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No início dos anos 70, um dos momentos mais importantes para novas posturas críticas foi sem dúvida estabelecido pelo crítico Frederico Morais e sua conceituação da nova crítica. A nova crítica previa outra prática crítica e uma nova relação entre crítico e artista. Um dos primeiros momentos da nova crítica aconteceu por ocasião da exposição Agnus Dei, realizada na Petite Galerie no ano de 1970 no Rio de Janeiro. A proposta geral da exposição previa três exposições individuais dos artistas Cildo Meireles, Theresa Simões e Guilherme Vaz e, posteriormente, um comentário crítico de Frederico Morais. A grande aposta de Frederico, a partir de seu conceito da nova crítica, foi a de realizar seu comentário através de outras três exposições-críticas, que se refeririam às exposições realizadas pelos artistas. Ao realizar as exposições-críticas, Morais colava-se de forma mais estreita aos trabalhos apresentados pelos artistas e afirmava, como Aracy Amaral, a possibilidade de uma crítica mais experimental pela apropriação dos discursos dos artistas. E de maneira diferente da crítica paulistana, Frederico efetivava seu comentário com as exposições-críticas nos interstícios das propostas já mostradas pelos artistas.
A nova crítica de Morais constituiu-se também através de outra proposição fundamental, os audiovisuais. No início dos anos 1970, o crítico realizou seus audiovisuais, proposições artístico-críticas constituídas por projeções, muitas vezes simultâneas, de slides, música, sons e textos. Entre seus audiovisuais estão O Pão e o Sangue de Cada Um (1970) e Volpi (1972) que discorriam e problematizavam sobre obras dos artistas Artur Barrio e Alfredo Volpi [2] . Outro audiovisual, Carta de Minas(1971/72), apresentava uma trama sutil que me interessa aqui apontar. Construído com textos (Affonso Ávila, Carlos Drummond de Andrade, D. Manuel de Portugal, entre outros), música e fotografias de Maurício Andrés Ribeiro, o audiovisual era composto por uma narrativa dividida em cinco partes: as minas, territórios, gerais, uma história de amor e a invasão. Em Carta de Minas, Morais realizou uma jornada lírica e crítica por Minas Gerais, no qual estavam presentes uma paisagem idílica e outra destruída pela exploração. Na parte denominada de territórios apresentavam-se slides da ação artística denominada Territórios, dos artistas Dilton Araújo, Lótus Lobo e Luciano Gusmão, realizada no ano de 1969 no 1º Salão Nacional de Arte Contemporânea em Minas Gerais. Na parte denominada uma história de amor, uma série de slides mostrava Frederico Morais despindo-se e, em seguida, com o próprio corpo deitado no solo, em sensível aderência com o chão e a terra. Somadas com as outras três partes, Carta de Minas estabelecia uma trama entre visões críticas da paisagem de Minas Gerais apresentadas em as minas e a retomada de uma paisagem mais viva em gerais. E, mais importante, havia a trama intersubjetiva entre a experiência simbólico-corporal do crítico e a ação artística Territórios do grupo de artistas. Como na experiência de Agnus Dei, Frederico urdiu seu comentário crítico junto com a trama poética da obra dos artistas.
Frente a estas experiências citadas anteriormente de construção de outra crítica de arte, dada num contexto bem determinado dos anos 60 e 70, é de se perguntar em que esse meu interesse inicial levanta algum novo dado para se pensar a situação atual da crítica. Ecoa muito de perto, e às vezes de forma contundente, a constatação de que a crise da crítica de arte é um sintoma de outras crises mais gerais. Luiz Camillo Osório afirma que há uma relação direta entre a crise da crítica e a da política, ambas atividades voltadas para o debate, para a pluralidade de vozes (…) [3] . A crítica, então, vista como esse espaço do debate, da diversidade de sujeitos e do diálogo de ideias, está em radical processo de transformação. Estariam os espaços de agenciamentos de sentidos, seja da crítica e da política, tomados pelos discursos da intolerância ou pela mudez da indiferença? Estaria a crítica apenas preocupada em legitimações do mercado ou com demandas burocráticas institucionais? Que salvaguardas temos que garantir para a continuidade dos espaços físicos ou discursivos do debate e do dissenso?
Uma crítica de arte publicada em 2002 sobre o artista Marepe, escrita por Lisette Lagnado (catálogo Marepe, Galeria Luisa Strina, 2002), esteve sempre muito próxima em minhas aulas e conversas com artistas. Talvez seja este o momento de ensaiar algum entendimento de suas questões, a partir do que foi até aqui proposto como discussão. Escrita em formato de uma carta, o texto principia como começam (começavam?) as missivas, com o local, a data e a saudação ao sujeito com quem se pretende conversar – Marepe, querido. A forma do texto construído como uma carta remete à forma das críticas dos salões de Diderot e aponta para outras experimentações textuais, por exemplo os textos Incomplete Glossary of Sources of Latin American Art, de Paulo Herkenhoff (catálogo Cartographies, Winnipeg Art Gallery, Canadá, 1993), e Gloss expandido (Expanded), de Adriano Pedrosa (catálogo Beatriz Milhazes – Mares do Sul, Centro Cultural Banco do Brasil, 2002). Mas são outras as questões do texto que se mostram prementes agora.
