação que emerge entre tais entidades incompletas. Laclau contrasta isso às relações que emergem entre entidades completas, como a contradição (A–não-A) ou “diferença real” (A-B). Todos temos crenças mutuamente contraditórias (por exemplo, existem materialistas que leem horóscopo e psicanalistas que enviam cartões de Natal) mas isso não resulta em antagonismo. Da mesma maneira, “diferença real” (A-B) não é igual a antagonismo; por concernir identidades completas, “diferença real” resulta em colisão – como uma batida de carro ou “a guerra contra o terrorismo”. No caso do antagonismo, Laclau e Mouffe afirmam que “somos confrontados com uma situação diferente: a presença do ‘Outro’ faz com que eu não seja eu mesmo completamente. A relação não surge de totalidades completas mas da impossibilidade de sua constituição” [40] Ernesto Laclau and Chantal Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy (London: Verso, 1985), p. 125.. Em outras palavras, a presença do que não sou eu torna minha identidade precária e vulnerável e a ameaça do que o outro representa transforma o próprio senso de mim mesmo em algo questionável. Quando se dá em nível social, o antagonismo pode ser visto como os limites da capacidade da sociedade de plenamente constituir a si mesma. O que quer que esteja na fronteira do social (e da identidade) buscando defini-lo também destrói sua ambição de constituir uma presença plena: “Como condições de possibilidade para a existência de uma democracia pluralista, conflitos e antagonismos constituem ao mesmo tempo a condição de impossibilidade de sua realização final” [41] Mouffe, “Introduction,” em Deconstruction and Pragmatism, p. 11..

Debruço-me sobre essa teoria para sugerir que as relações estabelecidas pela estética relacional não são intrinsecamente democráticas, como sugere Bourriaud, já que elas permanecem confortavelmente dentro de um ideal de subjetividade como um todo e de uma comunidade como união imanente. Há debate e diálogo no trabalho em que Tiravanija cozinha, certamente, mas não existe fricção por si só já que a situação é o que Bourriaud chama de “microutopia”: ela produz uma comunidade cujos membros identificam-se uns com os outros porque têm algo em comum. A única descrição significativa que encontrei da primeira exposição individual de Tiravanija na 303 Gallery é de Jerry Saltz em Art in America, como se pode ler a seguir:

Na 303 Gallery eu geralmente me sentava com alguém ou era acompanhado por algum desconhecido e era ótimo. A galeria virou um lugar para compartilhar, um lugar alegre para conversar com sinceridade. Tive maravilhosas rodadas de refeições com galeristas. Uma vez Paula Cooper e eu comemos juntos e ela recontou um pedaço longo e complicado de uma fofoca profissional. Outro dia, Lisa Spellman relatou em detalhes hilariantes a história de uma intriga sobre um colega galerista que tentava, sem sucesso, roubar um de seus artistas. Mais ou menos uma semana depois David Zwirner me acompanhou. Encontrei-o por acaso na rua e ele disse “nada está dando certo hoje, vamos ao Rirkrit”. Nós fomos e falamos sobre a falta de emoção no mundo da arte novaiorquino. Outra vez fui acompanhado por Gavin Brown, o artista e galerista… que falou do colapso do SoHo – só para considerá-lo bem-vindo e dizer que já era hora porque as galerias andavam mostrando muita arte medíocre. Em outro momento uma mulher não identificada me acompanhou e um clima de paquera curiosa pairava no ar. E teve ainda uma outra vez conversei com um jovem artista que morava no Brooklin e tinha tido verdadeiros insights sobre as mostras que tinha acabado de ver [42] Saltz, “A Short History of Rirkrit Tiravanija,” p. 107..

A tagarelice informal desse relato claramente indica que tipo de problemas encontram aqueles que pretendem saber mais sobre tal trabalho: a sinopse nos diz apenas que a intervenção de Tiravanija é considerada boa porque permite que uma série de galeristas e apreciadores de arte – cuja forma de pensar é semelhante – façam contatos profissionais e porque evoca uma atmosfera de bar. Todos tem em comum o interesse pela arte e o resultado é a fofoca do universo da arte, conversas sobre exposições e paquera. Tal comunicação é razoável até certo ponto mas não é, por si só, emblemática da “democracia”. Para ser justa, penso que Bourriaud reconhece esse problema – mas não o levanta em relação aos artistas que promove, pois ele indaga: “Conectando pessoas, criando experiências interativas de comunicação mas para quê? Se esquecemos de perguntar ‘pra quê?’, o que nos resta é simplesmente ‘arte Nokia’ – ou seja, uma produção de relações interpessoais sem outros objetivos além das próprias relações, e sem abordar seus aspectos políticos” [43] Citação de Bourriaud em “Public Relations: Bennett Simpson Talks with Nicolas Bourriaud,” p. 48.. Eu diria que a arte de Tiravanija, pelo menos como é apresentada por Bourriaud, não consegue se aproximar dos aspectos políticos da comunicação – mesmo quando alguns de seus projetos parecem, à primeira vista, tratar deles ainda que de modo dissonante. Voltemos ao assunto do projeto de Tiravanija de Colônia, Sem título (Amanhã é Outro Dia). Já citei o comentário do curador Udo Kittelman de que a instalação oferecia “uma experiência impressionante de união a todos”. Ele continua: “Vários grupos de pessoas preparavam comida e conversavam, tomavam banho e ocupavam a cama. Nosso medo de que o espaço de convivência artística pudesse ser vandalizado não se tornou realidade… O espaço de arte perdeu sua função institucional e finalmente tornou-se um espaço social livre” [44] Udo Kittelmann, “Preface,” em Rirkrit Tiravanija, n.p.. O Kölnischer Stadt-Anzeigner concordou que o trabalho oferecia “uma espécie de ‘refúgio’ para todos” [45] Kölnischer Stadt-Anzeiger citado em Rirkrit Tiravanija, n.p.. Mas quem são “todos” nesse caso? Isso pode ser uma microutopia mas – como a utopia – é ainda baseada na exclusão daqueles que evitam ou impedem sua realização. (É tentador considerar o que poderia ter acontecido se o espaço de Tiravanija tivesse sido invadido por aqueles que estivessem procurando verdadeiro “refúgio”) [46] Saltz pensa sobre essa questão de forma maravilhosamente limitada: “(…) teoricamente qualquer um pode entrar [numa galeria de arte. Por que não o fazem? De alguma forma o mundo da arte parece secretar uma enzima invisível que repele forasteiros. O que aconteceria se da próxima vez que Tiravanija montasse uma cozinha em uma galeria de arte um bando de moradores de rua aparecessem diariamente para almoçar? O que o Walker Art Center faria se algum deles juntasse dinheiro suficiente para pagar a entrada no museu e decidisse dormir na cama dobrável de Tiravanija o dia todo, todos os dias?(…)” (Saltz, “A Short History of Rirkrit Tiravanija,” p. 106) À sua própria maneira, Tiravanija traz essas questões à tona e derruba a porta (tão eficientemente trancada por uma suposta arte política) que separa o mundo da arte de todo o resto”. A “enzima invisível” a que Saltz se refere deveria alertá-lo precisamente das limitações do trabalho de Tiravanija e sua abordagem não antagônica a questões de espaço público. (Saltz, “A Short History of Rirkrit Tiravanija,” p. 106)]. Suas instalações refletem a compreensão de Bourriaud que as relações produzidas por trabalhos de arte relacional são fundamentalmente harmoniosas porque são dirigidas a uma comunidade de sujeitos observadores com algo em comum [47] A crítica de Jean-Luc Nancy à ideia marxista de comunidade como comunhão em The Inoperative Community (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1991) tem sido crucial para minha consideração de um contra-modelo à estética relacional. Desde meados de 1990, o texto de Nancy tornou-se uma referência cada vez mais importante para quem escreve sobre arte contemporânea, conforme visto em Rosalyn Deutsche, Evictions; capítulo 4 do livro Object to Be Destroyed: The Work of Gordon Matta-Clark de Pamela M. Lee (Cambridge, Mass.: MIT Press, 2000); George Baker, “Relations and Counter Relations: An Open Letter to Nicolas Bourriaud” in Zusammenhänge herstellen/Contextualise, ed. Yilmaz Dziewior (Cologne: Dumont, 2002); and Jessica Morgan, Common Wealth (Londres: Tate Publishing, 2003).. Esse é o motivo pelo qual os trabalhos de Tiravanija são políticos apenas no sentido mais vago quando o que se defende é o diálogo em relação ao monólogo (comunicação de apenas uma via, igualada ao espetáculo pelos Situacionistas). O conteúdo desse diálogo não é democrático nele mesmo, já que todas as questões voltam para a banalidade da não-questão “isso é arte?” [48] De acordo com informação de Frankfurter Allgemeine Zeitung, “Nenhum assunto está dado, ainda assim, o contexto artístico automaticamente leva todas as discussões de volta para a questão sobre a função da arte”. Christophe Blase,  Frankfurter Allgemeine Zeitung. 19 de dezembro, 1996, citado em Rirkrit Tiravanija, n.p. Ele continua: “Seja esse discurso lido a partir de um ponto de vista ingênuo ou especializado – o nível intermediário seria a referência obrigatória a Duchamp – é mero acaso que depende dos respectivos participantes. De qualquer forma, o fato é que quando acontece uma comunicação em geral e, em particular, uma discussão sobre arte, tem-se um valor positivo a partir do menor denominador possível”.. Apesar do discurso de “abertura” e “emancipação do espectador” feito por Tiravanija, a estrutura de seu trabalho antecipadamente delimita seu resultado e conta com a presença do artista dentro da galeria para diferenciar tal estrutura do entretenimento. A microutopia de Tiravanija abre mão da ideia de transformação da cultura pública e reduz seu escopo aos prazeres direcionados a um grupo privado em que uns se identificam com os outros – todos frequentadores de galerias [49] Essencialmente, não há diferença entre utopia (perfeição da sociedade) e microutopia, que é apenas perfeição pessoal elevada à décima potência (ou vigésima, ou quantos participantes estiverem presentes). Ambas são baseadas na exclusão daquilo que impede ou ameaça a ordem harmoniosa, o que pode ser visto em toda a descrição de Utopia de Thomas More. Descrevendo um perturbado entusiasta cristão que condenava outras religiões, o viajante Raphael relata: “Quando já havia feito isso tempo demais, foi preso e condenado, não por blasfêmia, mas por perturbar a ordem. Ele foi estupidamente condenado e sentenciado ao exílio – pois um dos mais antigos princípios de sua constituição é a tolerância religiosa” (Thomas More, Utopia. Londres: Penguin Books, 1965, p. 119)..

A posição de Gillick a respeito da questão do diálogo e democracia é mais ambígua. À primeira vista ele parece apoiar a tese de antagonismo de Laclau e Mouffe:

Ao mesmo tempo em que admiro artistas que constroem visões “melhores” de como as coisas poderiam ser, sei que o meio termo e a negociação de territórios pelos quais me interesso sempre trazem a possibilidade de momentos em que o idealismo torna-se incerto. Há muitas demonstrações de acordos, estratégias e falência em meu trabalho assim como há receitas claras de como nosso ambiente pode ser melhor [50] Gillick, The Wood Way, pp. 81–82..

Entretanto, quando procuramos por “receitas claras” no trabalho de Gillick – elas são poucas, se é que há alguma a ser encontrada. “Estou trabalhando numa nuvem de ideias”, afirma ele “que são um tanto parciais ou paralelas em vez de didáticas” [51] Gillick, Renovation Filter, p. 20.. Relutante em dizer quais são os ideais que poderiam ser comprometidos, Gillick tira proveito da credibilidade das referências à arquitetura (seu engajamento com situações sociais concretas) enquanto permanece abstrato quanto à articulação de um posicionamento específico. O trabalho Plataformas de Discussão, por exemplo, não aponta para nenhuma mudança em especial, apenas mudanças em geral – um “cenário” em que “narrativas” potenciais podem emergir ou não. A posição de Gillick é escorregadia e, finalmente, ele parece defender a negociação e o acordo como[52] Poderíamos até mesmo dizer que na microutopia de Gillick, ceder para o benefício do acordo é o ideal: uma hipótese intrigante mas insustentável e, em última instância, menos uma democracia microutópica que uma forma de política de “terceira via”.. receitas para a melhora. Logicamente, esse pragmatismo é equivalente a um abandono ou uma falência de ideais; seu trabalho é a demonstração de uma conciliação em vez de a articulação de um problema

Por outro lado, a teoria de democracia como antagonismo de Laclau e Mouffe pode ser vista no trabalho de dois artistas sabidamente ignorados por Bourriaud em Estética Relacional e em Pós-produção: o artista suíço Thomas Hirschhorn e o espanhol Santiago Sierra [53] Entretanto, Hirschhorn participou da exposição GNS e Sierra em Hardcore, ambas no Palais de Tokyo in 2003. Ver também a discussão de Bourriaud sobre Sierra em “Est-il bon? Est-il méchant?,”Beaux Arts 228 (Maio 2003), p. 41.. Esses artistas estabelecem “relações” que enfatizam o papel do diálogo e da negociação em sua arte mas o fazem sem que essas relações sucumbam ao conteúdo do trabalho. As relações produzidas por suas performances e instalações são marcadas por sensações de mal-estar e desconforto em vez de pertencimento porque os trabalhos reconhecem a impossibilidade de uma “microutopia” e, em vez disso, sustentam uma tensão entre observadores, participantes e contexto. Parte integrante dessa tensão é a introdução de colaboradores de realidade econômica distinta que, por sua vez, servem para desafiar a percepção da arte contemporânea como um domínio que engloba outras estruturas sociais e políticas.

 

Não-identificação e autonomia

O trabalho de Santiago Sierra (nascido em 1966), assim como o de Tiravanija, envolve o estabelecimento literal de relações entre pessoas: o artista, os participantes em seu trabalho e o público. Mas desde o fim dos anos 1990 as “ações” de Sierra vêm sendo organizadas em torno de relações que são mais complicadas – e mais controversas – que aquelas produzidas por artistas associados à estética relacional. Sierra tem atraído críticas beligerantes e a atenção de tabloides por algumas de suas ações mais extremas como 160 cm Line Tattooed on Four People [Linha de 160cm Tatuada em Quatro Pessoas] (2000), A Person Paid for 360 Continuous Working Hours [Uma Pessoa Paga por 360 Horas de Trabalho Contínuo] (2000) e Ten People Paid to Masturbate [Dez Pessoas Pagas para se Masturbarem] (2000). Essas ações efêmeras são documentadas em fotografias preto e branco despretensiosas, textos curtos e, ocasionalmente, em vídeo. Esse modo de documentação parece ser um legado da arte conceitual e da Body Art dos anos 1970 – Chris Burden e Marina Abramovic vêm à mente – mas o trabalho de Sierra desenvolve essa tradição de modo significativo ao usar outras pessoas como performers e com a ênfase que coloca em sua remuneração. Enquanto Tiravanija celebra a doação, Sierra sabe que nada é de graça: tudo e todos têm seu preço. Seu trabalho pode ser visto como uma reflexão cruel sobre as condições sociais e políticas que permitem o surgimento de disparidades nos “preços” das pessoas. Agora regularmente convidado para realizar trabalhos em galerias na Europa e nas Américas, Sierra cria uma espécie de realismo etnográfico em que o resultado ou desdobramento de sua ação forma um indicador da realidade econômica e social do lugar em que trabalha [54] Desde que Sierra se mudou para o México em 1996, a maioria de suas ações aconteceram na América Latina e o “realismo” de seu resultado é geralmente um acusação atroz da globalização – mas esse nem sempre é o caso. Em Elevation of Six Benches (2001) no Kunsthalle em Munique, Sierra pagou trabalhadores para suspender todos os bancos de couro nos museus e nas galerias por períodos estabelecidos de tempo. O projeto era um acordo, já que o Kunsthalle não deixaria Sierra arrancar uma parede de sua galeria Herzog & de Meuron para que os trabalhadores suspendessem, mas Sierra ainda considerou o resultado satisfatório “já que as únicas pessoas que conseguimos encontrar para realizar a tarefa no momento foram atores desempregados e fisiculturistas que queriam exibir sua proeza física” (Sierra, “A Thousand Words”, Artforum, Outubro 2002, p. 131).. Interpretar a prática de Sierra dessa forma é ir contra a corrente das leituras dominantes de seu trabalho que o apresentam como uma reflexão niilista da teoria de Marx de valor de troca do trabalho. (Marx afirmava que o tempo de trabalho de um operário valia menos para o patrão que seu valor de troca posterior em forma de um bem produzido por seu trabalho.) As tarefas que Sierra exige de seus colaboradores – que são invariavelmente inúteis, exaustivas e às vezes deixam cicatrizes permanentes – são vistas como amplificações do status quo que expõem o pronto abuso daqueles que farão até mesmo os trabalhos mais humilhantes ou sem sentido em troca de dinheiro. Ao receber pagamento por suas ações – como artista – e ser o primeiro a admitir as contradições dessa situação, seus detratores afirmam que ele está dizendo o óbvio de forma pessimista: o capitalismo explora. Além disso, esse é um sistema do qual ninguém pode se isentar. Sierra paga outros para fazer o trabalho para o qual ele mesmo é pago e, por sua vez, ele é explorado por galerias, negociantes e colecionadores. O próprio Sierra faz pouco para contradizer essa visão quando opina,

Não posso mudar nada. Não há possibilidade de mudarmos nada com o trabalho artístico. Fazemos nosso trabalho porque estamos fazendo arte e porque acreditamos que a arte deve ser alguma coisa, alguma coisa que acompanha a realidade. Mas eu não acredito na possibilidade de mudança [55] Sierra, citado em Santiago Sierra: Works 2002–1990 (Birmingham, England: Ikon Gallery, 2002), p. 15..

A aparente cumplicidade de Sierra com o status quo levanta a questão de como seu trabalho difere daquele de Tiravanija. Vale ter em mente que, desde os anos 1970, antigos discursos de oposição e transformação de vanguarda têm sido frequentemente substituídos por estratégias de cumplicidade; o que importa não é a cumplicidade mas como a recebemos. Enquanto o trabalho de Tiravanija é experimentado num tom grandiloquente, o trabalho de Sierra certamente não se apresenta da mesma maneira. A seguir, faço uma tentativa de interpretar o trabalho de Sierra através das lentes dicotômicas da Estética Relacional e Hegemonia para destacar as diferenças mais profundamente.

Não é a primeira vez que se percebe que Sierra documenta suas ações e portanto garante que todos saibamos o que ele considera ser sua “estrutura”. Tomemos, por exemplo, The Wall of a Gallery Pulled Out, Inclined Sixty Degrees from the Ground and Sustained by Five People [A Parede de uma Galeria Arrancada, Inclinada Sessenta Graus do Chão e Sustentada por Seis Pessoas] Cidade do México (2000). Diferentemente de Tiravanija e Gillick, que abraçam a ideia de trabalho aberto, Sierra delimita desde o início sua escolha dos participantes convidados e o contexto em que o evento ocorrerá. “Contexto” é a palavra chave para Gillick e Tiravanija ainda que seus trabalhos pouco se esforcem para abordar o problema do que consiste o conceito de “contexto”. (Tem-se a impressão de que ele existe como uma infinidade indiferenciada, assim como o ciberespaço.) Laclau e Mouffe afirmam que para que se constitua um contexto e ele seja identificado como tal, certos limites precisam ser demarcados; pois pelas exclusões geradas por essa demarcação é que o antagonismo ocorre. É precisamente esse ato de exclusão que é rejeitado na preferência da arte relacional por “abertura” [56] De acordo com Laclau, é essa “indecisão radical” e a decisão que precisa ser tomada dentro dela que é constitutiva de uma sociedade política. Ver Laclau, Emancipation(s) (Londres: Verso, 1996), pp. 52–53.. As ações de Sierra, por contraste, ficam impregnadas de outras “instituições” (por exemplo: imigração, salário mínimo, congestionamento no trânsito, comércio de rua ilegal, falta de moradia) para enfatizar as divisões impostas por esses contextos. De modo crucial, entretanto, Sierra não apresenta essas divisões como reconciliadoras (do modo como Tiravanija omite o museu com o café ou o apartamento) nem como esferas inteiramente separadas: o fato de que seus trabalhos são realizados o coloca no terreno do antagonismo (em vez do modelo “batida de carro” quando a colisão acontece entre identidades completas) e sinaliza que seus limites são tanto instáveis quanto abertos a mudanças.

Em um trabalho para a Bienal de Veneza de 2001, Persons Paid to Have Their Hair Dyed Blond [Pessoas Pagas para Tingir o Cabelo de Loiro], Sierra convidou vendedores ambulantes ilegais, em sua maioria imigrantes do sul da Itália, do Senegal, da China e de Bangladesh para que pintassem seus cabelos de loiro em troca de 120 mil liras (sessenta dólares). A única condição para sua participação era que seus cabelos fossem naturalmente escuros. A descrição de Sierra do trabalho não documenta o impacto de sua ação nos dias que se seguiram ao tingimento massivo mas esse resultado era um aspecto integrante do trabalho [57] “O procedimento foi feito de maneira coletiva a portas fechadas em um depósito situado em Arsenale durante a inauguração da Bienal de Veneza daquele ano. Apesar de o número de pessoas programadas para fazerem parte nessa operação fossem duzentas, apenas 133 participaram de fato devido ao aumento na quantidade de imigrantes chegando, fazendo com que ficasse difícil calcular com precisão quantas já haviam entrado no salão. Isso causou diversos problemas na entrada devido ao fluxo infinito de pessoas que entravam e saíam” (Sierra citado em Santiago Sierra, p. 46).. Durante a Bienal de Veneza os vendedores ambulantes – que vagam pelas esquinas vendendo bolsas falsificadas de designers famosos – são geralmente o grupo social mais obviamente excluído da abertura glamourosa; em 2001, entretanto, seu novo cabelo tingido havia literalmente dado novas cores à sua presença na cidade. A isso somou-se o gesto dentro da própria Bienal em que Sierra cedeu o espaço que estava destinado a sua exposição para uma porção desses vendedores que o utilizaram para vender suas bolsas Fendi falsificadas sobre um pano, do mesmo modo que faziam nas ruas. O gesto de Sierra levantou imediatamente uma estranha analogia entre arte e comércio, no estilo da crítica institucional dos anos 1970 mas que foi muito além disso, já que os vendedores e a exposição se estranhavam mutuamente ao serem confrontados. Em vez de chamarem a atenção dos passantes de forma agressiva como faziam nas ruas, os vendedores estavam acanhados. Isso fez com que meu próprio encontro com eles fosse desarmante de forma que apenas posteriormente revelaria minha própria ansiedade sobre sentir-me “incluída” na Bienal. Era mesmo certeza que eram atores? Teriam se enfurnado lá de brincadeira? Colocando em primeiro plano o momento de não identificação mútua, a ação de Sierra quebrou o senso de identidade do público de arte que se baseia precisamente nas tácitas exclusões raciais e de classe, assim como na tentativa de velar o comércio ostensivo. É importante que o trabalho de Sierra não tenha atingido uma reconciliação harmoniosa entre os dois sistemas mas tenha sustentado a tensão entre eles.

A volta de Sierra para a Bienal de Veneza em 2003 consistia uma grande performance-instalação no pavilhão da Espanha. Wall Enclosing a Space [Parede Fechando um Espaço] era um trabalho que envolvia o isolamento de todo o interior do pavilhão com blocos de concreto que iam do teto ao chão. Ao entrar no edifício, os observadores eram confrontados por um muro malacabado e ainda assim impenetrável que tornava as galerias inacessíveis. Os visitantes que portassem passaporte espanhol eram convidados a adentrar o espaço através da parte de trás do prédio onde duas autoridades oficiais da imigração fiscalizavam os passaportes. Todos os naturalizados espanhóis, entretanto, não podiam entrar no pavilhão, em cujo interior encontrava-se nada além de tinta cinza descascando das paredes que havia sido deixada da exposição do ano anterior. O trabalho era “relacional” no mesmo sentido que Bourriaud faz da expressão mas problematizava a ideia de que essas relações fossem fluidas e irrestritas ao expor como todas asnossas interações, assim como o espaço público, são rasgadas por exclusões sociais e legais [58] De acordo com conclusão de Laclau e Mouffe, a política não deveria se encontrar na postulação de uma “essência do social” mas, ao contrário, na afirmação das incertezas e da ambiguidade de toda “essência” e no caráter constitutivo da divisão social e do antagonismo. Ver Laclau e Mouffe, Hegemony, p. 193..

O trabalho de Thomas Hirschhorn (nascido em 1957) geralmente aborda questões parecidas. Sua prática é convencionalmente percebida como uma contribuição para a tradição da escultura – diz-se de seu trabalho que reinventou o monumento, o pavilhão e o altar ao imergir o observador em meio a imagens que encontra, vídeos e fotocópias agrupadas com o auxílio de materiais baratos e perecíveis como papelão, fita crepe e papel alumínio. Além das referências ocasionais à tendência de seu trabalho ser vandalizado ou pilhado quando situado fora da galeria, o papel do observador é raramente abordado quando se escreve sobre seu trabalho [59] O exemplo mais significativo dessa abordagem de Benjamin H. D. Buchloh, “Cargo and Cult: The Displays of Thomas Hirschhorn,”Artforum (November 2001). A localização periférica das esculturas de Hirschhorn levou algumas vezes ao roubo de seu conteúdo, mais notavelmente em Glasgow, 2000, antes mesmo da abertura da exposição.. Hirschhorn é famoso por sua afirmação de que não faz arte política mas faz arte politicamente. Um importante fator desse comprometimento político é não tomar a forma da uma ativação literal do observador em um espaço:

Não quero convidar ou obrigar os observadores a interagirem com o que eu faço; não quero ativar o público. Quero me doar e me engajar a tal ponto que os observadores confrontados com o trabalho possam participar e se envolver mas não como atores [60] Hirschhorn, entrevista com Okwui Enwezor, in Thomas Hirschhorn: Jumbo Spoons and Big Cake(Chicago: Art Institute of Chicago, 2000), p. 27..

O trabalho de Hirschhorn representa uma guinada importante na forma como a arte contemporânea visualiza o observador, de modo que case com sua afirmação da autonomia da arte. Um dos pressupostos subjacentes em Estética Relacional é a ideia – instaurada pela vanguarda histórica e reiterada desde então – de que a arte não deveria ser uma esfera privilegiada e isolada mas que deveria se fundir com a “vida”. Atualmente a arte tornou-se tão subordinada à vida cotidiana – em forma de lazer, entretenimento e negócios – que artistas como Hirschhorn não consideram seu trabalho como sendo “aberto” nem declaram a exigência de que o observador o complete, já que a política desse trabalho advém, em vez disso, de como o trabalho é feito:

Fazer arte politicamente significa escolher materiais que não intimidem, um formato que não domine, um dispositivo que não seduza. Fazer arte politicamente é não se submeter a uma ideologia nem denunciar o sistema, em oposição a assim chamada “arte política”. É trabalhar com a mais total energia contra o princípio de “qualidade”[61] Ibid., p. 29. Hirschhorn se refere aqui à ideia de qualidade apoiada por Clement Greenberg, Michael Fried e outros críticos como critério de julgamento estético. Eu gostaria de distanciar meu uso de “qualidade” (como por exemplo em “a qualidade das relações na estética relacional”) daquela a que alude Hirschhorn..

Um discurso democrático perpassa o trabalho de Hirschhorn mas ele não se manifesta através da ativação literal do observador: em vez disso, ele aparece nas decisões referentes ao formato, materiais e localização do trabalho, como seus “altares”, que imitam memoriais ad hoc com flores e brinquedos em locais de acidentes nas periferias  da cidade. Nesses trabalhos – como nas instalações Pole Self e Laundrette, ambos de 2001 – imagens, textos, propagandas e fotocópias encontradas são justapostas para contextualizar a banalidade do consumo e atrocidades políticas e militares.

Muitas das preocupações de Hirschhorn aparecem ao mesmo tempo no trabalho Battaille Monument (2002), feito para a Documenta XI. Localizado em Nordstadt, um subúrbio de Kassel a muitos quilômetros de distância dos locais principais da Documenta, Monument compreendia três instalações em grandes cabanas improvisadas, um bar administrado por uma família local e uma escultura de árvore, todas instaladas no gramado que rodeava dois projetos de habitação. As cabanas foram construídas a partir dos materiais de uso recorrente de Hirschhorn: aglomerados de madeira, papel alumínio, filme plástico e fita crepe. A primeira abrigava uma biblioteca de livros e vídeos agrupados em torno de cinco temas de Battaille: palavras, imagens, arte, sexo e esporte. Diversos sofás gastos, uma televisão e um vídeo também ficavam disponíveis e toda a instalação foi desenvolvida para facilitar a familiarização com o filósofo de quem Hirschhorn afirma ser um “fã”. As duas outras cabanas abrigavam um estúdio de televisão e uma instalação de informações sobre a vida e a obra de Bataille. Para conseguir chegar a Bataille Monument, os visitantes tinham que participar em mais um aspecto do trabalho: conseguir um táxi de uma empresa turca que foi contratada pela Documenta para transportar seus visitantes até o local do trabalho e de volta. Os observadores ficavam, então, algum tempo sem poder sair de Monument até que um táxi de volta ficasse disponível e durante esse período acabavam inevitavelmente indo ao bar.

Ao localizar Monument no meio de uma comunidade cuja etnia e status econômico não considerada como público-alvo da Documenta, Hirschhorn planejou uma aproximação curiosa entre ofluxo de entrada de turistas de arte e os residentes da região. Em vez de fazer a população local se sujeitar ao que ele chama de “efeito zoológico”, o projeto de Hirschhorn fez com que os visitantes é que se sentissem como intrusos infelizes. De forma a quebrar ainda mais os padrões à luz das pretensões intelectuais do universo da arte internacional, Monument de Hirschhorn considerou seriamente os habitantes locais como potenciais leitores de Bataille. Esse gesto induziu uma gama de respostas emocionadas entre os visitantes, incluindo acusações de que o gesto de Hirschhorn era inadequado e paternalista. Esse mal-estar revelou o frágil condicionamento da identidade que o universo da arte construiu para si mesmo. O complicado jogo de mecanismos identitários e desidentitários em operação no conteúdo, na construção e na localização do trabalho Bataille Monument foram radicais, promovendo rupturas e provocando pensamentos: o “efeito zoológico”, nesse caso, funcionava numa via de mão dupla. Em vez de oferecer, como afirma o catálogo da Documenta, uma reflexão sobre o “compromisso da comunidade”, Bataille Monument serviu para desestabilizar (e portanto liberar potencialmente) qualquer noção de identidade comunitária ou o que quer que signifique ser um “fã” de arte e filosofia.

Um trabalho como Bataille Monument depende de seu contexto para que tenha impacto mas, teoricamente, ele poderia ser realizado novamente em qualquer lugar, em circunstâncias equivalentes. Outro fator importante é que o observador não se exige uma participação literal (como comer macarrão ou ativar uma escultura, por exemplo) mas é pedido que seja um visitante zeloso e reflexivo:

Não quero fazer um trabalho interativo, quero fazer um trabalho ativo. Para mim, a atividade mais importante que um trabalho de arte pode provocar é a atividade de pensar. O trabalho Big Electric Chair de Andy Warhol (1967) me faz pensar mas é uma pintura numa parede de museu. Um trabalho ativo exige que eu possa me doar antes de qualquer coisa [62] Thomas Hirschhorn, in Common Wealth, ed.Morgan, p. 63..

A postura independente tomada por Hirschhorn em seu trabalho– apesar de produzida coletivamente, sua arte é produto da visão de um único artista – implica a reintrodução de um grau de autonomia à arte. Da mesma maneira, o observador não mais fica coagido a cumprir exigências interativas do artista mas é pressuposto como um sujeito de pensamento independente, o que é um pré-requisito essencial para a ação política: “refletir e pensar criticamente é ser ativo, fazer perguntas é despertar para a vida”[63] Ibid., p. 62.Bataille Monument mostra que a instalação e a performance agora se encontram a uma distância significativa dos apelos das vanguardas para uma junção entre arte e vida.

 

Antagonismo relacional

Meu interesse pelo trabalho de Thomas Hirschhorn e de Santiago Sierra deriva não apenas de sua abordagem mais incisiva e subversiva das “relações” do que aquela proposta por Bourriaud mas também por sua distância dos projetos de arte pública engajados que se espalharam sob a égide da “novo estilo de arte pública”. Entretanto, o fato de os trabalhos de Sierra e Hirschhorn demonstrarem de melhor maneira a democracia faz deles melhores trabalhos de arte? Para muitos críticos a resposta seria óbvia: claro que sim! Mas o simples surgimento dessa questão é em si mesmo sintomático de tendências mais amplas na crítica de arte contemporânea: hoje, julgamentos morais, políticos e éticos vieram para preencher o vácuo de julgamento estético de uma forma que era impensável há quarenta anos. Isso acontece em parte porque o pós-modernismo atacou a própria noção de julgamento estético e em parte porque a arte contemporânea solicita uma interação literal do observador de formas cada vez mais elaboradas. Ainda assim, o “nascimento do observador” (e as promessas extasiantes de emancipação que o acompanham) não repensaram os apelos para uma elevação dos critérios, que simplesmente continuam retornando de outras formas.

Não será possível, nesse artigo, tratar dessa questão com a devida atenção. Gostaria, portanto, apenas de pontuar que se os trabalhos que Bourriaud considera exemplares de “estética relacional” desejam ser politicamente considerados, então essa proposição precisar ser seriamente abordada. Existe uma longa tradição de participação do observador e de ativação do público nos trabalhos de arte que atravessam diversas mídias – desde o teatro experimental alemão de 1920 ao cinema new-wave e nouveau roman de 1960, da escultura minimalista às instalações pós-minimalistas de 1970, da escultura social de Beuys às performances engajadas de 1980. Não é mais suficiente dizer que simplesmente ativar o observador é um ato democrático, pois cada trabalho de arte – até mesmo o mais “aberto” deles – determina antecipadamente a profundidade de participação do observador[64] Faz com que eu me lembre do elogio de Walter Benjamin aos jornais porque solicitam opiniões do leitor (através da seção de cartas) e portanto elevam-nos ao status de colaboradores: “O leitor fica a qualquer momento pronto para começar a escrever”, afirma “ou seja, descrever, mas também prescrever… ele ganha acesso à autoria” (Benjamin, “The Autor as Producer” in Benjamin, Reflections [Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, Inc., 1978, p. 225). Ainda assim o jornal mantem um editor e a seção de cartas não passa de uma entre um amontoado de páginas autorais submetidas à apreciação desse editor.].Hirschhorn diria que tais simulações de emancipação não são mais necessárias: toda arte – seja imersiva ou não – pode ser uma força crítica que se apropria de valores e os redistribui, distanciando nossos pensamentos do consenso predominante preexistente. As tarefas que se colocam diante de nós atualmente são analisar como a arte contemporânea se dirige ao observador e avaliar a qualidade das relações com o público que ela produz: a posição do sujeito que qualquer trabalho pressupõe, as noções democráticas que sustenta e como essas se manifestam na experiência do trabalho.

