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Olhar a poeira, por exemplo. Não como um todo indiviso, nuvem opaca e indistinta. Mas olhar detidamente cada uma de suas pequenas partículas suspensas no ar (e também o espaço exíguo que separa umas das outras), identificando o que não é notável ao senso apressado e comum. Mais ainda: não somente decompor em partes o que se apreende tantas vezes como inteiro, mas aceder ao fato de que é da percepção do ordinário e do quase impalpável que se engendra, em um processo não consciente de cognição, a percepção do que é relevante e visível. [1] É desse impulso de conhecer o mundo escapando de um juízo totalizador e amnésico de suas porções constitutivas que, ao longo de uma década de produção intensa, Rivane Neuenschwander compôs uma obra impermeável, ela mesma, a definições abrangentes.
Valendo-se de modos de expressão variados (instalações, filmes, objetos), a artista torna manifesto o que, na vida corrente, é só rumor, pedaço ou entrevisto. Inexiste nesse intento, contudo, elogio algum ao que é frágil ou contingente, posto que a sua obra não se ocupa de criar refúgio para o desconforto que se possa sentir no mundo. Há, ao contrário, o desejo de dar a potência devida ao murmúrio incessante das pequenas coisas que o formam e habitam, sejam elas uma palavra, um gesto, uma imagem ou um momento. A sutileza de seus trabalhos é da ordem, portanto, daquela encontrada na prosa de Clarice Lispector ou no cinema de Eric Rohmer: afirma que o importante pressupõe o prosaico e dele depende para existir.
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O importante pressupõe o prosaico e dele depende para existir. A experiência moderna do tempo, entretanto, é de síntese, não de particularização. Não mais se marca a duração dos acontecimentos – sejam eles individuais, sociais ou físicos – em função do que lhes é específico, tal como são o sono, as colheitas ou as marés. Através de gradual aprendizado e da construção de símbolos reguladores numéricos (calendários, relógios), a consciência social do tempo foi-se desgarrando do que era singular para se transformar em meio sintético de orientação no fluxo de eventos em que se tece a vida. [2] Em trabalhos diversos, Rivane Neuenschwander reflete sobre esse esquecimento compartilhado do que é único, demonstrando a natureza idealizada da marcação habitual do tempo e afirmando a peculiaridade de sua origem.
Em Deadline calendar (2002), a artista recorta, das embalagens de vários alimentos, as pequenas porções onde estão impressas, geralmente em tipos apagados ou miúdos, as datas que assinalam a validade dos produtos – momentos em que estes perdem o estatuto de bens apropriados ao consumo e se convertem em lixo – e as agrupa de modo a construir um calendário para doze meses seguidos. Por meio desse procedimento simples, relaciona cada um dos 365 dias do ano à lembrança do fim da vida útil de um alimento distinto, contrapondo-se, assim, à noção do tempo como um regulador social apartado das coisas mundanas. Desvela a natureza convencional da contagem do tempo e exibe os índices da transitoriedade orgânica como prova de que não são os dias, afinal, que “passam”; são, ao contrário, inúmeros e rotineiros ciclos de vida e de morte (curtos ou longos) que lhes dão conteúdo e significado temporal.
Quase como um memorial para o decaimento inevitável e gradativo de toda matéria do mundo – processo contra o qual se pode medir a extensão cronológica dos demais incidentes da vida –, RivaneNeuenschwander filma, em outro trabalho, o vaguear de uma bolha que, silenciosa e frágil, flutua ritmada por entre paisagens vazias e cinzas, tal como um metrônomo orgânico feito para uma música inexistente. Nesse Inventário das pequenas mortes (sopro) (2000), com coautoria de Cao Guimarães, podem bem estar arrolados os fins breves dos seres e das coisas que, embora pouco visíveis e sem fazer quase barulho, povoam o cotidiano usual e vários dos trabalhos da artista: trilhas de formigas, restos de comida, sabão mergulhado em água, talco espalhado no piso.
