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Capa da revista

EDITORIAL

Uma Tatuí degenerada. De numeração zerada. Desalinhada (para fundar outro gênero de si mesma). Ela retorna – e retornamos – ao método imersivo das edições 1 e 3. Imersão e imaginação: a Tatuí ficcionaliza sua ordem prevista (e previsível) para tomar como fundante a forma de construção editorial deste número, experiência de degeneração (intelectual e autoral) que a constitui como única. Paradoxalmente coletiva, é, contudo, uma Tatuí – por hora – solitária. E prenhe como o zero (que a circunscreve).

Por uma semana, nos dias que se seguiram ao último carnaval, estivemos juntos no Branco do Olho e seus arredores, pensando e morando. Conversando, escrevendo. No chão, no mar e no telhado. Juntos e também sozinhos, pois inclusive o novo gênero logo se regenera. Por entre as horas de memórias, discussões, sonos e ócios, medimos o tempo na intenção de editar integralmente uma Tatuí, demanda a que nos autoconvocamos como pretexto para a aproximação – e o estranhamento. Conservada a lógica/economia de produção que possibilitava aquele encontro, fez-se necessário – porque desejado – encontrar uma forma de criação/trabalho que dela, entretanto, se distinguisse, constituindo respiros inventivos que não pudessem se dar noutra parte senão ali, conosco. Era preciso explorar os nós que ali se inauguravam. Assim, por entre toques carnais e datilográficos, masturbatórios e orgiásticos, surgiram os textos – tantas vezes suspiros ou muxoxos – que fazem esta Tatuí.

Os editores que, juntos, assinam parte das páginas, são a saliva entre nós partilhada através de manhãs e madrugadas: quando os sentimentos se familiarizaram e vislumbraram nos outros cumplicidade, a vontade de falar em amálgama se manifestou. Tocadas por vários, as palavras foram ligadas sem a pretensão de, contudo, mascarar as inevitáveis distensões que os ligamentos provocaram. A autoria que não se individualiza não quer encobrir as particularidades das distintas vozes (e dentes) que, vale ressaltar, a compõem. Talvez a (nossa?) geração de coletivos se queira partilhar com maior flexibilidade que aquela dos grupos. Por isso há momentos em que os editores precisaram se colocar e se designar eu, inclusive para questionar a intenção – e os métodos – de falar por si como se pelos outros. Atravessando argumentos e opções de linguagem, aqui persistem e atualizam-se os insistentes duelos identitários de sempre, agravados pelo quase frustrado desejo de construirmos uma identidade social coletiva ao reconhecermo-nos geracionalmente. Para além daqui, existirá o nós que cá está? Haverá outro alguém que ousará dizer-se nós?

Às questões não respondidas dos dias vivenciados foi somado o silêncio do zero, que reposicionou o lugar desta Tatuí no espaço-tempo. A despeito do encontro de tantas letras e riscos, é dos vazios que aqui prioritariamente tratamos. Mesmo nas histórias e provocações instauradas nos textos, a dispersão da diarreia herdada e a nem sempre bem-sucedida pontaria de nossas ideias rondam as páginas que passaram, e se evidenciam em nossa incapacidade de perpetrar uma síntese mais sólida de nós mesmos.  De fato, os labirintos que tanto (en)cerram os territórios certamente se complexificaram com esta experiência que nos tirou de rota.

Mas igualmente verdade, nossas salivas e toques promoveram sensações de desterritorialização que colocaram de lado os dilemas labirínticos – “direita ou esquerda?” e outros – em prol do gozo que encontramos na possibilidade de nos perdemos coletivamente: deriva. Perder e encontrar, retroativa e incessantemente. Porque a degeneração é também um processo de invenção de gêneros e mundos. E, generar, nossa mais íntima e controversa ambição. A sensação de ter que recomeçar não cessa. E aqui, fecundados uns pelos outros, continuamos, do zero.

PARA FINS DE PESQUISA, COMPARTILHAMOS ABAIXO OS TEXTOS PUBLICADOS NA TATUÍ 00 SEM A INTERVENÇÃO QUE NELES FOI POSTERIORMENTE REALIZADA POR WOLDER WALLACE. RESSALTAMOS, CONTUDO, QUE O PROJETO EDITORIAL DA REVISTA INCLUI AS REFERIDAS INTERVENÇÕES E, POR ISSO, RECOMENDAMOS O DOWNLOAD DE SUA VERSÃO EM PDF.

Colaboradores

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Conteúdo

Índice
  1. 00 - Escrito por Ana Luisa Lima, Clarissa Diniz, Gustavo Motta, Jonathas de Andrade, Maicyra Leão, Newton Goto e Yuri Firmeza
  2. Agitprop - Escrito por Gustavo Motta
  3. Carta - Escrito por Maicyra Leão
  4. Curtos circuitos: uma política de (re)posicionamentos - Escrito por Ana Luisa Lima
  5. Da paisagem-trouvée ao território inventado: observações sobre os circuitos de arte contemporânea no Brasil - Escrito por Newton Goto
  6. Enquete Geracional - Escrito por Maicyra Leão
  7. Escrevendo como nós, mas falando por mim - Escrito por Clarissa Diniz
  8. Feijoada – ou – depoimento vincado - Escrito por Ana Luisa Lima, Clarissa Diniz, Gustavo Motta, Maicyra Leão, Newton Goto e Yuri Firmeza
  9. Notas sobre a minha geração - Escrito por Ana Luisa Lima, Clarissa Diniz, Maicyra Leão e Yuri Firmeza
  10. O Gatilho - Escrito por Jonathas de Andrade
  11. Por favor, posso fazer uma digressão? - Escrito por Yuri Firmeza