Pode-se afirmar que os trabalhos de Hirschhorn e Sierra, do modo como os apresentei, não estão mais presos à direta ativação do observador ou à sua participação literal no trabalho. Isso não quer dizer que esses trabalhos sejam um retorno ao tipo de autonomia do alto modernismo defendida por Clement Greenberg mas, em vez disso, a uma imbricação mais complicada do social e do estético. Nesse modelo, o cerne da resolução impossível de que depende o antagonismo é refletido na tensão entre arte e sociedade concebidas como esferas mutuamente excludentes – uma tensão crítica e reflexiva que os trabalhos de Sierra e Hirschhorn compreendem e reconhecem completamente [65] “Como o social está permeado pela negatividade – ou seja, pelo antagonismo – ele não atinge o status de transparência, de presença total, e a objetividade de suas identidades tornaram-se constitutivas do social” (Laclau e Mouffe, Hegemony, p. 129)..Sob essa perspectiva, encontrar tão frequentemente os temas de “obstrução” ou “bloqueio” nos trabalhos de Sierra é menos um fator de retorno à recusa modernista como defendido por Theodor Adorno do que uma expressão das barreiras entre o social e o estético depois de um século de tentativas de fundi-las [66] O bloqueio ou impasse é um assunto recorrente no trabalho de Sierra, assim como em 68 People Paid to Block the Entrance to Pusan’s Museum of Contemporary Art, Korea (2000) ou 465 People Paid to Stand in a Room at the Museo Rufino Tamaya, Mexico City (1999).. Nessa exposição no Kunst-Werke em Berlim, os observadores confrontaram-se com uma série de caixas de papelão improvisadas e cada uma delas escondia um refugiado checheno que pedia asilo na Alemanha [67] Workers Who Cannot Be Paid, Remunerated to Remain Inside Cardboard Boxes, Kunst-Werke, Berlim, (setembro de 2000). Seis trabalhadores permaneceram dentro de caixas durante quatro horas por dia pelo período de seis semanas.. As caixas eram uma releitura arte povera da celebrada escultura Die (1962) de 2 x 2m que Michael Fried descreveu de forma célebre como capaz de exercer o mesmo efeito no observador da “presença silenciosa de outra pessoa” [68] Fried, “Art and Objecthood”, Artforum (Summer 1967), reimpressão Minimal Art, ed. Gregory Battcock (Berkeley: University of California Press, 1995), p. 128.. No trabalho de Sierra, essa presença silenciosa era literal: já que é contra a lei que na Alemanha trabalhadores ilegais sejam pagos por trabalho, a situação dos refugiados não podia ser anunciada pela galeria. Seu silêncio foi exagerado e exacerbado por sua invisibilidade literal sob as caixas de papelão. Em tais trabalhos, Sierra parece afirmar que o corpo fenomenológico do minimalismo é politizado precisamente pela qualidade de sua relação – ou falta de relação – com outras pessoas. Nossa resposta ao testemunharmos os participantes nas ações de Sierra – estejam eles olhando para a parede, sentados dentro de caixas ou tatuados com uma linha – é muito diferente da “sensação de união” da estética relacional. O trabalho não oferece uma experiência de empatia humana transcendente que ameniza a estranha situação à nossa frente mas uma não-identificação racial e econômica pontual: “esse não sou eu”. A persistência dessa fricção, sua estranheza e desconforto,alertam-nos para o antagonismo relacional do trabalho de Sierra.

Os trabalhos de Hirschhorn e Sierra se posicionam contra as reivindicações de estética relacional de Bourriaud, as comunidades microutópicas de Tiravanija e o cenário formalista de Gillick. O posicionamento “de bom moço” adotado por Tiravanija e Gillick são refletidos em sua presença ubíqua na cena artística internacional e sua condição como favoritos constantes de alguns curadores que se tornaram conhecidos por promoverem sua seleção de artistas preferidos (e portanto tornando-se eles mesmos estrelas de brilho próprio). Em tal situação tão confortável, a arte não sente a necessidade de se defender e se rende ao entretenimento compensatório (e autoindulgente). Os trabalhos tanto de Hirschhorn quanto de Sierra são melhor arte não por serem simplesmente melhor política (apesar de ambos artistas agora terem igual grande visibilidade no principal circuito da arte). Os trabalhos deles reconhecem as limitações do que é possível como arte (“Eu não sou um animador, professor nem assistente social”, afirma Hirschhorn) e sujeita a escrutínio todas as afirmações fáceis de uma relação transitiva entre arte e sociedade. O modelo de subjetividade que ancora sua prática não é o sujeito fictício e completo de uma comunidade harmoniosa mas um sujeito dividido, de identificações parciais, abertas ao fluxo constante. Se a estética relacional requer um sujeito unificado como pre-requisito para uma comunidade-como-unidade, então Hirschhorn e Sierra fornecem uma modalidade de experiência artística mais adequada para o sujeito incompleto e dividido de hoje. O antagonismo relacional a que me refiro não seria baseado na harmonia social mas na exposição daquilo que é reprimido ao se sustentar uma aparência de harmonia. Ele, portanto, proveria bases mais concretas e polêmicas para repensar nossa relação com o mundo e uns com os outros.

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Como a arte global transforma a arte étnica [1]

[1]    Este texto é uma versão modificada do ensaio “How global art transforms ethnic art” do livro “The Global Art World – Audiences, Markets and Museums” editado por Hans Belting e Andrea Buddensieg, publicado por ZKM/Hatje Cantz em 2009

Originalmente apresentado no Seminário Internacional Depois do muro:Geopolítica das Artes. Fundação Joaquim Nabuco, Recife, 11 de novembro de 2009.


O ponto de partida deste texto é a interseção entre o que entendo do pensamento que vem sendo formulado por Hans Belting e por Andrea Buddensieg no projeto  sobre a arte global, a respeito das novas relações entre a arte contemporânea e a arte étnica, e o que já pode ser percebido na esfera de museus e exposições. A questão que o motiva é: Será que a arte global, tal como concebida por esses autores está se explicitando como força de transformação do que entendemos por arte? E, em caso afirmativo, de que modo essa explicitação se manifesta na própria concepção e organização da visualidade da arte hoje, bem como em sua institucionalização?

O ponto de partida é, portanto, o pressuposto de que a arte global não é mesmo  uma hipótese, mas uma realidade cujo   alcance precisamos descobrir. E como se trata de um  processo novo e recente, só podemos fazê-lo  tateando o terreno e buscando evidências na prática    expositiva atual de  aproximar a arte contemporânea e a arte moderna, da arte  que uns chamam de tradicional, outros de primitiva, outros de primeira, outros de antiga, outros de indígena, outros de étnica. Com efeito, parece-me que, se focalizarmos o problema da aproximação, encontraremos, no gesto que aproxima, a matriz do modo como a arte global transforma a arte étnica, mas também, e concomitantemente, a arte contemporânea.

Em seu artigo A Arte contemporânea e o Museu na Era Global Belting deixa claro o que está em causa: a capacidade do museu de arte para enfrentar o desafio da aceleração que a globalização impõe à expansão da produção contemporânea, juntamente com a capacidade da atual noção de arte para sobreviver a esta explosão. Para sustentar seu argumento, Belting invoca a arte global vista como um ramo da arte contemporânea e que é, para a maioria, sinônimo desta última. Do ponto de vista do autor, a história da arte e a etnologia são como dois lados de uma mesma moeda – um deles, o lado Ocidental, define o que se entende por arte, enquanto o outro define a cultura material, os artefatos produzidos por outros, isto é, aqueles que nunca criaram “arte” no sentido ocidental do termo. Foi por esta razão que os museus de arte e de etnografia passaram a existir.

Tais construções mudam com a globalização e com a mudança das regras do jogo. Por um lado, a produção dos artistas contemporâneos não-ocidentais não cabe nesse sistema, porque esses artistas recusam tanto o legado de uma história da arte que não é a sua e o legado étnico, tradicional, que sempre foi enfraquecido, mas também porque a entrada dos países emergentes como novos e importantes parceiros na cena mundial interroga tanto a supremacia do modelo de globalização da arte ocidental quanto a suposta universalidade do mundo da arte, visto com a quintessência artística da  herança mundial. A arte global é então a resposta paradoxal a essas questões – nas palavras de Belting “um problema não resolvido” com relação à inclusão de todos os “mundos contemporâneos”; a arte global, por conseguinte, abandona ao mesmo tempo os parâmetros Europeus e Americanos, na medida em que a vitória de uma arte contemporânea que se tornou pós-moderna, pós-histórica e pós-colonial desbarata toda produção étnica e nivela qualquer diferença cultural em um único processo de institucionalização.

Assim, para entender melhor esse problema  não resolvido, é necessário visitar museus e exposições para descobrir como a arte global transforma a arte étnica de acordo com uma lógica paradoxal. Mas não podemos desprezar o fato de que meu relato das visitas às exposições européias, especialmente em Berlim, é o relato de alguém que, apesar de usar as lentes fornecidas por Belting, vê a arte com um “olhar brasileiro”, isto é, pós-subdesenvolvido, pós-periférico e tropical. Ele é alimentado pela dúvida em relação ao impacto causado no Brasil, na presente crise, pelo colapso dos mercados financeiros e o golpe brutal sofrido pelos principais países industrializados. Tentarei também discernir as tensões negativas e positivas causadas pelo encontro/divergência entre a cultura moderna e contemporânea ocidental e as culturas  tradicionais dos povos indígenas. O que deveria ser levado em conta é que a arte moderna e contemporânea brasileira nunca tentou levar a sério sua não-relação com a arte étnica que era e ainda é produzida, porque ela nunca sequer se colocou a questão se os povos indígenas e tradicionais costumavam produzir arte e ainda continuam a fazê-lo.

Se o advento da arte global reconfigura o sentido anteriormente conferido à  arte contemporânea e ao seu “outro”, a arte étnica, a questão levantada por Belting se torna de grande relevância para nós porque a posição ocupada pela arte brasileira no novo contexto será necessariamente problematizada e questionada, tendo em vista a nossa inserção peculiar no que vem por aí.

Belting já havia assinalado, em Why the Museum? New Markets, Colonial  Memories, and Local Politics[2] Disponível em: http://globalartmuseum.de/site/conf_lecture1. que a arte latino-americana, do Uruguai ao México e a Cuba, talvez pudesse ser considerada “meramente como a outra face da Europa e de sua arte”. Em outras palavras: dentro do esquema analítico e dos conceitos norteadores por ele desenvolvidos, a arte latino-americana se move segundo os preceitos da arte ocidental, escapando  portanto da designação de arte étnica e surgindo como uma espécie de desdobramento menor, mesmo quando reavaliado, do que foi a arte moderna e do que tem sido a arte contemporânea nos centros hegemônicos. Nesse sentido, se Belting estiver certo – e eu creio que está – as transformações recentes que o advento da arte global está suscitando, devem afetar a arte latino-americana e a arte brasileira, particularmente sua relação com a arte euro-americana.

Creio que todos nós tenderíamos a pensar que essa perspectiva é correta e que é nessa direção que deveríamos explorar o problema, tendo em vista o recalque no Brasil do reconhecimento da existência de múltiplas manifestações de arte étnica. No entanto, sinto que está se explicitando um fenômeno particularmente perturbador que talvez modifique intensamente todo o quadro e apresente articulações novas, capazes de trazer para dentro da cena brasileira, e de um modo inédito, os dois pólos analisados por Belting, a saber as novas relações entre arte contemporânea e arte étnica.

Com efeito, o que está acontecendo que nos permite levantar essa lebre? Antes de tudo, uma tendência já detectada por Belting no texto Art in the TV Age. On Global Art and Local Art History. Pois nesse  ensaio,  refletindo sobre o que cabe à arte numa era tecnológica, o historiador sugere que a arte e a tecnologia sempre competiram, desde a emergência da modernidade, em termos de descobrimento e de progresso. Entretanto, diz ele, “hoje a tecnologia parece vencer a velha competição e até conquistar uma indisputada autoridade na constituição de uma nova identidade global. Além disso, a tecnologia controla a experiência do que chamamos realidade virtual, cujo fascínio ofusca o velho papel da arte como o porto do imaginário”. Ora, sempre segundo Belting, a vitória da tecnologia teve implicações importantes para a arte: em primeiro lugar, porque a utopia deixou de ser uma de suas reivindicações e  tornou-se privilégio da tecnologia; por outro lado, a arte se tornou por excelência o campo da imaginação privada e da criatividade enquanto a TV se tornou a expressão dos interesses econômicos e políticos em escala global; finalmente, lembrando Peter  Sellers, o historiador afirma que, contrariamente aos mass media, a arte deve ser lenta, difícil e obscura se quiser manter sua vida e seus direitos no mundo de hoje.

A observação de Belting é importante porque, ao mesmo tempo em que aponta a vitória da tecnologia como vitória da aceleração e da colonização do espaço público, indica que a liberdade e a criação artística se refugiaram no âmbito do privado. Nesse sentido, vale então a pena se interrogar como a individualidade e o próprio processo de individuação vem sendo “processado” tanto pela arte quanto pela tecnologia.

Ora, vista por esse prisma, a vitória da tecnologia sobre a arte também passa a significar a primazia da capacidade da tecnologia de afetar o humano do modo mais intenso, de propor-lhe experiências cujo impacto transformador é inigualável e, no limite, de transmutar a própria individuação, na medida em que interfere na noção mesma de natureza humana. O que equivale a dizer que a potência de transformação da tecnologia, inclusive e sobretudo no tocante à percepção da realidade, é incomparavelmente maior do que aquela que a arte hoje pode vir a almejar.

A fim de se ter uma “medida”, se é que se pode dizer assim, do impacto e da intensidade da aceleração tecnológica sobre o humano, vejamos o que diz Konstantinos Karachalios, um especialista do Escritório Europeu de Patentes que se dedicou nos últimos anos à construção de cenários futuros nessa organização. “Se você considerar o progresso tecnológico realizado no ano 2000 como uma “unidade de tempo tecnológico”, então calcula-se que o século XX teve, ao todo, 16 dessas unidades. Todo o século XX é equivalente a apenas 16 anos do progresso tecnológico medido pelo ano 2000; isto é, em termos tecnológicos o século todo poderia ser comprimido em apenas 16 anos, com desenvolvimentos cada vez mais concentrados em seu final. Levando em conta esse efeito de aceleração, você poderia imaginar quantas unidades de tempo tecnológico nós e nossos filhos vamos experienciar (e ter de enfrentar) durante o século XXI? Aparentemente, haverá mais do que 100, mas você pode imaginar quanto? Bem, se você simplesmente extrapolar a tendência atual, assumindo que não ocorrerão desastres em larga escala e a longo prazo, pode ser que tenhamos que lidar com um progresso tecnológico equivalente a 25.000 anos (baseado na tecnologia do ano 2000) dentro de duas gerações. Mesmo que você considere “apenas” 1000 anos, teremos que enfrentar desafios semelhantes aos que a maioria das populações da África ainda está enfrentando, populações que foram catapultadas da idade da pedra ou do ferro na modernidade, dentro de 2-3 gerações”.

Se Karachalios estiver certo, a pergunta, então, que se coloca é a seguinte: como a experiência humana vai “processar”, ou melhor, está “processando”, essa aceleração que os especialistas qualificam como “avalanche tecnológica”? A analogia com os povos indígenas soa interessante, não porque estes sejam “atrasados” ou “arcaicos” em termos sociais e culturais, mas porque não trilharam o caminho do desenvolvimento técnico cada vez mais acelerado, optando por outros rumos. Assim, quem já esteve numa aldeia Yanomami, por exemplo, sabe da distância que separa a sua vida cotidiana do nosso universo tecnologizado e constata a sua dificuldade em lidar com nossas máquinas; mas  nesse caso, o problema que eles enfrentam não é com a sua sociedade, e sim  com a organização social dos outros, dos brancos. A ironia, entre nós, é que vamos ser cada vez mais confrontados com a vertiginosa aceleração que nossa própria sociedade produz e de cujo impacto parece que não temos como escapar. Como se estivéssemos nos tornando um povo primitivo dentro de nossa própria cultura!

Se a comparação faz sentido, o homem da sociedade indígena se torna rigorosamente contemporâneo do homem civilizado; e o Brasil se torna então um campo de provas extraordinário, um terreno de experimentação riquíssimo, no qual se apresenta a  oportunidade única no mundo de confrontar as diferentes soluções encontradas no campo da individuação para lidar com a avalanche tecnológica e sua relação com as temporalidades das diferentes culturas. Mais ainda: no âmbito do que Belting entende por arte global, o Brasil emerge como um lugar privilegiado para se acompanhar as transformações do que se entende por arte contemporânea e por arte étnica, e a fecundação, ou não, de uma pela outra. Digo isso porque não são só os artistas brasileiros que podem se apoderar das novas tecnologias como meios de expressão estética – os mais de duzentos povos indígenas, para não falarmos dos quilombolas, dos seringueiros e de outras populações tradicionais que compõem a sociodiversidade brasileira, já estão também entrando na cena.

Foi com essas questões em mente que o espectador foi ver a exposição Os  Trópicos.  Visões do Meio do Globo, curada por Alfons Hug (Goethe Institut Rio), Peter Junge (curador do Etnologisches Museum de Berlim) e Viola König (diretora do mesmo museu), no Martin-Gropius Bau, em Berlim. Os Trópicos não pode ser considerada, apenas, como mais uma grande mostra em cartaz em Berlim, no segundo semestre de 2008; Hermann Parzinger tem razão quando escreve que se trata de uma exposição “excepcional em vários aspectos”[3] Parzinger, Hermann.  « Words of Welcome ». Hug, Alfons ; Junge, Peter & König, Viola (eds) The Tropics – Views from the Middle of the Globe. Goethe-Institut, Ethnologisches Museum, Staatliche Museen zu Berlin, Bielefeld/Leipzig : Kerber Art Verlag, 2008, p. 8.. Sua realização é muito importante porque expressa  um momento alto do processo de aproximação da arte contemporânea com a arte étnica, segundo a ótica da arte global. Com efeito, a mostra reivindica sua inscrição num movimento que teve início em 1986 na exposição Les Magiciens de la Terre, no Centre Georges Pompidou, passou pela abertura do Musée des Arts Premiers, no Quai Branly, em Paris, em meados de 2006, e agora se manifesta em Os Trópicos como o protótipo ou o projeto-piloto do Humboldt-Forum, a ser criado na Ilha dos Museus. Nesse sentido, a aproximação talvez possa ser entendida como a prefiguração do modo como se pretende estabelecer um marco da institucionalização da arte global na Alemanha, e talvez na Europa. Isso porque o Humboldt-Forum vai exercer um papel simbólico muito forte: concebido para ocupar o reconstruído Berliner Schloss, que  será erguido no lugar do antigo Parlamento da Alemanha Oriental, recentemente demolido, o Humboldt-Forum é o principal projeto político-cultural da Alemanha no início do século XXI e será destinado a acolher as artes e as culturas da África, Américas, Austrália, Oceania e Ásia, instalando, assim, a produção das regiões não-européias ao lado dos museus que reúnem a arte antiga e moderna reconhecida pelo Ocidente como patrimônio seu.

Por outro lado, além de sua inscrição no panorama artístico e cultural alemão, Die Tropen traz para dentro da exposição muitas marcas da influência que o Brasil  exerceu sobre a sua própria concepção. Tal influência se faz notar não só porque a mostra do Martin Gropius Bau foi precedida por versões menores, experimentais, em várias cidades brasileiras, mas também porque a idéia nasceu no Rio de Janeiro, onde mora e trabalha Alfons Hug, porque o Brasil é o maior pais tropical do planeta, porque dos 40 artistas contemporâneos convidados treze são brasileiros e, last but not least, porque a arte e a cultura brasileiras já haviam tentado elaborar, dentro da matriz moderna ocidental, a sua diferença específica como tropicalidade, através da Antropofagia de Oswald  de Andrade, nos anos 20, do Tropicalismo nos anos 60, e do trabalho revolucionário e complexo de Hélio Oiticica, que soube romper com as persistentes oposições arte erudita/arte popular, arte européia/arte não-européia, arte internacional/ambiente local, etc.

Finalmente, Die Tropen acontece num momento crítico para a arte contemporânea, e pode ser vista como uma das respostas que vêm sendo construídas para lidar com tal crise. Com efeito, abrindo seu texto para o catálogo, Alfons Hug escreve: “Quase 20 anos depois da exposição precursora Les Magiciens de La Terre, a mostra Os Trópicos em Berlim é uma outra tentativa, em tempos de tensão, de identificar os fluxos de energia e as perturbações sutis entre os hemisférios. O objetivo da exposição é determinar que forças culturais estão atuando juntas e quais são antagônicas, e compilar um incorruptível conjunto de imagens que resiste à crise, que permita uma visão não hierarquizada do mundo. Berlim parece predestinada como o lugar, na medida em que a cidade não só possui uma das mais importantes coleções de arte não-européia do mundo, em seu Museu Etnológico, mas também é uma das mais vigorosas cenas do planeta  na arte comtemporânea”.

Trata-se, portanto, antes de tudo, de encarar a configuração geopolítica emergente afirmando uma visão não-hierárquica do mundo e das culturas, através da arte. E a fonte de inspiração para tanto é a tela de Gauguin Where do we come from? What are we? Where are we going?, pintado em Tahiti, em 1897. Assim, o curador reata com a (re)descoberta dos Trópicos que já havia se dado nos primórdios da pintura moderna. Mas na concepção de Hug as perguntas do pintor devem ser referidas não à história da arte e sim ao fato de que o Homo Sapiens nasceu nessa região e de que a vida tem um ritmo próprio e leis diferentes nessa faixa que cobre o meio do globo.

No entanto, seria conveniente lembrar que no quadro da crise e das tensões contemporâneas, outros artistas também retomaram, de outros modos, as perguntas de Gauguin. Em 2001, Hans U. Obrist perguntou a Maurizio Cattelan quais foram os começos do começo de seu trabalho, e recebeu a seguinte resposta: “Você começa quando nasce e então morre. Não há um grande começo. Todas as vezes você tenta entender onde está e para onde está indo. Você tenta apenas tornar a viagem mais agradável”[4] Obrist, H.U. Arte agora! Em 5 Entrevistas, São Paulo: Alameda Editorial, 2006. Tradução de Marcelo Rezende, p. 37.. É interessante notar que o italiano já não se pergunta de onde viemos, enquanto humanidade, e concentra sua atenção no presente e no futuro do artista. Talvez por isso mesmo, quando se tornou um dos curadores da Von Mäusen und  Menschen (Of Mice and Men), na 4th Berlin Biennial for Contemporary Art, em 2006, Cattelan escreveu, junto com Massimiliano Gioni e Ali Subotnick: “Quase todos os  artistas da exposição, ou pelo menos suas obras, parecem envolvidos numa escuridão radical, que poderia ser lida como uma persistência do irracional e do obscuro face à racionalidade e ao fundamentalismo. (…) Diversos trabalhos também  compartilham um profundo mal-estar, que ressoa com os espaços nos quais são exibidos, (…) É a percepção nublada da realidade como uma manifestação sinistra das sombrias fantasias de cada um. Com certeza, não é por acaso que a arte atual é predominantemente uma arte de imagens. Para ir direto ao ponto: podemos dizer que vivemos numa era do triunfo da arte figurativa. Mas tais figuras e imagens são antes de tudo e principalmente alucinações; são espectros. Queremos levar em conta a abertura de Sebald para os fantasmas da história”.

As observações esboçadas por Maurizio Cattelan às perguntas: Onde estamos?  Para onde vamos?, apontam, assim, para a incerteza do presente e a escuridão radical quanto ao futuro. Ora, em 1996, Ugo Rondinone também abordava o tema, realizando sua vídeo-instalação Where do we go from here?… Do que se trata? O espectador entra numa sala vazia que tem ao fundo, cobrindo a parede toda, uma imensa fotografia preto e branco de uma floresta, retrabalhada de tal maneira que o olhar vai registrando a transformação das árvores à medida que se aproxima da imagem. Do lado esquerdo desta, porém, uma abertura o convida a atravessar a imagem da natureza e a entrar num grande corredor de madeira iluminado por néons, que por sua vez desemboca numa grande sala quadrada, onde o aguarda, em cada uma das quatro paredes, a imagem de um imenso palhaço. Ali, cercado por eles que, escarrapachados no chão limitam-se a olhá-lo, ouvindo o som pesado da respiração deles, o espectador se encontra numa espécie de vazio terrível, do qual nem pode fugir porque a luz que emana dos quatro projetores persegue os seus olhos, ofuscando-os.

Ali, a desconstrução do mito do artista parecia levar a um impasse: pois à entrada da instalação o curador reproduzira o seguinte enunciado de Ugo Rondinone: “Perguntado sobre o que então a arte deveria ser, Beckett afirma que ela deveria ser “a expressão de que não há nada a ser expressado, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhum poder de expressar, nenhum desejo de expressar, junto com a obrigação de expressar”.

É, portanto, no momento em que a condição do artista contemporâneo se vê radicalmente questionada, que Die Tropen retoma as perguntas de Gauguin e se volta para a aproximação entre arte contemporânea e arte étnica, tentando respondê-las a fim de “facilitar o entendimento entre os hemisférios”[5] HUG, Alfons. The Tropics… Op. cit. p. 15.. Pois como diz Hug: “A mostra forja um elo – pela primeira vez na história – entre obras criadas em tempos pré-modernos e obras contemporâneas. A modernidade é conscientemente saltada nesse  contexto, pois as relações   entre, por exemplo, Picasso e a arte africana ou o Expressionismo  alemão e a escultura melanésia já foram suficientemente examinadas. (…) Trata-se de uma exposição de arte, isto é os trabalhos mais antigos são escolhidos primeiramente em virtude de critérios estéticos, não científicos. O objetivo geral é a re-estetização dos Trópicos para ajudar a trazer o peso cultural das regiões tropicais para ajudar a contrarrestar os discursos econômicos e políticos todo-poderosos”.

Talvez seja um pouco de exagero afirmar que se efetua, em Die Tropen, pela primeira vez, a ligação entre obras pré-modernas e contemporâneas. Só para ficarmos em Berlim, no outono-inverno de 2008, havia no âmbito das grandes exposições de Der Kult des Künstlers, pelo  menos outras duas que também efetuavam confrontações de obras produzidas em tempos diferentes. Em primeiro lugar, a mostra Giacometti, der Ägypter, no Altes Museum, oferecendo ao público a possibilidade de verificar a influência que a antiga arte egípcia exerceu sobre a escultura do artista suíço moderno, e criando um “diálogo” entre os bustos de Nefertiti e Annette Arm. Por outro lado, a mostra O Culto do artista, no Kulturforum, reunia obras-primas tanto da história da arte, clássica e moderna, quanto de tradições não-européias a trabalhos de artistas contemporâneos, a fim de discutir as diversas maneiras através das quais se expressa a idealização do artista em todos os tempos. Como se vê, então, as aproximações trans-temporais e trans-espaciais parecem estar na ordem do dia… e, de certo modo, constituem uma tendência consistente no universo da visualidade contemporânea.

É claro que cada uma dessas aproximações porta consigo pressupostos, princípios, propósitos e objetivos que podem variar, e cujas diferenças mereceriam problematização. Entretanto, parece haver uma constante, um pressuposto invariante que permearia todas elas: é o caráter atemporal da arte, que se  traduz na suspensão das temporalidades próprias das obras de todos os tempos. Em Die Tropen, por exemplo, é esse caráter que funda e legitima toda a démarche curatorial, na medida em que a arte pré- moderna dos Trópicos é considerada como “timelesness”, enquanto a arte contemporânea, que teria abandonado a noção linear de tempo e progresso, é considerada como uma “máquina do tempo”.

Por que a arte pré-moderna é atemporal? Porque na escala de milênios as paixões humanas são sempre as mesmas, são sempre manifestações de uma natureza humana imutável. E é aí que reside, em meu entender, o maior problema da aproximação da arte contemporânea com a arte étnica em Die Tropen, na medida em que tal premissa articula cinco dos sete grupos temáticos que estruturam a exposição.

Que se tome, por exemplo, o grupo temático After the Flood – nature and landscape, que abre a mostra. De saída, é preciso ressaltar que a inscrição da natureza e da paisagem tropicais numa perspectiva bíblica de antes ou depois do Dilúvio já introduz um ruído considerável no entendimento da aproximação das obras escolhidas e expostas porque o espectador não tem mais critério para apreciá-las, sobretudo as que pertencem à arte étnica. Pois como e por quê vinculá-las a essa referência cristã?   Tudo leva a crer que a incorporação das obras sob essa rubrica tem o dom de subtraí-las de sua própria materialidade para torná-las expressões metafóricas de um entendimento do mundo tropical informado pelo mito e pela religião do europeu.  Assim, a floresta deixa de ser um espaço disputado por culturas em conflito para tornar-se um espaço metafórico. E como tanto os trabalhos contemporâneos quanto os étnicos são tomados nesse mesmo registro, encontram-se em pé de igualdade, isto é não-hierarquizados porque são todos metáforas de uma natureza e de uma paisagem que lhes é comum. Ocorre que tanto a natureza quanto a paisagem não podem se constituir como esse substrato comum porque as próprias noções de natureza e de paisagem  diferem  radicalmente, quando     consideradas sob a perspectiva ocidental contemporânea e sob a perspectiva étnica – um conceito universal de natureza e de paisagem só pode ser suposto como “dado” na cabeça de um homem ocidental moderno!

A Antropologia pós-Lévi-Straussiana já mostrou que a perspectiva dos povos indígenas das Américas difere radicalmente da perspectiva ocidental, sobretudo no tocante à relação entre natureza e cultura. Isso porque tanto os ocidentais modernos quanto os contemporâneos fundamentam, em última instância, sua perspectiva num pressuposto ontológico e epistemológico comum criado pela ciência: o de que existe uma única natureza e múltiplas culturas. Mas essa não é a perspectiva compartilhada pelos povos indígenas nos trópicos americanos. Pois do ponto de vista destes, o mito cria a perspectiva inversa: existe uma única cultura, a cultura humana, e muitas naturezas. Com a palavra o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “Se existe uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, ela é a de um estado original de não-diferenciação entre humanos e animais descrita na mitologia. A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas, antes, a humanidade. A grande divisão mítica não mostra a cultura se distinguindo da natureza, mas, antes, a natureza se distanciando da cultura. Assim os mitos descrevem como os animais perderam os atributos herdados ou preservados pelos humanos. Os humanos são aqueles que continuaram como antes: animais são ex-humanos e humanos não são ex-animais”.

Na perspectiva ameríndia, todos os seres vêem (representam) o mundo da mesma maneira – o que muda é o mundo que eles vêem. Os animais usam as mesmas categorias e valores que os humanos: seus mundos, como os nossos, giram em torno de caçar e pescar, cozinhar e tomar bebidas fermentadas, em torno de primos cruzados e guerra, em torno de ritos de iniciação, chamãs, chefes, espíritos, etc… Mas as coisas que eles vêem são outras: o que é para nós (por exemplo) o sangue, para a onça é cerveja de mandioca. 19. Assim o ponto de vista ameríndio de que há apenas uma cultura e muitas naturezas expressa a existência de uma epistemlogia constante e de uma ontologia variável. Mas, ao contrário do multiculturalismo, do ponto de vista do multinaturalismo, não há representação.

Uma perspectiva animista não pode ser uma representação porque é “uma propriedade da mente ou espírito, enquanto o ponto de vista está localizado no corpo. A habilidade para adotar um ponto de vista é um poder da alma, e não-humanos são sujeitos na medida que têm (ou são) espírito; mas a diferença de pontos de vista… não está situada na alma. Desde que a alma é formalmente idêntica em todas as espécies, ela só pode ver as mesmas coisas em todo lugar – a diferença é dada pela especificidade dos corpos”. E Viveiros continua: “Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos organismos há um plano intermediário que é ocupado pelo corpo como um feixe de afetos e capacidades e que é a origem das perspectivas”. Em suma: “os Ameríndios postulam uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física entre os seres do cosmos, a primeira resultando no animismo e a última no perspectivismo: o espírito ou a alma… integra, enquanto o corpo… diferença”.

As análises de Eduardo Viveiros de Castro são de grande valor para o presente ensaio e precisavam ser longamente citadas porque foram elas que permitiram ao espectador tropical detectar, logo na primeira sala, os problemas conceituais da curadoria de  Die Tropen e a procurar entender porque emergia uma  sensação muito grande de mal-estar com o modo como se aproximava a arte contemporânea da arte étnica, pressupondo um denominador comum que, em vez de ser considerado como “dado”, deveria ser a própria problemática a ser  tratada, caso se quisesse efetivamente confrontar as obras de modo produtivo e discutir as diferentes perspectivas sobre os Trópicos. Ora, à medida que os núcleos temáticos se desdobravam pelas salas, ia ficando evidente que o  equívoco só fazia aumentar, pois parecia que eles reiteravam o problema conceitual inicial. Como se os artistas contemporâneos e os “artistas” étnicos  fossem todos produtores de metáforas sobre esses  mesmos temas, como se pertencessem todos à mesma  boa e velha humanidade  ocidental universal, ficando a diferença entre suas obras por conta da diversidade de interpretações.

É evidente que não estão em questão, aqui, a qualidade e pertinência das obras contemporâneas selecionadas, nem a excelência e a adequação das obras étnicas escolhidas no acervo do Etnologisches Museum de Berlim, nem a expertise dos curadores desse museu Não se trata, portanto, de um desconhecimento ou de uma simplificação da problemática da arte étnica concebida pela abordagem etnológica, mas do modo como esta última é abandonada em favor de um “visualistic approach” baseado em temas. Também precisa ficar claro que não se defende aqui a idéia de que a abordagem etnológica é intocável e de que toda e qualquer aproximação entre arte contemporânea e “old art”, ou arte étnica, deve ser a priori condenada.

Voltemos então à exposição, e vejamos pelo menos dois exemplos do que no “visualistic approach” adotado suscita incômodo, aos olhos do espectador tropical. Foi pressuposto pela curadoria que a imagem contemporânea e a imagem  presentificada no objeto étnico eram equiparáveis, enquanto expressões da relação homem-meio, no núcleo temático que tratava da natureza e da paisagem. Mas como ver num mesmo registro visual e estético a série de fotografias de Candida Höfer sobre os animais tropicais nos zoológicos europeus e o fantástico Elephant Mask of the Kono Society, do Mali? Isso só é possível se encararmos os  animais figurados tanto na imagem fotográfica quanto na imagem esculpida como representações simbólicas de animais naturais dos trópicos. Ora, a imagem do animal no zoológico não tem o mesmo estatuto que a máscara de elefante, pois este é um objeto de culto, portanto um objeto transacional, um vetor de acesso e de atualização de potências que, contudo, é visto pela curadoria como uma metáfora de forças míticas e não como a própria presença delas. Assim, tanto o  objeto artístico contemporâneo quanto o objeto étnico são reduzidos a um pobre denominador comum, que é a linguagem da representação.

A visão que permite a aproximação e a confrontação, e que fundamenta a apreciação das obras se pretende contemporânea e, num certo sentido, pós-moderna. Como vimos, o próprio texto de apresentação que abre a mostra afirma que as obras assim reunidas o são pela primeira vez. O que significa que o critério que as junta é um critério que recusa ao mesmo tempo o critério formal, picassiano, dos modernos, e o critério de classificação do etnólogo. Tudo se passa, então, como se a curadoria, desinvestindo ao mesmo tempo da função  da  forma na arte moderna e da função ritual na arte étnica, estabelecesse que a falta de função ou de fundamento outro que não o estético da aproximação pudesse se constituir no próprio solo a partir do qual se pode  estabelecer uma articulação inédita. Cabe,  então, a pergunta: Que novo sentido emerge dessa articulação? Como ver, por exemplo, a aproximação da tela Sampa, de Beatriz Milhazes, de um cocar do povo indígena Rigbatsa, do Brasil, ou de um Bark Painting, de Papua-Nova Guiné? A pergunta se impõe porque estamos diante de um caso que instiga a reflexão sobre o feixe de ambiguidades que se desdobra.

Antes mesmo de ver Die Tropen, o espectador tropical pudera constatar um fenômeno no mínimo curioso. É que, em Paris, o Musée des Arts Premiers exibia pintura  contemporânea dos Aborígenes Australianos como obras de arte étnica, isto é tradicional, muito embora já descontextualizadas da  abordagem etnológica; mas, no mesmo momento, a Galerie des Médicis, da Place des Vosges, embora referindo os trabalhos de sua própria exposição às telas do museu, mostrava e punha à venda aboriginal paintings como arte contemporânea, cujo valor estético era paradoxalmente autenticado pelo  pensamento mágico e chamânico. Assim, se por um lado o espectador era introduzido no museu às pinturas étnicas criadas por artistas contemporâneos, na galeria estava diante de pinturas contemporâneas criadas por artistas étnicos! Portanto, os artistas aborígenes australianos eram, ao mesmo tempo, étnicos e contemporâneos. Isto posto,  voltemos então à tela de Beatriz Milhazes, e à relação que se estabelece entre ela, o cocar indígena e a pintura em casca de árvore.