A associação do conceito de tempo a acontecimentos comuns – contraposta ao seu entendimento corrente como medida genérica da duração dos fatos – emerge igualmente da instalação Chove chuva (2002). Pendurados do teto por fios de aço, dezenas de baldes de alumínio com furos pequenos no fundo são enchidos com água, causando um gotejamento ritmado sobre outros tantos baldes, postos no chão exatamente sob os que se acham no alto. Transcorrido certo tempo, os baldes suspensos esvaziam-se e são novamente enchidos com a água que escoou ao longo desse intervalo, dando início a processo idêntico de esgotamento. Se o ato de encher os baldes com periodicidade repetida produz, para quem cabe realizar essa tarefa, sentimento preciso da duração de um evento, também a apreensão visual e auditiva do esvaziamento da água neles contida permite relacionar, subjetivamente, a frequência do gotejamento à duração de outros fenômenos. O que é ocorrência singular (pingos que caem em cadência certa) torna-se, assim, condição para entender-se o que é fato genérico (a ideia do tempo em que tal fato acontece). Do ordinário é que se faz o abstrato. [3]
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Do ordinário é que se faz o abstrato. De laranjas, um alfabeto. No trabalho Palavras cruzadas (2001), Rivane Neuenschwander desidrata e descasca centenas de laranjas, deixando-lhes apenas pele suficiente para que nelas se leiam, em alto relevo, os caracteres com que se constroem palavras e frases. Postas aleatoriamente em caixas de papelão que formam pequeno labirinto sobre o piso, as frutas são um convite ao toque daqueles que o percorrem e ao consequente rearranjo das letras feito de acordo com vontades diversas. Menos, contudo, que esperar do visitante a escrita de um texto qualquer, o que a instalação sugere é a desnaturalização dos símbolos linguísticos, tornando sua origem menos turva e associando-os, de uma só vez, à visão, ao olfato, à memória do gosto e ao tato.
Intento semelhante da artista rege o trabalho Alfabeto comestível (2001), em que 26 tipos de especiarias – escolhidas de modo que a suas iniciais correspondessem a todas as letras do alfabeto (açafrão, blackpepper, colorífico, dill, espinafre, feijão árabe etc.) – são individualmente coladas sobre suportes rígidos, criando listras horizontais e paralelas, em uma alusão possível a soluções pictóricas formais. Afixadas na parede seguindo a ordem alfabética dos nomes dos alimentos, cada uma dessas placas possui cor diferente e desperta, no público, a lembrança de sabores e cheiros característicos, fazendo desse contato indireto com as letras – mediado por alimentos distintos – uma experiência que apela, simultaneamente, aos sentidos e ao intelecto. Em vez de conjunto neutro de símbolos que tudo descreve, o alfabeto deixa-se aqui atravessar por tonalidades variadas e por memórias gustativas e de olfato – umas vagas, outras claras – que atestam a experiência múltipla do corpo no mundo e, portanto, a permeabilidade entre mecanismos de cognição diversos. [4]
Se, nesses dois trabalhos, Rivane Neuenschwander aproxima comida e fala, em outros ela articula o uso do vernáculo com maneiras de comunicar ancoradas em experiências de afeto. [5] . Frankfurt Am Main: Portikus, 2002; e BIRNBAUM, Daniel. Feast for the eyes. Artforum, mai. 2003.]
Em todos, porém, desmancha a ideia da língua como instituição gerada longe da vida comum. O vídeo Love lettering (2002), com coautoria de Sérgio Neuenschwander, exemplo conciso desses trabalhos, exibe imagens de pequenos peixes vermelhos que carregam, presos às caudas, pedaços de papel onde se leem, em meio ao vaivém azul e verde do aquário, palavras isoladas e alguns pequenos trechos de frases: mylove, sweet, angel, no, mydear, from, calls,news, eyes, talking,kissing, voice, hands, mouth, your, I, miss, Rio, London, come, today, next, you, here, night, wish, hotel, from:, to:, entre outros mais. A princípio desconexos, aos poucos os substantivos, pronomes, adjetivos, verbos e preposições que os peixes transportam começam a formar sintagmas na memória recente de quem assiste ao desenrolar das imagens, baralhando a ordem em que foram primeiro apresentados e desvelando fragmentos possíveis de uma carta amorosa. O sentido de agregação de elementos dispersos que o vídeo promove, de encontro entre pessoas que, embora distantes, buscam contato escrito porque se gostam, é reforçado ainda pelo próprio movimento dos peixes, os quais, mesmo que, por vezes, se cruzem ou se afastem uns dos demais, em outras nadam bem próximos. Também a trilha sonora do vídeo (de autoria do duo O Grivo) é feita de fragmentos de sons mecânicos e orgânicos que, gradualmente, fundem-se em algo uno, ecoando, na música que compõem, o surgimento de sentidos precisos a partir da confluência, mediada pela memória afetiva de cada espectador, de elementos linguísticos difusos.