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Talvez sejamos a primeira geração jovem da arte no Brasil. Jovem no novo século. Jovem na quantidade de zeros dos anos 2000. Jovem na idade da entrada na FAAP, jovem nas primeiras participações em salões ou coletivas, jovem na primeira individual, na entrada em programas de mapeamento da arte, jovem na primeira venda, jovem na primeira fala pública, jovem nas drogas experimentais e jovem na primeira residência. Jovem nos agrupamentos, na coletivização de experiências. Jovem na primeira bienal. Jovem no senso crítico e na capacidade de resistência. Jovem no pensamento, jovem nos medos perante aquilo que aparenta ser maior que nós. Jovem na invocação dos riscos, mesmo consciente da existência deles. Jovem na invenção de um povo por vir. Tão mais jovem perante outros jovens, há que se procurar o mais jovem dos artistas para encontrar a fonte da juventude. Há que extrair da juventude a jovialidade retroativa. Elixir da renovação. Da arte jovem. Da jovem crítica. Do jovem curador. Da jovem instituição. Do mercado jovem. Do jovem Brasil em sua jovem democracia e jovem economia. Da jovem imprensa e da jovem universidade. Da jovem transa. Do ser jovem pai, de ter sido uma jovem mãe. Antes de tudo, os jovens filhos. A jovem história nacional, a jovem história da arte. Os mais jovens historiadores. E os jovens editores? Há também os jovens caçadores e os jovens agricultores. Dizem que há o jovem tomate. O marxismo jovem. As jovens apostas. A juventude como moeda. Há juventude como álibi. E, em breve, o precoce desaparecimento da juventude. E então haverá a primeira geração precoce da arte no Brasil. Precoce na idade da entrada na FAAP, precoce nas primeiras participações em salões ou coletivas, precoce na primeira individual, na entrada em programas de mapeamento da arte, precoce na primeira venda, precoce na primeira fala pública e precoce na primeira residência. Precoce nos agrupamentos, na coletivização de experiências. Precoce na primeira bienal. Precoce no senso crítico e na capacidade de resistência. Precoce no pensamento, precoce nos medos perante aquilo que aparentará ser maior que nós. Precoce na invocação dos riscos, mesmo consciente da existência deles. Precoce na invenção de um povo por vir. Tão mais precoce perante outros precoces, haverá que se procurar o mais precoce dos artistas para encontrar a fonte da precocidade. Haverá que extrair da precocidade o precocicismo retroativo. Da arte precoce. Da precoce crítica. Do precoce curador. Da precoce instituição. Do mercado precoce. Do precoce Brasil em sua precoce democracia e precoce economia. Da precoce imprensa e da precoce universidade. Do ser um precoce pai, de ter sido uma mãe precoce. Antes de tudo, os filhos precoces. A precoce história nacional, a precoce história da arte. Os mais precoces historiadores. E os precoces editores? Haverá também os precoces caçadores e os precoces agricultores. Dizem que haverá o precoce tomate. O marxismo precoce. As precoces apostas. A precocidade como moeda. Haverá precocidade como álibi. E, em breve, o desaparecimento precoce da precocidade. E então, com sorte, não haverá primeira geração, devorada pelo tempo que, logo cedo, há de passar despercebido.

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Agitprop

* A partir de conversa com Clarissa Diniz e Yuri Firmeza. A pergunta colocada a seguir foi baseada no trabalho de Yuri Firmeza e Pablo Lobato, O que exatamente vocês fazem, quando fazem ou pensam fazer curadoria (2010), que, por sua vez, faz menção a uma entrevista de Deleuze, na qual se pergunta “O que exatamente você faz, quando faz ou pensa fazer filosofia”. O método, mais ou menos intuído, é que o termo “filosofia” da pergunta original pode ser substituído, na formulação de “novas” perguntas, por qualquer disciplina ou atividade “autônoma” outra, no âmbito do conhecimento e da cultura. No que diz respeito ao presente texto, a mesma pergunta foi reformulada e proposta de maneira turva, numa espécie de telefone sem fio: “o que você pensa…” ao invés do original “o que você faz…”. O texto procura, trabalhando com a particularidade da proposta enviesada, operar nessas diversas camadas de deslocamento.

 

Máquina causal e mecanismo de interrogatório

Pergunta: O que você pensa quando escreve ou pensa escrever sobre arte?

 

Resposta:

– A pergunta faz pensar, em primeiro lugar, sobre … Ela própria. Pois não estou certo em relação à formulação original (tomada a Deleuze, salvo engano), que, na verdade, pouco importa aqui qual seja. Para ativar a pergunta de maneira menos subjetivista ou empirista, ou seja, para deslocá-la da perspectiva individual, caberia reformulá-la, tratando-se menos de:

– o que você pensa quando escreve ou pensa escrever sobre arte?

Do que de:

– o que você faz quando escreve ou pensa escrever sobre arte?

 

Fratura exposta

Importaria, sim, em vista de melhor responder – e ao mesmo tempo ultrapassar – a pergunta colocada inicialmente, marcar a diferença entre uma coisa e outra. Fazer um desvio que colocaria outras (novas?) perguntas, ao invés de tentar responder – de maneira ingênua ou mesmo irresponsável – a uma única pergunta. Gerar um curto-circuito no mecanismo positivista e policialesco (psicanalítico, normativo, produtivo, disciplinar) do jogo pergunta/resposta.

Basicamente, mudar o assunto. (Em vistas de não o deixar intocado ao final.)

 

Ilusões perdidas

Assim, marcando a diferença e adiantando um juízo: o que se pensa ao fazer importa pouco. Ou só importa na medida em que se trata de reconhecer as ilusões (no mais das vezes concretas) da cabeça pensante (ilusões muitas vezes compartilhadas por outras cabeças também possivelmente pensantes). Mais interessante, seria, no entanto, a tentativa de acessar os processos que determinam o que se faz quando se pensa fazer alguma coisa.