Se os artistas aborígenes australianos ocupam uma ponta da relação entre o étnico e o contemporâneo no espectro global, a artista brasileira ocupa, seguramente, a outra ponta, caso endossemos o juízo de Madeleine Grynsztejn,   atual diretora do Museum of Contemporary Art de Chicago. Com efeito, para ela Milhazes desperta interesse por ser “glocal”, isto é alguém que ancora seu trabalho na linguagem internacional  do  modernismo e ao mesmo tempo finca suas raízes em seu tempo e sua cultura, misturando “figuração e abstração, e até mesmo decoração e artesanato, com um empreendimento altamente intelectual de abstração formal”.

Talvez, então, a  chave de seu sucesso seja precisamente a ambiguidade de sua pintura: é  contemporânea étnica ou étnica contemporânea? Na dúvida, e por causa dela, o espectador tropical se pergunta: O que é ser um artista “glocal”? E em que medida este difere do artista global, tal como definido por Hans Belting, isto é aquele que ao mesmo tempo recusa inscrever-se tanto nos parâmetros da arte contemporânea ocidental quanto nos parâmetros de seu outro, a arte étnica? A questão se coloca  porque, ao que parece, não estamos diante de uma negação e superação dessa dupla filiação mas, muito ao contrário, de uma   reivindicação de pertencimento a ambas. Mas se isto for verdade, só aparentemente o caso de Milhazes significa uma refutação da tese de Belting sobre o advento da arte global; porque, muito ao contrário, o sucesso da artista brasileira reitera o paradoxo por ele apontado quando afirma que a arte global é “um problema não resolvido”, na medida em que se configura como uma  arte contemporânea que precisa incluir a representação de todos os “mundos  contemporâneos”, e portanto, abandonar seus parâmetros euro-americanos, e ao  mesmo tempo, como a vitória de uma arte contemporânea que se faz pós-moderna, pós-histórica e pós-colonial para derrotar toda produção étnica e nivelar qualquer diferença cultural, num processo único de institucionalização. Assim, no “visualistic approach” de Die Tropen, o problema não resolvido da superação não-superação se manifesta quando Sampa, de Milhazes, é aproximado do cocar Rigbatsa e da pintura em casca de árvore da Papua-Nova Guiné porque todos eles visualizariam, antes de tudo, a questão da cor e do movimento. Considerar, porém, as três obras nessa chave, não implicaria em prolongar, e fazer inevitavelmente prevalecer o ponto de vista formal, ocidental e moderno da pintura? Do mesmo modo, aproximar o retrato e a máscara nesse mesmo registro não acabaria fatalmente privilegiando e universalizando as representações ocidentais de indivíduo, de pessoa e até mesmo de humanidade? Por sua vez, o animal documentado pela câmera fotográfica não imporia ao animal mítico da máscara a sua “verdadeira” animalidade “natural” como substrato último de seu modo de ser?

Os artistas contemporâneos, ocidentais ou não-ocidentais, comparecem na exposição com suas obras; os outros são criadores anônimos, individuais ou coletivos, desconhecidos. Só isso já deveria ser objeto de discussão, se pensarmos no que pode implicar a própria condição de artista na criação e na difusão de trabalhos de culturas tão díspares. Basta olhar o folder que acompanha Die Tropen. Ali estão listados todos os artistas contemporâneos convidados, com os quais os outros devem “contracenar”. Não é à toa que muito rapidamente, no decorrer de seu percurso na exposição, o olhar do espectador acaba sendo como que levado a passar superficialmente pelas obras etnológicas para concentrar-se nos vídeos, nas instalações, nas pinturas, nas fotografias contemporâneas. Tal atitude, impensada, mas de certo modo induzida, revela quão pouco problematizadas são as relações entre a arte contemporânea e a arte étnica. Como se esta última servisse de pano de fundo, de ambientação décor para  o display das obras dos artistas contemporâneos (por sinal, tanto faz que estes sejam ocidentais ou originários dessa região do mundo, porque se encontram irmanados no mesmo registro, que é o de efetuarem uma “leitura” do universo tropical, enquanto os artistas étnicos supostamente estão ali por “serem” dos Trópicos). Por todas estas razões, o espectador comum talvez saia da exposição confirmado em suas convicções convencionais sobre o Ocidente e seu “outro”. De todo modo, do ponto de vista desenvolvido aqui, a exposição é importante – Die Tropen é um sintoma da dificuldade da nova  situação, da necessidade de se explorar novas articulações e da exigência de se pensar novos critérios para a arte. Nesse  sentido, mesmo problemática, a exposição ajuda a reflexão.

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Confusão e intolerância e outras coisas&

Feedback, de Roberto Winter, foi publicado no caderno Sesc Videobrasil 06. Me batendo com o texto, percebia que era impossível não tentar compreendê-lo e projetá-lo à luz das dores de cabeça epistemológicas e políticas do campo da arte. Penso que o mais interessante do texto, ou dos textos, de Winter é a forma como eles nos obrigam a exercícios de compreensão que de fato não se esgotam em sua simples leitura.

É composto por três textos intercalados em blocos, três blocos por página em sucessão. O autor cria contrapontos a partir desses textos que a princípio parecem não se relacionar. Só um deles toca no assunto arte, mais precisamente crítica de arte. Penso que talvez ali esteja a chave de todo o trabalho, mesmo sabendo que esse negócio de descobrir chaves para o pensamento alheio na maior parte das vezes é um crime. Winter descreve três modos despolitizantes de interação da crítica com a arte, chega mesmo a projetar esses modos nas interações dos sujeitos entre si e com o mundo: ignorar, polemizar e tolerar, todos é claro quando de forma acrítica.

Outro texto é sobre genômica, a princípio mais complexo dentro do jogo proposto (escrever que é um jogo, uma liberdade que tomo). Este trata das generalizações nas difusões populares de ciência, que omitem suas reais complexidades. Mas ao meu ver talvez trate também dos perigos das relações entre relativismo e essencialismo. Se não me engano, até mesmo Richard Rorty apontou os perigos do relativismo sem uma preocupação profunda com as nuanças dentro de uma visão holística. Acreditar que o mapeamento do DNA dos seres vivos pode realmente tornar possível reconstruir um organismo complexo é extremamente redutor, mas vendeu muita notícia, algo como a política na última bienal de São Paulo.

Winter é muito inteligente nas suas escolhas. Sua colaboração no caderno é provocativa, ao menos provocou alguns surtos na minha pobre cabeça, por esse motivo corro o risco de estar completamente equivocado nas minhas colocações. Em alguns momentos os três textos tratam dos vícios generalizadores, acríticos, eufemizadores ou simplificadores que muitos pensam ser necessários para a determinação ou a difusão do conhecimento. Vícios que podem até ser encontrados em certas heranças de um pseudoacademicismo travestido de rigor, ou pior, imparcialidade. Temos essa mesma postura quando tratamos de arte. A crítica de arte muitas vezes esquece o caráter negativo de seu objeto, que não tem mesmo liames e não deve ser sempre apaziguado em sua complexidade. Penso que devemos ser parciais, malas e impacientes, artistas precisam de chicote crítico.

Gostaria de tentar dialogar um pouco com o texto de Winter, mesmo que de forma menos sagaz. Mas, afinal, o que me animou foi a possibilidade de poder escrever sobre coisas que não conheço tão bem.

Um outro texto de Winter trata de Ludwig Wittgenstein e gostaria de começar minha conversa com Feedback justamente com ele. Em 1914, Wittgenstein pediu ao editor da revista  Der Brenner, Ludwig von Ficker, para que distribuísse cem mil coroas (dizem que era uma fortuna na época) para poetas e outros artistas que estivessem mal das pernas. Alguns beneficiários foram Rainer Maria Rilke, Georg Trakl, Oskar Kokoschka, Adolf Loos, e outros. O filósofo pediu para que ficasse anônimo e não parecia ter uma preocupação específica com a produção dos agraciados.

O filósofo afirmou muitas vezes não compreender poesia, disse por exemplo que admirava muito Trakl, apesar de não entender nada do que este escrevia. Contraditoriamente, encontramos, em um de seus milhares de aforismos, que a filosofia deveria ser escrita como uma composição poética, mas termina afirmando que isso apenas revelava que não podia fazer o que gostaria de fazer. Que admitir isso era algo frustrante. Para Wittgenstein, a poesia era uma forma não imiscuída às discussões sobre a impossibilidade da linguagem como ferramenta para descrever o mundo. A arte poderia evidenciar um conflito, desespero ou ascese metafísicos, mas não era algo analisável, era coisa de gênio. Devemos lembrar que em seu Tractadus Logico-Philosophicus, mostra que o significado de uma expressão é determinado pelo seu uso e que expressões inúteis não têm significado. Inútil, no caso, significaria algo eliminável pela análise. Assim, talvez fosse a arte a menos má das desnecessidades ou das inutilidades.

É bizarra a angústia de Wittgenstein em relação a Shakespeare. Na coletânea Cultura e Valor, diversas vezes aponta que o poeta, tanto como o filósofo, apenas se articula dentro de leis próprias, levando em consideração que para ele o objetivo da filosofia era a clarificação dos pensamentos com vista a dissolver os problemas filosóficos. Porém o poeta talvez tivesse alguma missão transcendental, algo que deveria ser interdito aos filósofos: “As comparações de Shakespeare são, no sentido vulgar, más. Mas se, apesar de tudo, são boas – e não sei se o são ou não, devem ser uma lei para si próprias. Talvez a sua sonoridade, por exemplo, lhes confira plausibilidade e verdade”, “Eu só conseguiria admirar Shakespeare; nunca fazer algo com ele”. Como se algo o obrigasse a respeitar o poeta inglês, mesmo que pelos motivos errados.

Anacronismos à parte, grande parte da crítica sofre ainda da mesma indulgência quando retrata a arte, mesmo quando travestida de rigor acadêmico. Esse rigor muitas vezes é apenas a rearticulação de uma mesma tese acadêmica de seu autor às mais diferentes produções, ou o estabelecimento de trabalhos permeando-os com referências históricas. Promete uma inserção na história ou na teoria, mas que acaba apenas apagando o trabalho em sua singularidade. Há algum tempo a arte brasileira passa por um processo de academização. Mesmo aqueles que não saíram da universidade, estão se voltando pra ela. O problema é que uma boa parte do pensar arte depende de uma teoria da arte ou uma história da arte, apaga-se o que há de negativo, de complexo, e cai-se no que Wittgenstein chamava de ânsia pela generalidade.

Hoje não temos mais o gênio para justificarmos os investimentos. É claro que no Brasil temos o fantasma de Hélio Oiticica, que é pau para toda obra, o que me obriga a pensar então em outra desculpa para a arte. Um produto sem valor de uso, sem critérios tangíveis de avaliação, nada popular e além de tudo muito passível de obsolescência histórica… Especialmente no Brasil…

Outro dos pontos críticos à arte contemporânea também é seu tão apregoado élan interdisciplinar. Ou melhor, seu salvo-conduto nos mais diversos campos de ideias. Mesmo que timidamente, é cada vez mais necessária alguma observação epistemológica. Ao mesmo tempo em que se tolera posições relativistas e mesmo irracionais quando se trata de arte, essa tolerância se transforma quando se trata da arte crítica ou da crítica de arte – uma imensa suspeita paira sobre essa produção.

Pensemos alguns exemplos sobre a tão hipostasiada relação entre arte e política. Jacques Rancière em O Espectador Emancipado, no capítulo Os paradoxos da arte política, não consegue determinar historicamente a que política a arte se refere quando se refere à política. E pergunta: a quais modelos de eficácia obedecem nossas expectativas e julgamentos em matéria de política da arte?; Em uma série de palestras no Centre Goerges Pompidou, chamada Que Faire? Art/Film/Politique, o artista libanês Rabih Mroué, após descrever um conjunto de performances onde simulava os últimos depoimentos filmados de homens-bomba no Oriente Médio, teve que ouvir as seguintes questões do artista e teórico Rasheed Araeen, editor da revista Third Text: se seu trabalho é artístico, o que o senhor criou? E se é político, o que o senhor conseguiu?; Um último exemplo esclarecedor é a introdução do catálogo da 29ª Bienal de São Paulo. Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos, quando declaram uma impossibilidade de separar arte e política, explicando uma bienal que tratava de arte e política, utilizam de uma nota mágica e lenitiva: “para a relação entre arte e política na perspectiva aqui defendida, ver Jacques Rancière “Politics of Aesthetics”” – simples assim: qualquer problema perguntem pro Rancière.

A questão é: viver este limbo é confortável? Se a análise apenas torna explícito o que estáimplícito no discurso, como é possível a análise de um pseudodiscurso? Essa frase é falsa. Essas perguntas têm como base os tantos harakiris epistemológicos cometidos por artistas e seus outros satélites, quando colocados contra a parede. Se as relações entre arte e epistemologia são problemáticas; se a arte não pode ser tomada como campo de conhecimento; se não produz conhecimento; o que se deve esperar de quem analisa a arte, de quem a media, de quem a representa e principalmente de quem a esta se contrapõe?

Que a arte não crie proposições analisáveis, nem sequer falsas ou verdadeiras; se em sua defesa e impugnação, tem-se como fato que suas crenças verdadeiras não têm justificação, mesmo assim suas proposições existem. Devemos então reificar a teoria institucional da arte? Que a arte é aquilo que ela é. Que é aquilo que os agentes do campo da arte podem admitir ser. Não penso que todos esses jogos tautológicos sejam saudáveis também. Lembrando que a maioria desses jogos surgiram com a arte conceitual e que esta muito flertou com um estruturalismo imobilizador que de tanto pensar tudo, nada mais pensava. Ou ainda que para não ser obrigada a realmente pensar, pensava tudo.

A arte é um campo, um microcosmo definível pelo espaço social. Tem suas regras, seus jogos, suas lutas entres seus agentes, sofre da distribuição desigual de capital, que pode definir as relações de força históricas dentro do campo, assim reestruturando as posições de seus agentes e, finalmente, o que penso ser o mais importante, como resume o sociólogo Bernard Lahire analisando Pierre Bourdieu: que mesmo em luta uns contra os outros, os agentes de um campo têm pelo menos interesse em que o campo exista, portanto, mantêm uma cumplicidade objetiva para além das lutas que os opõem. Será que partindo da análise dos agentes do campo da arte pode haver alguma possibilidade de realmente podermos pensar arte e política?

Ou seja, pode ser que o único analisável e problematizável do campo da arte seja aquilo que não é a arte? E é justamente esse o ponto mais delicado, mais político, mais perigoso e consequentemente menos interessante para quem quer realmente continuar publicando nos coloridos catálogos institucionais. E se pensarmos ainda em como a crítica é indulgente com os artistas, e imagino que artistas não sejam arte. Já vi artistas corrigindo textos de críticos sobre seus trabalhos, pois não os acharam “satisfatórios”, mesmo em instituições públicas.

Infelizmente para alguns paranóicos da academia, penso que são os artistas (e seus satélites) que redefinem a arte e não o contrário, mas ao mesmo tempo os artistas são passíveis do habitus do campo da arte. Utilizando do sociologuês sem qualquer autoridade: habitus é um termo de Pierre Bourdieu que sintetiza disposições sociais incorporadas, os hábitos, as inclinações, os pendores contraídos no decorrer de experiências sociais repetidas. Contraditório. Mas é o peso entre as duas condições descritas em determinada época que vai determinar o quanto de hibridismo haverá na produção.

Me lembro mesmo do professor Vladimir Safatle pensar em uma possibilidade de reavermos critérios mais estanques para julgarmos a produção artística. Assim salvando a arte e principalmente aqueles que são obrigados a pensar e escrever sobre ela. O problema é que isso me cheira a saudades de um certo formalismo, de modelos construtivos simples de pensamento, de possibilidades de projeção, de alienação, etc.

O problema do anacronismo da possibilidade de reavermos constantes que permeiam a produção artística, de forma a criarmos critérios para sua análise, é que jamais deixariam de ser apenas paliativos críticos. Pois penso que já temos incrustada, mesmo involuntariamente, a suspeita de sistemas fechados e grandes verdades, já somos todos relativistas. Além disso, como impingir algo assim? É claro que é difícil! E pensando então numa tradição de crítica epistemológica de Karl Popper, Thomas Kuhn, Michel Foucault ou Paul Feyerabend, este que não desprezava nem mesmo a ideia de que poderiam ser medidas profiláticas ao câncer, tanto a estricnina, balinhas haribo, penicilina ou encher o rabo de 51… E estavam colocando em xeque proposições científicas enquanto verdades. Olhe que ainda assim morremos de medo da ciência, pois pode não nos curar numa próxima gripe do pepino, ou pode nos mandar pro espaço.

Mas quem tem medo de arte contemporânea? Pouco nos importa que a arte trate realmente de política, este é um tema para metafísicos. O relevante para nós é que tudo ocorra como se ela tratasse e que essa hipótese se mostre cômoda para a explicação dos fenômenos. O problema é assumir a complexidade desta posição e de forma nenhuma nos acomodar com esta, que pode ser sim uma situação confortável.

A arte contemporânea se tornou um campo privilegiado, talvez por essencialmente não poder justificar a verdade em suas crenças (esta é uma licença poética também). Onde se produz muito, mas sob a ausência de julgamento, parafraseando um título do crítico James Elkins, citado no texto de Winter: On the absence of judgment in art criticism.

Roberto Winter lembra também da posição de Slavoj Zizek quanto à tolerância. O problema é que a tolerância se confunde com o exercício da indiferença. Da mesma forma na arte e na política, deveríamos exercitar a intolerância sempre que possível, principalmente diante de todas as aporias que encontramos nos dois campos. A ausência de critérios para julgamento deve ser algo estimulante, pensando no Brasil, onde acho que a arte contemporânea ainda é um corpo estranho, por mais que nossa recente histeria econômica tente nos projetar em uma outra realidade. Temos que tomar cuidado com a tolerância do dissenso de boutique, ou ainda de um carnaval democrático que, como escreveu Rancière, simplesmente proclame l’égalité de tous les sujets (a igualdade de todos sujeitos/assuntos).

Lembro-me também de uma crítica de Zizek ao conceito de desconstrução de Derrida, que para ele é apenas um eufemismo para o conceito de destruição em Heidegger. Críticos adoram desconstruir, talvez seja importante, mesmo que pueril, algum exercício de destruição. É engraçado lembrar que Heidegger conheceu e concordou com o uso de seu conceito por Derrida. Ou seja, Zizek inventou essa crítica sem nenhuma base, mas mesmo assim, ela não deixa de ser interessante: que não seja necessária apenas a desconstrução ontológica e logocêntrica (Nicolas Bourriaud, i.e. coisa horrível), mas sua destruição mesmo. Sem exageros, simplificar ou trabalhar com generalizações em um ambiente problemático como a arte é possível, mas não vejo nada mais sadio do que um texto que seja intolerante com seu ambiente, assunto e principalmente com o leitor. Como penso ser o de Roberto Winter.

Termino com uma pequena citação de Ludwig Wittgenstein:

“Para resolver estes problemas filosóficos, deve-se comparar coisas que nunca ocorreram a ninguém seriamente comparar.

Nesse campo pode-se perguntar toda sorte de coisas que, embora pertençam ao tópico, ainda não levam ao seu centro.

Uma particular série de perguntas leva ao centro e para fora. As restantes acabam sendo respondidas incidentalmente.

É enormemente difícil encontrar o caminho até o centro.

Ele avança via novos exemplos e comparações. Os banais não os mostram.”[1] WITTGENSTEIN, Ludwig. Observações Sobre os Fundamentos da Matemática (1956).

 

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Feedback

Originalmente publicado no Caderno Videobrasil 6. São Paulo: Edições SESC-SP: Associação Cultural Videobrasil, vol. 6, n. 6, 2010.


PARTE 1

 O crescente desenvolvimento daquilo que hoje se conhece por genômica, o estudo do genoma dos organismos, lançou mão de uma série de simplificações para trazer para o debate público noções necessárias a esse desenvolvimento. Talvez a mais difundida seja a de que o DNA serviria como uma receita para a determinação unívoca dos seres vivos, ou seja, que, a partir de nada além do DNA, seria possível reconstruir o organismo do qual ele proveio. Chega a ser comum a ideia de que, por exemplo, poderíamos preservar espécies inteiras da extinção pela simples descrição (ou manutenção) de seus genomas, algo como uma biblioteca para gerações futuras.

Uma quantidade considerável de experimentos mostra que não é bem esse o caso e que, em geral, o genoma não é suficiente para reconstruir um determinado organismo. Em experiências com moscas de fruta, material genético de uma determinada espécie foi substituído em ovos de uma outra, mas, ao contrário do que se esperaria, eclodiram indivíduos que não eram semelhantes aos de nenhuma das duas espécies.[1] Como exemplo sugere-se a descrição de uma dessas experiências que se encontra no artigo P. Santamaria, “Transplantation of Nuclei between Eggs of Different Species of Drosophila”, Wilhelm Rouxs Arch. Dev. Biol. 178, 1975, pp. 89-98.Uma analogia possível para o inacreditável resultado seria dizer que implantar DNA de avestruz num ovo de galinha resultaria em um ser que não pode ser identificado nem como um filhote de avestruz nem como um de galinha!

O fenômeno conhecido como fenocópia é ainda mais intrigante. Ocorre quando um mesmo genoma produz organismos diferentes do resultado esperado, em função apenas de variações em condições do ambiente. Os coelhos do Himalaia, por exemplo, quando criados em temperaturas moderadas, tornam-se indistinguíveis de coelhos de outra espécie (a não ser pela comparação direta dos seus genomas). Outro exemplo são novamente as moscas de frutas que, dependendo da dieta recebida durante a fase larval, apresentam características que só são encontradas em exemplares da mesma espécie que têm genoma mutante.[2] Para uma introdução à fenocópia, ver a discussão apresentada em http://8e.devbio.com/article.php?id=213 (em inglês).

Já no século 19, Gregor Mendel, um dos precursores da genética moderna, arriscava que pelo menos algumas características de alguns seres vivos devessem ser atribuídas a fatores hereditários, algum tipo de informação que deveria estar contida nos organismos. Hoje sabemos que toda a informação genética de todos os seres vivos está codificada em sequências de nucleotídeos de ácidos nucleicos presentes nas suas células (sequências conhecidas como DNA e RNA). Atentar para o fato de que há algum tipo de código (chamado código genético) por meio do qual a informação genética está codificada nas moléculas de DNA e RNA ajuda a entender a irredutibilidade de sua existência – ou seja, o quão inseparáveis eles são de uma série de outros elementos –, bastando traçar uma breve analogia com o funcionamento dos programas de computador.

Os programas que executamos em nossos computadores também são escritos em “códigos”, as linguagens de programação. Essas linguagens são utilizadas pelos programadores para construir os chamados código-fonte dos programas, ou seja, a sequência de instruções que pode levar ao resultado desejado, o funcionamento do programa. Uma vez que o código-fonte foi escrito numa determinada linguagem, ele passa por um processo conhecido como compilação para resultar num programa, que só então pode ser executado pelo computador. Ora, fica claro que manter apenas o código-fonte é insuficiente para garantir a existência de algo que funcione exatamente como o programa que ele descreve. Em primeiro lugar, é necessário manter também as ferramentas que sejam capazes de transformar o código-fonte em programa (os compiladores). Além disso, é necessário manter computadores que possam executar corretamente o programa gerado. Se seguirmos essa linha de raciocínio, veremos que muitos outros elementos podem ser adicionados à lista, desde o conhecimento de um modo de iniciar o programa até a eletricidade com a qual funciona o computador no qual ele é executado. É claro que, como toda analogia, essa última tem defeitos, mas ajuda a dar uma ideia do quão grosseiramente simplificador é acreditar que manter somente um genoma é garantia de que se possa reconstruir exatamente o ser do qual ele proveio.[3] Mesmo sendo uma analogia com falhas, um fato concreto é adequado a este contexto: a grande dificuldade de preservação da arte eletrônica, relatada em Augusto Paim, “Um lugar para as velhas novas mídias”, em Continuum, março/abril 2009 (São Paulo: Itaú Cultural, 2009). Disponível em http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2720&cd_materia=857.

Dentro das células vivas, a interação entre proteínas e ácidos nucleicos estimula mutuamente a produção de ambos. As proteínas são produzidas a partir da expressão genética, isto é, a tradução de sequências de nucleotídeos de RNA pelo ribossomo em sequências lineares de aminoácidos que, então, são colocadas em formatos específicos num processo chamado conformação. A conformação é a estruturação de um polímero orgânico linear em uma proteína propriamente dita, com uma determinada forma que lhe confere um determinado funcionamento químico. Uma mesma sequência de aminoácidos pode dar origem a duas proteínas diferentes, dependendo de como acontece o processo de conformação, que pode ocorrer espontaneamente ou ser determinado por fatores externos, como, por exemplo, temperatura, radiação ou a presença de outras proteínas catalisadoras (as enzimas).

As proteínas geradas podem ter um papel estrutural, conferindo sustentação a uma estrutura celular.Ou servir como eficientes máquinas químicas, catalisadoras de algumas reações dentro da célula (como as enzimas mencionadas acima). E algumas outras podem ainda servir como algum tipo de sinalizador, permitindo que as células se comuniquem ao realizarem o transporte (envio e recebimento) e representação de informações (mensagens) que induzem reações nas células, mudanças no seu funcionamento. Essas mensagens podem circular não só entre as células, mas também dentro delas. Por meio dessas mensagens internas, uma determinada proteína pode, entre outras coisas, sinalizar a duplicação de uma porção de DNA (ou todo ele) e regular a expressão de determinadas sequências de DNA, levando assim à produção de uma segunda proteína (que pode  sinalizar a produção ou conformação de uma terceira, num processo em cascata que até pode ser interrompido pela eventual sintetização de uma proteína que inibe a produção da primeira e termina o processo).[4] Uma explicação detalhada dos processos celulares encontra-se em Bruce Alberts et al., “Molecular BiologyoftheCell” (Nova York: Garland Science, 1994).

O que é realmente fascinante nas interações entre as proteínas e os ácidos nucleicos é que seus funcionamentos básicos independentes são relativamente simples, mas é só em decorrência dos modos que se relacionam – se comunicando e determinando entre si – que levam ao aparecimento de atividades, respostas e comportamentos incrivelmente complexos, que garantem mutuamente sua manutenção e existência.

Reduções da compreensão da complexidade do funcionamento dos sistemas biológicos introduzem uma hierarquização que não condiz com a dificuldade e rigor necessários para a descrição de processos vitais. O genoma, por exemplo, não pode ser desconectado de uma vasta gama de elementos cujo funcionamento ele determina (e determinam-no), e por isso não pode ser inequivocamente classificado quanto à importância perante esses elementos.[5] Esse e outros problemas correlatos são abordados com mais profundidade em Richard Lewontin, “The Triple Helix: Gene, Organism, and Environment” (Londres: Harvard UniversityPress, 2000). A própria biologia e seus modos de estudo e compreensão se viram obrigados a uma reestruturação/adaptação a essa realidade para seguir o projeto de tentativa de compreensão e descrição dos organismos. O início da década de 1990 viu a emergência de uma nova área, a biologia de sistemas, que cresceu e ganhou importância nos últimos anos justamente por pretender uma visão holística dos sistemas biológicos, por meio da qual é capaz de apresentar descrições mais completas e permitir a obtenção de novos e importantes resultados. [6] Ver, por exemplo, a descrição resumida do que se entende por biologia de sistemas em http://www.systemsbiology.org/Intro_to_ISB_and_Systems_Biology/Systems_Biology_.._the_21st_Century_Science (em inglês).

Assim, percebe-se que a realidade natural quase que se opõe a uma tendência redutiva e hierarquizante segundo a qual a coleção de descrições autônomas de partes prescindiria a existência do todo como tal. Em alguma medida, é como se a própria realidade não permitisse a possibilidadede entendermos a descrição de algo como substituto da coisa mesma separada dessa realidade.

É apenas com as participações e interações extremamente complexas e interdependentes de proteínas, fatores do meio, DNA e RNA que, num contínuo processo de retroalimentação, se mantém a organização celular, a vida.

 

PARTE 2

Esta frase é mentira.

Em meados de maio de 1901, ao considerar um complexo problema matemático, Bertrand Russell se confrontou pela primeira vez com uma dificílima contradição. Àquela altura, Russell estava envolvido na monumental tarefa de “criar bases sólidas” para a matemática, por meio do livro que publicaria anos depois, o Principia Mathematica (livro que, em última análise, abriu o caminho que levou à demonstração de que a tarefa não só era monumental, mas impossível).[7] Sobre qual era a tarefa e como os três volumes do Principia Mathematica, que Russell escreveu com Alfred North Whitehead, possibilitaram os resultados obtidos por Kurt Godel, ver a explicação desses resultados em Ernest Nagel e James R. Newman, A prova de Godel (São Paulo: Editora Perspectiva, 2001). Para uma introdução ao problema do reducionismo na matemática, ver os dois primeiros parágrafos – ainda que eles levem seu autor a conclusões duvidosas – do ensaio de Freeman Dyson, “The Scientist as Rebel”, The American Mathematical Monthly, vol. 103, no. 9, 1996, pp. 800-805. Russell não sabia que sua contradição se tratava de um paradoxo, muito menos um que passaria a ser conhecido por seu nome, o Paradoxo de Russell.

Uma das formulações análogas simplificadas mais populares desse paradoxo é conhecida como Paradoxo do Barbeiro: em Sevilha há uma lei que diz que todos os homens devem sempre estar com suas barbas feitas e que obriga os barbeiros a fazer a barba de todos os homens que não se barbearem a si mesmos, mas a lei só permite que os barbeiros façam a barba dos homens que não se barbearem a si mesmos. Mas em Sevilha só há um barbeiro: ele faz a sua própria barba? Ele só faz sua barba se não a fizer. E não faz se fizer.

Quando começou a pensar no problema (que na formulação de Russell era muito mais complicado do que o do barbeiro), Russell imaginou que poderia resolver a contradição muito facilmente, que deveria haver algum erro trivial em seu pensamento. Mas, gradualmente, ele se deu conta de que não era esse o caso. Logo percebeu que havia uma afinidade entre sua ‘contradição’ e outras já descobertas, como o paradoxo formulado por Eubúlides de Mileto no século 4o a.C., no qual Epimênides de Creta diz que todos os cretenses são mentirosos.

Desfazer a contradição provo-.se um desafio tão grande que, ao final de 1901, Russell já havia desistido de persegui-lo. Foi só nos verões de 1903 e 1904 que ele voltou à tarefa: todas as manhãs, sentava-se frente a uma folha em branco e tentava durante todo o dia, com uma breve pausa para o almoço, resolver o problema; apenas para terminar o dia com a folha ainda em branco. Russell começava a ficar com a impressão de que o resto de sua vida seria consumida olhando uma folha de papel em branco. E se irritava com a aparente trivialidade da contradição e com o tempo gasto com algo que lhe parecia não merecer tanta atenção, mas mesmo assim não conseguia achar uma solução. [8] Um breve histórico do Paradoxo de Russell, formulações análogas alternativas e uma vasta seleção de outros paradoxos encontram-se em Patrick Hughes e George Brecht, Vicious Circles and Infinity – An Anthology of Paradoxes (Grã-Bretanha: Penguin, 1979). Um histórico mais detalhado e técnico está em http://plato.stanford.edu/entries/russell.paradox/ (em inglês) e nas referências que cita.

Como se trata de um paradoxo, não existe uma solução possível. É claro que podemos apelar para subterfúgios e sugerir que o barbeiro poderia ter sua barba feita, por exemplo, por sua mulher, ou que esse barbeiro não existe, ou não pode existir, ou até que essa história sobre Sevilha não é real. A última opção nos serve, até porque é mesmo verdade, a anedota sobre Sevilha de fato é fictícia, já que foi criada apenas para ilustrar o paradoxo, mas infelizmente não é esse o caso com o problema original de Russell, que é tão real quanto a frase que abre esta seção.

Entre todas as tentativas de “resolver” o paradoxo proposto por Russell, a mais instigante é a última proposição do TractatusLogico.Philosophicus escrito por Ludwig Wittgenstein praticamente ainda nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial e publicado em 1919, ele diz:

“7. Sobre aquilo que não se pode falar, deve.se calar”.[9] Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico. Philosophicus, tradução, notas e ensaio introdutório de Luiz Henrique L. Santos, introdução de Bertrand Russell (São Paulo: Edusp, 2001).

Logo após conhecê-lo em 1911, Russell imaginou que Wittgenstein seria seu sucessor, a pessoa que levaria adiante os problemas filosóficos que ele mesmo já estava cansado de perseguir. Além de ter sido seu professor, Russell foi membro da banca de defesa para obtenção do título de doutor na Universidade de Cambridge em 1929, para a qual Wittgenstein apresentou o próprio Tractatus. Russell era um grande admirador de Wittgenstein, chegando até a considerá-lo um “verdadeiro gênio”, mas quando sua tese de doutorado foi aprovada, ele comentou que sabia que os examinadores nunca entenderiam o livro. Era um desentendimento que já vinha desde a publicação da versão inglesa do livro em 1922, cuja introdução escrita por Russell não era vista com bons olhos por Wittgenstein, mas que, ao contrário, foi muito bem recebida pelos editores que publicariam o livro (que só se comprometeram a fazê-lo após Russell ter garantido que escreveria tal introdução). [10] A relação de Russell e Wittgenstein é tratada com detalhes em Nicholas Griffin (ed.), The Cambridge Companion to Bertrand Russell (Cambridge: Cambridge University Press, 2003). E também, ainda que panoramicamente, em http://en.wikipedia.org/wiki/Ludwig_Wittgenstein (em inglês).

Essa reação adversa é similar à que Wittgenstein teve em relação ao modo como os membros do Círculo de Viena se apropriaram somente das proposições iniciais de seu livro para direcionar as doutrinas do Positivismo Lógico: justificaram descartar as proposições finais por serem “confusas”, o que Wittgenstein tacharia de completa incapacidade de “entender as últimas frases e, portanto, a concepção fundamental de todo o livro”, conforme comenta numa carta enviada a Moritz Schlick em agosto de 1932.[11] Sobre a recepção do Círculo de Viena ao livro de Wittgenstein e à carta citada, ver a discussão e referências mencionadas em Roger Foster, Adorno – The Recovery of Experience (Nova York: State University of New York Press, 2007), p. 35. É justamente numa dessas proposições finais, mais exatamente na penúltima, que se encontra a afirmação de que as elucidações do livro servem a quem as entender apenas como degraus de uma escada que, após ter sido escalada, deve ser jogada fora.[12] Discussões sobre essa passagem podem ser encontradas em diferentes referências, como em Nikolay Milkov, “The Method
of the Tractatus”, em Pre-Proceedings of the 26thInternational Wittgenstein Symposium. Austrian Ludwig Wittgenstein Society, Kirchberg am Wechsel, 2003, pp. 239-241, que problematiza as posições expostas em J. Conant, “The Method of the Tractatus”, em Erich H. Reck (ed.), From Frege to Wittgenstein: Perspectives on Early Analytic Philosophy (Oxford: Oxford University Press, 2002), pp. 374-462.

No prefácio do Tractatus, Wittgenstein afirma que o livro trata de problemas filosóficos e que “a formulação desses problemas repousa sobre o mau entendimento da lógica de nossa linguagem”. Ao longo do livro (e principalmente das muitas interpretações a que foi submetido) torna-se mais e mais complexa a tarefa de extrair um sentido único, uma leitura coesa ou consensual das proposições. De qualquer forma, o que importa aqui é a possibilidade de ler em Wittgenstein a oposição à insistência em usar uma linguagem para tratar de algo que ela não pode tratar, ou que ela não foi concebida para tratar – a começar por tratar dela mesma.

Assim, o Paradoxo de Russell só se torna um problema pelo “mau uso” que Russell faz da linguagem que estuda; ao virá-la sobre ela mesma, ele cria o seu próprio problema, e mais, limitado por essa linguagem (sua formulação), ele não tem alternativa senão calar-se (o que é o mesmo que admitir que seu problema é um paradoxo). E mais, o problema se resolve com a compreensão de que basta enunciá-lo e, por meio dessa enunciação, perceber que não é um problema (ainda que se torne um).

 

PARTE 3

É notável na bibliografia recente da arte contemporânea o crescente interesse pela discussão sobre a situação da crítica de arte.[13] Ver a introdução e referências em Michael Schreyach, “The Recovery of Criticism”, em James Elkins e Michael Newman (eds.), The State of Art Criticism (Nova York: Routledge, 2008). No extenso necrológio dito pós-moderno, parece que se prepara o terreno para a soma de um “fim da crítica” aos já declarados (e tão refutados) “fim da história”, “fim da arte”, “fim das utopias” e tantos outros “fins”.