Das letras do alfabeto às palavras inteiras, e dessas à frase completa. No trabalho Eu desejo o seu desejo (2003), RivaneNeuenschwander não trata mais dos símbolos irredutíveis da língua, tampouco dos vocábulos que, roçando uns nos demais, apenas sugerem locuções variadas. Tendo solicitado a quarenta pessoas (todas mantidas anônimas) que formulassem um desejo qualquer por escrito, ela amealhou uma coleção de sentenças diversas e inteiras, cada qual expressando uma vontade particular de confirmação ou mudança de algo. Eu desejo calma; I wish I could figure out whathastobedone; Eu desejo a felicidade das minhas filhas; Jedésire ne plusavoir de patrie;Sexo cinco vezes por semana;I wish I couldsayanunconditionalyes; Eu desejo o céu na terra são alguns deles. Por obedecerem às normas ortográficas e gramaticais das línguas em que estão redigidos, esses desejos traduzem a subjetividade de cada um em termos entendidos por todos os que conhecem tais padrões de emprego linguístico. Mas são também os conteúdos dos desejos que podem, sugere a artista, ser apropriados por outras crianças, mulheres ou homens, em uma sobreposição entre a socialização dos códigos de comunicação interpessoal e a partilha de desejos íntimos.
Essa apropriação se faz possível pela impressão dos desejos coletados sobre milhares de fitas coloridas – semelhantes às que carregam nomes de santos e que são amarradas ao pulso para exprimir devoção ou por esperança de alcançar benefícios – e por seu oferecimento a todos os que forem ao local onde se mostre o trabalho. Disposto sobre uma grande extensão de parede, o conjunto das fitas-desejos parece evocar a sala de ex-votos de uma igreja católica, embora sejam distintas as temporalidades em que os dois ambientes votivos se estruturam: ao invés de retribuir o alcance de uma graça, cada uma das fitas exprime apenas a vontade da realização de algo em futuro indefinido. Essa indeterminação temporal se desdobra ainda no espaço, posto que, ao escolher o desejo de outra pessoa (não só o seu enunciado formal, mas também o que simboliza) e retirar a fita correspondente da parede, o visitante da exposição transporta-o, atado ao pulso, a um contexto de vida diverso. Muitos deles, fazendo o mesmo, tecem uma teia quase invisível de trajetos a partir de um só ponto, dispersando os desejos coletados por um território amplo e de extensão incerta. Inversamente, os visitantes podem escrever os próprios desejos em pedaços de papel e inseri-los nos furos da parede dos quais as fitas são retiradas, trazendo aspirações e anseios de toda parte e de toda sorte para um único espaço. Por permitir que se deseje o desejo de alguém mais e por incorporar, em futuras montagens da instalação, os novos desejos assim deixados, Rivane Neuenschwander faz com que sejam os visitantes que completem o trabalho, concedendo ao outro, portanto, parte do controle sobre o seu significado. [6]
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Concedendo ao outro, portanto, parte do controle sobre o seu significado: é o que ocorre claramente em Palavras cruzadas (mover as laranjas), de modo não tangível em Alfabeto comestível (lembrar do cheiro e do gosto dos alimentos) e menos ainda evidente – mas igualmente essencial, todavia – em Love lettering (ativar as lembranças do passado afetivo). Cessão de controle que acontece, em verdade, desde trabalhos mais antigos e, embora de maneiras às vezes oblíquas, sempre com importância decisiva na criação de sentidos. É o caso de Paisagem suspensa (1997), formado por cabeças de alho esvaziadas de seu conteúdo sólido e recompostas em sua aparência original pela junção frágil das peles do bulbo, as quais, penduradas no teto por fios finos e quase tocando o piso, envolvem nada. A percepção da materialidade tênue do trabalho, porém, somente é revelada quando a presença de alguém caminhando próximo desloca o ar e move os fios que sustentam os alhos. Sem essa presença, não há como revelar de que (não) é feita a instalação, nem como ativar sua força poética, que é tornar visível o que é construído por uma operação de esvaziamento.