A forma da carta imediatamente nos transforma em curiosos leitores de intimidades alheias. De modo a não nos frustrar, o texto vai desfiando dados pessoais dos dois sujeitos da carta – o que escreve e aquele ao qual a carta é endereçada. A partir de distância tão estreita, quase comissura, entre a crítica de arte e o artista, são estabelecidos os diálogos entre Lisette e Marepe. Dados biográficos pessoais da autora colam-se indelevelmente na narrativa crítica escrita para Marepe e, em diversos momentos, justapõem-se territórios e geografias de ambos. Se no começo a crítica afirma seu nascimento na cidade de Leopoldville (atualmente Kinshasa), é para estar perto de Santo Antonio de Jesus, cidade onde nasceu e mora o artista. E se no final do texto-diálogo são dois os rios mencionados, Congo e Sururu, é para se encontrarem em franco desaguar.
O jogo textual de Lisette, habitado por uma prosa que se quer muito próxima, nos incita a uma constante reconfiguração do nosso olhar. As obras de Marepe, tão cheias das experiências de vida e memórias do artista, são trazidas pela crítica a partir de suas referências teóricas e também das suas vivências. Uma das estratégias para se entender a obra do artista passa pelos trânsitos e fluxos entre padrões culturais nos quais os sujeitos são construídos e outros com os quais se depara a todo o momento. Operações artísticas de apropriações, deslocamentos, alteridade, intervenções são sempre reconfigurações de espaço. Somos estrangeiros aqui ou em qualquer lugar e é a partir desta condição que nos aproximamos do outro, mas se vivemos desterrados de alguma memória e história, permaneceremos exilados. A relação entre os dois sujeitos da carta, o que escreve e aquele ao qual a carta é dirigida, é o do enfrentamento de suas distâncias.
As interrogações trazidas por Aracy Amaral, Frederico Morais e Lisette Lagnado, em suas críticas aqui apresentadas, interessam por sua permanente construção e reconfiguração. Suas posturas nascem de seus projetos intelectuais, vivências e contextos e é assim que investem numa urdidura mais estreita entre crítica de arte e artista. Assumem-se desvios, sejam das posturas tradicionais dos críticos ou da forma tradicional das críticas, e assim reverbera-se de forma mais densa as palavras de Baudelaire, ao afirmar ser a crítica parcial, apaixonada, política (…) concebida de um ponto de vista exclusivo, mas que descortina o máximo de horizontes [4] .
No texto sobre Marepe, Lisette Lagnado, em determinado momento, usa a expressão conceitos com afetos. E é a partir dele que penso ser possível vislumbrar a contribuição desses críticos apresentados e finalizar esse breve texto. Primeiramente ao trocar-se um narrador ausente por um sujeito afirmativo em primeira pessoa. Um sujeito construído (ficcionalizado?) que declara o risco de se mostrar frágil, ou falível, frente a suas paixões e escolhas teóricas e de estar tão próximo ao artista, suas obras e falas. E não seriam estas paixões que nos incitariam o desejo de diálogo e compartilhamento? Em seguida, e isto é muito importante, sinto estes textos construídos na chave dos afetos. Mas afetos vistos como a possibilidade de ser afetado, de se colocar disponível, ser contaminado, inquirido, maravilhado por algo do mundo e, aqui, por pesquisas e propostas artísticas. Agindo desta forma, partilham estas críticas de arte de um audacioso e necessário vir a ser indefinido da arte, como apontou Luiz Camillo no livro já citado.
E, por último, que não se confunda este novo espaço intersubjetivo com o lugar do compadrio, como nos assinala Sergio Buarque de Holanda com seu conceito do “homem cordial”. Tal lugar da “cordialidade” já está ocupado por uma crítica apenas preocupada em legitimação do mercado, demandas burocrático-institucionais ou favorecimentos de qualquer tipo. Por outro lado, o que as posturas críticas analisadas reformulam é um espaço aberto à interlocução e ao permanente desvio, construído entre conceitos e afetos, não afeito à imposição de juízos, mas pelo contrário, ao arriscar outros discursos e ficar muito próximo do artista, constituir nesse intervalo um novo lugar de fala [5] .
[1] — Amaral, Aracy. Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burger. São Paulo: Nobel, 1983.
[2] — Schenberg, Mario. Frederico Morais: audiovisual. Pesquisado em Centro Mario Schenberg de documentação da pesquisa em artes da ECA/USP – www.eca.usp.br/nucleos/cms/index.php
[3] — Osório, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
[4] — Baudelaire, Charles. Para que serve a crítica? In: Coelho, Teixeira (org.). A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
[5] — Ao finalizar o texto e após generosa leitura de meu texto preliminar por Clarissa Diniz e Ana Luisa Lima, percebi que outro texto estava comigo – refiro-me a 1990: L.A., “The Gold Field” (Ault, Julie (Ed.). Felix Gonzalez-Torres. Gottingen: Steidl, 2006).