Nas tentativas de gerar alguma reação a esse prospecto sombrio (e mórbido), a operação usual é colocar a própria crítica sub judice, e assim tentar encontrar nela mesma e por ela mesma os motivos de seu fracasso aparente.

No entanto, essa autorreflexividade da crítica acaba por gerar critérios que não encontram aplicação. São perfeitamente válidos, muitas vezes claros e bem enunciados, mas ninguém sabe exatamente “o que fazer com eles”.[14] Conforme colocado em Mark Bauerlein, “A Commentary on the First Roundtable”, em Elkins, op. cit. Signos se amontoam sobre signos, e a distância crescente de um referencial causa uma imobilidade, que se tenta tratar com a produção de ainda mais signos, e assim sucessivamente.

Nessas tentativas, muitas vezes se supõe implicitamente que as relações existentes (ou que talvez tenham existido) entre crítica de arte e a arte propriamente dita foram superadas. Assim, a complexidade da interdependência característica e determinante – se não necessária – dessa relação é descartada. As partes se separam e são separadas como se autonomamente pudessem garantir o todo (ou, pelo menos, suas respectivas inteligibilidades e razões de ser).

De qualquer modo, talvez pelo ensimesmamento da crítica, detecta-se que a perda da capacidade de propor critérios e a impossibilidade de permitir a criação de julgamentos levaram à proeminência de pelo menos três modos despolitizantes de interação não só da crítica com a arte, mas também dos sujeitos entre si e com o mundo.

O primeiro modo pode ser classificado genericamente como ignorar. Tendo em vista a potência do pensamento publicitário, já não parece existir escapatória da máxima “falem mal, mas falem de mim”, que pode servir como emblema do ignorar. É a partir desse mote que é possível determinar por que o ignorar – entendido como a reação mais criticamente negativa (ou ‘eficaz’) que se pode assumir, ou seja, que implica que criticar resume-se a simplesmente não mencionar, não falar nada a respeito, fingir que não existe, não emitir absolutamente nenhuma opinião (pública), relegar ao silêncio. Pode ainda ser associado com a generalizada (e um pouco inexplicável quando analisada friamente, a menos que se invoque a questionável lógica da produtividade) “falta de tempo” a que se costuma recorrer como justificativa para ignorar. Nessa mesma chave, um modo mais agressivo de ignorar é o que se acopla com a “falta de tempo”, e rotula como “chato” ou “enfadonho” aquilo que só pode, nesse entendimento, ser uma “perda de tempo”. Ignorar também é uma maneira de não encarar, não enfrentar, não se colocar diante. Por isso, ignorar ocorre de modo ainda mais potente, ainda que talvez não à primeira vista, quando há total falta de posicionamento, a completa indefinição ou impossibilidade de acessar uma postura. Em geral motivada pela procura por evitar deparar-se com algo (problemático), escolhe-se impossibilitar esse confronto: “depois falamos”, “amanhã respondo”, “agora estou ocupado”, e assim por diante. Por vezes, tudo ocorre como se não houvesse problema, mas na medida em que decisões são tomadas, nota-se implicitamente que se tratava de uma estratégia deliberada para “evitar desgastes” (e, claro, a “perda de tempo”).

O segundo modo também é bastante agressivo, mas já no sentido verdadeiramente bélico, pois nele toma-se como partido para a ação a hostilização propriamente. Isso é dizer que o confronto não é evitado como tal, mas sim encaminhado para uma luta, um combate, um choque, uma briga; designaremos esse modo conflito. É curioso notar que esse procedimento mostra similaridades com o primeiro, já que costuma ocorrer de forma que o assunto original se dissolve à medida que crescem as hostilidades envolvidas, o que não se pode separar de uma estratégia implícita, ou seja, a dissolução como suposta forma de superar o confronto inicial. Esse modo se manifesta, por exemplo, sob a denominação de “polêmica”, que tanto tem conferido à mídia e à crítica cultural jornalística sua visibilidade (e, claro, seu tão desejado rendimento), levando a que seja ativamente desejada por alguns escritores (o objetivo torna.se, de antemão, a produção da “polêmica”, por mais artificial que possa ser). Sob essa ótica, “a polêmica” é então uma forma de transformar uma determinada interação, que poderia ocorrer no plano do confronto de ideias, em uma briga pública onde argumentos se embaralham, novamente perdem sua origem e, não raro, voltam-se para aspectos privados dos envolvidos. Outra vez, é notável a conexão com o modo anterior, mas aqui na medida em que “a polêmica” pode ser desejável aos envolvidos ao conferir-lhes visibilidade (daí a impressão de “maior eficácia” do modo ignorar perante o conflito).

O terceiro modo, se é que a essa altura ainda possamos assinalar uma distinção tão clara entre eles, é o mais sutil e também maquiavélico dos três e ocorre simplesmente por meio da incorporação irrestrita, acrítica.

Na maneira como se entende hoje, trata-se de “tolerar” qualquer coisa, é o vale-tudo. Não só se permite tudo, mas cobra-se que se permita a igual validade de tudo (pelo menos explicitamente).[15] Algumas conexões entre tolerância, “vale-tudo” e incorporação acrítica e apolítica são exploradas por Slavoj Zizek na palestra “Fear Thy Neighbour as Thyself: Antinomies of Tolerant Reason”, proferida no The Institute for Human Sciences at Boston University em 26 de novembro de 2007, cujo registro em vídeo está disponível em http://www.bu.edu/buniverse/buniverse1/?id=141 (em inglês) e também em http://www.youtube.com/watch?v=K5WNcRoCXCM (em inglês). É uma atitude que pode ser facilmente associada com a classificação de algo como “interessante” e nada mais, sendo esse o adjetivo característico da (suposta) neutralidade crítica. Mais uma vez, há conexões com os dois primeiros modos: é impossível incorporar tudo sem ignorar algo, mesmo que num ato involuntário de coerência; só é possível aceitar quaisquer coisas se o sentido essencial de cada uma delas for dissolvido e, por vezes, a atenção se deslocar para um desentendimento pessoal, um conflito, uma briga (afinal, como vimos, “a polêmica” confere visibilidade e assim também incorpora).É importante notar naquele que incorpora a sua própria recusa a uma posição (que certamente dificultaria a incorporação generalizada), mas que nem sempre isso é sinal de que ela

não exista, mas sim que ela não se explicita ou não pode se explicitar. O incorporador é amorfo, indefinível, sem identidade ou sem projeto; por isso é capaz de aceitar para si qualquer definição, incorporar qualquer forma, qualquer identidade ou projeto, sem correr o risco de criar antagonismos. Essa incorporação generalizada pode ser ligada a compreensões paradoxais de algumas categorias de atividades socioeconômicas contemporâneas. Um exemplo seria a condição de individualidade massificada que experienciamos ao desempenhar simultaneamente os papeis de consumidores e produtores (quando consumir é uma forma de produzir e vice-versa); uma experiência levada às consequências mais drásticas pelas redes sociais na internet, onde cada um dos usuários se percebe e é percebido como único, mas ao mesmo tempo todos atuam como uma grande massa indistinta sob a mesma estrutura supostamente invisível; todos mostrados diferentes entre si, mas das mesmas formas, todos “igualmente diferentes”. Outro exemplo é a noção trivial de liberdade, que se refere muito mais à possibilidade objetiva e dada de “se fazer qualquer coisa” (ou melhor, “ter qualquer coisa”), em vez da manutenção da tentativa de garantir que se dê de um modo inteligível o exercício daquilo que se concebe de modo subjetivo que se quer exercer. Assim, é como se as entidades sociais fossem descategorizadas, igualadas para que não exista nem mesmo a possibilidade semântica de hostilizá-lo ou (pior!) embate de ideias divergentes – daí o incômodo causado pela tirania do “politicamente correto”, mais uma manifestação de tentativas de incorporar, que opera nas próprias bases da comunicação.

Agora, não cabe aqui buscar uma genealogia desses três modos de interação. Ainda assim, mais do que (e por meio de) uma tipologia deles, coloca-se uma reflexão sobre o papel da autocrítica na determinação da crítica de arte como tal. Quais reduções, hierarquizações e contradições estão implicadas nos procedimentos autorreferentes característicos dessas autoavaliações? De que modo esses processos de feedback realmente retroalimentam a crítica de arte, inclusive para a constituição dela? Ou ainda: como operam os enunciados autocríticos no (re)desenho das relações – uns com os outros e em si mesmos – de campos como crítica, arte, inteligibilidade, subjetividade e assim por diante?

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Lisette Lagnado

Originalmente publicado no catálogo Marepe. São Paulo, Galeria Luisa Strina, 2002


São Paulo, 17 de março de 2002

Marepe, querido,

Esta carta, meu amigo, será um inventário de dúvidas. Entre tantas tentativas de escrever o texto que você me pediu para seu primeiro catálogo individual, encontrei palavras inadequadas. Não conheço a paisagem nem os costumes dos habitantes do recôncavo baiano; posso assim mesmo escrever sobre o que você faz sem cair na armadilha do exotismo? A história de cada um seria extensa demais para caber aqui, mas preciso explicar a diferença que nos une. Trabalhos como o seu me obrigam a novas expedições. Nasci em Leopoldville, antes de virar Kinshasa, dentro de uma família de judeus árabes. Comer mandioca não me faz pertencer à irmandade que se constituiu na região de Nazaré. Você nasceu Marcos Reis Peixoto. A intolerância foi minha língua natal; em casa, ouvi um árabe de Alepo e o lingala do boy que prestava serviços domésticos. Estudei no Cours Descartes e fui alimentada com os ideais de Rousseau. Você me escreve que quando os portugueses trouxeram esta língua, mataram outras. Desde dezembro de 1974, me comunico por meio de algum português, hoje minha língua profissional. Além dos milênios de diáspora, me foi preciso compreender o significado daqueles 500 anos, somados aos quarenta de Colônia Juliano Moreira, ultrapassar a resistência a sorver um tacacá ou acompanhar as missões dos jesuítas, até conquistar a baba antropofágica e as bases fundamentais do Parangolé, nomes próprios que se converteram nas experiências mais generosas que vivi. Ainda assim, permaneço deslocada das missas do Padre Mateus Vieira de Azevêdo. Isto foi em 1758, mas isto é hoje também. Você me fala da formação de um núcleo urbano, da organização de um povoado, com capela, guarda nacional e escolas, antes mesmo de Santo Antonio de Jesus virar cidade em 30 de junho de 1891. O que é uma cidade para você?

Só posso ser uma companhia, como outros hipócritas leitores, nos crimes que antecederam a independência. Quais são de fato nossas condições para sair do estado de menoridade? Mais do que uma tarefa, esta pergunta é vivenciada tal qual uma obrigação. Há duas vias possíveis – e penso que se dão na simultaneidade –, espirituais e institucionais, éticas e políticas. Para entender-te, precisei confundir conceito com afeto, uso público e uso privado da razão; passar da extração do manganês e da lenha à luz elétrica, da cultura de fumo, café e laranja à plantação das palmeiras imperiais, e destas à linha de trem. O transporte de um recorte extraído de um muro, pesando quase três toneladas e meia, da tua cidade para a Bienal de São Paulo, impõe, de modo literal, a medida da valência do desenvolvimento da tua região – de como uma loja de material de construção pode mudar a paisagem ou, extrapolando, de como sertanejos migram de uma condição ingrata para outra. Estes seriam os argumentos do ponto de vista ideológico. Já formalmente, parece-me uma atitude meta-pop, veicular a propaganda de uma firma poderosa, a Comercial São Luis, fazendo o comércio do comércio. São de uma beleza, essas letras garrafais azuis sobre fundo amarelo, mas o que significa levar o conteúdo do logotipo “tudo no mesmo lugar pelo menor preço” para o sistema da mega-mostra de arte? Seria uma dupla singeleza acreditar em lugar fixo e em preço menor! Estamos em outro território lingüístico quando se fala em apropriação e deslocamento, é a rotação dos signos duchampianos, tudo em outro lugar pelo maior preço. Ora, esse tipo de interpretação não me convence a seu respeito. Há, de sua parte, uma sobra de escrúpulo pelas convenções sociais, que se traduz no cuidado para não modificar o destino dos habitantes da cidade: após a comoção coletiva provocada pela retirada do anúncio publicitário, outro foi providenciado no lugar como se fora uma exigência do sagrado. Existe uma moral nesse zelo ou é despreendido de finalidade? Respeitar as especificidades do meio ambiental. Não retirar a não ser substituindo. Mas, à apropriação corresponde uma violência, a produção de um rombo. Receio de que sua castidade, em meio ao cinismo do pensamento dominante, não vingue. O lema escolhido, a atitude geral do trabalho, revelam um vínculo entre consciência e empreendimento sólido. Homenagear o “progresso” de uma cidade demonstra apego ao território. Suas fronteiras vão desde a memória da cidade até a construção de famílias, a Comercial São Luis tendo gerado empregos por várias gerações, única fonte de renda de seu pai – cuja ausência precisa ser lembrada. A declaração de permanência do lugar é um compromisso básico para quem conhece a instabilidade da ordem política, social ou econômica. Por isso, sua intervenção pertence a um projeto construtivista, não quer abandonar a tradição. Porém, a outra face da moeda há de ser considerada: qual o preço de uma promessa? Promessa tem prazo de validade. Tudo no mesmo lugar não retardaria o choque do novo?

Semana retrasada, Laura[1] Nota do autor: Laura Lima, artista. me levou à feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, e foi mais uma chegada na terra. Continuo chegando na “ciência do concreto” para diminuir minha distância com tuas bancas de camelô, expostas na mostra do Antarctica Artes com a Folha, em 1996.[2] Data em que a autora conheceu o artista Marepe. As bases da discussão acerca do transporte de valores já estavam lançadas, naquela época por intermédio do comércio informal, na imagem dos ambulantes de rua. De que modo as barracas dos ambulantes passam a funcionar dentro de um pavilhão de arte, do circuito institucional? Seu procedimento não ficou devidamente explicitado, gerando uma série de ambigüidades. Mais uma vez, “apropriação” seria um conceito inadequado; proponho “edificar”. Você fotografa a cena, seus elementos constitutivos, observa assiduamente os detalhes, reinventa o método do outro refazendo aquilo que foi feito sob a lei da necessidade. Atua como um pesquisador que vasculha céus a fim de entender o sentido das coisas, onde comprar determinada madeira, onde encontrar os rudimentos que faltam. Enfim, trata-se de andar na pegada do homem da rua, rastrear o caminho percorrido por um trabalhador até erguer sua própria barraca, viver um conjunto de gestos, a casa, as ações e o corpo do outro. Você então compõe “à maneira de”, assim como Picasso olhou Ingres, cada qual com seu museu. Caixotes e banquinhos de madeira substituem o tradicional pedestal para a escultura; alegorizada, a “arte” é uma mercadoria semelhante a doces, venenos ou jóias. Mas, aquele conjunto de objetos, na sua diversidade utilitária, uma vez des-locado, esvazia-se de sentido; vira bricabraque na casa do colecionador, ou não? Você fala repetidamente em objettrouvé, no pobre e no popular. Esse Duchamp que representa teu Norte é, paradoxalmente, uma fonte de segunda classe. A ideia de ready-made é totalmente desinvestida de historicidade, lembre-se, é a busca do neutro, o tom podendo variar entre a boutade e a ironia fina. O Air de Paris encapsula uma matéria invisível, ao passo que o ar de Santo Antonio é saturado de lendas. A curiosidade que anima seu trabalho me trouxe o relato das crianças que podem identificar a espécie e o sexo de uma árvore, observando a aparência, a textura e o cheiro da casca; que sabem enumerar quinze espécies de morcego pelos costumes alimentares; que possuem, à disposição, outros quinze termos distintos para designar as diferentes partes de um pé de milho. Estou voltando às pistas do pensamento selvagem de Lévi-Strauss por causa dessa relação mais concreta e vivencial com as coisas do mundo: “O pensamento mítico não é somente prisioneiro de acontecimentos e de experiências, que ordena e reordena, incansavelmente, para lhes descobrir um sentido; é também libertador, pelo protesto feito contra a falta de sentido, com que a ciência estava, a princípio, resignada a transigir.”

O conceito, Marepe, deriva de uma necessidade, não é delírio abstrato de intelectual. São as “unidades de sobrevivência” tão bem definidas com as Trouxas – um tipo de Merzbau, tropical e transportável. É afeto em estado bruto. Há, em todo seu trabalho, um “prestar atenção” aos encontros, salvaguarda de uma memória, sobretudo do “feito a mão” (servir cafézinho ou mingau de milho). Eis a riqueza residual das técnicas em extinção, testemunhando o elo que se esgarça entre indivíduo e sociedade, saberes e fazeres em extinção, engraxar sapatos, amolar tesouras, alicates etc. Certamente no seu caso, a bricolagem teria conotação pejorativa, no entanto você põe sempre algo de si mesmo em seu projeto, não põe?

Seu olhar engloba origens e evolução dos materiais físicos, formas menores de subsistência, truques da economia alternativa. A sociedade de troca, um punhado de cigarros por um passe de transporte, tem uma lógica tributária com condição de câmbio ao par. O deslocamento é o verbo imperativo para várias de suas estratégias, nos trabalhos indoors e nos trabalhos de rua. O retirante, como o ambulante, são figuras que andam. Eles se locomovem, você os desloca; eles não têm lugar fixo, você deambula. Banidos da educação e da riqueza, são destinados a buscar uma promessa que desconhecem todo dia, transportam seus valores numa situação caracterizada por instalações provisórias. Segundo você, as miudezas desse comércio ilegal equivalem às obras produzidas pelos “grandes mestres”. É uma homenagem contínua à capacidade de improviso, à imaginação criativa dos comerciantes das ruas de Salvador. Minha pergunta é: como ser colportor dessa sensibilidade sem cair no exotismo do turismo cultural que vem fascinando uma certa má consciência? Gostaria que essa preocupação servisse para separar o joio num saco dentro do qual são aceitas ações oportunistas que estetizam o regionalismo. “Da adversidade vivemos!” significa também “luxo para todos”. Artistas fazendo exercícios de deambulação urbana estão na moda. Nostalgia do Situacionismo? Se Oiticica não tivesse andado tanto pelas ruas do Rio de Janeiro, não teríamos toda a conceituação que derivou de “Delirium ambulatorium”, nem o que veio antes de Tropicália. Trata-se de dar continuidade à crise da representação. Evidentemente, os lugares tradicionais de exposição são mais ingratos para acolher esse tipo de instalação. Dois anos atrás, na mostra “Os 90” (Paço Imperial, Rio de Janeiro), seu projeto Os Embutidos poetizava a moradia improvisada. Era uma construção de madeirite magenta por fora, com uma organização interna que misturava os ambientes da vida cotidiana (quarto, cozinha, sala, banheiro). O usuário era instruído a interferir na estrutura dessa arquitetura do precário. Minha pergunta é: trazer para dentro da instituição uma circunstância social-ético-política do casebre do mendigo provoca alguma diferença?

Provoca, você me disse ao telefone. Ready-made, para você, é Nécessaire. No pacote que recebi pelo Correio, leio sua preocupação pelas “contradições sociais, situações subalternas e sub-humanas das minorias, o subdesenvolvimento”. Você quer se referir ao necessário, palavra que reúne o imprescindível e a futilidade. Palmeira doce sintetiza essas questões. Poderia ser chamado de “acontecimento poético-urbano”, expressão de Oiticica. Realizado em Santo Antonio de Jesus, no dia 27 de setembro de 2001, envolveu a população local. O “Tonho do algodão” ganha a vida com o negócio da guloseima colorida. Juntos, fizeram cerca de quatro mil sacos. Quando foram pendurados ao longo do tronco de uma dessas palmeiras imperiais, evocaram, para mim, releituras da natureza-morta por Gabriel Orozco. Em poucos minutos, a obra foi assaltada e devorada, duas ações muito eloquentes do cotidiano cultural, urbano e suburbano, brasileiro. Nas fotografias, você aparece como um gigante comendo as nuvens do céu, tufos brancos no alto do braço estendido.

Preciso terminar essa carta, que ficou sendo o que eu tenho a te oferecer, a tempo de entrar na gráfica. Faltou dizer da importância da instalação dos filtros, na exposição do Instituto Itaú Cultural em 1999. Era um projeto sobre a ressignificação do cotidiano, e você me veio com a seca e a água potável, a ação da umidade do tempo sobre o barro, seus compartimentos bojudos expostos a diversas colorações, as colunas e as bases do Brancusi, o filtrado filtrado. Fico devendo um comentário sobre o fogão e o casamento; sobre a Cabeça acústica, também apelidada “Bibifonfa”, feita de bacias de alumínio, dobradiças e borracha. Continuo devendo, muito e ainda, por isso escrevo.

É Natal e Bienal em pleno março. Para além do ar fora de lugar, a data também está fora de hora – realidade concreta, tempo abstrato. Por aqui neva. Aquele cajueiro macho, abatido por causa da construção de uma nova estrada, está todo branco, imitando o que não temos. Mas você me garante que são bem reais os horizontes agrestes de galho seco e algodão que margeiam o sertão até o recôncavo.

Com meus votos de sucesso, sobretudo com meus agradecimentos por me permitir desaguar meu rio Congo no rio Sururu.

 

Lisette

P.S.: Desde que vi o muro de Santo Antonio, parece que meu olho agora só enxerga a cidade através dos matizes azuis e amarelos, o Banco do Brasil, os Correios, as lojas Pernambucanas, mas o melhor foi encontrá-los na transportadora e empresa de mudanças, a Lusitana.

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Modos de aproximação

 

“…o mais importante é inventar o Brasil que nós queremos…”

Darcy Ribeiro

O ponto de partida do ensaio Como a arte global transforma a arte étnica (2009), de Laymert Garcia dos Santos, é a interseção entre o conceito de “arte global” (das relações entre arte contemporânea e arte étnica) de Hans Belting e Andrea Buddensieg, e sua institucionalização – particularmente no que tange aos museus e exposições na Europa nos últimos anos. A exposição Die Tropen (Os Trópicos. Visões do Meio do Globo), com curadoria de Alfons Hug, Peter Junge e Viola Konig, realizada no Martin-Gropius Bau em Berlim no segundo semestre de 2008, é problematizada através de uma lente tropical, um “olhar brasileiro” impactado pelo estopim da crise financeira e as consequentes reconfigurações na geopolítica mundial. Garcia dos Santos apresentou este ensaio na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, em novembro de 2009, no âmbito do Seminário Internacional Depois do Muro: a geopolítica das artes, cuja primeira versão fora publicada na Alemanha no livro The Global Art World – Audiences, Markets and Museums, editado por Hans Belting e Andrea Buddensieg (ZKM/Hatje Cantz, 2009). Ambas as versões foram disponibilizadas no website do fórum internacional geopolítica da cultura e da tecnologia, com curadoria dele e de Gilberto Gil, realizado em novembro de 2010 na Cinemateca Brasileira em São Paulo com apoio do Ministério da Cultura. As instâncias de publicização deste ensaio, junto a seus principais argumentos, nos apresentam indícios importantes dos atuais diagramas e forças em jogo, i.e., do momento de transformação intensa e acelerada que estamos passando no país e no mundo, e suas implicações para a “crítica de arte” no Brasil, a partir da internacionalização das produções artísticas feitas aqui, assim como de sua capacidade de apontar nossas contradições e desafios internos.

Para o autor, a exposição Die Tropen se inscreve num movimento que começou com a exposição Magiciens de la Terre no Centre George Pompidou em 1986, passou pela abertura do Musée des Arts Premiers,Quai Brainly em Paris em 2006, no qual perdura pressupostos conceituais que reificam as convicções convencionais sobre o “ocidente” e seu “outro”. O principal problema conceitual em Die Tropen estaria nos modos de aproximação entre arte étnica e arte contemporânea: ambas são consideradas a partir de um denominador comum inscrito no paradigma da linguagem da representação (um “visualistic approach”) e do caráter atemporal da arte, e igualmente consideradas metáforas de uma natureza que lhes seria comum. Esses pressupostos, ao invés de serem tomados como dados, deveriam ser a própria problemática a ser tratada, caso efetivamente se quisesse confrontar as obras de modo produtivo e discutir as diferentes perspectivas sobre os Trópicos. Como assinala o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, somente o “homem ocidental” consideraria que temos uma natureza comum e múltiplas culturas; na perspectiva ameríndia, existem múltiplas naturezas e uma única cultura. A especificidade do olhar para as artes indígenas implica em não tomar como referência nenhuma definição de arte previamente dada, seja ela estética, interpretativa ou institucional. Como ressalta a antropóloga Els Lagrou, “o lugar que os objetos poderiam ocupar na escala valorativa instaurada pelo mercado das artes e pelos museus não, necessariamente, pertence ao universo das intenções e valores nativos que podem visar a objetivos muito diferentes dos ligados à conquista de visibilidade ou afirmação de identidade e ‘autenticidade’”.[1] LAGROU, Els. Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação, Belo Horizonte: C/Arte, 2009.

O feixe de ambiguidades se desdobra em “como ver, por exemplo, a aproximação da tela Sampa, de Beatriz Milhazes, de um cocar do povo indígena Rigbatsa, do Brasil, ou de um Bark Painting, de Papua-Nova Guiné? (…) É “como se [a arte étnica] servisse de pano de fundo, de ambientação e décor para o display das obras dos artistas contemporâneos”. A artista brasileiradesperta interesse por ser “glocal”, isto é, alguém que ancora seu trabalho na linguagem internacional do modernismo e ao mesmo tempo finca suas raízes em seu tempo e sua cultura”. Laymert situa, de maneira instigante, que na ponta oposta àquela ocupada por Milhazes – entre o contemporâneo e o étnico nesse espectro global – estariam os artistas aborígenes.

O que nos interessa neste ensaio é atentar para a busca de novos modos de aproximação, para a urgência de se inventar e articular novas matrizes e entendimentos para a arte no/do Brasil: o que deveria ser levado em conta é que a arte moderna e contemporânea brasileira nunca tentou levar a sério sua não relação com a arte étnica que era e ainda é produzida, porque ela nunca sequer se colocou a questão se os povos indígenas e tradicionais costumavam produzir arte e ainda continuam a fazê-lo”. O autor aposta que “no âmbito do que Belting entende por arte global, o Brasil emerge como um lugar privilegiado para se acompanhar as transformações do que se entende por arte contemporânea e por arte étnica, e a fecundação, ou não, de uma pela outra”.

Nas últimas três décadas, a pintura aborígene contemporânea na Austrália passou a ter boa aceitação no mercado ocidental e nas instituições museológicas, assim como manteve o diálogo com suas tradições ancestrais, acumulando várias camadas de significado. Esta expressão cultural congrega diversos agenciamentos e interesses, às vezes conflitantes, entre os diversos artistas, centros de artes, galeristas, museus, curadores e colecionadores. A antropóloga Ilana Seltzer Goldstein aponta o paradoxo de que o mesmo país cuja política colonial foi extremamente racista e violenta dê tanto espaço às culturas aborígenes nos museus, crie políticas de fomento às artes indígenas”. (E que este apoio público) “Talvez seja uma tentativa de resposta e compensação por este passado obscuro não tão distante. Ao mesmo tempo, encaixa-se perfeitamente no projeto nacional de construção de uma identidade própria para a Austrália, que a diferencie da Inglaterra”.[2] GOLDSTEIN, Ilana Seltzer, Pintura aborígene contemporânea: do sagrado ao mercado, apresentado na 27ª Reunião Brasileira de Antropologia, agosto 2010, Belém, Pará. E questiona por que no Brasil praticamente não existe reconhecimento das artes indígenas, e se seria possível e desejável uma política semelhante se desenvolver entre nós. Noutro sentido, nos países andinos é muito presente o debate sobre estética decolonial[3] Vide Walter Mignolo, Desobediencia Epistémica, Buenos Aires, Ediciones del Signo. 2010; ed. Walter Mignolo & Árturo Escobar Globalization and the Decolonial Option, Routledge, London & New York 2010; dentre outros. – como a proposta por Anibal Quijano, Walter Mignolo, dentre outros – a partir das culturas tradicionais e ancestrais, como condição de crítica e contraposição às modernidades coloniais desde fins do século 15 até a globalização atual.

No Brasil, Garcia dos Santos nos lembra que “arte e cultura brasileiras já haviam tentado elaborar, dentro da matriz moderna ocidental, a sua diferença específica como tropicalidade, através da Antropofagia de Oswald de Andrade, nos anos 20, do tropicalismo, nos anos 60, e do trabalho revolucionário e complexo de Hélio Oiticica, que soube romper com as persistentes oposições arte erudita/arte popular; arte europeia/arte não europeia, arte internacional/ambiente local, etc.” Se a crítica de arte no Brasil teve uma função histórica importante nas construções de “identidades brasileiras” ao longo do século 20, embebida nessa matriz moderna ocidental como modernidade ex-cêntrica[4] Termo de Beatriz Sarlo. In: Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, Buenos Aires: Ariel, 1988, ainda reproduzimos um colonialismo interno (que reproduz o pressuposto do ‘ocidental’ e seu ‘outro’) que assola o país desde o modernismo, com uma suposta centralidade entre Rio de Janeiro e São Paulo.

O discurso da “arte global” e sua institucionalização em museus e mercado são intrínsecos à matriz ocidental, ainda predominante mundialmente, mas desde 2008, com a crise financeira e novas configurações geopolíticas, ocorre uma crise desses paradigmas. Esta crise abre brechas para novas articulações e entendimentos, particularmente para o Brasil? Temos uma grande reunião de repertórios, vivências, observações, ao mesmo tempo em que existe a transformação em algo novo… Essas novas forças externas nos ajudam a rever ou reificam os paradoxos, confusões e deslizes semânticos no Brasil? Nosso modelo de desenvolvimentismo e de progresso a qualquer custo tem solapado as comunidades tradicionais e ancestrais e nossa natureza. É possível um discurso da arte brasileira capaz de formular os problemas e de explicitar as forças atuais em jogo? Que discursos estão presentes? Quais mecanismos estão operando? Quais aparatos críticos nós utilizamos? Que diagramas de alteridade são capazes de enfrentar o mercado? Como articular, aproximar outras matrizes? Como inverter as relações cognitivas?

Em maio de 2011, um jornal paulistano apresentou a primeira e única banda de rap indígena no Brasil, Brô MC’s [5] Ver http://periferiaemmovimento.wordpress.com/2011/05/25/no-estadao-os-pioneiros-do-rap-indigena/, do Mato Grosso do Sul. A banda nos ensina, com sua inversão cognitiva, que “esta possibilidade de coexistência e sobreposição de diferentes mundos que não se excluem mutuamente é a lição ainda a ser aprendida com a arte dos ameríndios”[6]   LAGROU, Els. Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação, Belo Horizonte: C/Arte, 2009., a arte como uma arte de construir mundos.

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Olhar a poeira, por exemplo

Originamente publicado no catálogo RivaneNeuenschwander. Recife: Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, 2003.


Olhar a poeira, por exemplo. Não como um todo indiviso, nuvem opaca e indistinta. Mas olhar detidamente cada uma de suas pequenas partículas suspensas no ar (e também o espaço exíguo que separa umas das outras), identificando o que não é notável ao senso apressado e comum. Mais ainda: não somente decompor em partes o que se apreende tantas vezes como inteiro, mas aceder ao fato de que é da percepção do ordinário e do quase impalpável que se engendra, em um processo não consciente de cognição, a percepção do que é relevante e visível.[1] Esse percurso do conhecimento é sugerido por Gilles Deleuze, para quem as pequenas percepções são menos partes da apreensão de um fato do que seus requisitosou elementos genéticos. DELEUZE, Gilles. A dobra. Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991. É desse impulso de conhecer o mundo escapando de um juízo totalizador e amnésico de suas porções constitutivas que, ao longo de uma década de produção intensa, Rivane Neuenschwander compôs uma obra impermeável, ela mesma, a definições abrangentes.

Valendo-se de modos de expressão variados (instalações, filmes, objetos), a artista torna manifesto o que, na vida corrente, é só rumor, pedaço ou entrevisto. Inexiste nesse intento, contudo, elogio algum ao que é frágil ou contingente, posto que a sua obra não se ocupa de criar refúgio para o desconforto que se possa sentir no mundo. Há, ao contrário, o desejo de dar a potência devida ao murmúrio incessante das pequenas coisas que o formam e habitam, sejam elas uma palavra, um gesto, uma imagem ou um momento. A sutileza de seus trabalhos é da ordem, portanto, daquela encontrada na prosa de Clarice Lispector ou no cinema de Eric Rohmer: afirma que o importante pressupõe o prosaico e dele depende para existir.

O importante pressupõe o prosaico e dele depende para existir. A experiência moderna do tempo, entretanto, é de síntese, não de particularização. Não mais se marca a duração dos acontecimentos – sejam eles individuais, sociais ou físicos – em função do que lhes é específico, tal como são o sono, as colheitas ou as marés. Através de gradual aprendizado e da construção de símbolos reguladores numéricos (calendários, relógios), a consciência social do tempo foi-se desgarrando do que era singular para se transformar em meio sintético de orientação no fluxo de eventos em que se tece a vida.[2] ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. Em trabalhos diversos, Rivane Neuenschwander reflete sobre esse esquecimento compartilhado do que é único, demonstrando a natureza idealizada da marcação habitual do tempo e afirmando a peculiaridade de sua origem.

Em Deadline calendar (2002), a artista recorta, das embalagens de vários alimentos, as pequenas porções onde estão impressas, geralmente em tipos apagados ou miúdos, as datas que assinalam a validade dos produtos – momentos em que estes perdem o estatuto de bens apropriados ao consumo e se convertem em lixo – e as agrupa de modo a construir um calendário para doze meses seguidos. Por meio desse procedimento simples, relaciona cada um dos 365 dias do ano à lembrança do fim da vida útil de um alimento distinto, contrapondo-se, assim, à noção do tempo como um regulador social apartado das coisas mundanas. Desvela a natureza convencional da contagem do tempo e exibe os índices da transitoriedade orgânica como prova de que não são os dias, afinal, que “passam”; são, ao contrário, inúmeros e rotineiros ciclos de vida e de morte (curtos ou longos) que lhes dão conteúdo e significado temporal.

Quase como um memorial para o decaimento inevitável e gradativo de toda matéria do mundo – processo contra o qual se pode medir a extensão cronológica dos demais incidentes da vida –, RivaneNeuenschwander filma, em outro trabalho, o vaguear de uma bolha que, silenciosa e frágil, flutua ritmada por entre paisagens vazias e cinzas, tal como um metrônomo orgânico feito para uma música inexistente. Nesse Inventário das pequenas mortes (sopro) (2000), com coautoria de Cao Guimarães, podem bem estar arrolados os fins breves dos seres e das coisas que, embora pouco visíveis e sem fazer quase barulho, povoam o cotidiano usual e vários dos trabalhos da artista: trilhas de formigas, restos de comida, sabão mergulhado em água, talco espalhado no piso.