Pois fazer algo no âmbito da ‘vida do espírito’, ou seja, no âmbito das disciplinas supostamente autônomas do conhecimento e da cultura (filosofia, arte, história, antropologia…) significa – ou pensa significar – fazer algo diferente. Geralmente, fazer algo nesse âmbito pensa significar uma contribuição nova e genuína que apontaria, hipoteticamente, para fora do fluxo hegemônico (que é, no limite, o do capital). Mas é patente o processo geral de homogenização, amplamente difundido e não suficientemente temido, a que são submetidas – sem exceção, de imediato e por princípio constitutivo – as formas culturais e do saber no capitalismo avançado.

 

Documentos de cultura…

O cortejo triunfante de bens culturais não dissocia, no presente, indústria cultural (o termo já se refere a um passado que parece longínquo) de arte dita “culta”, experimental ou “de vanguarda”, ainda que lhes reserve, como ativos semi-imateriais, nichos de atuação diversos. “A cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a mercadoria vedete da sociedade” já diz Debord, em texto – muito comentado e pouco lido – de 1967. E continua: “Clark Kerr, um dos ideólogos mais avançados dessa tendência, calculou que o complexo processo de produção, distribuição e consumo dos conhecimentos já açambarca anualmente 29% do produto nacional dos Estados Unidos; e prevê que a cultura deve desempenhar na segunda metade do século XX o papel motor no desenvolvimento da economia, equivalente ao do automóvel na primeira metade e ao das ferrovias na segunda metade do século XIX”. [2] DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo, trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p.126-7 (item 193). O grifo é de Debord. A ligação orgânica entre finanças e cultura (seja “alta” cultura, seja cultura “popular”) no presente, objetivada na diversificada atuação das instituições financeiras no campo da cultura, confirma o prognóstico emitido há mais de quarenta anos.

 

Homo oeconomicus

Fora do âmbito empírico ou da mera constatação de fatos, desde os anos 1980, realiza-se socialmente o fenômeno generalizado que Frederic Jameson chamou “lógica cultural do capitalismo tardio” – lógica segundo a qual, em intercâmbio recíproco, a cultura cristalizou-se como fato econômico e a economia como fato cultural. Na fórmula situacionista, ainda válida, “a cultura é a mercadoria ideal, que obriga a comprar todas as outras. Não é estranho que se queira oferecê-la a todos…”. Ou, como colocou Otília Arantes – em análise sintética sobre a transformação estrutural ocorrida no sistema específico das artes (sua “virada cultural”, entendida nos termos econômicos de Jameson) – o sistema das artes passa a funcionar como operador da “inédita centralidade da cultura na reprodução do mundo capitalista, na qual o papel de equipamentos culturais está se tornando por sua vez igualmente decisivo”. Assim, conclui a autora, “o que de fato parece ter acontecido é a migração dos valores propugnados por aquela crítica [especialmente a artística, frisa a autora] para o mundo empresarial e vice-versa: as antigas barreiras que separavam os dois mundos em princípio antagônicos – dos negócios e da vida de artista – teriam se tornando de tal modo porosas, que ficou cada vez mais difícil distinguir um artista, digamos ‘empreendedor’, de um executivo de uma firma que funcione na base de prospecção de ‘parcerias’ para a realização de ‘projetos’”. [3] ARANTES, Otília B. F. “A ‘virada cultural’ do sistema das artes”. In: Revista Margem Esquerda, n. 6. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p. 65-6; 68. Ver também, para uma análise crítica específica do termo “projeto” na arte contemporânea: MAZZUCCHELLI, Kiki. “Arte como projeto”. In: Revista Cultura e Pensamento, n. 2, novembro 2007, Rio de Janeiro, FUNARTE, p. 21-25.

Ocorre, assim, uma inflexão radical de sentido no cerne da própria subjetividade artística – que fora o modelo, ainda romântico, desmesuradamente idealista, do sujeito revolucionário proposto pela Internacional Situacionista. [4] Para o juízo da herança romântico-idealista na “subjetividade artística” propugnada pelos situacionistas, ver: PERNIOLA, Mario. Os Situacionistas. Trad. Julliana Cutolo Torres. São Paulo: Annablume, 2009, p. 75-76. Ver também: AGAMBEN, Giorgio. “No mundo de Odradek – A obra de arte frente à mercadoria”. In: Estâncias – A palavra e o fantasma na cultura ocidental, Trad. Selvino José Assmann, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 93. Despojada de seu ímpeto romântico-revolucionário, essa subjetividade ganha, agora, a dimensão pragmática do homo oeconomicus, na acepção que Foucault demonstrou ser a do neoliberalismo: o sujeito como “empreendedor de si mesmo”. [5] A descrição de Foucault é datada de 1979, e, portanto, é testemunha de primeira hora da ascensão das doutrinas neoliberais. No texto, Foucault intui e antecipa as conclusões lógicas do deslocamento que o neoliberalismo faz da idéia, oriunda do liberalismo clássico (Adam Smith, David Ricardo), de homo oeconomicus: “O homo oeconomicus é um empreendedor de si mesmo. E isso vai ser tão verdadeiro que, praticamente, essa vai ser a questão de todas as análises feitas pelos neoliberais, trocar o tempo todo o homo oeconomicus parceiro da troca [do liberalismo clássico pelo homo oeconomicus empreendedor de si mesmo, sendo para si mesmo seu próprio capital, sendo para si mesmo seu próprio produtor, sendo para si mesmo a fonte de seus rendimentos” (FOUCAULT, Michel, Naissance de la Biopolitique. Paris: Gallimard/ Seuil, 2004, p. 232). Para uma leitura atualizada da mesma reflexão, ver: SANTOS, Laymert Garcia dos. “Humano, pós-humano, transumano”. In: NOVAES, Adauto, Mutações – novas configurações do mundo. São Paulo: Edições SESC-SP/ Ed. Agir, 2008.]