Também em trabalhos criados pela adição de matéria (e não apenas de sua retirada), RivaneNeuenschwander oferece meios para a presença ativa do público em sua obra. Em Andando em círculos (2000), trabalho sintético desse seu intento, ela carimba, no piso de salas expositivas, círculos de cola transparente. À medida que os visitantes andam no espaço e inadvertidamente pisam sobre as áreas demarcadas com a substância adesiva, deixam nelas grudada a inevitável sujeira que, trazida de vários cantos, carregam sob os sapatos. Como resultado, aos poucos os círculos traçados no chão se tornam visíveis ao olho humano, preenchidos pelos rastros involuntários da passagem, por ali, de pessoas diversas.
Já em O trabalho dos dias (1998), a artista funde, de modo mais explícito, as marcas de sua presença e da presença de outros no que faz. Em duas salas cúbicas e brancas construídas para a Bienal de São Paulo, forrou paredes e pisos com quadrados de papel adesivo que já retinham os restos, vestígios e sobras caídos no chão de sua casa: coisas prosaicas como farelo de pão, fios de cabelo, insetos mortos e os entulhos miúdos que gradualmente se assentam nas superfícies de cozinha, sala e quarto. Ao entrar nesses espaços marcados pelo que é privado, os muitos visitantes da mostra terminavam trazendo, para o seu interior, os indícios do espaço público onde estavam. Nessa adição de sujidades em camadas, a casa e a instituição sobrepunham-se de forma quase indistinta, pondo ao claro a porosidade que existe entre o que é comumente tomado como distante e separado. O que parece longe pode estar também perto. [7]
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O que parece longe pode estar também perto. É possível distinguir, em alguns dos trabalhos acima descritos, dois principais procedimentos construtivos na obra de Rivane Neuenschwander, ambos compatíveis com a sua educação formal como escultora, mas que, embora em aparente oposição, são submetidos igualmente à sua vontade criativa e, muitas vezes, sobrepostos ou confundidos. [8] O primeiro procedimento é baseado em operações de ajuntamento de matéria, tais como recobrir, com a poeira recolhida de casa, parte das linhas que marcam a junção de barras de sabão de coco que ela agrupa como quadrados (sem título, 1999) ou, como faz em outro trabalho, tornar visíveis as linhas finas que separam os tacos de um piso escuro por meio da meticulosa inserção, nesses espaços estreitos, de fino pó de mármore (sem título, 1999). O que eram planos monocromáticos sem distinção alguma se tornam, mediante essas ações, desenhos feitos de “linhas orgânicas” encontradas em conjuntos de barras de sabão ou no piso de uma sala. [9] . Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 jul. 1959. Suplemento dominical, p. 3. Republicado em LYGIA Clark. Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 1997.]
O segundo procedimento, por sua vez, é evidente desde trabalhos mais antigos (feitos entre 1997 e 1998), em que matérias variadas são sujeitadas a processos de radical desbastamento ou subtração, ampliando, paradoxalmente, seu tempo esperado de vida como objetos. Diante de molho de tomate quase seco sobre o prato, a artista raspa todo o excesso e deixa à vista somente trilhas tênues de polpa que ligam as porções onde repousam, sozinhos ou agrupados, os pequenos caroços do fruto. Em outro trabalho, toma de folhas de árvore ainda verdes e recorta, com zelo, as suas coberturas delgadas, tornando visíveis as estruturas vegetais intrincadas que mantinham firme o que foi dali retirado. O que era destinado ao descarte (por ser perecível) ou ao esquecimento (por ser comum) torna-se, assim, objeto imbuído de conteúdo gráfico. Se, nesses trabalhos, RivaneNeuenschwander escava, sobre suportes orgânicos, imagens inventadas que são quase mapas, em Carta faminta (2000), diversamente, são muitas lesmas que, postas sobre finas folhas de papel de arroz, as consomem devagar e de modo irregular, definindo nelas as bordas de imaginárias cartas geográficas.