A associação do conceito de tempo a acontecimentos comuns – contraposta ao seu entendimento corrente como medida genérica da duração dos fatos – emerge igualmente da instalação Chove chuva (2002). Pendurados do teto por fios de aço, dezenas de baldes de alumínio com furos pequenos no fundo são enchidos com água, causando um gotejamento ritmado sobre outros tantos baldes, postos no chão exatamente sob os que se acham no alto. Transcorrido certo tempo, os baldes suspensos esvaziam-se e são novamente enchidos com a água que escoou ao longo desse intervalo, dando início a processo idêntico de esgotamento. Se o ato de encher os baldes com periodicidade repetida produz, para quem cabe realizar essa tarefa, sentimento preciso da duração de um evento, também a apreensão visual e auditiva do esvaziamento da água neles contida permite relacionar, subjetivamente, a frequência do gotejamento à duração de outros fenômenos. O que é ocorrência singular (pingos que caem em cadência certa) torna-se, assim, condição para entender-se o que é fato genérico (a ideia do tempo em que tal fato acontece). Do ordinário é que se faz o abstrato.[3] Esses e outros trabalhos de Rivane Neuenschwander que partilham o interesse pelo assinalamento específico da passagem do tempo (e não meramente por seu transcurso abstrato) se inserem em uma tradição profícua, diversa e longa da produção cultural contemporânea, a qual inclui, entre muitos outros exemplos possíveis, a peça Tacet 4’33 (1952), do compositor americano John Cage (1912-1992), em que o concertista, em vez de tocar as teclas do piano, suspende as mãos no ar durante o tempo assinalado no título da obra, deixando que a manifestação do público e todos os demais sons que cheguem à sala de concerto se transformem em música; a instalação Livro do tempo (1960-1961), da artista brasileira Lygia Pape (1927-2004), formada por 365 pequenos blocos diferentes de madeira cortada e pintada, índices dos dias de todo um ano; o trabalho I gotup (1968 em diante), do artista japonês OnKawara (1933), composto por cartões postais enviados por ele a amigos informando o lugar e a hora em que acorda a cada dia que passa; a instalação Kulturgeschichte 1880-1983 (1983), da artista alemã HanneDarboven (1941), resultado do agrupamento de milhares de textos e imagens que narram, a partir de referências à cultura, à política e à sua vida pessoal, o período de um século mencionado em seu título; e o filme Chungkingexpress (1996), do cineasta taiwanês Wong Kar-Wai (1958), em que, abandonado pela namorada, um de seus personagens conta o tempo que daí se segue comprando, diariamente, uma lata de abacaxi com data de validade idêntica àquela em que espera tê-la de volta. Assim como na obra de Rivane Neuenschwander, em cada um desses trabalhos o transcurso do tempo é associado a uma sucessão de atos, eventos ou fatos, os quais lhe dão um sentido e uma ordem determinados.

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Do ordinário é que se faz o abstrato. De laranjas, um alfabeto. No trabalho Palavras cruzadas (2001), Rivane Neuenschwander desidrata e descasca centenas de laranjas, deixando-lhes apenas pele suficiente para que nelas se leiam, em alto relevo, os caracteres com que se constroem palavras e frases. Postas aleatoriamente em caixas de papelão que formam pequeno labirinto sobre o piso, as frutas são um convite ao toque daqueles que o percorrem e ao consequente rearranjo das letras feito de acordo com vontades diversas. Menos, contudo, que esperar do visitante a escrita de um texto qualquer, o que a instalação sugere é a desnaturalização dos símbolos linguísticos, tornando sua origem menos turva e associando-os, de uma só vez, à visão, ao olfato, à memória do gosto e ao tato.

Intento semelhante da artista rege o trabalho Alfabeto comestível (2001), em que 26 tipos de especiarias – escolhidas de modo que a suas iniciais correspondessem a todas as letras do alfabeto (açafrão, blackpepper, colorífico, dill, espinafre, feijão árabe etc.) – são individualmente coladas sobre suportes rígidos, criando listras horizontais e paralelas, em uma alusão possível a soluções pictóricas formais. Afixadas na parede seguindo a ordem alfabética dos nomes dos alimentos, cada uma dessas placas possui cor diferente e desperta, no público, a lembrança de sabores e cheiros característicos, fazendo desse contato indireto com as letras – mediado por alimentos distintos – uma experiência que apela, simultaneamente, aos sentidos e ao intelecto. Em vez de conjunto neutro de símbolos que tudo descreve, o alfabeto deixa-se aqui atravessar por tonalidades variadas e por memórias gustativas e de olfato – umas vagas, outras claras – que atestam a experiência múltipla do corpo no mundo e, portanto, a permeabilidade entre mecanismos de cognição diversos. [4] À proximidade visual de Alfabeto comestível das pinturas de Agnes Martin (1912-2004) – a organização do plano por meio de linhas de cor paralelas e horizontais é a marca mais facilmente reconhecível de suas telas –, soma-se o fato de que, assim como o trabalho de Rivane Neuenschwander, as pinturas da artista canadense provocam formas distintas e transitivas de entendimento, ancorando-se em aspectos pictóricos formais e, simultaneamente, em associações subjetivas entre sentimentos e cores diversas.

Se, nesses dois trabalhos, Rivane Neuenschwander aproxima comida e fala, em outros ela articula o uso do vernáculo com maneiras de comunicar ancoradas em experiências de afeto. [5] Para uma discussão sobre a relação entre comida e linguagem na obra de Rivane Neuenschwander, ver SZYMCZYK, Adam. The sensorium of sense, the empire of the senses. In: Spell. Rivane Neuenschwander. [Catálogo. Frankfurt Am Main: Portikus, 2002; e BIRNBAUM, Daniel. Feast for the eyes. Artforum, mai. 2003.]

Em todos, porém, desmancha a ideia da língua como instituição gerada longe da vida comum. O vídeo Love lettering (2002), com coautoria de Sérgio Neuenschwander, exemplo conciso desses trabalhos, exibe imagens de pequenos peixes vermelhos que carregam, presos às caudas, pedaços de papel onde se leem, em meio ao vaivém azul e verde do aquário, palavras isoladas e alguns pequenos trechos de frases: mylove, sweet, angel, no, mydear, from, calls,news, eyes, talking,kissing, voice, hands, mouth, your, I, miss, Rio, London, come, today, next, you, here, night, wish, hotel, from:, to:, entre outros mais. A princípio desconexos, aos poucos os substantivos, pronomes, adjetivos, verbos e preposições que os peixes transportam começam a formar sintagmas na memória recente de quem assiste ao desenrolar das imagens, baralhando a ordem em que foram primeiro apresentados e desvelando fragmentos possíveis de uma carta amorosa. O sentido de agregação de elementos dispersos que o vídeo promove, de encontro entre pessoas que, embora distantes, buscam contato escrito porque se gostam, é reforçado ainda pelo próprio movimento dos peixes, os quais, mesmo que, por vezes, se cruzem ou se afastem uns dos demais, em outras nadam bem próximos. Também a trilha sonora do vídeo (de autoria do duo O Grivo) é feita de fragmentos de sons mecânicos e orgânicos que, gradualmente, fundem-se em algo uno, ecoando, na música que compõem, o surgimento de sentidos precisos a partir da confluência, mediada pela memória afetiva de cada espectador, de elementos linguísticos difusos.

Das letras do alfabeto às palavras inteiras, e dessas à frase completa. No trabalho Eu desejo o seu desejo (2003), RivaneNeuenschwander não trata mais dos símbolos irredutíveis da língua, tampouco dos vocábulos que, roçando uns nos demais, apenas sugerem locuções variadas. Tendo solicitado a quarenta pessoas (todas mantidas anônimas) que formulassem um desejo qualquer por escrito, ela amealhou uma coleção de sentenças diversas e inteiras, cada qual expressando uma vontade particular de confirmação ou mudança de algo. Eu desejo calma; I wish I could figure out whathastobedone; Eu desejo a felicidade das minhas filhas; Jedésire ne plusavoir de patrie;Sexo cinco vezes por semana;I wish I couldsayanunconditionalyes; Eu desejo o céu na terra são alguns deles. Por obedecerem às normas ortográficas e gramaticais das línguas em que estão redigidos, esses desejos traduzem a subjetividade de cada um em termos entendidos por todos os que conhecem tais padrões de emprego linguístico. Mas são também os conteúdos dos desejos que podem, sugere a artista, ser apropriados por outras crianças, mulheres ou homens, em uma sobreposição entre a socialização dos códigos de comunicação interpessoal e a partilha de desejos íntimos.

Essa apropriação se faz possível pela impressão dos desejos coletados sobre milhares de fitas coloridas – semelhantes às que carregam nomes de santos e que são amarradas ao pulso para exprimir devoção ou por esperança de alcançar benefícios – e por seu oferecimento a todos os que forem ao local onde se mostre o trabalho. Disposto sobre uma grande extensão de parede, o conjunto das fitas-desejos parece evocar a sala de ex-votos de uma igreja católica, embora sejam distintas as temporalidades em que os dois ambientes votivos se estruturam: ao invés de retribuir o alcance de uma graça, cada uma das fitas exprime apenas a vontade da realização de algo em futuro indefinido. Essa indeterminação temporal se desdobra ainda no espaço, posto que, ao escolher o desejo de outra pessoa (não só o seu enunciado formal, mas também o que simboliza) e retirar a fita correspondente da parede, o visitante da exposição transporta-o, atado ao pulso, a um contexto de vida diverso. Muitos deles, fazendo o mesmo, tecem uma teia quase invisível de trajetos a partir de um só ponto, dispersando os desejos coletados por um território amplo e de extensão incerta. Inversamente, os visitantes podem escrever os próprios desejos em pedaços de papel e inseri-los nos furos da parede dos quais as fitas são retiradas, trazendo aspirações e anseios de toda parte e de toda sorte para um único espaço. Por permitir que se deseje o desejo de alguém mais e por incorporar, em futuras montagens da instalação, os novos desejos assim deixados, Rivane Neuenschwander faz com que sejam os visitantes que completem o trabalho, concedendo ao outro, portanto, parte do controle sobre o seu significado. [6] A necessidade da participação do público para que esse e outros trabalhos se completem os torna próximos de alguns trabalhos do artista cubano Felix Gonzalez-Torres (1957-1996), que punha, em salas de exposição, montes de bombons embalados ou pilhas de cartazes com imagens e/ou textos impressos para que fossem levados para casa pelos visitantes. Também os avizinha, pela generosidade implícita, a trabalhos do artista tailandês RirkritTiravanija (1961), que, em uma ocasião, transformou a galeria em um misto de depósito e cozinha, onde preparava refeições e as oferecia ao público.

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Concedendo ao outro, portanto, parte do controle sobre o seu significado: é o que ocorre claramente em Palavras cruzadas (mover as laranjas), de modo não tangível em Alfabeto comestível (lembrar do cheiro e do gosto dos alimentos) e menos ainda evidente – mas igualmente essencial, todavia – em Love lettering (ativar as lembranças do passado afetivo). Cessão de controle que acontece, em verdade, desde trabalhos mais antigos e, embora de maneiras às vezes oblíquas, sempre com importância decisiva na criação de sentidos. É o caso de Paisagem suspensa (1997), formado por cabeças de alho esvaziadas de seu conteúdo sólido e recompostas em sua aparência original pela junção frágil das peles do bulbo, as quais, penduradas no teto por fios finos e quase tocando o piso, envolvem nada. A percepção da materialidade tênue do trabalho, porém, somente é revelada quando a presença de alguém caminhando próximo desloca o ar e move os fios que sustentam os alhos. Sem essa presença, não há como revelar de que (não) é feita a instalação, nem como ativar sua força poética, que é tornar visível o que é construído por uma operação de esvaziamento.

Também em trabalhos criados pela adição de matéria (e não apenas de sua retirada), RivaneNeuenschwander oferece meios para a presença ativa do público em sua obra. Em Andando em círculos (2000), trabalho sintético desse seu intento, ela carimba, no piso de salas expositivas, círculos de cola transparente. À medida que os visitantes andam no espaço e inadvertidamente pisam sobre as áreas demarcadas com a substância adesiva, deixam nelas grudada a inevitável sujeira que, trazida de vários cantos, carregam sob os sapatos. Como resultado, aos poucos os círculos traçados no chão se tornam visíveis ao olho humano, preenchidos pelos rastros involuntários da passagem, por ali, de pessoas diversas.

Já em O trabalho dos dias (1998), a artista funde, de modo mais explícito, as marcas de sua presença e da presença de outros no que faz. Em duas salas cúbicas e brancas construídas para a Bienal de São Paulo, forrou paredes e pisos com quadrados de papel adesivo que já retinham os restos, vestígios e sobras caídos no chão de sua casa: coisas prosaicas como farelo de pão, fios de cabelo, insetos mortos e os entulhos miúdos que gradualmente se assentam nas superfícies de cozinha, sala e quarto. Ao entrar nesses espaços marcados pelo que é privado, os muitos visitantes da mostra terminavam trazendo, para o seu interior, os indícios do espaço público onde estavam. Nessa adição de sujidades em camadas, a casa e a instituição sobrepunham-se de forma quase indistinta, pondo ao claro a porosidade que existe entre o que é comumente tomado como distante e separado. O que parece longe pode estar também perto. [7] No trabalho Piedra que cede (1992), o artista mexicano Gabriel Orozco (1962) rola, por vários lugares da cidade, uma bola feita com massa de modelar, deixando aderir, na sua matéria mole, as impurezas da rua, além de permitir a adequação de sua forma esférica aos obstáculos e reentrâncias que encontra. Já o artista belga radicado no México Francis Alÿs (1959) calçou sapatos com solas magnetizadas (Zapatos magnéticos, 1994)e caminhou pelas ruas recolhendo qualquer resíduo metálico que encontrasse. Embora esses dois trabalhos também façam, a exemplo de Andando em círculos e O trabalho dos dias, uma coleção das pequenas coisas do mundo, há neles muito mais controle sobre o resultado do que o que se permite Rivane Neuenschwander, que transfere para o público a responsabilidade por sua forma última.

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O que parece longe pode estar também perto. É possível distinguir, em alguns dos trabalhos acima descritos, dois principais procedimentos construtivos na obra de Rivane Neuenschwander, ambos compatíveis com a sua educação formal como escultora, mas que, embora em aparente oposição, são submetidos igualmente à sua vontade criativa e, muitas vezes, sobrepostos ou confundidos.[8] A artista realizou curso de especialização em escultura no Royal College of Art (Londres) no período de 1996 a 1998. O primeiro procedimento é baseado em operações de ajuntamento de matéria, tais como recobrir, com a poeira recolhida de casa, parte das linhas que marcam a junção de barras de sabão de coco que ela agrupa como quadrados (sem título, 1999) ou, como faz em outro trabalho, tornar visíveis as linhas finas que separam os tacos de um piso escuro por meio da meticulosa inserção, nesses espaços estreitos, de fino pó de mármore (sem título, 1999). O que eram planos monocromáticos sem distinção alguma se tornam, mediante essas ações, desenhos feitos de “linhas orgânicas” encontradas em conjuntos de barras de sabão ou no piso de uma sala.[9] “Linha orgânica” é um termo associado a trabalhos realizados na década de 1950 pela artista brasileira Lygia Clark (1920-1988), que punham em evidência a linha formada pela mera junção de dois planos distintos. SARMENTO, Edelweiss. Lygia Clark e o espaço concreto expressional. [EntrevistaJornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 jul. 1959. Suplemento dominical, p. 3. Republicado em LYGIA Clark. Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 1997.]

O segundo procedimento, por sua vez, é evidente desde trabalhos mais antigos (feitos entre 1997 e 1998), em que matérias variadas são sujeitadas a processos de radical desbastamento ou subtração, ampliando, paradoxalmente, seu tempo esperado de vida como objetos. Diante de molho de tomate quase seco sobre o prato, a artista raspa todo o excesso e deixa à vista somente trilhas tênues de polpa que ligam as porções onde repousam, sozinhos ou agrupados, os pequenos caroços do fruto. Em outro trabalho, toma de folhas de árvore ainda verdes e recorta, com zelo, as suas coberturas delgadas, tornando visíveis as estruturas vegetais intrincadas que mantinham firme o que foi dali retirado. O que era destinado ao descarte (por ser perecível) ou ao esquecimento (por ser comum) torna-se, assim, objeto imbuído de conteúdo gráfico. Se, nesses trabalhos, RivaneNeuenschwander escava, sobre suportes orgânicos, imagens inventadas que são quase mapas, em Carta faminta (2000), diversamente, são muitas lesmas que, postas sobre finas folhas de papel de arroz, as consomem devagar e de modo irregular, definindo nelas as bordas de imaginárias cartas geográficas.

O interesse da artista por tudo o que é criado e feito visível por atos de supressão se expandiu, em seguida, também para matérias sintéticas. Valendo-se de sacos de fibra plástica trançada usados para armazenar mantimentos (arroz, feijão, soja, farinha), ela apaga, com solução solvente, todas as referências impressas que identificam marca ou procedência, deixando à vista somente os seus elementos de desenho ou pintura, os quais ainda enfatiza, recobrindo-os com tinta vinílica. Enfileirando dezenas desses sacos modificados sobre o piso, ela concede, nessa instalação – _ _ _ _ _ _ _  _ _ (productof) (2003) –, teor simbólico ao que antes era apenas invólucro, pondo em evidência o que o olhar distraído não via. Continente e conteúdo – aqui como em outros trabalhos – são apenas estados transientes das coisas, podendo, portanto, ser alterados a todo instante.

Expediente de construção similar é usado no trabalho Globos (2003), concebido para a Bienal de Veneza. A partir da reunião de quase duas centenas de esferas dos mais diferentes tamanhos (da bola de pingue-pongue às bolas gigantes usadas para recreação de crianças) e materiais (plástico, couro, borracha, acrílico), a artista apaga, uma vez mais com solvente, todas as referências nelas escritas. Em seguida, entretanto, aproveitando-se das cores e grafismos originais dos globos e considerando os graus variados de resistência a intervenções sobre as suas superfícies, faz neles interferências diversas com fitas adesivas, vinil e mesmo tinta, sugerindo associações de cada uma das esferas à bandeira de um país.

Como as aproximações entre o tamanho e o material das bolas e os estandartes dos países são definidas apenas pelas possibilidades de intervenção já existentes, há implícita, nesse método, a subversão simbólica de hierarquias econômicas ou geopolíticas estabelecidas; é clara a alusão, ademais, à existência de um mundo muito maior do que aquele oficialmente presente na Bienal, onde constava, por meio de seus artistas, apenas a terça parte das nações representadas pelos globos. Dispostas aleatoriamente na sala, as esferas podiam ainda ser manipuladas livremente pelos visitantes, que refaziam, quase como as lesmas sobre os papéis de a Carta faminta, a cartografia do mundo a seu gosto ou ao acaso de um deslocamento qualquer das bolas espalhadas sobre o piso.

Ao apagar sinais que inicialmente os globos continham e depois adicionar, sobre eles, marcas que não possuíam, Rivane Neuenschwander sobrepõe os dois métodos que usualmente emprega – desbaste e adição –, com desapego a qualquer norma rígida que abafe, em sua obra, a surpresa do invento. Em outro trabalho, a artista utiliza ambos os processos simultaneamente, encobrindo com tinta as imagens de barcos que eram parte de vistas pintadas do mar, adquiridas por ela em mercados populares. Subtraídas de um dos principais elementos que demarcam o gênero, várias dessas marinhas são, em seguida, postas em fila sobre a parede – sugestão de um horizonte artificial e fragmentado – e, em um deslocamento simbólico e físico, confrontadas com número igual de pequenos barcos feitos com papéis achados na rua e postos em frente às pinturas. Diante da evidência da falta de algo nas telas, Rivane Neuenschwander induz a visão da audiência para dentro de imagens banais e cria a oportunidade de se ver, nessa Imprópria paisagem (2002), o que passa despercebido por não ser esperado ou por estar aquém da visada apressada que se lança habitualmente sobre o mundo. Permite que se veja, ao menos, alguns dos muitos detalhes do mundo. Permite olhar a poeira, por exemplo.

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A crítica de arte como campo privilegiado para a ficção contemporânea

[1] Como o leitor verá, este texto deve muito de seu argumento ao conceito de “linha orgânica”, proposto em 1956 por Lygia Clark (uma linha na junção de duas superfícies da mesma cor, não traçada ou desenhada pela artista) – nas palavras da artista, “uma linha que é real [e existe em si mesma, organizando o espaço”.]

Originalmente apresentado no Foro Internacional de Revistas de Arte Contemporáneo, Museo Rufino Tamayo, Cidade do México, 18 e 19 de novembro de 1999.


Nos últimos cinco anos, em minha prática de artista, tenho trabalhado com diagramas. Sobretudo desenvolvendo um tipo especial de diagrama, desenhado a partir dos pronomes ‘EU’ e ‘VOCÊ’, que combina linhas e palavras (com referências a tempo e espaço), permitindo trazer para o visível diferentes padrões de relacionamento – envolvendo afeto, atração, conexão, repulsão, etc. Os diagramas produzem um campo afetivo e indicam paisagens mentais, apresentando aspectos de processos de transformação: estabelecem conexões e desconexões entre sujeito e objeto, localizando a construção de identidade em um certo território que configuram. Traçar territórios é parte do processo, do mesmo modo que territórios podem dar origem a outros processos.

Tais diagramas corporificam possíveis estratégias narrativas que podem ser desdobradas a qualquer momento pelo espectador, dando origem a novas estórias/histórias que agora passam a incorporar o/a espectador/a ele/ela mesmo/a, convidado/a (de modo especial) a fazer parte do jogo narrativo. Em minha prática como artista, os diagramas aparecem como meio de tornar visíveis as ligações entre prática visual e campo discursivo: os diagramas não seguem teorias já escritas, mas são estruturas que se abrem para o lado de fora, posicionando-se como uma zona intermediária, membranosa, que querem ocupar. Trabalhar na linha de fronteira e torná-la permeável, tátil, poética – menos fronteiriça e mais uma zona quente e liminar, onde forças livres e disponíveis podem tanto carregá-lo de energia quanto dissolver seus planos pré-preparados. Ali as coisas se movem de modo errático.

Qualquer um que tenha experimentado trabalhar com palavras, imagens e objetos pode ver quão valiosas são as passagens que conectam campo visível e discurso. Manuseá-las (as passagens) possibilita que se construa um projeto de deslocamento entre ambas as matérias (arte e texto), descobrindo os signos de um estado de atenção que permite melhor entendimento acerca de como sentidos e coisas se entretecem e se relacionam entre si. No processo de descobrimento de como localizar-me neste lugar caótico e instável, vi-me na posição de desenvolver estratégias na direção da invenção de meios coletivos para intervenção em um circuito particular: aquele em que costumo atuar, no Brasil. Enquanto grupo [2] Refiro-me ao grupo Visorama, ativo no Rio de Janeiro entre 1991 e 1993 na promoção de debates em torno da arte contemporânea. Os participantes do grupo foram, entre outros, Eduardo Coimbra, João Modé, Carla Guagliardi, Brígida Baltar, Márcia Ramos, Marcos André, Rodrigo Cardoso, Rosângela Rennó, Valeska Soares e Analu Cunha. (porém agregando também outros artistas), experimentamos diversos modos de estar juntos, planejando eventos onde pudéssemos confrontar nossos trabalhos – não somente entre nós, mas também com o que estava sendo produzido em outros lugares. Apresentações de slides, simpósios, palestras, discussões, encontros, etc., foram organizados com a intenção de descobrir e inventar tópicos e questões relacionados a nossas práticas enquanto artistas. Alguns anos depois de termos realizado tais atividades, fundamos a revista de arte item. [3] Item foi fundada em 1995, pelos artistas Raul Mourão, Eduardo Coimbra e Ricardo Basbaum.

Porque escolher uma revista como forma de ação? É possível incorporar aí um programa interessante que atenda às expectativas dos artistas? Pode uma revista tornar visíveis certas demandas culturais no interior do circuito de arte? Item surgiu como parte de uma estratégia de criar um novo campo discursivo que pudesse articular um certo segmento da produção de arte contemporânea no Brasil, aquela que não vê o mercado como o principal objetivo do artista. Na medida em que o circuito (ou sistema) de arte brasileiro é extremamente frágil (de fato reproduz em sua estrutura muitas das dificuldades e arcaísmos da economia do país como um todo), usualmente os trabalhos de arte que ali circulam não compartilham nenhuma dimensão investigativa, para além de sua presença visual. Este parece ser um tipo de fator ‘endêmico’ em relação aos trabalhos de arte no Brasil: como em qualquer outro local, o mercado pode consumir o melhor da arte contemporânea, na intenção de integrar-se no cenário do mercado global da arte; mas isso é feito/processado sem que se tome cuidado com as ‘camadas discursivas’ geradas pelos trabalhos. É quase um lugar-comum considerar que a maioria dos críticos e escritores de arte brasileiros não assumem os riscos excessivos de se aproximar daqueles trabalhos de arte que não se acomodam dentro das expectativas já conhecidas; e os artistas se recusam a articular suas posições em palavras, deixando em aberto uma atenção em relação ao uso do texto como ferramenta para abrir perspectivas para seus projetos.

Obviamente, não desejo aqui criar a impressão de uma superfície monótona. Alguns críticos e artistas importantes desempenham um papel ativo em relação à arte contemporânea, cumprindo seus papéis na cena brasileira. Ainda assim, a maioria dos escritores de arte tem permanecido atada ao hábito de abordar o texto como ferramenta para somente reagir aos trabalhos de arte, ao invés de assumir uma possibilidade mais inventiva de compartilhar com eles algo da substância que permeia a região de fronteira imagem/texto. Quando assumem trabalhar apenas sob a perspectiva reativa, os escritores enfatizam seus papéis como juízes ou didatas, para os quais seus escritos presumivelmente irão estabelecer uma útil e prática parceria com os trabalhos de arte – considerando que estes necessitam de tradutores, com a autoridade (e habilidade) para falar em nome deles. Em termos gerais, os artistas não se importam com o que estes escritores reativos afirmam sobre seus trabalhos, mas sentem que pode ser importante serem mencionados aqui ou ali, nas páginas prestigiosas das revistas de arte ao redor do mundo. Tal é o círculo vicioso da escrita sobre arte: artistas fazem o trabalho; críticos comentam. Existe alguma essência natural pertencente às palavras, trabalhos de arte ou à percepção que poderia garantir que as coisas deveriam proceder assim? Ao reproduzir infinitamente essa estrutura, uma certa hierarquia é produzida: artistas na base, como produtores de imagens; críticos e curadores (e galeristas) no topo, como aqueles responsáveis por organizar a discussão sobre o sentido dos trabalhos. Podemos dizer, com certeza, que esta estrutura não preenche as necessidades da arte como um espaço aberto e experimental. É necessário buscar outro padrão de relacionamento entre textos e obras de arte, que nos faça acreditar que a escrita pode desempenhar um papel maravilhoso na expansão dos sentidos – se as palavras estiverem acopladas aos trabalhos de um modo especial e interessante.

Está fora de questão, hoje, pensar sobre a criação como algo pertencente de modo exclusivo ao campo da arte; mesmo a arte atual não é mais abordada mais em termos de criatividade. Esportistas, bancários, engenheiros ou doutores podem ser mais “criativos” que artistas (que não se importam mais com isso). Mesmo o termo “invenção” pode não mais indicar exatamente a condição da prática artística hoje. Desde pelo menos a segunda metade do século, as artes visuas têm se aproximado da realidade, isto é, evitando desperdiçar energia ao se construir enquanto metáfora que existiria somente fora do mundo. Depois dos anos 1960, pode-se dizer que a arte produz o real: não há como se esconder do trabalho; ou este é confrontado ou ignorado. Nesse sentido, pode-se dizer que quando a crítica de arte opera de modo reativo está, de fato, evitando um confronto verdadeiro com o trabalho de arte, simplesmente porque aceita como destino o fato de surgir posteriormente ao trabalho – em uma sequência de tempo – vendo a si mesma como apenas o passo seguinte após a produção das obras. Textos reativos dificilmente encontrarão outro lugar que não ao lado, em lugar contíguo às peças – uma posição que algumas vezes dá a falsa impressão de constituir um todo ou visão total, compreendendo textos e trabalhos de arte, mas que de fato mantém o trabalho fora do mundo (reduzindo a complexidade do “mundo” à linearidade da “palavra”, tornando-os quase sinônimos)[4] No original há um jogo de palavras que se perde na tradução: “reducing the complexity of the ‘world’ to the linearity of the ‘word’,making them almost like synonymous”. (N.A.). Efeito completamente diverso é obtido quando o escritor está engajado em outro modo de escrita – que organiza o discurso de forma diferente em termos de espaço – que poderíamos chamar de prospectiva.

De fato, não importa se os textos aparecem em momento posterior ou simultâneo em relação aos trabalhos. O importante é não cair na armadilha das cadeias de causa e efeito, que podem envolver o trabalho de arte em uma relacionamento linear, estranho ao seu funcionamento, forçando-o a abandonar seu potencial multiplicante, característico dos tempos atuais. O que realmente conta é a habilidade do texto em subverter o padrão de tempo tradicional (a cadeia passado-presente-futuro), interatuando com os trabalhos de modo a enfatizar sua atualidade e pertencimento ao presente: a combinação de texto prospectivo e trabalho de arte fabrica um agregado conceitual-sensorial que de fato opera como produção de real. Temos então um padrão valioso de espaço-tempo, repleto de sutilezas, que lança o leitor-espectador um passo adiante. Ela/ele entrará em um ambiente discursivo onde o processo de vivência dos trabalhos está entretecido com os conceitos trazidos pelo texto, de modo a ela/ele estar submetida/o a um tipo de dupla experiência, sensorial e conceitual: o trabalho de arte, em toda a sua materialidade, exercita plenamente a capacidade de funcionar como ponto de atração, um centro transitório que reordena tudo a sua volta; esta potência de atração é resultado do campo sensorial criado pelo trabalho, do padrão sensível de pensamento que se dá com a intervenção; assim, esse campo sensorial é inseparável da rede conceitual que o coloca em ação e que agora se vê forçada a reconfigurar suas conexões. Assim, o tipo de escrita que podemos chamar de prospectiva fabrica estrategicamente um sentido de presentidade/atualidade que designa e desenha a intervenção proposta.

É com esse propósito que irei me apropriar, aqui, de alguns trabalhos de arte produzidos recentemente no Brasil – no Rio de Janeiro, para ser mais preciso – que podem ajudar no apoio a meu argumento. O que irei dizer não pretende, obviamente, fechar a leitura das peças; as poucas linhas a serem trazidas aqui apontam apenas para a utilização das palavras de acordo com os propósitos deste texto – não procedo assim constrangido por eventalmente compartilhar de um forte senso de intimidade com esses trabalhos, que me permitiria posicionar seus padrões de impacto sensorial de acordo com a rede conceitual primeiramente tecida neste texto. Mas pelo fato de que todos os artistas que irei brevemente comentar têm também estado engajados, com suas obras, em projetos que ultrapassam as simples estratégias pessoais, isto é, têm trabalhado intensamente na construção de uma paisagem coletiva – que faz com que suas intervenções não sejam vistas no isolamento de puras conquistas individuais mas sim como parte de uma possível estratégia de modificação do circuito de arte e suas camadas discursivas. A revista item tornou-se uma forma concreta de ação somente porque temos sido capazes de imaginar as linhas diagramáticas que conectam diferentes artistas (é necessário forjar um sentido de comunidade) em torno de um projeto de intervenção no cenário corrente da arte brasileira. A necessidade de transformação não é uma vaga ambição, mas condição de sobrevivência.

Em 1996, Brígida Baltar cavou um abrigo, no tamanho de seu corpo, nas paredes do ateliê – localizado em sua casa. Ali, pôde experimentar-se; como em um auto-retrato expandido, criado em referência ao seu corpo físico. Esta peça era parte de uma série mais ampla de trabalhos, utilizando coisas encontradas na casa em que vive, algumas vezes coletadas e mantidas em grandes potes ou mesmo utilizadas em outros experimentos (materiais como poeira, tijolos, pedras, partes da estrutura da casa, etc.). Ao mesmo tempo, começou também a coletar elementos de seu próprio corpo ou ligados à história de seu corpo enquanto corporificação de identidade: lágrimas, sopro, imagens, roupas velhas, etc. O que me interessa nesse trabalho é a proposta de ocupar com seu próprio corpo a parede que limita a casa: ela constrói um lugar na linha de fronteira, sentindo as bordas enquanto espaço membranoso e tornando-o visível. Ali ela inevitavelmente se perde, ao mesmo tempo em que mostra ser impossível viver sem que se expandam as linhas que são continuamente desenhadas em torno. Ela enfatiza a importância de agir sobre esses limites, não quebrando as fronteiras de modo simples e ingênuo mas ocupando-as estrategicamente, transformando-as em um espaço espesso, tal qual membrana.

Eduardo Coimbra, com suas imagens e earthworks, tem se deslocado através de problemas semelhantes, no sentido de tornar as interfaces visíveis. Não é seu próprio corpo mas a instituição (museu ou galeria), como espaço envolvente, que é posta em questão através de suas ações. Trazer o lado de fora (terra) para dentro é uma bem conhecida estratégia da landart (e podemos recordar Robert Smithson e seus non-sites), mas Eduardo insere uma dimensão que incluí a imagem, ao posicionar na terra caixas de luz que mostram a paisagem que se conserva fora das paredes do Museu. Gostaria de tornar claro no trabalho seu esforço em conectar os lados de dentro de de fora, enfatizando a interface entre eles não como uma linha, mas enquanto espaço real e espesso a ser explorado.

Vejo a mesma questão na instalação Mergulho no Reflexo (1996), de João Modé, apesar dele carregar o problema em direção ao eu interior, ao espaço interno do corpo. Para esta instalação, o artista raspou todos os pelos de seu corpo (depois de deixá-los crescer nos quatro anos anteriores à exposição), dispondo-os na entrada de um labirinto, que se tornou um ritual de passagem para alcançar a sala principal – construiu uma estrutura de madeira, finalizada com a utilização de materiais apropriados da natureza, tais como cascas de árvore, por exemplo. A sala principal da instalação estava coberta de terra (no piso), e o artista agrupou ali uma pequena árvore, cipós e insetos. Não posso deixar de pensar nesse espaço como um experimento com natureza artificial, considerando o cubo branco da galeria como laboratório, um espaço asséptico e a salvo de seu lado de fora. Mas ao invés do espaço institucional frio, Modé está falando sobre colonizar a si próprio, plantando árvores dentro de seu próprio corpo, deixando insetos correrem sobre suas pernas e braços. Ele criou um espaço ritual de transformação, considerando a subjetividade contemporânea como um espaço amplo e vazio que necessita ser re-colonizado. Auto-colonização, construção de si.

O Puxador (1999), de Laura Lima, também estabelece preocupações com a relação entre espaço interior e exterior. Esta obra-performativa consistiu na ação de puxar a paisagem para o interior do espaço da galeria, por um homem nu – havia diversas cordas atadas ao seu corpo, amarradas a palmeiras do lado de fora. O trabalho “termina” quando a paisagem é finalmente trazida para dentro da galeria. Caso fosse uma artista do anos 70, Laura certamente realizaria ela mesma o esforço performativo do trabalho, experimentando com seu próprio corpo. Mas quando decide trabalhar com o corpo de outra pessoa, inventa uma performance que torna visível o processo de incorporação e corporificação: quer que testemunhemos de que modo a paisagem é transformada em símbolos orgânicos que correm em nossa mente-corpo – recuperando o processo de “metabolismo simbólico” de Lygia Clark. Se a paisagem é efetivamente trazida para a sala, é porque é transformada em imagens orgânicas, substâncias que circulam dentro de nós – apesar de (a paisagem) permanecer fisicamente invisível. Um dos efeitos desta peça é tornar visível o processo complexo de incorporação da informação, mostrando sobretudo o esforço físico envolvido nessa passagem.

O trabalho de Raul Mourão que gostaria de mencionar também envolve o lado de fora, o espaço das ruas. Raul produziu suas 5 pinturas (1999) a partir de sinais comumente utilizados nas ruas do Rio de Janeiro. Onde quer que exista uma área em obras na cidade, esta é demarcada por painéis horizontais de madeira, com fundo branco, demarcado por listas vermelhas em “V”. Como indica o artista, a partir de agora todos aqueles que verem estes sinais nas ruas imediatamente os transformarão em pinturas: este é de fato um modo de integrar a arte no espaço público através de estampagem, isto é, através da percepção e memória. Mas o que também me chama a atenção aqui é o fato de que as 5 pinturas repousam no chão justapostas uma sobre a outra, de modo que apenas a primeira pode ser tocada com os olhos. As pinturas tornam-se um objeto, uma escultura que sinaliza um lugar dentro da galeria mas que de fato quer nos carregar para fora, para as ruas. O que constitui seu lugar dentro do cubo branco é o espaço secreto que se desdobra quando o espectador é capaz de ver somente a primeira pintura, as outras quatro permanecendo ocultas aos seus olhos. Não importa se elas são ou não iguais: um espaço secreto foi criado e algo deverá ser feito a esse respeito.