(Sob esse prisma, apresentado por Foucault, é possível compreender o atual modelo pragmático-conformista, cujo exemplo caricatural e paradigmático – mas não o único – é o ideário das “utopias do possível”, sustentado pela doutrina “relacional” de Nicolas Bourriaud, doutrina segundo a qual a arte deveria hoje apresentar – e, segundo o autor, seus “locatários da cultura” já apresentariam – “modelos de universos possíveis”. Panglossianismo de mercado: modelos para o “melhor dos mundos possíveis”.) [6] A dimensão de conformismo inscrita na arte dita “relacional” pode ser confirmada com um rápido bater de olhos no livro de Nicolas BOURRIAUD, Estética Relacional, trad. Denise Bottmann, São Paulo, Martins Fontes, 2009, especialmente p. 16-19. Para uma leitura francamente crítica do ideário “relacional”, ver: BISHOP, Claire. “Antagonism and Relational Aesthetics”. In: October, n.110, Fall 2004. Cambridge: MIT Press, p. 51-79. Ver também, da mesma autora, “The social turn: collaboration and its discontents”. In: Artforum, XLIV, n. 6, february 2006, New York, Artforum International.

 

Que é a crítica?

Era fato corrente, ainda sob a égide da arte moderna, que críticos de arte trabalhassem em regime de cooperação direta com artistas. Não à toa, uma vez que o artista moderno foi também, por sua vez, um crítico. Daí que, dentro dos diversos campos antagônicos ou “movimentos artísticos” das vanguardas modernas, artistas e críticos se encontrassem atrás das mesmas barricadas, combatendo um campo inimigo comum que, por sua vez, também congregava outros artistas e críticos. (Que se pense, entre inúmeros exemplos, a operação crítica – na verdade uma batalha – organizada e levada a cabo pelo cubismo contra os fauves, ou, ainda, na experiência brasileira moderna, a contenda entre concretos e neoconcretos).

Nesse sentido do conflito (entre as diversas tendências ou partidos), a crítica moderna é entendida como “uma ponte entre a esfera ‘separada’ da arte e a esfera social (e não inversamente), de tal modo que a crítica pode ser considerada um prolongamento, ou um tentáculo com o qual a arte tenta agarrar-se à sociedade, qualificando-se como uma atividade não totalmente contrária ou dessemelhante daquelas a que a sociedade dá crédito como produtoras de valores necessários, tais como a ciência, a literatura, a política, etc”. [7] ARGAN, Giulio Carlo. Arte e Crítica de Arte, trad. Helena Gubernatis. Lisboa: Editorial Estampa, 1988, p.130. Para a função mediadora e o processo de inserção da arte no sistema geral da cultura que a crítica realizou no âmbito da arte moderna, ver o capítulo “Tarefa e significado da crítica”, p.127-130. Ver, para a problematização do período de transição, ou seja, o do fim ou morte da arte segundo os parâmetros da arte moderna, o capítulo “A crise da crítica e a crise da arte”, p. 159-161. Ver também: CONTARDI, Bruno “Introdução” e ARGAN, G. C. “A arte do século XX”, In: Arte Moderna na Europa – de Hogarth a Picasso, trad. Lorenzo Mammi. São Paulo: Cia. das Letras, 2010, p.9-14; 438-494. Descreve-se aqui algo que está fora das cogitações atuais – em vista da profusão de relações imediatas entre a arte e as “atividades que a sociedade dá crédito como produtoras de valores”.

Diante da situação de generalização da “lógica cultural do capitalismo tardio”, a função mediadora (o processo dificultoso e conflitante de inserção das diversas tendências antagônicas da arte no sistema geral da cultura) que exerceu a crítica durante a vigência da arte moderna mudou inteiramente de figura – na hipótese otimista e pouco provável de não ter caducado de maneira completa. Há, portanto, ainda necessidade dessa função mediadora atribuída à crítica (no sentido forte da palavra, se ainda houver)?

 

Reflexão totalizante

Sendo possível perceber uma ruptura histórica entre as funções anteriores e as atuais exercidas pela crítica de arte – ruptura histórica marcada pelo processo de desintegração dos parâmetros que compuseram o regime crítico, combativo e de historicidade da arte moderna – as perguntas deveriam se colocar de outra maneira.

Em primeiro lugar, elas não deveriam se dirigir diretamente à atividade do reles crítico de arte – que, como crítico, a rigor, nem existe mais, desprovido que está da ambição totalizante que animou tal atividade no período da arte moderna desde a invenção do termo “crítica” sob o signo do Iluminismo. As novas questões surgidas da “lógica cultural do capitalismo tardio” ganhariam realidade concreta, para além da medida ficcional do indivíduo, se mirassem à gama de processos históricos que subjaz ao ato presente de escrever sobre arte – questões marcadas, desde o princípio, pela possibilidade (não inteiramente cogitada, dentro ou fora do sistema) de que as respostas a se obter acabem por se mostrar pouco simpáticas…

Não se trata de um retorno ao passado – o que seria uma atitude regressiva –, um retorno aos “bons tempos” dos projetos compartilhados entre atividade artística e crítica-de-arte. Trata-se da elaboração (no sentido psicanalítico) das problemáticas trazidas pelo passado histórico da arte moderna (a realidade de antagonismo ou de conflito aberto). Postas assim, essas questões trariam, a reboque e inexoravelmente, a necessidade de reflexão sobre aquela gama ainda mais ampla de processos históricos – que inclui a ruptura traumática do fim do ciclo moderno, a reconfiguração do sistema das artes com uma “reconciliação” ou um consenso tácito geral – que está por trás da própria disciplina arte:

– O que exatamente se faz, hoje, quando se faz ou se pensa fazer arte?