O interesse da artista por tudo o que é criado e feito visível por atos de supressão se expandiu, em seguida, também para matérias sintéticas. Valendo-se de sacos de fibra plástica trançada usados para armazenar mantimentos (arroz, feijão, soja, farinha), ela apaga, com solução solvente, todas as referências impressas que identificam marca ou procedência, deixando à vista somente os seus elementos de desenho ou pintura, os quais ainda enfatiza, recobrindo-os com tinta vinílica. Enfileirando dezenas desses sacos modificados sobre o piso, ela concede, nessa instalação – _ _ _ _ _ _ _ _ _ (productof) (2003) –, teor simbólico ao que antes era apenas invólucro, pondo em evidência o que o olhar distraído não via. Continente e conteúdo – aqui como em outros trabalhos – são apenas estados transientes das coisas, podendo, portanto, ser alterados a todo instante.
Expediente de construção similar é usado no trabalho Globos (2003), concebido para a Bienal de Veneza. A partir da reunião de quase duas centenas de esferas dos mais diferentes tamanhos (da bola de pingue-pongue às bolas gigantes usadas para recreação de crianças) e materiais (plástico, couro, borracha, acrílico), a artista apaga, uma vez mais com solvente, todas as referências nelas escritas. Em seguida, entretanto, aproveitando-se das cores e grafismos originais dos globos e considerando os graus variados de resistência a intervenções sobre as suas superfícies, faz neles interferências diversas com fitas adesivas, vinil e mesmo tinta, sugerindo associações de cada uma das esferas à bandeira de um país.
Como as aproximações entre o tamanho e o material das bolas e os estandartes dos países são definidas apenas pelas possibilidades de intervenção já existentes, há implícita, nesse método, a subversão simbólica de hierarquias econômicas ou geopolíticas estabelecidas; é clara a alusão, ademais, à existência de um mundo muito maior do que aquele oficialmente presente na Bienal, onde constava, por meio de seus artistas, apenas a terça parte das nações representadas pelos globos. Dispostas aleatoriamente na sala, as esferas podiam ainda ser manipuladas livremente pelos visitantes, que refaziam, quase como as lesmas sobre os papéis de a Carta faminta, a cartografia do mundo a seu gosto ou ao acaso de um deslocamento qualquer das bolas espalhadas sobre o piso.
Ao apagar sinais que inicialmente os globos continham e depois adicionar, sobre eles, marcas que não possuíam, Rivane Neuenschwander sobrepõe os dois métodos que usualmente emprega – desbaste e adição –, com desapego a qualquer norma rígida que abafe, em sua obra, a surpresa do invento. Em outro trabalho, a artista utiliza ambos os processos simultaneamente, encobrindo com tinta as imagens de barcos que eram parte de vistas pintadas do mar, adquiridas por ela em mercados populares. Subtraídas de um dos principais elementos que demarcam o gênero, várias dessas marinhas são, em seguida, postas em fila sobre a parede – sugestão de um horizonte artificial e fragmentado – e, em um deslocamento simbólico e físico, confrontadas com número igual de pequenos barcos feitos com papéis achados na rua e postos em frente às pinturas. Diante da evidência da falta de algo nas telas, Rivane Neuenschwander induz a visão da audiência para dentro de imagens banais e cria a oportunidade de se ver, nessa Imprópria paisagem (2002), o que passa despercebido por não ser esperado ou por estar aquém da visada apressada que se lança habitualmente sobre o mundo. Permite que se veja, ao menos, alguns dos muitos detalhes do mundo. Permite olhar a poeira, por exemplo.
[1] — Esse percurso do conhecimento é sugerido por Gilles Deleuze, para quem as pequenas percepções são menos partes da apreensão de um fato do que seus requisitosou elementos genéticos. DELEUZE, Gilles. A dobra. Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991.