Marssares mantém sua câmera fotográfica no congelador. Certamente não para produzir imagens congeladas, mas com certeza para confrontar-nos com a imagem que registra um objeto em processo de desaparecimento, na medida em que o gelo derreterá por completo se a câmera não for escondida novamente de nossos olhos no interior do congelador. Obviamente, a imagem já foi emancipada da máquina, já está em seu exterior. Nossa mente é mais rápida que o mecanismo da câmera, e se a cada vez que apertamos o botão produzimos apenas uma imagem, quando confrontados com esta imagem particular produziremos milhares. Congelar a máquina parece ser uma estratégia para liberar nossas mentes de uma mecânica que consideramos já conhecida. Ou melhor, tornar-nos conscientes de que a mecânica que produz imagens na arte depende também de outro processo maquínico, notadamente da hibridização do corpo com certos objetos, de modo específico: deixar a mente-corpo ser invadida e pressionada pelas forças sensoriais-conceituais.

Gostaria de finalizar este texto apresentando dois tipos de veículos. Aqui, veículo indica uma estrutura que transporta a si mesma em conjunto com certos conceitos desenhados e projetados, formando um agregado que articula conteúdos discursivos e não-discursivos.

O primeiro veículo é o quiosque de Helmut Batista e Bia Junqueira: uma escultura em forma de banca de jornal (1999), construída para multiusos. Além de vender edições de arte, revistas, livros, etc., pode ser utilizada para encontros (espaço interno) e como tela de projeção – já que suas paredes são construídas com uma superfície semi-transparente que pode receber imagens de projetor de slides ou vídeo.

O segundo veículo está presente em uma imagem de 1994, do início de meu projeto Você gostaria de participar de um experiência artística?. Este projeto, ainda em desenvolvimento, consiste em convidar participantes a utilizar em casa, por um mês, um objeto de ferro pintado medindo 125 x 80 x 18 cm. Como se pode perceber, o objeto parece vazio, mas na realidade carrega diversos conceitos, que também podem ser utilizados. Localizado na linha de fronteira entre ser ou não um trabalho de arte, o objeto pretende produzir um processo de transformação, deflagrando palavras (entre as quais, comentários e críticas), ações e comportamentos, produzidos a partir de um nível intenso de vivência, hibridização e envolvimento por ele provocados (e não exclusivamente derivados de um processo analítico único e central).

Enquanto revista de arte, item se percebe como veículo, ferramenta para estratégias discursivas e não-discursivas.

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Partilha da crise: ideologias e idealismos.

Isto que escrevo é como pensar alto e junto. Pois não é de hoje que certas experiências da arte me intrigam e – na mobilização que geram – me põem outra vez em dúvida. Testa franzida diante daquilo que me seduz, ao passo que aponta para algo que incomoda, convoco novamente as investigações do Grupo GIA (Salvador, BA) como ponto de partida (e, dados os escritos anteriores[1] Refiro-me aos textos Monocromia Amarela, publicado na revista Tatuí 8 (disponível em http://revistatatui.com/revista/tatui-8/monocromia-amarela/) e I’m lovin’it, publicado na revista Tatuí 11 (disponível em http://revistatatui.com/revista/tatui-11/im-lovin-it/)., nos quais comento o trabalho do grupo, igualmente “de retorno”) para uma conversa, desta vez mediada pelo texto Acredite nas suas ações![2] Publicado em outubro de 2006 num fanzine do Grupo GIA sob o título Ternura, humor e pipoca, o texto foi republicado em versão editada na revista Urbânia #3 (organização Graziela Kunsch), sob o título Acredite em suas ações., de Fernanda Albuquerque.

Nesta que talvez seja uma das melhores reflexões sobre o trabalho do coletivo – e que acuradamente pontua suas intenções –, Fernanda circunscreve o campo político e poético das ações do GIA. Numa dimensão mais ampla, aponta que, “findas as grandes utopias, não se trata mais de apostar em uma revolução através da arte, mas de acreditar na possibilidade de intervir, ainda que singelamente, no nosso entorno, defendendo a ideia de uma atitude menos passiva diante da realidade”[3] Ternura, humor e pipoca. Texto de Fernanda Albuquerque. e, aproximando-se às especificidades da prática artística do grupo, indica como essa aposta política se daria poeticamente: “o trabalho fala, assim, de uma aposta na poesia, no afeto, na delicadeza, na imaginação e no bom-humor como estratégias para interferir, ainda que transitoriamente, na realidade. Ou como estratégia para provocar sensibilidades, questionamentos e atitudes. Trata-se de trabalhar a partir do que é dado – o automatismo e a aspereza do dia-a-dia na cidade – para explicitar o que pode ser feito – sonhado, imaginado e desejado – a partir dali”[4] Ternura, humor e pipoca. Texto de Fernanda Albuquerque..

Assim, agindo sobre o que nos é mais imediato – o cotidiano –, o GIA dá a ver certos modos da subjetividade política atual que, na arte contemporânea,  têm se desenhado mais no sentido de lutar contra a “sensação de impotência” do indivíduo (e, às vezes, do coletivo) diante do mundo do que, como outrora, a favor da potencialização do Estado. Nas palavras do grupo, “as ações do GIA procuram interrogar as condições em que os indivíduos atuam com os elementos de seu entorno, produzindo, assim, significados sociais. (…) a arte está indissoluvelmente ligada à vida”[5] Texto de apresentação do Grupo GIA. Disponível em http://giabahia.blogspot.com/.. Desse modo, como enfatiza Alejandra Muñoz em texto sobre o trabalho do grupo baiano, “não cabe à arte apontar soluções para os problemas sociais, mas sim incitar e mostrar as contradições e os valores de uma sociedade”[6] MUÑOZ, Alejandra. Entre dois nadas… o GIA. Disponível em: http://www.salaodemaio.blogger.com.br/critica.htm..

Esta tarefa, cuja “negação” das implicações macropolíticas e sociais o GIA partilha com diversos outros artistas (“somos artistas, não trabalhadores sociais”[7] CLEGG, Michael; GUTTMANN, Martin apud YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 436.), encontra diferentes formas de reverberação no trabalho do grupo, às vezes inclusive contraditórias (contradição que, diga-se de passagem, não me parece um problema em si). É que, se de um lado, o desejo de agir micropoliticamente cria as bases para “práticas concretas infiltradas em pequenas transgressões”[8] Texto de apresentação do Grupo GIA. Disponível em http://giabahia.blogspot.com/. – como em Quanto (2004)[9] Em Quanto, o GIA dispôs “num muro em frente ao Mac Donald’s os valores, com referência em produtos de feira livre, o preço individual dos itens que compõem o Big Mac”, revelando, pela abissal diferença entre valor de custo e valor de venda, o processo de mais-valia envolvido no lanche mais vendido do ocidente. Sugere, assim, que, “com referência nos cartazes promocionais de supermercados, produza placas com a mesma programação visual, coloque em destaque comercial o que você quiser e cole em locais de acordo com o contexto”. Texto extraído do portfolio do Grupo GIA., Não propaganda (2004)[10] Em Não propaganda, o GIA se apropria se situações de uso coletivo do espaço público para criar distribuir “placas, cartazes, panfletos, faixas e outras formas de mídia, em branco, sem nenhuma informação. Vá para a rua e propague a não propaganda”. Texto extraído do portfolio do Grupo GIA. ou Manual do Gato (2011)[11] Manual do gato (2011) é um panfleto distribuído pelo GIA no qual se ensina a fazer uma ligação direta nas redes de distribuição de energia, operação cuja ilegalidade é interpretada no panfleto como uma “redução de despesas do lar”. –; de outro também se dá como desejo de convivência e de promoção de momentos de sociabilidade – como as várias dimensões do SambaGIA, do CD às rodas de samba em espaço público ou, ainda, os shows. Um modelo micropolítico se efetiva também nas infiltrações no cotidiano da cidade, cuja ironia fica no limiar entre a etnografia, o voyeurismo e o espetáculo – como em Cama (2005)[12] Sobre Cama (2005), diz o Grupo GIA: “acorde mais cedo neste dia. Com a ajuda de alguns amigos desmonte uma cama de solteiro e a monte numa calçada escolhida por você, deite-se e durma o período que você quiser. Chame os amigos para observar de longe”. Texto extraído do portfolio do Grupo GIA. ou Pic-nic (2005)[13] Com Pic-nic (2005), sugere-se que “arranje uma toalha de mesa quadriculada, monte uma cesta de pic-nic, com produtos que você conseguir encontrar. Em uma praça do centro de sua cidade, estique a toalha, coloque a cesta no centro e observe as reações”. Texto extraído do portfolio do Grupo GIA. –, ou acontece a partir de proposições “positivas e criativas”, de caráter eminentemente poético – como Fila (2005)[14] Sobre Fila (2005), o grupo GIA sugere: “Gostaria de chamar atenção para algo fantástico que se tornou comum na sua cidade de uma forma poética? Reúna os amigos e pessoas próximas, que convivem no mesmo ambiente que você e faça uma fila”, e como foi feito em Salvador, experimenta realizar uma fila para assistir ao por do sol. Texto extraído do portfolio do Grupo GIA. e Pipoca (2005)[15] Sobre Pipoca (2005), propõe-se que se “Faça um carimbo com uma ideia positiva, super criativa e carimbe em sacos de pipoca. Dê os sacos de pipoca a um pipoqueiro de sua cidade, vá por mim; ele vai adorar e será também um grande disseminador de ideias através de deliciosas pipocas. Observe as reações”. Texto extraído do portfolio do Grupo GIA.. Há, ainda, um conjunto de ações que geram espécies de formas alternativas de mediação e regularização dos indivíduos, das formas de sociabilidade e de utilização do espaço público, como em Régua (2003)[16] Com Régua (2005), sugere-se que se “Vá a uma papelaria ou armarinho e compre réguas, ventosas e barbante. Chame amigos para te ajudar a produzir. Fure a régua em uma das extremidades, amarre o barbante na ventosa e na régua. Entre em algum sanitário masculino em que as paredes são revestidas de azulejo e cole a ventosa fazendo com que a régua fique bem próxima do mictório. Observe as reações.” Texto extraído do portfolio do Grupo GIA., WC (2004)[17] “Durante uma festa de rua, local onde a bebida associada à má educação fazem os indivíduos urinar nos muros e cantos da rua. Produza placas de WC (masculino e feminino) e com a ajuda de seus amigos, cole nos locais onde a frequência deste ato é grande. Legitimando, assim, um sanitário público.” Texto do GIA sobre o trabalho WC (2004), extraído do portfolio do grupo. ou o recente DIA – Departamento de Interferência Ambiental (2011)[18] O DIA – Departamento de Interferência Ambiental (2011) é um dispositivo criado pelo grupo GIA – que consiste, basicamente, na distribuição (também online, como quase todos os trabalhos do grupo) num crachá de “funcionário autorizado do setor de fiscalização urbana” cuja utilização sugerida é a de multar automóveis na cidade, como indica o grupo: “Multe você também!”. Disponível em: http://giabahia.blogspot.com/2011/02/multe-vc-tambem.html..  Como fica evidente, são diversas as abordagens do grupo para a questão de “constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente”, “aprendendo a habitar melhor o mundo”[19] BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 18., conforme as palavras de Nicolas Bourriaud. A despeito da necessidade de uma visada particular sobre as estratégias de cada trabalho, proponho neste texto uma generalização no sentido de pensar uma parte específica do contexto no qual essas ações se inserem: ao lado da sempre imprevisível dinâmica das esquinas e dos dias de uma cidade, são outros aspectos da vida social que, a meu ver, igualmente circundam o trabalho do GIA – e, de modo mais amplo, o campo da arte – que aqui desejo observar.

No contexto da fragmentação pós-moderna, em seu famigerado descentramento das grandes narrativas e ordenações (sensíveis, sociais, políticas), o grupo GIA investiga – assim como um número cada vez mais crescente de artistas e coletivos, Brasil afora –quais seriam as possibilidades para uma atuação socialmente crítica da arte.

Sob o otimista lema de “acredite nas suas ações!”, as ações do grupo aproximam-se,  numa primeira instância, dos experimentos “da arte conceitual, em que o estatuto da obra de arte é negado, em favor do processo e, muitas vezes, da ação efêmera, buscando uma reconfiguração da relação entre o artista e o público”[20] Texto de apresentação do Grupo GIA. Disponível em http://giabahia.blogspot.com/., como fica claro ao observarmos o protagonismo que, na obra do grupo, ocupa a ideia de “proposta”.  Muito cara à arte brasileira sobretudo nos anos 1970, a “solução-proposição” surge na esteira de uma concepção guerrilheira de arte[21]   “Na guerra convencional da arte, os participantes tinham posições bem definidas. Existiam artistas, críticos e espectadores. (…) Na guerrilha artística, porém, todos são guerrilheiros e tomam iniciativas. O artista, (…) não sendo mais ele autor de obras, mas propositor de situações ou apropriador de objetos e eventos, não pode exercer continuamente seu controle. O artista é o que dá o tiro, mas a trajetória da bala lhe escapa. Propõe estruturas cujo desabrochar, contudo, depende da participação do espectador”. MORAIS, Frederico. Contra a arte afluente, o corpo é o motor da obra. Revista Vozes. Rio de Janeiro, jan/fev 1970. e, no contexto ditatorial, quase sempre indistingue-se de um conteúdo subversivo e de criticidade estridente, como nos dão a ver as Inserções em Circuitos Ideológicos (1970) de Cildo Meireles, dentre muitos outros.

O fato é que, se a proposta tinha então a dupla função de, diante da repressão militar, resguardar o artista (visto que a autoria estava de algum modo disseminada) e, principalmente, ser uma alternativa à autoridade instituída, hoje ela assume com mais ênfase outro de seus múltiplos aspectos: o de dissolver a arte na vida, expandindo a “clausura institucional” da primeira e, assim, de algum modo retomando o horizonte antiartístico das vanguardas. Todavia, se nas vanguardas – inclusive a brasileira, dos anos 1960/1970 –, a força de negação cumpria papel central para a quebra com o caráter institucional da arte, hoje, como podemos ver através do GIA, para parte significativa da recente produção de arte no Brasil, ao que me parece, o ímpeto de negação é substituído pelo desejo sinérgico e proativo de “propostas positivas” e “crentes”. É assim que o “acredite nas suas ações!” marca um ponto de ruptura com o dilema político que, décadas atrás, ainda perturbava os artistas em sua opção pela ideia de uma arte baseada em propostas, como confessava Lygia Clark: “Se eu fosse mais jovem, faria política. Sinto-me por demais à vontade. Integrada demais. Antes, os artistas eram marginalizados. Hoje, nós, propositores, estamos muito bem colocados no mundo. Conseguimos sobreviver – apenas propondo. Há um lugar para nós na sociedade. (…) às vezes me pergunto se não estamos um pouco domesticados. Isso me chateia…”[22] CLARK, Lygia. Estamos domesticados? (1968) Disponível em: http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=29).

Claramente não chateado com a ambiguidade percebida por Lygia, o GIA propõe, então, de modo bastante diferente àquele da arte conceitual brasileira, ainda que desejando ombrear-se a ela quanto às intencionalidades críticas – o que fica evidente ao compararmos as Inserções em circuitos ideológicos meireleanas com Pipoca ou, ainda, com a Cerveja GIA (2009)[23] Através da distribuição de rótulos adesivos da Cerveja GIA, o grupo apropria-se da indústria cervejeira e seu sistema de distribuição para simbolicamente “tomar para si” as cervejas lançadas no mercado, desviando-as do marketing de grandes marcas para a autopromoção do GIA, feita também através do samba Cerveja GIA.. O caso é que, como sabemos, mais do que as motivações, são os métodos que conformam as intencionalidades, sendo portanto acerca desses métodos que, então, levo adiante esta conversa com os trabalhos do coletivo baiano.

Dentre as “questões” partilhadas em largo alcance entre a arte e o mundo está, sem dúvida, e talvez disparada em primeiro lugar, a “questão social”. Se, no contexto dos debates artísticos, ela vem em torno da indagação de se “pode a arte interferir ou transformar a realidade social?” – como situa Fernanda Albuquerque já no princípio de seu texto sobre o GIA –, no “mundo”, ou seja, no campo do agenciamento explícito das forças políticas, culturais e econômicas, não podendo mais haver o subterfúgio da possibilidade (no caso, não podendo negar-se que se pode, sim, evidentemente, “transformar a realidade”), a “questão social” coloca-se eminentemente no âmbito dos meios: ou seja, “como transformar a realidade social?”. E, não sem ironia, enquanto a arte questiona-se se pode ser um agente transformador, a economia, a cultura e a subjetividade políticas respondem à pergunta do como valendo-se, cada vez mais, da própria arte. Assim, o talvez cinismo da situação está no fato de que, no estado atual das coisas – leia-se: no seio do neoliberalismo –, aparentemente a arte foge à sua força de transformação ao restringir-se a um lugar de impotência diante da economia e da política enquanto, por sua vez, a economia e a política escapam às suas responsabilidades nevrálgicas ao tentar repassar à arte e à cultura o poder da “verdadeira transformação”.

O impasse resvala, assim, por todos os lados, numa questão de ordem moral, ponto-chave e em ebulição nos dias de hoje: enquanto os grandes instituidores – governos e corporações – da ordem mundial apostam numa “reforma moral” do indivíduo e da sociedade, sem a qual não se poderia efetivamente “mudar o mundo”, algumas práticas das artes visuais parecem não ter-se dado conta – senão de forma ingênua ou talvez (e aqui desculpem-me o ceticismo) “oportunista”[24] Penso aqui nos projetos artísticos que surgem sob demanda, respondendo a panoramas governamentais ou corporativos de interesses efêmeros diante da “questão social” que, em muitos casos, são sobretudo estratégias de marketing. No Brasil, com a expansão da economia “licitatória” da cultura e com a emergência de editais especificamente voltados à “questão social” (ou o que a tomem como contrapartida), percebe-se com maior frequência que os problemas sociais têm sido “oportunizados” de formas nem sempre responsáveis.– do lugar protagonista e estratégico que a subjetividade, talvez hoje mais do que nunca, pode ocupar diante das pulsões realmente transformadoras (para não dizer revolucionárias) do social. Se o discurso instituído apregoa (no que a expansão do terceiro setor é emblemática) uma transformação moral da sociedade e convoca a cultura e a arte para engajarem-se nessa “tarefa” de “mudar o indivíduo para depois mudar a sociedade”,  parece mesmo que é aí, onde da arte se espera uma postura colaborativa na direção de “construir um mundo melhor”, que a prática artística poderia “trair” tais expectativas e, ao invés de reificar a ideologia dominante do tipo “Faça Parte” ou “Criança Esperança”, traçar horizontes para uma subjetividade eminentemente libertária.

Ainda que a transmutação do problema da pobreza em “questão social” obscureça, nesta eufemização, uma série de responsabilidades do Estado diante da lógica de distribuição do capital, por outro lado dá a ver a complexidade de camadas que a circunscrevem e que demandam, portanto, um envolvimento mais complexo do que uma estanque posição de ser “contra” a situação. Se os anos 1970 já haviam superado a separação entre o artista e militante, conformando a arte numa “ordem totalmente distinta da ação pedagógica e/ou doutrinária de conscientização e transmissão de conteúdos ideológicos próprios”[25]   ROLNIK, Suely. Desentranhando futuros. In: FREIRE, Cristina; LONGONI, Ana (org). Conceitualismos do Sul. São Paulo: Annablume; USP-MAC; AECID, 2009. à militância política, na perspectiva atual, parece-me que o “x” da questão situa-se menos no que diferenciaria a prática política da arte da prática política “da política” (a militância), e mais, noutro sentido, no que diferenciaria as escolhas políticas da arte das estratégias sociais e políticas, por exemplo, das grandes corporações.

[Breve digressão matemática] É preciso não perder de vista as circunstâncias atuais, que por exemplo fazem com que Milú Villela, presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo, presidente do Instituto Itaú Cultural, presidente do Instituto Faça Parte e vice-presidente do Itaú Unibanco Holding S.A. – detentora, pessoalmente, de 4,9% das ações do conglomerado[26] Informações disponíveis em http://ww13.itau.com.br/itausa/html/pt-BR/download/acordo_acionistas.pdf (atualizadas em 10/05/2011) e http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/3010_UMA+NOVA+GERACAO+NA+ITAUSA. Milú Villela também foi considerada, pela Revista Forbes, a 21a na lista de bilionários brasileiros, conforme disponível em http://www.forbes.com/profile/maria-de-lourdes-egydio-villela/. –, acredite que “o terceiro setor tem de ser engajado, como nos anos 60 e 70, quando havia um comprometimento político. Agora é a hora da militância social”[27] VILLELA, Milú. Voluntariado precisa crescer mais entre jovens, diz Milú Villela. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 jan. 2002. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u59566.shtml.. Considerada uma das maiores incentivadoras nacionais da responsabilidade social das empresas e, em especial, do trabalho voluntário por parte do cidadão, Milú liderou no Brasil as ações do Ano Internacional do Voluntariado (2001), arregimentando um total de 30 milhões de voluntários. É que, para a 3a maior acionista do maior banco do hemisfério sul (que, em 2010, lucrou R$ 13,3 bilhões e, em 2011, anunciou ter alcançado, somente entre janeiro e setembro do mesmo ano, um lucro líquido de R$ 10,940 bilhões, configurando o maior lucro da história dos bancos brasileiros de capital aberto)[28] VILLELA, Milú. Entrevista para o portal Responsabilidadesocial.com, em 7 de jun. 2003. Disponível em: http://www.responsabilidadesocial.com/article/article_view.php?id=128., “a economia não rege o país. Achamos que sem educação não podemos chegar à economia. As empresas vêm respondendo bem aos projetos sociais e, mesmo em situação difícil, sabem a importância dessas iniciativas”[29] VILLELA, Milú. Voluntariado precisa crescer mais entre jovens, diz Milú Villela. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 jan. 2002. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u59566.shtml.. Enquanto a presidente do MAM-SP vem “tentando multiplicar esse exemplo [da causa social], mostrando ao maior número de pessoas que a participação de cada um de nós é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa”[30] VILLELA, Milú. Entrevista para o portal Responsabilidadesocial.com, em 7 de jun. 2003. Disponível em: http://www.responsabilidadesocial.com/article/article_view.php?id=128.,  com base também nos seus programas de “contribuição cultural e social”, a marca do Itaú S.A. consolida-se em 2011 como a mais valiosa do Brasil, num total de R$ 24, 3 bilhões[31] “Pela oitava vez consecutiva, a marca Itaú foi reconhecida como a mais valiosa no Brasil pela consultoria Interbrand, pioneira no desenvolvimento do método de valoração de marcas, sendo avaliada em R$ 24,3 bilhões. O valor é 18% superior ao apresentado em 2010, quando foi avaliada em R$ 20,7 bilhões, e 130% maior do que em 2008 (R$ 10,6 bilhões), ano da fusão entre Itaú e Unibanco.” Disponível em: http://ww13.itau.com.br/PortalRI/HTML/port/infofinan/demon/Dcc_e_MDA/df300611/dcc300611.pdf., enquanto, no ano de 2010, investiu de recursos próprios apenas R$ 59.266.000,00 (59 milhões) em cultura, o equivalente a 0,11% de sua receita líquida naquele ano[32] Os dados utilizados estão disponíveis no Relatório Anual de Sustentabilidade 2010 do Itaú Unibanco Holding S.A., disponível em:http://www.itauunibanco.com.br/relatoriodesustentabilidade/2010/ra/39.htm.. Não é diretamente, senão através de tributação (como por meio da Lei Rouanet) que o Itaú S.A. investe significativamente na “questão social”, havendo, em 2010, investido R$10.299.907.000,00 (10 bilhões) para todas as áreas das contribuições sociais[33] Cultura, educação, saúde, saneamento, esportes, creches, alimentação e outros., o equivalente a 19,10% de sua receita líquida[34] Os dados utilizados estão disponíveis no Relatório Anual de Sustentabilidade 2010 do Itaú Unibanco Holding S.A., disponível em:http://www.itauunibanco.com.br/relatoriodesustentabilidade/2010/ra/39.htm.. Considerando os 0,11% de investimento direto em cultura da corporação naquele ano, pergunto-me o quanto, por sua vez, não deve ter colaborado a cultura (e, portanto, a arte) para construir, através dos 19,10% de investimento via tributação, para o atual valor bilionário da marca, 18% superior ao de 2010. Restringindo-me a ficar em um dos braços das atividades culturais e sociais do conglomerado, somente no Itaú Cultural foram investidos, através de Lei Rouanet, R$ 26,978 milhões (segundo informações cedidas pela instituição, outros R$ 17.835 milhões foram investidos diretamente pelo Itaú Unibanco), sendo realizadas, em 2010, 456 atividades, recebidos quase 300.000 visitantes, distribuídos 25.673 produtos culturais e assinados contratos com 111 TVs[35] Dados disponíveis em:http://www.itauunibanco.com.br/relatoriodesustentabilidade/2010/ra/37.htm..

Não é à toa que Milú Villela afirma que “o empresariado brasileiro começou a perceber sua responsabilidade na solução dos problemas sociais e a reconhecer que o apoio a projetos sociais e de voluntariado gera um grande retorno tanto na imagem corporativa quanto na motivação de suas equipes”[36] VILLELA, Milú. Entrevista para o portal Responsabilidadesocial.com, em 7 de jun. 2003. Disponível em: http://www.responsabilidadesocial.com/article/article_view.php?id=128.. Psicóloga, acionista e patrona das artes, Milú Villela parece saber qual é de fato o papel da arte e da cultura na “reforma moral” da sociedade neoliberal ou, mais especificamente, no papel de construção da reputação (medida no valor das marcas) das grandes corporações. Como anuncia Warren Buffet – um dos homens mais ricos do mundo, e talvez o mais famoso investidor da história –, citado como epígrafe no relatório anual do Itaú[37] ALMEIDA, Ana Luisa de Castro. O que vimos e aprendemos sobre reputação corporativa. Relatório anual de sustentabilidade 2010 em revista. Itaú Unibanco Holding S.A. São Paulo. p. 46. Disponível em: http://www.itauunibanco.com.br/relatoriodesustentabilidade/2010/download/Itau-Unibanco-revista-2010.pdf., “se você perder o dinheiro da empresa, eu compreenderei. Se você prejudicar a nossa reputação, eu serei impiedoso”.

Há sempre, todavia, para além dessas cruas questões econômicas (que, afinal, “não regem o país”), isso o que muitos, diferindo do que os alguns apontariam como ideologia, chamam de idealismo, o qual, segundo Milú Villela, foi incentivado pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, cuja entrada em sua vida promoveu umencontro maravilhoso, onde descobri o idealismo que tenho desde criança, mas que nunca tinha analisado profundamente”[38] VILLELA, Milú. Entrevista A história da banqueira. Revista Marie Claire. Disponível em: http://marieclaire.globo.com/edic/ed123/rep_milua.htm..

Diante de tudo isso, não deve calar a pergunta: qual o sentido de nós – curadores e artistas, nos quais me incluo – optarmos por aceitar algumas das condições de exposição oferecidas pelo Itaú Cultural (como, por exemplo, a ausência de cachê para os artistas), por acreditarmos na importância do trabalho que estamos fazendo? Será mesmo que conseguimos forjar um embate entre o idealismo da arte e o idealismo corporativo? [Fim da digressão]

O fato é que, a partir dos anos 1990 e, em especial, com a virada do século XXI, a “questão social” tornou-se um território intensamente habitado também pela sociedade civil, empresariado e terceiro setor, extrapolando a dimensão de ‘problema social’ para tornar-se, claramente, um campo – simbólico, de disputa, de trabalho e, estrategicamente, de colaboração. No contexto neoliberal, a sinergia público-privado alcança uma complexidade inédita na história social, econômica, política e cultural. Testemunhamos a ‘ofensiva neoliberal’ – que, almejando o livre mercado, dedica-se à minimização dos poderes do Estado – somar-se à reprodução de um discurso tecnicista e pragmático (que, alegando ser o Estado uma máquina incapacitada para lidar com as múltiplas dimensões da rede econômica global, aposta na “solução” da parceria público-privada numa lógica de terceirização) que pode caminhar na arriscada direção da desresponsabilização do Estado. Assim, é cada vez maior o número de ONGs, OSCIPs, etc., que surgem sustentadas ou incentivadas pelo Estado e por empresas para, nessa parceria, cumprir um papel diante da “questão social”. Mas que papéis são esses?

À crise mundial tem equivalido um conjunto de ações que, sem propor “soluções” para os problemas sociais decorrentes, investem, todavia, em projetos pontuais que indicam um recente processo de refilantropização do social.  Do Estado ao terceiro setor, o que se percebe é o crescimento de iniciativas que não se propõem a um debate de caráter sistêmico sobre a “questão social”, mas, inversamente, pregam que a transformação ampliada do social decorrerá da mudança individual, da conscientização[39] A conscientização pregada pelo terceiro setor se diferencia da “tomada de consciência” conforme historicamente utilizada pela política de esquerda no Brasil, hoje equivalendo sobremaneira à adaptação do modo de vida dos indivíduos às demandas sociais e da cidadania, numa inclinação marcadamente moralista. de cada cidadão. Uma reforma moral. A cidadania deixa de ser uma questão de Estado para tornar-se, paulatinamente, uma postura de cada indivíduo – sintoma desse curioso (e perverso) processo é o fato de, por exemplo, haver no Brasil diversos prêmios de “Prefeito Cidadão”. A concepção de cidadania passa, agora, cada vez mais por uma dimensão participativa diante da “vida social” que, de modo geral, é traduzida e fomentada nos termos de uma cultura do voluntariado: “A “cultura da crise”, ou seja, a ideia de que todos estão sendo penalizados com a crise e que a saída desta requer, além de sacrifícios, ajuda mútua, é terreno fértil para a expansão da atividade voluntária que aparece, neste momento, como a principal saída para a resolução dos “problemas sociais” tão acirrados diante da conjuntura da crise”[40] BONFIM, Paula. A “cultura do voluntariado” no Brasil: determinações econômicas e ideopolíticas na atualidade. São Paulo: Cortez, 2010. Coleção questões de nossa época; v. 5. p. 15..

Como demonstram algumas das iniciativas às quais está à frente Milú Villela, dentre centenas de outras, o trabalho voluntário explode no cenário brasileiro tendo, como líderes, os empresários e seus braços sociais. Retomando valores cristãos (como o “amor ao próximo”), essas corporações e o terceiro setor pregam que, a partir da dissipação das distinções entre as classes sociais, será possível – como nos diz Milú – “humanizar o sistema econômico”[41]    VILLELA, Milú apud BONFIM, Paula. A “cultura do voluntariado” no Brasil: determinações econômicas e ideopolíticas na atualidade. São Paulo: Cortez, 2010. Coleção questões de nossa época; v. 5. p. 47.. Essa “pedagogia psicossocial”[42] NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e serviço social. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1996. massivamente lança as bases para sustentar uma sociabilidade apaziguadora no cerne de uma economia neoliberal cada vez mais violenta e injusta. Ao passo que as corporações se transnacionalizam e criam suas próprias normas globais de funcionamento (vide a Organização Mundial do Comércio, OMC) e, neste encalço, crescem as desigualdades sociais, vertiginosamente expande-se a cultura do voluntariado, numa espécie de evangelização promovida pelo capital.

Nesse horizonte, enquanto a arte contemporânea se volta ao outro, às comunidades, ao cotidiano, propondo interfaces de participação, voluntariado – e, às vezes, inclusive de consenso –, também milhares de empresas “coincidentemente” cultivam a “responsabilidade social”. Partindo de intencionalidades e histórias distintas, economia e arte hoje se encontram na “questão social” e, mais do que noutros momentos em que isso ocorreu, atualmente comungam – e aqui situa-se meu incômodo crítico – não apenas preocupações ou intencionalidades, mas, o que fica cada vez mais evidente, também métodos. Formas de trabalho e parcerias que fazem crescentemente equivaler as “práticas sociais” da arte àquelas do terceiro setor, transformando arte em cultura e, essa cultura, numa das forças que corroboram na construção de uma sociabilidade que sustente a esquizofrenia do capitalismo atual.

Assim, será cada vez maior o número de artistas que, embasados numa concepção “relacional” de arte, transformarão suas práticas em verdadeiras relações públicas das instituições às quais, em parceria, acabam por servir. Será cada vez maior o número de trabalhos que, diante de uma realidade difícil, optarão por promover “zonas autônomas” baseadas menos em estratégias de resistência e subversão, e mais em formas de escape. Será cada vez maior o número de iniciativas de caráter filantrópico ou assistencial na arte. Será cada vez maior o número de obras que, explorando o multiculturalismo ou a antropofagia, proporão modelos alienantes de sociedade, afirmando a necessidade de construção de um consenso interclasses e, assim, tantas vezes naturalizando a história ou a economia. Será cada vez maior o número de artistas que, acreditando não poder intervir nas regras do mundo, a ele adicionam suas próprias regras, apostando numa contribuição para a ordem pública, num “empoderamento do sujeito”, ou revivendo a ideia de autonomia da arte. Será cada vez maior o número de artistas dedicados a “fazer o bem” ou propiciar situações de prazer ou alívio[43] “O melhor passatempo é fazer o bem”, dizia William Penn, um dos primeiros filantropos do mundo e dos homens mais ricos do século XVIII, a quem também é atribuída a frase “Deixe os outros pensarem que governam, e eles serão governados”..

De modo geral – e mais complexa e ambivalentemente do que a simplificação que acabo de realizar –, muitos são os esforços recentes, na arte contemporânea, de avivamento de utopias antes esmaecidas pelo pensamento histórico. E são muitas as utopias. Fiquemos atentos, todavia, àquelas que enviezadamente retomam o projeto burguês de sermos, como chama atenção Martha Rosler, “nossos próprios chefes”, “de onde [vem] o desejo legítimo de controle de nossas próprias vidas, que é achatado, transmutado em um desejo de possuir nosso próprio negócio – ou, fracassando nesse ponto,  deseja construir uma vida ‘privada’ em oposição ao mundo lá fora”[44] ROSLER, Martha. To argue for a video of representation. To argue for a video against the mythology of everyday life (1977). In: JOHNSTONE, Stephen (org). The Everyday. Londres: Whitechapel Ventures Limited, 2008. p. 52. [Tradução livre da autora. Não seria essa a ideologia individualista que está por trás da “caráter transgressor” do Manual do Gato? A despeito de todo o prazer e força do samba, eu não estaria também devendo a esse projeto burguês quando danço e canto ao som do Samba GIA, tomando Cerveja GIA comprada através de uma vaquinha, enquanto integro uma experiência artística que de algum modo julgaria como libertária? Não seria essa “utopia do possível” (como a ensaiada pela Cerveja GIA) algo equivalente à “cultura do voluntariado” em suas intencionalidades reformistas que, em última instância, por não querer pôr em xeque a estrutura do sistema, terminam por conservá-lo? A quais interesses estamos servindo quando, sem nos aproximarmos efetivamente dos fundamentos da “questão social”, majoritariamente propomos estratégias de sublimação de suas tensões enquanto construímos a ideia de uma convivência social pacífica?

A questão deve ser colocada, todavia, para além da moral. O que me interessa aqui é – para não ficarmos outra vez na constatação da ironia que obviamente está na estrutura de obras de intenção crítica como as do GIA (visto que este esforço já foi competentemente realizado por Fernanda Albuquerque e outros) –, suscitar um olhar para o que há de ideológico nesses trabalhos. E para o que há de ideológico, genericamente, no conjunto dos experimentos relacionais que, assumindo uma postura moral e proativa diante da realidade, às vezes terminam por, contraditoriamente, dissimular ideologia em idealismo. Para o que há de ideológico, portanto, na prática utopista de todos nós, agentes do campo da arte.

Pois não podemos esquecer que a arte é forma de representação e que a ideologia, “forma específica do imaginário social moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência (…), por ser o modo imediato e abstrato do processo histórico, é o ocultamento ou a dissimulação do real[45] CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 1997. p. 15.. Assim, considerando que o “discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica de identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade”[46] Idem., mais do que uma ironia, um trabalho como o DIA – Departamento de Interferência Ambiental não estaria, na imagem empoderadora criada para o cidadão (dado o fato de que nós nos tornamos a autoridade competente), dissimulando uma realidade de impotência e internalizando a repressão, cultivando uma subjetividade obediente, normatizada, “cidadã”, voluntária e civilizada?