 

Ficção-crítica

– Que fazer? (Pensar-fazer)

– Trata-se, em primeiro lugar, de abolir o sujeito (que enuncia as frases). Não porque se procure uma objetividade pretensamente neutra. Mas, para escapar a um enganoso “nós” – e a um não menos enganoso “eu” –, o processo de abstração do sujeito que enuncia (reflexo da abstração que é o “público leitor”) deve ser o objetivo declarado do texto: “O trabalho com o desaparecimento do autor é uma resistência contra o desaparecimento do homem”, de acordo com Heiner Müller.

– Como fazê-lo?

– Mediante a tensão entre tom – que será impositivo – e sintaxe – que será reflexiva (pelo uso da partícula “-se”).

– E onde entra a arte nesse processo?

– Ela também deveria ser abstraída do texto – ou, talvez, expurgada: o trabalho com o desaparecimento da arte é uma revolta contra a generalização da economia.

– É notável a falta de clareza. O excesso de inversões e saltos de linguagem parecem, antes de tudo, procedimentos estilísticos.

– Ou pior, artísticos…

– Mais um motivo para a acusação de falta de clareza e, inclusive, de ambiguidade.

– Deveria haver, antes, um entendimento preciso sobre o que seja (em vista do que já pôde ser) arte. Não a negação do estilo, mas o estilo da negação. Quer dizer, a ativação das contradições: o estilo, a arte, não importa, apenas ferramentas de tensionamento.

– Os poderes instituídos (do capital) têm lá também seus meios de tensionar a ordem (jurídica). Salvo engano, a ferramenta é chamada “estado de exceção”.

– Sim. Exceção que é, há tempos, a regra do mundo.

– “A regra da arte”?

– A arte, se pudesse, deveria pretender instaurar, segundo lhe ensina “a tradição dos oprimidos”, um “real estado de exceção”, que abarcaria a totalidade dos processos concretos, a tarefa histórica notada por W. Benjamin.

– Fosse assim e ela seria um bocado violenta.

– É uma boa hipótese.

– Hipótese na qual já não seria apenas arte.

– Sim.

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Carta

Querido,

Te escrevo enquanto te olho.

Sem dúvida essa frase ressoaria como mais uma intencionalidade clandestina à original na boca de nossos camaradas de imersão, tendendo a uma libidinosidade infundada, mas saudável, afinal essas foram gargalhadas que nos aproximaram.

Te olho sem que me perceba e te observo, traços e tiques. De alguma forma, tua imagem de urso marxista de luta me estimula o contraste.

Hoje pensei muito sobre tua escolha: a História da Arte Brasileira.

Esses dias ouvi atentamente teus longos discursos lúcidos e convictos sobre o modernismo brasileiro, sobre Hélio, Antônio Dias, Waldemar – ícones já perpetuados por nosso pequeno circuito e além dele – e te escutei com a admiração de quem desconhece tantos meandros e com a inquietação de quem prefere não se apoiar na história oficial ou mesmo a história eleita do ícone.

Entre essas idas e vindas, hoje em especial me surpreendi.

Primeiro, porque, no almoço, você abriu a geladeira em busca da salada, atitude esta realmente discordante de tudo que pregou a respeito de sua própria pessoa (e isso é genial – como diria você); segundo, porque talvez hoje eu tenha entendido sua real opção por historicizar.

A pergunta bem argumentada que nos fez hoje à tarde – afinal quem é essa geração à qual nós dizemos pertencer e como ela se reconhece? – ecoou dentro de mim mesmo durante o passeio noturno pela Rua da Moeda. Por quem vamos esperar para escrever nossa história?

Compreendi que, apesar da diversidade e da dispersão orgânica de nosso movimento, a síntese se faz necessária quando se pretende marcar a arqueologia de nosso futuro. E, como você defendeu, talvez melhor que nos saibamos dizer agora, antes que a poeira se registre como glória.

Agradeci por tê-lo conosco.

Acendeu uma fagulha de expectativa de que uma história endógena se construa e de que possua interlocutores ativos e resistentes, assim como sua luta armada.

E daí a minha insistente inquietação: como conquistar o perfil do que consideramos a nossa geração, sem perder a coesão do tempo real e de muitos?

Martela e martela e mais pensamentos pela noite adentro…

Um beijo, com o carinho da luta,

Mai.

 

P.S.: ainda precisamos avançar na referência para além de São Paulo.

 

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Curtos circuitos: uma política de (re)posicionamentos

“O que importa é trabalhar com o conteúdo do fenômeno, ao invés de ficar preocupado com o destino da palavra.” (Milton Santos, 1997 em entrevista para o jornal O Tempo)

Pela necessidade, impulsivamente humana, de querer entender todos os processos de maneira lógica, é que se insiste em fazer a palavra-significante dar conta da imensidão de significados (i)mediatos.  Com a palavra arte não foi diferente. Desde a Grécia antiga, houve o empenho em busca de definições para tornar as “obras de arte” fáceis de reconhecer – embora sempre difíceis de serem de fato conhecidas. Mas, aqui, na contemporaneidade em que tudo é poroso e todas as possibilidades, a priori, possíveis, essa é uma missão (quase?) impossível de empreender: delimitar o modus da arte.

Assim, salto de uma tentativa (atual) de apreender “o que é arte” para me debruçar sobre “qual arte” vamos lidar. A urgência em se pensar em “qual” arte e não mais “o que é” passa pelo entendimento de que assim como o cubo não é branco (jamais deixa de agregar outros valores-significados para além da obra-de-arte-em-si), o circuito no qual a arte estará inserida também não é branco [1] Circuito branco foi um termo utilizado por Newton Goto desde as primeiras conversas do processo de imersão editorial que gerou esta revista..  Os valores que alicerçam o circuito também implicarão a arte (enquanto obra) por sua mera inserção neste.