[2] — ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
[3] — Esses e outros trabalhos de Rivane Neuenschwander que partilham o interesse pelo assinalamento específico da passagem do tempo (e não meramente por seu transcurso abstrato) se inserem em uma tradição profícua, diversa e longa da produção cultural contemporânea, a qual inclui, entre muitos outros exemplos possíveis, a peça Tacet 4’33 (1952), do compositor americano John Cage (1912-1992), em que o concertista, em vez de tocar as teclas do piano, suspende as mãos no ar durante o tempo assinalado no título da obra, deixando que a manifestação do público e todos os demais sons que cheguem à sala de concerto se transformem em música; a instalação Livro do tempo (1960-1961), da artista brasileira Lygia Pape (1927-2004), formada por 365 pequenos blocos diferentes de madeira cortada e pintada, índices dos dias de todo um ano; o trabalho I gotup (1968 em diante), do artista japonês OnKawara (1933), composto por cartões postais enviados por ele a amigos informando o lugar e a hora em que acorda a cada dia que passa; a instalação Kulturgeschichte 1880-1983 (1983), da artista alemã HanneDarboven (1941), resultado do agrupamento de milhares de textos e imagens que narram, a partir de referências à cultura, à política e à sua vida pessoal, o período de um século mencionado em seu título; e o filme Chungkingexpress (1996), do cineasta taiwanês Wong Kar-Wai (1958), em que, abandonado pela namorada, um de seus personagens conta o tempo que daí se segue comprando, diariamente, uma lata de abacaxi com data de validade idêntica àquela em que espera tê-la de volta. Assim como na obra de Rivane Neuenschwander, em cada um desses trabalhos o transcurso do tempo é associado a uma sucessão de atos, eventos ou fatos, os quais lhe dão um sentido e uma ordem determinados.
[4] — À proximidade visual de Alfabeto comestível das pinturas de Agnes Martin (1912-2004) – a organização do plano por meio de linhas de cor paralelas e horizontais é a marca mais facilmente reconhecível de suas telas –, soma-se o fato de que, assim como o trabalho de Rivane Neuenschwander, as pinturas da artista canadense provocam formas distintas e transitivas de entendimento, ancorando-se em aspectos pictóricos formais e, simultaneamente, em associações subjetivas entre sentimentos e cores diversas.
[5] — Para uma discussão sobre a relação entre comida e linguagem na obra de Rivane Neuenschwander, ver SZYMCZYK, Adam. The sensorium of sense, the empire of the senses. In: Spell. Rivane Neuenschwander. [Catálogo
[6] — A necessidade da participação do público para que esse e outros trabalhos se completem os torna próximos de alguns trabalhos do artista cubano Felix Gonzalez-Torres (1957-1996), que punha, em salas de exposição, montes de bombons embalados ou pilhas de cartazes com imagens e/ou textos impressos para que fossem levados para casa pelos visitantes. Também os avizinha, pela generosidade implícita, a trabalhos do artista tailandês RirkritTiravanija (1961), que, em uma ocasião, transformou a galeria em um misto de depósito e cozinha, onde preparava refeições e as oferecia ao público.
[7] — No trabalho Piedra que cede (1992), o artista mexicano Gabriel Orozco (1962) rola, por vários lugares da cidade, uma bola feita com massa de modelar, deixando aderir, na sua matéria mole, as impurezas da rua, além de permitir a adequação de sua forma esférica aos obstáculos e reentrâncias que encontra. Já o artista belga radicado no México Francis Alÿs (1959) calçou sapatos com solas magnetizadas (Zapatos magnéticos, 1994)e caminhou pelas ruas recolhendo qualquer resíduo metálico que encontrasse. Embora esses dois trabalhos também façam, a exemplo de Andando em círculos e O trabalho dos dias, uma coleção das pequenas coisas do mundo, há neles muito mais controle sobre o resultado do que o que se permite Rivane Neuenschwander, que transfere para o público a responsabilidade por sua forma última.
[8] — A artista realizou curso de especialização em escultura no Royal College of Art (Londres) no período de 1996 a 1998.
[9] — “Linha orgânica” é um termo associado a trabalhos realizados na década de 1950 pela artista brasileira Lygia Clark (1920-1988), que punham em evidência a linha formada pela mera junção de dois planos distintos. SARMENTO, Edelweiss. Lygia Clark e o espaço concreto expressional. [Entrevista