O processo de institucionalização da arte, que hoje passa – no Brasil – em grande parte pelo terceiro setor (instituições e projetos culturais financiados via Lei Rouanet e similares) ou por algumas instituições públicas orientadas por lógicas igualmente sinérgicas entre o público e o privado, parece deixar ainda mais difícil esse que, acredito, é um dos pontos críticos e fundamentais da arte pensada por nossa geração. Se, ao que parece, não conseguimos vislumbrar possibilidades de existência para além desse campo instituído da arte, de que modo então fazemos parte dele? Insistindo na utopia de que seja possível atuar de forma crítica dentro desse sistema, ponho em dúvida, contudo, a concepção lugar-comum de que, findas as possibilidades de uma posição “contrária ou revolucionária” diante do mesmo, a solução então seria assumir, consensualmente, o projeto neoliberal e sinérgico do agir junto. Ainda que o “viver junto” seja talvez o grande aspiro de todo projeto civilizatório e que seja também horizonte para uma sociabilidade libertária, penso que não podemos perder de vista como, atualmente, essa utopia tem sido partilhada não só entre os produtores simbólicos do campo da arte como, também, massiva e muito competentemente, pelos produtores simbólicos da economia e da política. O que nos indicaria tal “coincidência”?

Não à toa a presidente Dilma Rousseff trouxe o ícone da antropofagia brasileira, a pintura Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral, de volta ao Brasil[47] Desde 1995 a pintura pertence à coleção do argentino Eduardo Constantini, integrando a exposição permanente do acervo do Museu de Arte Latino americana de Buenos Aires. para receber Barack Obama. Abaporu foi exibida no Palácio do Planalto – e pessoalmente apresentada a Obama pela presidenta – enquanto esta pediu ao norte-americano apoio político à candidatura do Brasil a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, baseando-se em argumentos de que “não nos move o interesse menor da ocupação burocrática de espaços de representação” e justificando que a candidatura advém, portanto, da prática cultural do Brasil: “nossos valores: tolerância, diálogo, flexibilidade”, “princípio inscrito (…) na nossa história, na própria natureza do povo brasileiro”[48] ROUSSEFF, Dilma. Discurso de posse presidencial, datado de 01/01/2011. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/poder/853564-leia-integra-do-discurso-de-posse-de-dilma-rousseff-no-congresso.shtml.. É em consonância com uma versão popularizada e midiatizada da antropofagia, integrada – junto com culturas como a de uma “participação proativa” ou do voluntariado – à política de uma sinergia público-privada presente em quase todas as dimensões da governabilidade, que Dilma proporá a Obama “uma construção que queremos juntos realizar”.[49] ROUSSEFF, Dilma. Discurso de recepção ao presidente Barack Obama, datado de 20/03/2011. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,integra-do-discurso-de-dilma-rousseff-na-recepcao-a-barack-obama,694534,0.htm. [grifos da autora] Que projeto transnacional é esse? Qual tem sido o papel da arte em todo esse processo?

Nadando todos neste mesmo mel, cuja pegajosa doçura – apesar de ser sedutora – pode ser paralisante, é o caráter ideológico (e não apenas singelamente idealista) de nossas “propostas cidadãs” que não podemos perder de vista. Diante das investigações estéticas e das experimentações às quais têm os artistas se dedicado, “aproximar arte e vida (…) pode também levar à idiotice e à banalidade de a vida ser reproduzida em nome da arte”[50] PAPASTERGIADIS, Nikos. Everything that surrounds: art, politic and theories of the everyday. In: JOHNSTONE, Stephen (org). The Everyday. Londres: Whitechapel Ventures Limited, 2008. p. 68. [Tradução livre da autora– ]. É nesse limiar tenso entre o que o cotidiano traz de possibilidades (no sentido da criação de possíveis) e o que, considerando somente as possibilidades que estão dadas a priori, ele traz igualmente de conservadorismo, que de alguma forma se situa o problema da crítica e da utopia vinculadas à “questão social”,  ambiguidade (talvez problemática) que ronda o trabalho de artistas como o do grupo GIA, e que se pode ver num trabalho como Pic-nic ou na proposição irônica e voluntarista de Degrau (2009)[51]   Em Degrau (2009), o GIA coloca, sob os altos degraus das portas dos ônibus, um banquinho que ajuda as pessoas a subirem no veículo (http://giabahia.blogspot.com/2009/08/degrau-do-gia.html). O grupo também criou um samba homônimo. Disponível em: http://www.youtube.com/user/giaregistros#p/u/5/v0Sh3RE-ZYo.. Pois, enquanto a produção de subjetividade é o campo mesmo da resistência e da criação de modos de existência libertários, ela é também o alvo principal da reforma moral que o discurso neoliberal do “cada um deve fazer a sua parte” vem instaurando. E me parece que é em torno desse ponto de encontro que cada vez mais se fazem e circulam nossas ideias e obras.        

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Posturas críticas

Há certa crítica, ou seria melhor afirmar, de maneira mais ampla, uma postura crítica, que muito tem me interessado. Refiro-me a alguns experimentos no fazer da crítica de arte que tenho pesquisado no campo da arte brasileira e que remontam, num levantamento ainda muito inicial, ao ano de 1966 com o texto A condição básica, escrito por Aracy Amaral[1] Amaral, Aracy. Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burger. São Paulo: Nobel, 1983.. Neste texto, produzido para uma exposição dos artistas Antonio Dias, Carlos Vergara, Pedro Escosteguy, entre outros, Aracy realizou uma espécie de procedimento cut-up, ou montagem, entre falas de artistas, publicidade, textos críticos e filosofia. Ao misturar as diversas falas, estabeleceu-se um experimento textual aberto e sem hierarquias no qual se imiscuíam diferentes sujeitos enunciadores através de montagem, cortes e pontuações.

No início dos anos 70, um dos momentos mais importantes para novas posturas críticas foi sem dúvida estabelecido pelo crítico Frederico Morais e sua conceituação da nova crítica. A nova crítica previa outra prática crítica e uma nova relação entre crítico e artista. Um dos primeiros momentos da nova crítica aconteceu por ocasião da exposição Agnus Dei, realizada na Petite Galerie no ano de 1970 no Rio de Janeiro. A proposta geral da exposição previa três exposições individuais dos artistas Cildo Meireles, Theresa Simões e Guilherme Vaz e, posteriormente, um comentário crítico de Frederico Morais. A grande aposta de Frederico, a partir de seu conceito da nova crítica, foi a de realizar seu comentário através de outras três exposições-críticas, que se refeririam às exposições realizadas pelos artistas. Ao realizar as exposições-críticas, Morais colava-se de forma mais estreita aos trabalhos apresentados pelos artistas e afirmava, como Aracy Amaral, a possibilidade de uma crítica mais experimental pela apropriação dos discursos dos artistas. E de maneira diferente da crítica paulistana, Frederico efetivava seu comentário com as exposições-críticas nos interstícios das propostas já mostradas pelos artistas.

A nova crítica de Morais constituiu-se também através de outra proposição fundamental, os audiovisuais. No início dos anos 1970, o crítico realizou seus audiovisuais, proposições artístico-críticas constituídas por projeções, muitas vezes simultâneas, de slides, música, sons e textos. Entre seus audiovisuais estão O Pão e o Sangue de Cada Um (1970) e Volpi (1972) que discorriam e problematizavam sobre obras dos artistas Artur Barrio e Alfredo Volpi[2] Schenberg, Mario. Frederico Morais: audiovisual. Pesquisado em Centro Mario Schenberg de documentação da pesquisa em artes da ECA/USP – www.eca.usp.br/nucleos/cms/index.php. Outro audiovisual, Carta de Minas(1971/72), apresentava uma trama sutil que me interessa aqui apontar. Construído com textos (Affonso Ávila, Carlos Drummond de Andrade, D. Manuel de Portugal, entre outros), música e fotografias de Maurício Andrés Ribeiro, o audiovisual era composto por uma narrativa dividida em cinco partes: as minas, territórios, gerais, uma história de amor e a invasão. Em Carta de Minas, Morais realizou uma jornada lírica e crítica por Minas Gerais, no qual estavam presentes uma paisagem idílica e outra destruída pela exploração. Na parte denominada de territórios apresentavam-se slides da ação artística denominada Territórios, dos artistas Dilton Araújo, Lótus Lobo e Luciano Gusmão, realizada no ano de 1969 no 1º Salão Nacional de Arte Contemporânea em Minas Gerais. Na parte denominada uma história de amor, uma série de slides mostrava Frederico Morais despindo-se e, em seguida, com o próprio corpo deitado no solo, em sensível aderência com o chão e a terra. Somadas com as outras três partes, Carta de Minas estabelecia uma trama entre visões críticas da paisagem de Minas Gerais apresentadas em as minas e a retomada de uma paisagem mais viva em gerais. E, mais importante, havia a trama intersubjetiva entre a experiência simbólico-corporal do crítico e a ação artística Territórios do grupo de artistas. Como na experiência de Agnus Dei, Frederico urdiu seu comentário crítico junto com a trama poética da obra dos artistas.

Frente a estas experiências citadas anteriormente de construção de outra crítica de arte, dada num contexto bem determinado dos anos 60 e 70, é de se perguntar em que esse meu interesse inicial levanta algum novo dado para se pensar a situação atual da crítica. Ecoa muito de perto, e às vezes de forma contundente, a constatação de que a crise da crítica de arte é um sintoma de outras crises mais gerais. Luiz Camillo Osório afirma que há uma relação direta entre a crise da crítica e a da política, ambas atividades voltadas para o debate, para a pluralidade de vozes (…)[3] Osório, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.. A crítica, então, vista como esse espaço do debate, da diversidade de sujeitos e do diálogo de ideias, está em radical processo de transformação. Estariam os espaços de agenciamentos de sentidos, seja da crítica e da política, tomados pelos discursos da intolerância ou pela mudez da indiferença? Estaria a crítica apenas preocupada em legitimações do mercado ou com demandas burocráticas institucionais? Que salvaguardas temos que garantir para a continuidade dos espaços físicos ou discursivos do debate e do dissenso?

Uma crítica de arte publicada em 2002 sobre o artista Marepe, escrita por Lisette Lagnado (catálogo Marepe, Galeria Luisa Strina, 2002), esteve sempre muito próxima em minhas aulas e conversas com artistas. Talvez seja este o momento de ensaiar algum entendimento de suas questões, a partir do que foi até aqui proposto como discussão. Escrita em formato de uma carta, o texto principia como começam (começavam?) as missivas, com o local, a data e a saudação ao sujeito com quem se pretende conversar – Marepe, querido. A forma do texto construído como uma carta remete à forma das críticas dos salões de Diderot e aponta para outras experimentações textuais, por exemplo os textos Incomplete Glossary of Sources of Latin American Art, de Paulo Herkenhoff (catálogo Cartographies, Winnipeg Art Gallery, Canadá, 1993), e Gloss expandido (Expanded), de Adriano Pedrosa (catálogo Beatriz Milhazes – Mares do Sul, Centro Cultural Banco do Brasil, 2002). Mas são outras as questões do texto que se mostram prementes agora.

A forma da carta imediatamente nos transforma em curiosos leitores de intimidades alheias. De modo a não nos frustrar, o texto vai desfiando dados pessoais dos dois sujeitos da carta – o que escreve e aquele ao qual a carta é endereçada. A partir de distância tão estreita, quase comissura, entre a crítica de arte e o artista, são estabelecidos os diálogos entre Lisette e Marepe. Dados biográficos pessoais da autora colam-se indelevelmente na narrativa crítica escrita para Marepe e, em diversos momentos, justapõem-se territórios e geografias de ambos. Se no começo a crítica afirma seu nascimento na cidade de Leopoldville (atualmente Kinshasa), é para estar perto de Santo Antonio de Jesus, cidade onde nasceu e mora o artista. E se no final do texto-diálogo são dois os rios mencionados, Congo e Sururu, é para se encontrarem em franco desaguar.

O jogo textual de Lisette, habitado por uma prosa que se quer muito próxima, nos incita a uma constante reconfiguração do nosso olhar. As obras de Marepe, tão cheias das experiências de vida e memórias do artista, são trazidas pela crítica a partir de suas referências teóricas e também das suas vivências. Uma das estratégias para se entender a obra do artista passa pelos trânsitos e fluxos entre padrões culturais nos quais os sujeitos são construídos e outros com os quais se depara a todo o momento. Operações artísticas de apropriações, deslocamentos, alteridade, intervenções são sempre reconfigurações de espaço. Somos estrangeiros aqui ou em qualquer lugar e é a partir desta condição que nos aproximamos do outro, mas se vivemos desterrados de alguma memória e história, permaneceremos exilados. A relação entre os dois sujeitos da carta, o que escreve e aquele ao qual a carta é dirigida, é o do enfrentamento de suas distâncias.

As interrogações trazidas por Aracy Amaral, Frederico Morais e Lisette Lagnado, em suas críticas aqui apresentadas, interessam por sua permanente construção e reconfiguração. Suas posturas nascem de seus projetos intelectuais, vivências e contextos e é assim que investem numa urdidura mais estreita entre crítica de arte e artista. Assumem-se desvios, sejam das posturas tradicionais dos críticos ou da forma tradicional das críticas, e assim reverbera-se de forma mais densa as palavras de Baudelaire, ao afirmar ser a crítica parcial, apaixonada, política (…) concebida de um ponto de vista exclusivo, mas que descortina o máximo de horizontes[4] Baudelaire, Charles. Para que serve a crítica? In: Coelho, Teixeira (org.). A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988..

No texto sobre Marepe, Lisette Lagnado, em determinado momento, usa a expressão conceitos com afetos. E é a partir dele que penso ser possível vislumbrar a contribuição desses críticos apresentados e finalizar esse breve texto. Primeiramente ao trocar-se um narrador ausente por um sujeito afirmativo em primeira pessoa. Um sujeito construído (ficcionalizado?) que declara o risco de se mostrar frágil, ou falível, frente a suas paixões e escolhas teóricas e de estar tão próximo ao artista, suas obras e falas. E não seriam estas paixões que nos incitariam o desejo de diálogo e compartilhamento? Em seguida, e isto é muito importante, sinto estes textos construídos na chave dos afetos. Mas afetos vistos como a possibilidade de ser afetado, de se colocar disponível, ser contaminado, inquirido, maravilhado por algo do mundo e, aqui, por pesquisas e propostas artísticas. Agindo desta forma, partilham estas críticas de arte de um audacioso e necessário vir a ser indefinido da arte, como apontou Luiz Camillo no livro já citado.

E, por último, que não se confunda este novo espaço intersubjetivo com o lugar do compadrio, como nos assinala Sergio Buarque de Holanda com seu conceito do “homem cordial”. Tal lugar da “cordialidade” já está ocupado por uma crítica apenas preocupada em legitimação do mercado, demandas burocrático-institucionais ou favorecimentos de qualquer tipo. Por outro lado, o que as posturas críticas analisadas reformulam é um espaço aberto à interlocução e ao permanente desvio, construído entre conceitos e afetos, não afeito à imposição de juízos, mas pelo contrário, ao arriscar outros discursos e ficar muito próximo do artista, constituir nesse intervalo um novo lugar de fala[5] Ao finalizar o texto e após generosa leitura de meu texto preliminar por Clarissa Diniz e Ana Luisa Lima, percebi que outro texto estava comigo – refiro-me a 1990: L.A., “The Gold Field” (Ault, Julie (Ed.). Felix Gonzalez-Torres. Gottingen: Steidl, 2006)..

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Qual é o compromisso da crítica de arte?

Imaginem um crítico de arte trabalhando. Ele está em seu gabinete repleto de compêndios de filosofia da arte, ouvindo música clássica enquanto escreve, lê e relê seus próprios escritos. Até que ponto essa imagem, um tanto antiga, pomposa e cheia de clichês, ainda corresponde à realidade? É verdade que, neste exato momento em que estou escrevendo, consulto um livro de palestras compiladas, ainda sem tradução para o português, de Rancière, O Espectador Emancipado[1] Resolvi explorar a coincidência de que, no convite à colaboração para esse número da Tatuí, mencionavam o filósofo, que eu já vinha estudando, e trazê-lo também para a discussão. Os trechos foram traduzidos livremente por mim, mas aconselho a consulta do original para compreensão mais rigorosa., e ouço rádio, um costume quase anacrônico nos dias de hoje.

Mas é curioso pensar em como, ainda hoje, ser crítico de arte está diretamente relacionado a escrever sobre arte. Tenho me perguntado, com insistência, se o exercício da crítica de arte, hoje, pode ser subsumido à atividade escrita. Será que a forma textual já não compromete a relação mais radical que o crítico pode ter com a obra? E quando se trata de um texto encomendado, que tem por finalidade figurar em uma publicação e cumprir uma certa expectativa de “explicar”, “apresentar” um trabalho de arte? Na escrita há sempre um certo desejo de comunicação, daí a busca pela coerência, ordenação, precisão. Essa comunicabilidade – um pouco inseparável da feitura de um texto qualquer, acredito – e a mediação (termo amplamente usado no mundo da arte não só em relação aos textos críticos, mas também para os “textos de parede” de exposições, para textos veiculados em meios de comunicação de largo alcance e também para os serviços educativos) são, atualmente, pressupostos de qualquer texto de arte. Espera-se que um texto de crítica comunique uma ideia clara (de preferência que ele emita um julgamento) sobre uma obra e que ele a explique, fazendo a “mediação” entre o suposto objeto – obscuro – de arte e o público que é incapaz de “ver” sozinho.

Talvez sejam esses pressupostos, que aparecem na vida prática em forma de exigências (do editor, do galerista, do museu, etc), que estejam há tempos aborrecendo críticos, artistas e até mesmo o público, que começa a desconfiar de uma arte que precisaria de “bula” para ser entendida.

Em A crítica de arte como espaço privilegiado para a ficção contemporânea,Ricardo Basbaum dirige-se a esse mesmo problema. O autor fala de críticos que não estão dispostos a assumir riscos, produzindo textos reativos, sob encomenda, protocolares. Para ele, esses críticos não enfrentam o trabalho de arte, mas acabam por se esquivar dele, naturalizando o texto como mais uma peça na “linha de produção” do mundo da arte: obra –> texto “crítico” –> mercado. Nesse tipo de texto, segundo minha compreensão do texto de Basbaum, o crítico acaba por se colocar invariavelmente numa posição de “juiz” ou “professor”. Ou seja, em vez de dialogar com o trabalho, de travar um embate, de acompanhar seus impasses, suas ambiguidades, o crítico coloca-se de fora, numa posição segundo a qual seria capaz de formular um juízo neutro e distanciado.

Também é sobre essa posição de autoridade, ou “sujeito do suposto saber”, que Rancière lança sua atenção no ensaio já mencionado aqui. Embora ele comente mais a condição do espectador do que a da crítica, são pontos de vista diferentes de um mesmo funcionamento do sistema. Rancière argumenta que todo espectador é capaz de realizar, quando confrontado com um trabalho de arte, jogos imprevisíveis de associações e dissociações e nisso reside sua emancipação. “Ser espectador não é uma condição passiva que temos que transformar em atividade. É nossa situação normal. Aprendemos e ensinamos, atuamos e conhecemos também como espectadores que relacionam a todo momento aquilo que vêem com aquilo que já viram e disseram, fizeram ou sonharam… Não temos que transformar espectadores em atores, nem ignorantes em doutores. O que temos que fazer é reconhecer o saber que opera no ignorante e a atividade própria do espectador”.

Se levarmos às últimas consequências o pensamento de Rancière, segundo o qual o espectador é emancipado, não faz o menor sentido pensar numa crítica cujo compromisso seja o de esclarecer o leitor. Afinal, esse leitor tem uma visão própria do objeto de arte, não precisa que ninguém o auxilie nisso.

Como agir como crítico de arte nessa direção? Como sair da posição de “autoridade no assunto” sem cair em respostas evasivas ou relativistas, do tipo: é impossível formular qualquer discurso sobre um trabalho de arte, pois ele aparece diferente para cada subjetividade? Como conciliar essa abertura ao Outro [espectador] e conseguir formular discursos potentes que digam respeito aos trabalhos de arte? Como fazer uma crítica prospectiva, como a chama Basbaum, em seu texto, que não seja uma consequência da obra, mas atue junto com ela, na produção do Real? Uma crítica que seja o “duplo” da experiência sensorial da obra, em termos discursivos, capaz de gerar uma experiência conceitual tão radical quanto a da obra?

Levar às últimas consequências o apagamento das fronteiras que definem quem faz, quem vê e quem pode comentar um trabalho de arte parece ser uma condição formulada por Basbaum. Ela está implícita na noção do “artista-etc”, aquele capaz de transitar por diversas posições do mundo da arte e realizar uma des-hierarquização das posições, relativizar as especificidades dos campos de conhecimento, descolar-se de suas competências, do terreno do já-sabido. Com isso, lança-se ao desconhecido, ao surpreendente, tal como as obras de arte são capazes de despertar conexões jamais formuladas, pensamentos improváveis, que rompem categorias já estabelecidas.

O que essa casual confluência das leituras dos textos de Basbaum e Rancière me permite pensar é que o compromisso da crítica tem que ser com as experiências que os trabalhos de arte são capazes de gerar. Um compromisso que não é com um suposto público carente de informações e incapaz de pensar por si mesmo. Talvez esse compromisso exija que os críticos vejam a crítica de arte para além de um gênero literário, para além de um estilo discursivo, talvez até para além do discurso.

Basbaum finaliza seu texto, após comentar os trabalhos de alguns artistas próximos, apontando para dois “veículos” novos à época: o quiosque multifuncional de Bia Junqueira e Helmut Batista e a revista item, duas experiências muito profícuas, hoje sabemos. Permito-me aqui também comentar minha experiência recente no Ateliê397, espaço no qual venho trabalhando, junto com os colegas Carolina Soares, Mariana Trevas e Marcelo Amorim em São Paulo. Nem só de textos vive um crítico de arte. Talvez o crítico tenha que abandonar o terreno do texto. Tornar-se um crítico-etc. Deixar as palavras, “somente palavras”, rumo a outras atividades. Ou tentar conciliar as palavras, os conceitos, com uma prática nova. A criação de um espaço a partir do qual seja possível um diálogo mais aberto com os pares, a partir do qual seja possível formular propostas em conjunto com artistas, a partir do qual seja possível arriscar e testar certas injunções. Um espaço aberto e em construção permanente. A tentativa de montar uma programação consistente e viável economicamente para o Ateliê397 tem sido o exercício mais radical de crítica de arte que me propus até hoje.

 

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Imagem1: No tempo que se chama presente a personagem 1 reencontra uma caixa de madeira que contém uma carta e um diário.

Imagem2: Da primeira leitura da carta e do diário ao tempo q u e se chama presente passaram-se 48 anos.

Imagem3: A carta e o diário foram escritos pela personagem 2.

Imagem4: O diário discorre sobre momentos que a personagem 2 viveu com a personagem 3.

Imagem5: Na mesma época da primeira leitura, a personagem 1 escreve uma carta para a personagem 2.

Imagem6: A personagem 2 dá suas últimas notícias através de um bilhete trazido por um personagem 4.

 

O tempo sem esquinas

Cinquenta anos depois, reexperimentou os acontecimentos guardados numa pequena caixa de madeira muito simples. Era grande o suficiente para abrigar uma carta de uma página e um diário de bolso. A carta trazia a presença de quem havia sumido, sem deixar rastros; a não ser aqueles feitos das próprias lágrimas. Ela foi embora de súbito, sem aviso. Em poucas palavras, a amiga mandava notícias de onde estava num tom de serenidade. No diário, entre outras muitas anotações, discorria sobre a experiência de seus últimos dias no Brasil, especificamente em São Paulo.

Não era de estranhar que ela tivesse resolvido lhe escrever à beira de uma nova Bienal. Continuava preocupada em alertar o quanto a vida contemporânea – à despeito da vontade de uns poucos – acontecia por um sistema perverso que opera na esfera cultural (re)produzindo toda espécie de transe. Já não lhe interessava o embate, mas se resguardar daquilo que compreendia ser uma completa desfortuna da vida política. Por excesso de zelo com o trabalho da amiga que havia deixado em sua rotina pacífica, e sobretudo por amizade, colocou-a a par de suas reflexões sobre o assunto durante os anos nos quais esteve ausente.

Embora a carta tivesse postagem da Colômbia, mencionou rapidamente que estava em trânsito constante. Nesse sentido, que não se preocupasse em respondê-la, mas que ponderasse naquilo que resolveu contar em confidência.

 

Descaminhos

Dizia ela: há muito se fala de uma crítica de arte em crise, mas a ideia de crise parece não corresponder a esse excesso de texto produzido para catálogos, revistas especializadas, jornais, etc. O lugar da crítica não está em perigo. Hoje, encontra um espaço muito confortável dentro da maquinaria neoliberal produtivista.

Dessa forma, a maioria das tentativas independentes que tentam alterar o eixo de rotação em torno das necessidades de mercado não sobrevive, nem mesmo como alteridade pouco eloquente. O que se esmera já não são os gestos contraculturais, mas os graus de complacência nos quais o agente (artista ou crítico de arte) é capaz de desenvolver para se deixar absorver pela engrenagem.

Os gestos não são mais políticos, porém parte de jogos perversos de administração dos velamentos de atos dentro do sistema. Assim, se cria uma inadequação quanto ao lugar de atuação da crítica e sua própria constituição semântica.

A crítica de arte, pelo menos aí no Brasil, passa por um momento que, para fins de justificação das atuações em cima do muro, se diz opaco. Em sua maioria os textos sobre arte que lemos não podem ser tidos como críticos na dimensão que se tinha antes. É possível perceber que a escrita sobre arte está sendo ativada mais por uma demanda institucional-mercadológica e menos por um exercício crítico independente.

Isso não quer dizer que a demanda institucional e de mercado configure um mal em si mesmo. Não se trata aqui de inscrever moralismos – a ideia de bem e mal numa configuração neoliberal é completamente demente. Mas de reconhecer que este tipo de escrita quase sempre a priori altera a rota desse ato inadequadamente chamado de crítica. De outro modo, cumpre uma função que não de pensamento reflexivo sobre o trabalho de arte, mas de afirmação de procedimentos, discursos e visualidades. Por se tratar de uma demanda de legitimação, isso interessa a quem? Eis a questão. Há aí um paroxismo semântico ao guardarmos todos os textos sobre arte, ou a partir dela, no bojo da crítica de arte.

 

Clivagem

“Má-fé e hipocrisia são atos de fala cujo sucesso depende de uma operação de mascaramento, já que pressupõem que o Outro não é capaz de desvelar a clivagem entre o valor ao qual o enunciado aspira e o interesse que anima a enunciação. Nesse sentido, a máfé quanto hipocrisia devem aparecer como casos típicos de insinceridade. Elas são figura de um falar e de um agir que se organizam como arte da camuflagem de clivagens. A exposição da clivagem anula a força perlocutória do ato.” 

Vladimir Safatle, em Cinismo e falência da crítica

Para ela, a verdadeira atuação crítica seria a de conseguir instaurar justamente a crise real: o lugar de transição entre uma realidade e outra. Dizia que mesmo os textos que se ocupavam em discutir as desventuras da relação arte-e-mercado já não eram capazes de provocar qualquer tipo de fissura. Hoje está criado um filão de ávidos pseudo-leitores-fruidores desse tipo de (má) literatura.

Assim, propôs um diagnóstico muito interessante. Essas já não tão atuais formas de pseudocrítica começaram a, no fundo, contribuir para o desserviço de tirar o foco das próprias investigações artísticas. Voltaram-se para uma análise quase sempre superficial do mercado, sendo impossível, absolutamente, gerar qualquer tipo de novas formas de pensar e agir diferentes do que já está posto.

A crítica de arte transitava em dois polos: 1. o de investir-se ingenuamente em uma escrita · 92 · · 93 · de rancor e re-sentimento em relação ao sistema de arte, que leva à impossibilidade de transformação em relação às alienações produzidas pelo modelo mercantil já entranhado; 2. o do texto, também superficial, engendrado para funcionar como legitimador de processos e visualidades que alimentam justamente esse mercado; afirmou inclusive que era urgente se pensar em um novo nome para este tipo de construção textual. Ambos os modos de “crítica”, ainda que feitos com intenções distintas, acabam por ser dispositivos que alimentam a grande máquina de produzir dinheiro. Dinheiro esse com fim em si mesmo.

 

Intempéries

“, como naquela noite em que perdi a fé em quem mentia ao falar de seus princípios, invocando textos cujo o sentido profundo estava esquecido.”

Alejo Carpentier, em Os passos perdidos

Entre uma página e outra daquele audacioso diário, algumas inquietações ganharam arquitetura dentro daquela amiga-leitora, que – mais pelo cansaço, menos por desesperança – havia se pacificado em sua rotina. Tanto que escreveu de volta uma longa carta sobre as inquietudes que conseguiu transformar em pensamento compartilhável.

Disse assim: o certo é que, ao meu ver, o constante ataque às relações mediadas pelo mercado, que engolfam também as relações pessoais, já não produzem efeito ativo. Tendo a crítica de arte paulatinamente se movido do lugar de reflexão sobre a produção artística, sobretudo dentro do caldeirão social, político e histórico no qual tem sido construída, fica um vácuo sem precedentes para uma escrita inócua. Tanto quanto, parece-me inevitável o deparar-se com projetos artísticos que, precocemente caducos em seus discursos, já não se importam em dar uma satisfação acerca dos seus joelhos dobrados perante a ordem mundial, que não incita outra coisa senão o mergulho, cada vez mais cego, nos modos mercadológicos de pensar e agir.

Hoje já se tem por razoável o deixar domar-se pela engrenagem que faz os agentes do campo da arte trabalharem por demanda, numa lógica aturdida de fluxos de pensamentos – e com um excesso de citações de pensadores europeus, notadamente, franceses. Tais pensamentos não se consolidam enquanto ideias-hipóteses, conceitos, conhecimentos. Isso acontece porque não há inflexão nos debates. Os que se autopromovem são uníssonos, poucos preocupados em deixar as arestas e contradições permanecerem enquanto tais, assim como não há uma construção sistêmica (seminários, revistas de arte e congressos que sejam perenes) que dê conta de criar respiros entre uma discussão e outra. Sem fôlego, as construções de um pensar esfacelam-se junto aos seus autores.

Por exemplo, não é possível identificar um debate comum no qual todos tomem parte. Houve o esboço disso em torno das políticas públicas, mas acabou-se dissolvendo em ataques a ministra da Cultura. E mais uma vez, uníssonos nesse ataque sub-existem as verdadeiras agendas como repensar a lei Rouanet e afins. O que há é uma esquizofrênica produção de discursos que interessa menos à comunidade pensante e mais à necessidade de legitimação de processos e visualidades que pouco têm a ver com discussões de fato interessantes à arte como conhecimento humano. Servem, porém, a uma arte usada enquanto commodity. São os textos, parte de uma linha de produção marqueteira, que atuam na ordem do convencimento de determinado público de que aquele produto é arte, é bom, “político” e socialmente correto, por isso mesmo serve como investimento econômico garantido. Ora, não é coisa recente o investimento do neoliberalismo na retomada da moralidade cristã. O retorno ao bom-mocismo.

O problema que não salta aos olhos já não é essa simpática forma de lidar com a arte, mas a construção muito sutil de um discurso por trás do discurso. Por exemplo, os projetos empreendedores que visam incorporar jovens artistas ao sistema. Em princípio, parece absolutamente saudável a tentativa de abrir espaço para a produção de arte feita por artistas no início de sua trajetória. O problema, contudo, está no modo da recepção desses trabalhos. Enquanto obra, já nasce pronta para o sucesso no mercado, enquanto arte, é natimorta.

Para além de sua dimensão objetual, nesse ponto é preciso entender arte como uma construção complexa de síntese do conhecimento. Como síntese e não como hipótese, não é possível submeter-lhe imediatamente à análise minuciosa, sem recair em erro, ou em superficialidade, porque ainda recém posta no mundo. E como coisa nova precisa ainda se afastar, e se aproximar, restabelecer condições de troca, rearticulações de parâmetros. Desse modo, toda a tentativa de justificar, organizar, delimitar o “lugar” de atuação conceitual da obra recém-nascida se presta muito mais ao convencimento daquele que se aproxima interessado em seu “valor” do que aquele que se aventura no embate nem sempre generoso com a obra de arte. Muitos subestimam o embate com a obra, pressupondo que aquele que não consegue articular em palavras os meandros daquele trabalho é um deseducado formal. Longe disso: há trabalhos de arte que não se dão às articulações sistematizadas de pensamento, porque contemporâneos das construções teóricas que futuramente darão conta da sistematização dos conhecimentos elaborados nesse tempo de formação de ambos: obra de arte e conceito.

Uma espécie de demência instalou-se entre nós com essa absorção pacífica do fim das coisas. É certo que os modos de pensar e agir do capital nos engoliram de um modo que, de fato, parecemos viver numa espécie de fim prorrogado ad infinitum. Vivemos num tempo sem esquinas. Todas as criações que eventualmente poderiam nos dar um vislumbre de novidade, logo são cooptadas pelo grande sistema, precocemente seladas como parte desse todo – só aparentemente heterogêneo. Mundializados, somos mais iguais do que diferentes frente à ventura que é existir. As instâncias mais subjetivas estão desgraçadamente mediadas pelo capital. Assim, quando não estamos usando os mesmos jeans em qualquer parte do planeta, estamos programados a pensar que temos necessidades desnecessárias, que vão desde a última geração de computadores e celulares ao café “orgânico” pró-mãe natureza.

Dessa forma, já não adianta investir-se em “críticas” tão somente aos modelos aí postos (como exemplo do modelo bienal). Mas se dedicar a uma ampliação de atuação que incorpore, no modus vivendi, valores como generosidade, amor, alegria. Porque o político, como tem sido apresentado, por certo que se perdeu na nossa impossibilidade de exercitarmos o experimentalismo da nossa liberdade.

Terminou a carta agradecendo por todas aquelas considerações compartilhadas que a ajudaram a retomar posturas cujo passar do tempo tornaram-nas rarefeitas. Aproveitou para dar notícias de que em breve deixaria a edição de livros para dedicar-se apenas à escrita. A ideia de um livro sobre “o ridículo” acabara de surgir. Despediu-se com um beijo e o desejo do perto. Ainda que soubesse que o perto, naquele caso, seria sempre uma engenharia do sentir.

 

Político

Ao fim daquelas considerações, havia uma transcrição das palavras de Hannah Arendt, em seu livro “O que é Política?”:

“Essa liberdade de movimento, seja a liberdade de ir em frente e começar algo novo e inaudito, ou seja a liberdade de se relacionar com muitos conversando e tomar conhecimento de muitas coisas que, em sua totalidade, são o mundo em dado momento, não era nem é, de maneira alguma, o objetivo da política – aquilo que seria alcançável por meios políticos; é muito mais o conteúdo e sentido original da própria coisa política. Nesse sentido, política e liberdade são idênticas e sempre onde não existe essa espécie de liberdade, tampouco existe o espaço político no verdadeiro sentido.”

O diário termina contando sobre sua última caminhada pelo centro de São Paulo, na companhia de uma outra querida amiga, artista, uma espécie de Professor Pardal. “Era preciso ser poeta, ou criança, para conseguir transmutar em palavras aquela sensação de ter visto uma árvore cantante em pleno burburinho da cidade. Além do beijo cálido do sol – que naquele momento havia-se avermelhado –, irradiava toda sorte de cantigas de passarinhos. Parecia-lhe uma realidade-mágica na qual tudo, sem a regência de uma batuta, concordasse em estabelecer um campo harmônico”.

Contava também que fez sua última refeição no mercado público, que andou pelos bairros de Campos Elíseos, Santa Cecília, e passou pela Cracolândia. O vento era frio, mas o sol fazia seu olhar se iluminar de outras possibilidades de estar no mundo.

Enquanto caminhavam, a professora pardal lhe falava sobre a sociologia do tempo a partir dos prédios daqueles bairros e de como, ali pertinho, havia uma comunidade de africanos, cuja existência poucos sabiam. E lembrou dos japoneses, chineses, coreanos, moradores e fundadores do que hoje se chama Brasil e nem por isso se sabe ao certo do que de fato se trata. Como somos Brasil? Ainda que não possamos colocar em dúvida o fato de sermos brasileiros; pensou.