Tem sido extremamente penosa essa estrada percorrida de constatação (e impotência?) diante da (im)possibilidade de uma crítica de arte. O colapso é geral e os discursos esquizofrênicos – para não dizer quase tolos – exaustivamente se repetem e não se envergonham em sê-los. Por certo que a crítica de arte perdeu seu veio. As artes (de agora) que abarrotam exposições, sobretudo em instituições privadas, perderam (vertiginosamente) seus poderes de interlocução. Até obras de arte que há 50 anos atrás eram “diversas, porém algumas estreitamente vinculadas, todas convergiam no projeto e na linguagem, no desejo de modernidade e nos modos de produzir a significação social”[2] Celso Favaretto, texto Tropicália a explosão do óbvio,  no livro Tropicália: uma revolução na cultura brasileira [1967-1972. Carlos Basualdo, (org) São Paulo: Cosac Naify, 2007.Pág 84], paulatinamente vão perdendo seus significados iniciais, porque hoje, sob anteparos (físicos e institucionais), vão se calando. O que é o Parangolé sem o samba na rua, ou os Bichos sem o contato da pele? Antes de a crítica retornar aos discursos sobre  forma e conteúdo, há que discutir a inserção das obras em determinado(s) circuito(s).

Percebo que nos últimos tempos arte e mercado têm andado juntos (sempre estiveram, é verdade) numa simbiose preocupante: em primeiro lugar, a questão de valor fica cada vez mais à mercê de uma especulação notadamente econômica, em detrimento de uma construção coletiva baseada na densidade simbólica que a arte pode manifestar. Em segundo, os mecanismos de mercado inevitavelmente acabam atraindo fórmulas do fazer, geralmente ancoradas numa autorreferência historicista, que deixam de fora a dimensão coletiva de construção simbólica – ou seja, pouco se dão a pensar no público.

Entendo que o discurso de autonomia reivindicado pelos primeiros modernistas europeus era de uma necessidade de ver sua arte desvinculada de qualquer tentativa de dirigismo, seja esse feito por um partido político, classe social, entidade religiosa… Mas tal discurso acabou descolando arte e vida; por consequência, arte e público. Se há uma continuação nessa derrocada, ao meu ver imbricada naquela ideia de autonomia mencionada, há também que se parar de entender arte enquanto construção de valor social, ou imaginário simbólico coletivo.

Não consigo imaginar, hoje, em que se celebra a potência da pluralidade atuando em infinitas direções, a imposição de um discurso (de)limitador das práticas artísticas. Ainda assim, é saudável a construção de parâmetros ético-estéticos em torno dos quais podemos arguir, propor e analisar os múltiplos fazeres no campo da arte, sobretudo aqueles que pretendemos (re)conhecer como obra.

Já é possível perceber uma crescente volta a uma institucionalização da arte, ainda assim (e ainda bem!), não é possível argumentar que só por isso ela venha perder sua potencialidade subversiva. Por mais que as formas de visibilidade, cada vez mais ditadas pelas instituições, comprometam parte da pulsão criativo-transformadora. De um lado, pela castração inicial da criatividade artística pelo modelo de editais, por outro, devido à imposição de “maneiras de fruir” próprias dos discursos “arte-educadores” paulatinamente arraigados em cada museu ou centro cultural. Por sua própria natureza, a arte, enquanto construção simbólica, guarda em si a potencialidade de não se deixar domar: sua parte imaterial é infixa: capaz de gerar formas incontáveis de se dar a subjetivação. Faz-se necessário pensar, contudo, o universo estético para além da obra de arte.

Se é possível falar em uma necessidade da arte é porque entendo que, para além de entender arte como um construto que pode vir a assumir uma infinidade de formas e discursar sobre infinitos assuntos, há que se entender esse construto dentro de um espaço e temporalidade específicos que pedem um comprometimento. Tal compromisso não deve engessar a arte em formas ou conteúdos, mas também não deve prescindir do binômio arte-vida enquanto princípio ético. É preciso pensar o(s) circuito(s).

Qual arte?

Retomando essa ideia, quero propor um pensamento acerca desse grande circuito com o qual nos acostumamos a lidar, em que a legitimação das obras passa necessariamente por um modelo duvidoso de “aceitação”. Em que pese a necessidade de visibilidade da obra de arte, não se pode só e tão somente usá-la como valor suficiente de legitimação. É sintomático (e constrangedor) se dar conta da existência de uma produção artística apenas ativada por demandas institucionais pouco afeitas à vontade de modificar, transcender, movimentar (que não somente nos discursos). Quando o ponto alto da preocupação de um artista se resume à visibilidade de seu trabalho numa exposição de um banco privado, é preciso estar alerta acerca da arte com a qual queremos lidar.

Não restam dúvidas de que hoje há uma urgência anterior à da demanda de se discutir se há ou não arte em determinada proposição artística. É preciso pensar quais implicações sociais e políticas esta proposição passa a carregar consigo quando se deixa ser parte de um sistema notadamente guiado pelo modus capitalista. O surgimento de inúmeros coletivos pelo país talvez seja uma seta que aponte para uma possibilidade de se gerar novas formas de ativação das artes visuais, sem necessariamente vincular-se de forma direta às demandas de um mercado.

Por si só, a ideia de coletivo tem um aporte simbólico interessante, no sentido de inscrever no mundo a possibilidade de atuações em conjunto sem, contudo, desfazer-se da subjetividade. Cada coletivo pode (e deve) trazer consigo a força da liberdade criativo-simbólica individual manifestada em cada proposição de arte, seja essa assinada como grupo ou como pessoa. O fato de uma proposição partir de um coletivo carrega em si uma potência revigoradora, que faz perceber um sistema possível que passa ao largo da base estruturadora desse sistema mercantil dominante: o individualismo.

Ainda são poucas as atuações dos coletivos a caminho de uma organização de modo a conseguirem criar circuitos que sejam autônomos a esse que está posto. A necessidade de outros circuitos não se trata absolutamente da negação do mercado, ou mesmo da atuação institucional (seja pública ou privada – que no Brasil, não é fácil distinguir). Mas de um (re)posicionamento mormente do artista frente a uma situação de quase mendicância – sobretudo, no que diz respeito a quase ausência de voz sobre os modos de seleção, exibição, exploração das obras de arte (e suas derivações) impostos pelo atual mercado.

A relevância dos circuitos autônomos passa também pela necessidade de se criar equidistâncias nas atribuições de valor que não sejam só econômicas. Nesse sentido, é imprescindível pensar em atravessamentos entre um circuito e outro, de modo a criar pontos de tensões que reequilibrariam as ideias de valor sobre a obra de arte.

Não é possível pensar numa (re)construção de valor da obra de arte sem pensar também o (re)posicionamento do artista enquanto agente político e social. Isso não quer dizer, de forma alguma, que o artista deveria estar imediatamente atrelado a uma causa, mas que não deve prescindir de deixar claro suas formas de atuação. De outro modo, seus trabalhos estarão cada vez mais à mercê da especulação e manipulação de significados, que interessam tão somente ao atual mercado.

O circuito não é branco

É cada vez mais escancarado o uso da arte na atividade marketeira (notadamente, dos bancos privados e empresas multinacionais). Sob a máscara de mecenas, estas instituições não só se utilizam desse status para ganhar os bons olhos da sociedade, como se apoderam das obras de arte ao atrelar as imagens-significados às suas próprias marcas. “Atentas à sua posição simbólica na mente das pessoas (consumidores), as empresas usam as artes, carregadas de implicações sociais, como mais uma forma de estratégia de propaganda ou de relações públicas(…)”[3] Wu, Chin-tao. Privatização da cultura: a intervenção corporativa na arte desde os anos 1980. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2006. Pág. 32.

Assim sendo, seria absolutamente ingênuo se entregar aos usos e costumes desse sistema sem considerar que cada obra de arte que se coloca nesse percurso de “legitimação” está, de forma inevitável, implicada no impacto das ações sociais e políticas de cada uma dessas empresas.

Curtos circuitos

Talvez pareça mera utopia imaginar a possibilidade da criação de circuitos autônomos (e interdependentes); mas modelos políticos, econômicos e sociais sustentáveis como os das ecovilas podem ser uma referência interessante para se pensar futuros [4] Penso a ecovila não como solução por sua forma, mas pelos conteúdos que ela propõe: política, economia, cultura autônomas (entendendo autonomia como interdependência). Na verdade, o tom do texto é mais de conversa do que de indicação de soluções. É mais uma fala e menos um aprofundamento sobre algo específico. Quero propor que pensemos a ecovila como conceito e, nesse sentido, cabe dizer que as tribos indígenas, MST e outras tantas organizações, hoje, fazem parte desse  conceito.].

Ao contrário do que nos acostumamos a ter notícia, a maioria das ecovilas não são autossustentáveis, mas autônomas e se sustentam por meios diversos de geração e aquisição de produtos que não sejam somente produzidos pelas grandes indústrias. Uma ecovila se põe como comunidade que tem sua própria forma política, social e econômica. Nesse sentido, esta constrói sua autonomia e se posiciona tensionando e readaptando as formas do mercado agir sobre si mesma.

O número de ecovilas no mundo não se tornou relevante o suficiente para criar um impacto no atual modelo econômico dominante. Ainda assim, se manifesta como um modelo possível de vivência e isso, por si só, potencializa transformações na maneira de lidar com esse sistema mercadológico.

Nessa direção, não é distante pensar em pequenos circuitos movimentados por coletivos que possam se organizar inventando suas próprias formas políticas, sociais e econômicas. Ao alicerçarem suas autonomias, estarão prontos para os atravessamentos necessários no grande circuito criando uma entropia que gere atuações mais equilibradas.

 

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Da paisagem-trouvée ao território inventado: observações sobre os circuitos de arte contemporânea no Brasil

Um montanhista sobe uma montanha porque ela está lá. Um artista faz arte porque ela não está lá.[1] Frase atribuída à Carl Andre, artista minimalista estadunidense, relatada a mim por Cildo Meireles em conversa que tive com ele em seu ateliê no Rio de Janeiro, em 1999. As analogias subsequentes são uma posterior observação do autor deste texto.

Se o circuito de arte é um território já posto, basta ao artista, como um alpinista, trilhá-lo.

Ou, como artista, o próprio território da arte será algo inventado.