Nela, despertou a necessidade da liberdade, do diálogo; isso deveria se dar em que termos? Ora, para que houvesse uma real estrutura para à boa política, haveria que se estabelecer condições de liberdade. E a ideia de liberdade, de alguma forma talvez romanticamente natural, parecia existir dentro dessas comunidades, nas quais, “ex-patriados” se sabiam pares. Acredita-se que por isso mesmo resolveu ex-patriar-se.

As últimas notícias que teve sobre a amiga que tinha partido eram antigas (quarenta e oito anos atrás). Através de um bilhete mandado por um amigo em comum, falou que tinha recebido com amor a sua carta. Daquele momento em diante, perambularia pela América Latina no afã de entender as semelhanças e dessemelhanças sociais, políticas e históricas, que nos faziam latino-americanos tão distantes, num apartheid velado. A última coisa que disse foi: se sem pares não há liberdade, sem liberdade não há boa política; não será a arte, nos termos que se estabeleceram como um conjunto de bulas e engrenagens, que abrirá espaço para emancipação.

Dedicar-se-ia à generosidade que, para ela, significava um modo de estar no mundo: afetável, movediço, dialógico, acolhedor. Parecia-lhe absurdo continuar replicando o modelo sistêmico da arte naquele momento: o (auto) empoderamento de alguns críticos de arte e curadores, a inabilidade dos artistas, de escritores e aqueles que pensam curadorias de se moverem para fora desses termos.

Passou a investir na alegria, ainda que sentisse constantemente as dores de quem fazia parte de uma pequena multidão de grávidos do novo mundo por vir – citando Galeano.

A alegria, como disse a minha amiga Daniela, é sempre política.

 

Epílogo

– Ao despertar do sonho viu-se encurralada numa realidade na qual já não cabia. Era difícil redimensionar o que nela ainda ficou da vida anterior – que pensou ter conseguido guardar tudo num número razoável de caixas de papelão quando foi embora às pressas.

– Em cima do criado-mudo, o radinho à pilha gritava: “Legalidade”. Não sabia que um pouco daquele positivismo poderia ter poupado muitas vidas.

– Sentou-se. Endireitou-se no encosto da cama. Estendeu a mão e pegou uma carta que parecia ser recém-chegada. Releu, agora sem calma, a epígrafe: “A esperança tem duas filhas lindas: a raiva e a coragem. A raiva do estado das coisas e a coragem para mudá-lo. (Santo Agostinho)”.

– Uma voz chegava rouca de algum lugar que parecia ser o fim da rua. Alguém, tirado à força de um cativeiro do qual parecia ter-se acostumado, repetia como mantra: – O passado nunca mais.

“A amizade é a condivisão que precede toda divisão, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir, a própria vida. E é essa partilha sem objeto, esse com-sentir originário que constitui a política.” (Giorgio Agamben, em O amigo.)

Em julho de 2010, quando finalmente conheci a autora dos textos que haviam me inquietado – como há muito não tinha sido possível acontecer nesse pequeno campo equivocado das artes visuais – entendi que as palavras têm muito mais força quando encarnadas.

Aquilo que, em mim, era intuição, começava a ganhar corpo naquele diálogo construído num diariamente comum (passamos 21 dias numa residência editorial promovida pela revista Tatuí, em Olinda-PE). Com Daniela Castro, desde então, tenho condividido minha existência entre emails trocados, encontros ao acaso, refeições compartilhadas, sonhos instituídos, cumplicidades ancoradas.

Investir-me numa escrita fluida me pareceu mais próximo daquilo que eu penso ser, junto com Mário Pedrosa, o “exercício experimental da liberdade” de Daniela. Assim, resolvi construir algo que presentificasse ideias que o texto-base escolhido traz, tanto quanto, vontades e desejos delineados nesse exercício de amor e amizade.

Isso porque, nesse pouco tempo de com-sentir, entendi que para além das experimentações formais nas construções textuais e projetos curatoriais, é no seu modus vivendi, sobretudo, que Daniela edifica seu criticismo.

Por entender que é imprescindível conectar as construções políticas nas práticas da vida – das mais simples às mais complexas – é que a generosidade, o amor e a alegria foram incorporados como valores e dispositivos de uma prática emancipatória. Suas palavras ecoam em mim e produzem vida: “a alegria é sempre política”.

 

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Um loop perfeito

 

Originalmente publicado na revista Trópico, em 3 de novembro de 2010.


Uma história radicalmente condensada da vida pós-industrial

Quando foram apresentados, ele fez uma piada, esperando ser

apreciado. Ela riu extremamente forte, esperando ser apreciada.

Depois, cada um voltou para casa sozinho em seu carro, olhando

direto para a frente, com a mesma contração no rosto.

O homem que apresentou os dois não gostava muito de nenhum

deles, embora agisse como se gostasse, ansioso como estava para

conservar boas relações a todo momento. Nunca se sabe, afinal,

não é mesmo não é mesmo não é mesmo.”

David Foster Wallace, Breves Entrevistas com Homens

Hediondos. Trad. José Rubens Siqueira, 2005 (1a edição no

original em inglês, 1999)

“The present is harder to find. It is being sucked out of the world

to make way for the future of uncontrolled markets and huge

investment potential. The future becomes insistent. This is why

something will happen soon, maybe today.”

Don DeLillo, Comsmopolis, 2003

 

A vida pós-industrial da primeira epígrafe-conto é o agora, o presente. É o mesmo presente difícil de encontrar, apalpar – o da segunda epígrafe – “porque está sendo ejetado do mundo para dar lugar ao futuro insistente do mercado descontrolado e de imenso potencial de investimentos. É por isso que algo está para acontecer a qualquer momento, talvez hoje mesmo”.

A constatação de Vija Kinski, Gerente de Teoria (ChiefofTheory) da personagem central de Cosmopolis, o jovem e trilhardário consultor financeiro Eric Parcker, se revela a partir de uma tontura familiar. Ela afirma o esvaziamento do presente, ou sua carga de especulação sempre projetada para um futuro pretensiosamente previsível, mas aponta para as consequências desse exercício de pura ansiedade no hoje. Um loop perfeito, sem passado: o vídeo ou filme que pegamos pelo meio numa exposição de arte contemporânea não se mostra como uma perda da parte não vivida, mas enuncia o futuro do seu re-começo no instante em que se adentra a instalação.

Estatonturaconhecidanãonosabandonaenquantonavegamos pela 29aBienal de São Paulo. Aarquiteturaerrante da exposiçãonos é oferecidacomo um arquipélago com centenas de “ilhas” a seremvisitadas –trabalhosartísticos de indiscutívelqualidadeselecionados sob a rubrica da “arte e política”, que exigem tempo, envolvimento e atenção para seremabsorvidos.

A linha narrativa de Cosmopolis marca a esquizofrenia do capital especulativo na aurora daquilo que veio a culminar na crise econômica mais severa da história que vemos hoje, a queda do iene, em 2000. Trata-se da navegação errática de Parcker pela ilha de Manhattan dentro de sua limusine altamente equipada com dispositivos de segurança e de bem-estar, durante um período de 12 horas de um dia qualquer de abril do primeiro ano do século 21, no intuito de conseguir um corte de cabelo. Entre gráficos de bolsas de valores e em constante movimento, o consultor assiste centenas de milhões de dólares escoarem na medida em que o iene despenca e afeta a economia no mundo todo; tem encontros sexuais com sua amante galerista; encara reuniões com vários membros de sua equipe; vê sua limusine danificada por um protesto anarquista contra a reunião do G8 e cinicamente regozija com a passeata que exibe o caixão de seu cantor de rap favorito.

No centro da ficção-científica blasé de DeLillo está um orquestrado desejo de profundidade por parte do autor e de suas personagens, conseguindo alcançar apenas uma superficialidade roteirizável que acompanha o ritmo da flutuação especulativa do capital imaterial e da especulação linguística. O livro apresenta uma economia radical de vírgulas (pausa, respiro, contemplação), e os pontos de interrogação (dúvidas, questionamentos) são substituídos por pontos finais, numa linguagem seca e rígida. O clímax da narrativa se resume ao personagem ter de conviver com o fato de que sua próstata é assimétrica, qualidade que partilha com seu assassino, o lunático BennoLevin, numa conclusão previsível e banhada a testosterona.

A metáfora que se lança em jogo é o esvaziamento do indivíduo de sua carga subjetiva para um corpo depositário de informação infinita, pois vemos a substituição na narrativa do livre arbítrio pela arbitrariedade. O deslocamento incerto, ou mobilidade, é condição paradigmática do livro, bem como o é a condição da vida pós-industrial neoliberal.

Em tempos que marcam um limbo de emergências (política, ecológica, psicossocial) e o desconforto pelo atropelamento constante do devir, há uma patológica explosão de paradigmas simultâneos contra os quais julgar nossa posição no mundo. Tudo se relativiza e se negocia no trânsito errático entre a herança do insistente “universal” (estado-nação) e o seu sinônimo daltônico (crise congênita do estado-nação), o “global”. As bandeiras de “Apolítico” (2000), de Wilfredo Prieto, timidamente instaladas no exterior do pavilhão de Niemeyer, atestam a coreografia hereditária da verticalidade dos postes firmes e dos rituais oficiais rígidos de outrora. Na instalação do artista cubano, o “global” não se manifesta como uma ruptura com seu passado totalitário, bipolarizado e bélico, e sim como uma continuação lógica, mesmo que com menos definição e mais arbitrária, de seu irmão “universal” moderno.

As bandeiras estão hasteadas em preto e branco, desprovidas de cor que carimbariam diferenças, fronteiras e valores nacionais. Ao invés de aludir a uma arquitetura globalizada – marcada pelo desejo politicamente correto pela horizontalidade, pela igualdade e pela ideia de comunidade –, elas explicitam o estereótipo, ou seja, a desengonçada indefinição de códigos de diferenciações culturais, seguido da insegurança violenta frente à constante ameaça da homogeneização identitária ocidental.

Daltônicas, sem as cores que garantem a distinção entre as formas, as bandeiras da França pseudodemocrática de Sarkozy e da Itália fascista de Berlusconi são as mesmas. O internacional deu lugar ao “internacionalismo”, já que o livre-arbítrio foi substituído pela arbitrariedade.

Sem querer abrir uma caixa de Pandora, dado o perfil heterogêneo do público globalizado da Bienal de São Paulo e (talvez) demandas institucionais menos heterogêneas, mas igualmente globais (lê-se “internacionais”), o vídeo comissionado Opus 666 do projeto Pixação SP é simultaneamente grosseiro e apaziguador, alentador e assistencialista, necessário e desprezível, justo e estúpido. Como resultado do excesso de agendas a serem cumpridas e de especulação de significações possíveis, o ato se neutraliza e se esvazia (não o ato da pixação em si, ou a suposta relevância daquilo que se convencionou chamar de “arte de rua”, mas a escolha de apresentar essa documentação na mostra). Desmaterializa-se; torna-se arbitrário.

Em exposições de portes físico e orçamentário gigantescos como as bienais é difícil assegurar a autonomia da arte. Sobretudo quando, em artigos publicados no caderno de cultura dos principais jornais do país, o presidente da Fundação e membro do conselho equalizam a importância de um evento de arte contemporânea com a imagem de um “novo Brasil”, em que a arte confere “riquezas e oportunidades”, atua como um “termômetro da economia”, “gerando progresso e benefício para todos”, que “mais cedo do que tarde, mais empresas brasileiras descobrirão como arte é um excelente investimento financeiro e social” e que “[A] indústria cultural brasileira terá papel fundamental no nosso desempenho na Copa do Mundo de 2014 e nos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio.”

Evidentemente que a esfera econômica é um dos aspectos envolvidos na construção de uma Bienal, mas o problema é quando ela se torna um dos paradigmas de fruição das obras. O excesso como tomada conceitual da carga política contida na arte se traduz no pavilhão como a lógica corrente da hiper-expressão do capital e da hiper-estimulação da atenção e dos sentidos, resultando no atrofiamento da habilidade de interpretar criticamente o discurso proposto. Essa explosão de símbolos na presente edição – arte e política, arte e mercado, arte e investimento, intercambiantes entre si – nos remete justamente à arquitetura do loop perfeito: o “Brasil país do futuro”, slogan vociferado desde um país ditatorial, é o hoje – o presente difícil de encontrar e de apalpar, cujo passado de violência, revolução e contracultura é sequestrado pela atualidade e transformado em valor de marketing na corrida pelas eleições.

Static (2009), do britânico Steve McQueen ilustra com brilhantismo o processo da alienação contemporânea. Com uma câmera 35mm, o artista sobrevoa em um helicóptero a Estátua da Liberdade, revelando detalhes inéditos do monumento. O ritmo circular, repetitivo e estonteante do percurso aéreo insiste na exposição de todos os pontos de vista possíveis da estátua, aludindo aos diferentes usos desse símbolo e desse signo, que serviram simultaneamente de paradigmas para movimentos de subversão, de controle ideológico e de potencial de consumo. Hipnotizados pelo som do motor do helicóptero e pelo excesso de imagens de sua superfície, nos damos conta de que a liberdade sofreu um processo de despolitização e foi esvaziada de seu conteúdo semântico. Ela vira apenas um logo, um substantivo vazio de significação, estático.

Tal como a liberdade, o termo “política” vem sendo tão abundantemente proliferado com distintas cargas ideológicas, frequentemente com paradigmas mutuamente excludentes – política da arte, política partidária, política do sujeito, política global, política do capital – em um processo de despolitização, que clamar seu uso hoje sem assumir pessoalmente as rédeas de seu significado não só é difícil, como perigoso.

O curador-colaborador convidado para compor o time curatorial da 29a Bienal, SaratMaharaj, expôs em sua apresentação no Teatro de Arena/CAPACETE [1] A nota de roda-pé não pertence a uma estrutura hierárquica de um corpo de texto principal e um secundário. Ela embasa ao mesmo tempo que é independente do texto que a tornou necessária. O leitor, em seu livre-arbítrio, pode conferi-la ou não, fica a seu critério. Esse é, portanto, o espaço ideal para se traçar algumas breves linhas sobre o programa do CAPACETE que compõe o projeto da 29a Bienal de SP.

O programa do CAPACETE no Teatro de Arena, com sua escala arquitetônica reduzida em oposição à sua escala histórica, promoveu encontros entre artistas, teóricos, músicos, arquitetos e acadêmicos de toda parte.

Com microfone, kibe, ou um copo de cerveja na mão, agenciou um estado de vizinhança entre indivíduos, instituições, bairros. Entre. Entre sujeitos, coisas e “Entre, fique à vontade”. Nas palavras de Marta Bogea – arquiteta responsável pela tradução das questões curatoriais que lhe foram pautadas em expografia da presente edição do maior evento de arte contemporânea no país – um vizinho em ativo convívio, que não somente reitera, mas que estranha seu próprio anfitrião.

Lembro-me no dia da abertura antecipada da Bienal, logo após a apresentação lotada do artista albanês Anri Sala, no dia 10 de março: estávamos todos no bar em frente ao teatro (um epicentro de vértices formando uma espécie de triângulo isósceles; situação geográfica em perfeita consonância com a intenção do CAPACETE de promover encontros dos mais diversos, comuns, no tecido da cidade). O bar, que hoje está sendo reformado para se tornar uma agência do Banco do Brasil, acomodava imigrantes nigerianos, a elite intelectual paulistana e de outras capacidades, artistas e curadores nacionais e internacionais, putas e garçons. Em dado momento – como dita a tradição nesta cidade – o diretor do programa foi abordado na eminência da estratificação do grupo para que fossem jantar num lugar “mais apropriado para os convidados VIPS e internacionais”. A resposta veio pronta e imediata: “Mas nem todos presentes podem pagar 100 paus por um jantar…vamos aqui mesmo no restaurante da Praça Roosevelt que deu a todos um voucher com desconto de 50%. E olhe para os artistas, para as pessoas: estão todos felizes!”. Estávamos felizes, e isso bastava. Qualquer baliza que ultrapassasse o paradigma da troca horizontal e fácil, do inusitado e do bem-estar comum entre todos os presentes – não-importasse-quem – era naturalmente alienígena àquela situação. O grande lance é o encontro, o contato, a conversa. Sem hierarquias; ou com elas, para aqueles que escolhessem adotá-las numa escala pessoal, contanto que fosse naquele lugar. Tudo bem. Somos só seres-humanos, recortados e limitados; ambiciosos para o bem ou para o mal (quando é que conseguiremos sair do binário católico-digital, ex-dicotomia, ex-dialética? A matemática, há milênios, nos mostra o padrão do infinito, a curva do π, apenas o provável da probabilidade quântica, o caos, mas, no entanto, nas humanidades, ainda adotamos a “arte e política”, “a riqueza e a oportunidade”, a direita e a esquerda, o passado e o futuro…e o presente? O presente, acredito, está na escala pontual e diminuta das conversas no café da manhã na Casa da Denise; na fazenda dos meninos; no sabático; no assistir canais de TV aberta; na busca por um coco gelado no Parque do Ibirapuera e, de repente, perceber que a 29a Bienal está em cartaz, adentrá-la e, ignorantes de sua proposta curatorial, percorrê-la sem um objetivo definido,apenas senti-la, gozá-la, sem ter a demanda de olhá-la com uma defesa crítica para depois cumprir o dever de escrever um texto a seu respeito…).

Assim, não é com honra, pois – como diz meu amigo, também amigo da minha amiga que me pediu o texto acima – a honra sempre carrega um resquício de poder, e portanto pode ser imerecida; é com Alegria que em nome do CAPACETE, agradeço a Agnaldo Farias, Moacir dos Anjos e a toda a equipe curatorial, editorial e de produção da 29a Bienal de São Paulo, e sobretudo à administração do Teatro de Arena, pela oportunidade de poder ter gerado entendimentos, aproximações, constrangimentos, faíscas, lançamentos, debates, performances, tédios e amizades nesse percurso entre erros, acertos e acertos. A Alegria é, por definição, sempre política.

uma certa preocupação com o verso-título da mostra retirado do poema moderno de Jorge de Lima, “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”. Segundo Maharaj, a tradução para o inglês por sinônimos mais próximos, arriscaria um ato sexista, dado que a palavra “homem”, traduzida para “man” excluiria da navegação mulheres, homossexuais e outras ditas minorias. Optou-se, portanto, pela versão “Thereisalways a cupofseatosail in”, que, percorrendo as curvas amorfas e sem objetivo preciso além do lucro a qualquer custo da arquitetura geopolítica global, boomerangueia para o português como “Há sempre um copo de mar para se navegar”. Para não correr o risco de descumprir uma agenda politicamente correta de um sistema democrático (sic) capitalista, que se intitulou teleologicamente o único possível, matou-se o sujeito. O sujeito da sentença original é excludente e o da sentença traduzida é inexistente. E sem quorum ou sem sujeitos, não há qualquer tipo de política.

“Oh, shit, I’mdead”, diz Parcker poucos minutos antes de Levin puxar o gatilho.

 

Referências

David Foster Wallace, Breves Entrevistas com Homens Hediondos. Trad. José Rubens Siqueira (SP: Companhia das Letras, 2005)

Don DeLillo, Cosmopolis (NY: Scribner, 2003)

Franco Bardi (Bifo), The Pathologies of Hyper-Expression. Trad. De ArannaBove (2007). http://transform.eipcp.net/transversal/1007/bifo/en#redir

Stuart Hall, “Democracy, Globalization and Difference”. In Documenta 11: Platform_1 DemocracyUnrealised(Kassel:HatjeCantz Publisher, 2002)

“IntelligenceAgency”, SylvéreLotringer em entrevista com Nina Power. Frieze Magazine, nº 125, Setembro 2009. http://www.frieze.com/issue/article/intelligence_agency/

Heitor Martins, “A importância da Bienal de SP para o Brasil”. Folha de São Paulo, publicado em 11-07-2010.

Nizan Guanaes, “O termômetro da Bienal de São Paulo”. Folha de São Paulo, publicado 24-08-2010, no caderno Mercado.

Roland Barthes, Aula (São Paulo: Cultrix, 7a. Ed. 1996).

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Ver um Mundo num grão de areia

A distância seria um pressuposto para a tarefa da crítica. Sem uma distância mínima, metaforizada no voo da coruja que sobrevoa os fatos à noite, após os acontecimentos, seria inviável exercer o ofício crítico. Essa seria uma visão, a grosso modo, de natureza hegeliana. Para um outro pensamento, benjaminiano, o crítico é aquele que vive uma relação epidérmica com o mundo. É ali, à luz da urgência do presente e em meio ao alarido do mundo, atento ao mínimo e ao coadjuvante, que o crítico se faz presente e necessário.

Atravessada por anos de estudos nos quais o segundo modo de pensar – benjaminiano – me mobilizou, iniciei a resposta ao convite da Revista Tatuí: escolher um ensaio, ou mais de um, paradigmático sobre arte contemporânea publicado nos anos 2000 e, através da análise do mesmo, produzir uma reflexão acerca do decênio que acaba de terminar.

Consciente da pouca distância temporal que temos em relação a este ciclo que ainda deixa rastros no nosso presente, ciente de que os anos 2000 representam o tempo no qual comecei a exercer o meu ofício de crítica e curadora, fui buscar as raízes desse começo. Assim, quem sabe, poderia apresentar uma visão minimamente própria sobre o cerne do que me tocou na produção de arte dessa década, através do texto e do trabalho de terceiros.

De saída, o pensamento da crítica, curadora e professora Lisette Lagnado me pareceu o ponto incontornável e mais coerente de partida. Tive a sorte de tê-la como leitora atenta e rigorosa dos meus primeiros textos, quando os seus escritos e as suas exposições já faziam parte do meu imaginário. Alguma coisa na sua bibliografia havia de me conectar com um espírito do tempo, um zeitgeist, dos anos 2000. Lagnado, ao ser consultada através de um e-mail sobre como eu poderia encontrar na sua fortuna crítica um texto que refletisse de forma concisa a década passada, replicou: “Se você me disser o que foi significativo nos anos2000paravocê, Luisa Duarte, talvez isso possa me ajudar a te sinalizar uma leitura. Eu prefiro ser guiada pelo outro… Vc tem pressa? Hope not.”

Essa resposta em forma de pergunta, que engaja o outro num pensamento a dois, que prefere seguir de mão dada, em diálogo, era aquela que eu mais desejava/precisava obter. A minha resposta, ansiosa e precária, foi a seguinte:

“Tivemos os anos 1960 e 1970 com mudanças radicais ocorrendo no mundo. Na arte, por um lado, houve o acontecimento de obras como as de Lygia Clark e Hélio Oiticica, e por outro o minimalismo, a arte conceitual, a pop art. Mas penso agora na arte realizada aqui em diálogo com o mundo, a vida, e, às vezes, em relação ao nosso contexto violento e ditatorial. Um claro viés político, de diferentes naturezas, esteve presente em boa parte da produção daquelas décadas.

Nos anos 1980 e 1990 lembro tanto do tão falado retorno da pintura, assim como, num contexto dilatado, do nascimento do neoliberalismo – Reagan e Thatcher surgem no limiar dos 1970 para os 1980. Em 1989 testemunha-se a queda do muro de Berlim. Começa a superação da Guerra Fria. Leonilson escreve em alguns de seus trabalhos: “leo não pode mudar o mundo”. Você, Lisette, escreveu: “leo não pode mudar o mundo. A frase, reafirmada em português e inglês, revela o quanto a impotência é inominável, a experiência do abismo, intransponível; as luzes da utopia e do heroísmo parecem abandonar a fortuna do artista”. Ou seja, trata-se de um tempo em que perde-se uma certa inocência, um idealismo. Entram em cena novas formas de articulação. O gesto de resistência e força parece partir da delicadeza, de uma admissão e exposição da fragilidade da nossa condição. Nos anos 2000, uma distância para com as mudanças radicais ocorridas no mundo a partir dos anos 1980 parece gerar uma nova conexão entre arte e mundo, arte e real, arte e política. Mas agora sob uma nova chave, não mais aquela das vanguardas, tampouco aquelas heróicas de 1968. Entra em cena um trabalho como o de Rivane Neuenschwander, as trocas, olhar a poeira, a micropolítica, a convicção de que menos é mais. Sinto que há uma reação a um mundo que vai carcomendo todo o nosso poder de vida, de potência, silenciosamente somos podados no que nos é mais precioso: nosso tempo, nosso desejo, nossa imaginação. A arte que de alguma forma mais me interessa reage a isso e sinaliza para maneiras não espetaculares de lidar com o mundo. Vejo em 2003 o trabalho Oceano possível, da Sara Ramo, e aquilo é uma epifania. Um mundo em um espaço micro. Essa dialética de operar mudanças numa escala micro, mas não menos potente, me interessa desde lá. Não se trata do particular, do individual, mas sim de uma nova forma de operar e dialogar com o que está fora; com o outro.

Garaicoa, Macchi, Rivane, Dominique, Sara, Marilá, Cinthia, Nicolás e tantos outros, são nomes que me levam a pensar nesses anos 2000. A sua Bienal Como Viver Junto marcou os anos 2000. As discussões sobre uma arte política narrativa e outra não narrativa também estiveram presentes nessa década. Tento manter a esperança em meio a uma brutalidade imensa. Os anos 2000 estão um pouco naquela passagem da Ariane Mnouchkine, que já te mandei mais de uma vez. Lembra? O mundo está explodindo, mas ainda tentamos, loucamente, ter esperança… Somos náufragos e salva-vidas. E a arte que me interessa busca modificar, mesmo que um pouquinho, este mundo ao redor… Salva-vidas… Mesmo que efêmeros…”.

Segue a resposta de Lisette Lagnado ao meu brainstorm:

“Luisa, querida, li e te vi neste relato, sim. E sim, a Rivane foi muito importante no meu crescimento intelectual e sensível. Ela resume tudo! Vou buscar aqui nos meus cacos alguns fragmentos para você escolher, pegar ou cuspir, como canta o Raul Seixas, que a Mira me colocava na vitrola dela um ano antes de morrer… Hasta muy pronto, Bjs, Lisette”.

Nessa resposta final de Lisette, estava dada a centelha que eu precisava para deflagrar o processo e dizer, mesmo que em cacos, o que me interessa sobre a década passada. Após essa troca, decido escolher, enfim, os textos A troca e o troco, de Lisette Lagnado, e Olhar a poeira, por exemplo, de Moacir dos Anjos, ambos sobre o trabalho de Rivane Neuenschwander.

O ensaio de Moacir dos Anjos me pareceu um complemento mais do que adequado para dar conta da poética da artista. E também pesou o fato de ser um ensaio que chegou às minhas mãos quando eu começava a escrever sobre arte – portanto um período de formação –, tendo cumprido um papel importante no meu olhar. Assim, busco sublinhar a importância destes ensaios para a compreensão de uma obra-chave – “que resume tudo!” – para se pensar um desenho possível da década passada.

Em A troca e o troco, Lagnado realiza uma interpretação complexa sobre as relações de troca, trabalho e uma forma singular de economia presentes na obra de Rivane. O texto tem início com a citação de um sonho, no qual a autora está dentro de uma mostra da artista. As obras surgem ali sempre “ameaçadas” por um público tão vivo quanto desastrado, a ponto da exposição desabar.No mesmo sonho, a resposta da artista, serena, sábia e desapegada, para o espanto da curadora diante do caos: “É assim mesmo. A vida faz parte. É a medida do trabalho.”

“Analisar esse conjunto de imagens me serve para tratar das diferentes participações, colaborações e parcerias que estão na base da produção criativa dessa artista. Para uma primeira camada de interpretação daquele sonho, conservo a sensação de que os visitantes da exposição estão presentes no recinto, mas que esse comparecimento é também sinônimo de ausência de clareza. Já não é novidade emitir, nas contínuas pesquisas de Rivane, qualquer observação relativa à sua tênue visibilidade. É um dado que se verifica inúmeras vezes. Por exemplo, quando ela ressalta o contraste entre cada taco do piso de madeira, incrustando pó de mármore nas linhas de junta [Stephen Friedman Gallery, Londres, 1999]. É preciso avançar agora e dizer que fazemos parte da ressonância dessa “obra”, do aumento de suas capacidades, venha ela a desabar ou não, e que somos integrados no seu cálculo.”

A fala sonhada de Rivane, sobre a vida como medida do trabalho, não poderia ser mais aguda, sensível e desapegada. A primeira análise de Lagnado, penso, reúne os dois aspectos essenciais da obra da artista, quais sejam, sua intencional presença discreta e frágil no mundo, e a capacidade de colocar em obra o gesto de cada um, o nosso gesto, como parte muitas vezes fundamental para o acontecimento do trabalho. Como afirma Lagnado, essa “participação” está integrada ao cálculo primeiro da artista. Nessa junção entre fragilidade e um plano que pressupõe a nossa presença, desastrosa ou não, está posta uma medida para o trabalho que inclui a vida.

Os anos 2000 reativaram uma dimensão do real – do mundo da vida – na produção contemporânea. Não uma vida lírica como a de Leonilson na passagem dos 1980 para os 1990, ou aquela que fez com que tantos álbuns de família fossem resgatados em favor de uma articulação poética diante de uma realidade cujo senso coletivo havia sido aniquilado no auge do regime neoliberal. Não, a vida na última década ressurge em muitas obras como um desejo de vida emancipada, reverso da Vida Nua. Um desejo de vida partilhada em meio ao auge de um projeto cuja raiz está, justamente, no extremo individualismo e no solapamento de todas as capacidades de sublimação humanas em favor de sua produtividade, utilidade e consequentemente alienação. Um trecho de um filme, Os Residentes, de Tiago Mata Machado, condensa esse sentimento: “Essas pessoas não se interessavam por mais nada, diziam que o esquecimento era a sua maior paixão, queriam reinventar tudo a cada dia, tornar-se mestre e senhores de suas próprias vidas. Viviam em um mundo sem transcendência, um mundo utilitário e sem poesia, contra o qual um dia resolveram pegar em armas”.

A questão é: quais são as armas de hoje – dos anos 2000 – para um inimigo sorrateiro como este, que nos ataca desde dentro? Não são as mesmas de 1968, certamente. Penso que a poesia da obra de Rivane, o pensamento de Lagnado e o de dos Anjos, podem iluminar esse percurso.

Lagnado, de forma notável, demonstra essa rede que atravessa a nossa contemporaneidade: o sonho nos fala de uma demolição, advinda de fora, súbita e avassaladora; ao mesmo tempo em que, pela fala de Rivane, construída no sonho de Lagnado, tal demolição é relativizada e posta na conta do fluxo do devir. “Vejo-me na condição de sentinela, cuidando para impedir os “estragos” causados por essas duas forças, enquanto a autora da obra demonstra o mais completo desapego. Se não acredito numa suposta insignificância do fazer artístico, só posso estabelecer uma correspondência entre os signos desse sonho e o plano da realidade”.

Esse compromisso com a importância do fazer artístico e seus vínculos com o contexto em que ele é realizado, com o mundo em que vivemos, marca toda a trajetória do pensamento de Lisette Lagnado e tem na obra de Rivane Neuenschwander um lugar exemplar de acontecimento.

“Sabe-se que uma exposição de arte (de objetos, de sentimentos, de ideias) requer o zelo de um vigilante. Rivane intui, além dos conceitos de frágil e perecível que tanto foram mencionados em textos anteriores sobre ela, que a responsabilidade abarca outros compromissos que a forma.O problema do público passa por uma necessidade de cuidados. Sem manutenção, a produção do homem desmorona.2 A montagem de Chove chuva só é exequível se houver um gerenciamento da instalação, isto é alguém, com disponibilidade, a quem é transferida a tarefa de passar a água dos baldes inferiores para os baldes suspensos a fim de que o processo de gotejamento possa cumprir seu ciclo. A tentativa de “proteger” o trabalho de uma ruína, material e moral, não deixa de ser uma espécie de dispêndio ou de doação.Por isso, sustento que essa modalidade de participação há de ser inserida numa “política da amizade”.

No trecho acima, Lisette introduz a seguinte nota de autoria de Paul Ricouer: “Onde há poder, há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade. Quanto a mim, tenderia mesmo a dizer que o objeto da responsabilidade é o frágil, o perecível que nos requer, porque o frágil está, de algum modo, confiado à nossa guarda, entregue ao nosso cuidado.”

Penso que não é à toa que uma obra marcada pela fragilidade, a delicadeza, a “tênue visibilidade”, por uma inteligência poética discreta e precisa, que envolve o outro em cada passo dado, seja aquela que “resume tudo” do que interessa aqui destacar sobre uma produção artística e reflexiva nos anos 2000. Quando elegemos essa obra como paradigmática, estamos dizendo que a arte que nos faz pensar de forma mais aguda e sensível sobre nós mesmos e o mundo no qual vivemos tem uma natureza frágil, sendo, a um só tempo, forte.

Mas essa fragilidade primeira é o que nos dá o passaporte para deixarmos o lugar contemplativo e ganharmos um espaço dentro do trabalho. Somos parte essencial da equação, antes de tudo pela sutil cumplicidade com o outro engendrada pela artista. Sobre esse tom de delicadeza, de murmúrio, que se escuta na obra de Rivane, Moacir dos Anjos escreveu com igual sutileza: “Olhar a poeira, por exemplo. Não como um todo indiviso, nuvem opaca e indistinta. Mas olhar detidamente cada uma de suas pequenas partículas suspensas no ar (e também o espaço exíguo que separa umas das outras), identificando o que não é notável ao senso apressado e comum. Mais ainda: não somente decompor em partes o que se apreende tantas vezes como inteiro, mas aceder ao fato que é da percepção do ordinário e do quase impalpável que se engendra, num processo não consciente de cognição, a percepção do que é relevante e visível.[1] Esse percurso do conhecimento é sugerido por Gilles Deleuze, para quem as pequenas percepções são menos partes da apreensão de um fato, do que seus requisitos ou elementos genéticos (DEULEUZE, Gilles. A Dobra. Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991) É desse impulso de conhecer o mundo escapando de um juízo totalizador e amnésico de suas porções constitutivas que, ao longo de uma década de produção intensa, Rivane Neuenschwander tem composto uma obra impermeável, ela mesma, a definições abrangentes. Valendo-se de modos de expressão variados (instalações, filmes, construção de objetos), a artista torna manifesto o que, na vida corrente, é só rumor, pedaço ou entrevisto. Inexiste nesse intento, contudo, elogio algum ao que é frágil ou contingente, posto que a sua obra não se ocupa de criar refúgio para o desconforto que se possa sentir no mundo. Há, ao contrário, o desejo de dar a potência devida ao murmúrio incessante das pequenas coisas que o formam e habitam, sejam elas uma palavra, um gesto, uma imagem ou um momento. A sutileza de seus trabalhos é da ordem, portanto, daquela encontrada na prosa de Clarice Lispector ou no cinema de Eric Rohmer: afirma que o importante pressupõe o prosaico e dele depende para existir”.

Com a habilidade para extrair potência de elementos, hábitos e lugares os mais prosaicos, assim como um Rohmer e uma Lispector – por que não dizer, como Virginia Woolf também? –, Rivane constrói uma obra única em meio à arte contemporânea, muitas vezes repetitiva e repleta de fórmulas. Sua natureza nos contamina com a força forjada pela delicadeza, força esta necessária para lidarmos com um tempo sôfrego como o nosso. Sem alarde, revela que cada um, na própria e incontornável singularidade, não é só espectador, mas também sujeito. A arte e o pensamento gerados nos anos 2000 nos recordam a insuspeita força que mora na fragilidade e na esquecida potência que reside em cada um de nós, fazendo assim, quem sabe, com que a vida a ser vivida seja constantemente desejada, tomada como um campo de construção de transformações, mudanças, mesmo que numa escala micro. Mas bem sabendo que ali, nas pequenas coisas, podemos desvelar um universo inteiro.

 

To see a World in a grain of sand,

And a Heaven in a wildflower,

Hold Infinity in the palm of your hand,

And Eternity in an hour.

 

Ver um Mundo num grão de areia,

E um Céu numa flor selvagem,

Segurar o Infinito na palma da sua mão,

E a Eternidade numa hora.[2] William Blake, “Auguries of Innocence”, in The works of William Blake (Inglaterra, The Wordsworth poetry library, 1994), p. 127. Tradução da autora.

 

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