A quase totalidade das sociedades urbanas do mundo ocidentalizado sustenta-se sobre modelos de desigualdade e controle social, por ora (pós-queda do muro de Berlim) plasmados num neoliberalismo econômico sem fronteiras. A atuação do artista como intelectual crítico continua sendo a de revelar e desconstruir as convenções culturais que reduzem a vida à mercantilização dos desejos, burocratização e alienação dos fazeres, padronização das subjetividades, dos costumes e das linguagens. Se o mundo está muito injusto, errado, insano e doente, se a desumanidade governa, por que a arte e o pensamento simplesmente atenderiam às suas demandas como supridores de objetos específicos e alienados, alimentando com novos produtos uma gigante máquina suicida? Instaurar um novo ambiente, linguagem e realidade, é nadar contra a corrente. A contracultura e a antiarte continuam sendo necessidades contemporâneas, ou como Hélio Oiticica apontou, entre uma das seis características de uma arte brasileira de vanguarda: “o ressurgimento do problema da antiarte”[2] Os seis pontos indicados por Hélio Oiticica como características de uma arte contemporânea de vanguarda: 1) Vontade construtiva geral; 2) Tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete; 3) Participação do espectador; 4) Tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos; 5) Tendência a uma arte coletiva; 6) O ressurgimento do problema da antiarte. Em Esquema Geral da Nova Objetividade, texto de Hélio Oiticica, de 1967. In: FERREIRA, Glória. COTRIM, Cecília (Orgs). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.. E essa nova realidade desejada pela arte é em princípio o imaginário e o sensorial, individual e coletivo, a partir do qual é possível perceber as coisas diferentemente, agir e transformar. A subjetividade é também um campo de batalha. Se vivêssemos numa sociedade justa e feliz, talvez todos fôssemos artistas e nossa arte estaria impregnada em tudo como celebração da vida, como reificação dos valores da coletividade, do simbólico, dos costumes, de uma cosmogonia, da inventividade humana. Não é o caso. E isso não quer dizer que não haja felicidade, pois em todos os lugares tenta-se também reinventá-la e cultivá-la. A arte então parece estar nessa dupla missão: desfazer amarras e encaminhar saídas, mesmo que num corpo a corpo, numa microfísica dos acontecimentos, pois para haver comunidade é necessário indivíduos e qualquer transformação real coletiva começa pelo sujeito. Assim seguimos. Em termos táticos, não basta a linguagem artística estar impregnada de conteúdo social, ela necessita estar atenta também ao lugar por onde transita e como se desloca. Para não ficar esvaziada de sentido – retórica sem lastro existencial. Qualquer coisa pode ser arte, mas arte não é uma coisa qualquer. Qual é a coisa que se quer fazer? Qual é o lugar onde se quer estar? Entre o artista e a sociedade há uma terceira margem do rio, indissociável do próprio fazer artístico: o circuito de arte, com sua herança histórica e seus meios de legitimação cultural. Equívoco seria imaginar esse circuito como neutro, um circuito branco [3] Circuito branco, analogia e extensão do conceito cubo branco de Brian O’Doherty  (No Interior do Cubo Branco; a ideologia do espaço da arte). Questões contextuais sobre a linguagem artística  e suas implicações com o lugar e circuito que ocupa relacionam-se aqui também, diretamente, com o texto Limites críticos, de Daniel Buren., como um cubo branco, desvinculado dos interesses e valores conflitantes da própria sociedade.

Além da linguagem e de um imaginário a serem desenvolvidos e compartilhados, outros e simultâneos campos de atuação complementam o lugar de trânsito do artista: o repensar de seu papel na sociedade; a reavaliação das políticas públicas para as artes empreendidas pelo Estado; a revaloração do trabalho artístico frente às intituições e mercado; a criação de redes autônomas de trocas simbólicas entre artistas e sociedade. É sobre esse território que aqui se quer falar, usando a língua de duplo sentido, que desconstrói e recodifica. Qual história da arte? Qual circuito? São tantas as verdades. Propõe-se abordar algumas conjunturas do já cinquentenário circuito de arte contemporânea no Brasil. Avaliar alguns macrocontextos ao longo das décadas para tentar entender alguma estruturação do presente, breve ponto de parada e mirante para o agora, de onde o olhar se lança como desejo de caminhada para o futuro imediato: aberturas, saídas, alternativas.

 

O território espaço/temporal: uma geopolítica do sistema das artes visuais no Brasil

Num fluxograma de tendências ampliadas, pode-se dizer que a contemporaneidade da arte brasileira iniciou nos rompantes libertários dos movimentos artísticos e de contracultura em torno dos anos 60/70 – Concretismo, Neoconcretismo, Nova Objetividade, Tropicália, Lygia Clark, Hélio Oiticica –, incluindo aí também as participações de determinados momentos institucionais e outros acontecimentos específicos, como Bienal de São Paulo, o MAM-RJ e MAC-USP dos anos 70, a exposição Do Corpo à Terra; passando por um período de reconfiguração da  experiência de linguagem como arte de crítica social, subversão e protesto contra a ditadura nos anos 70 (Cildo Meireles, Carlos Zilio, Antônio Manuel); e reorientou-se como busca relacional e de inserção sociocrítica em ações dos grupos de artistas nos anos 80 (Espaço N.O., 3NÓS3, Sensibilizar, Paulo Bruscky e Daniel Santiago, A Moreninha, etc). Nesse momento, essas ações coletivas foram se diluindo do panorama, perdendo intensidade para um refluxo estético então emergente, em parte denominado de retorno à pintura, que foi conquistando espaço com a abertura política de 1985.

Uma questão que fica no ar: por que, com o fim da ditadura no Brasil, o circuito de artes visuais se reconfigurou de maneira tão diversa ao que era antes? Uma parte considerável da resposta tributa-se à eficência com que a ditadura realizou seu trabalho de desarticulação da oposição, da intelectualidade crítica e das instituições culturais públicas. E uma outra parte, também bastante considerável dessa mesma resposta, enuncia que a abertura política coincidiu com um boom do neoliberalismo mundial, que encontrou um campo aberto e pouco resistente à sua expansão local. Uma terra arrasada, por assim dizer, com instituições culturais enfraquecidas, com uma intelectualidade desfalcada e com a psiquê coletiva de seu povo ainda abalada depois de 20 anos de repressão e perseguição ideológica. No meio das artes visuais essa globalização capitalista parece ter ecoado como uma exagerada expectativa em relação ao mercado de arte, seus valores e práticas, expectativa essa ligada também à emergência de um mercado interno brasileiro. Era como se todos (ou quase) quisessem ser Andy Warhol, ou até mesmo um Jackson Pollock, para acessar algum quinhão daquele mundo de fama e dinheiro que parecia ser a sociedade estadunidense e seu modo de vida descompromissadamente consumista: os EUA, os proclamados vencedores da guerra fria. É irresistível comparar (e constatar as perdas) as mudanças de paradigmas entre o artista de antes – intelectual crítico, experimentador de realidades, ampliador das linguagens, subversivo, preocupado com o diálogo social de sua obra [4] O envolvimento social é característica e lógica construtiva da obra de diversos artistas do período, e é também questão teorizada em alguns textos de artistas, como o já citado Esquema Geral da Nova Objetividade, de Hélio Oiticica, e Inserções em circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles, de 1970. Também internacionalmente essa reflexão se instaurava, como em Arte contemporânea colonial, de Luis Camnitzer, de 1970, ou na conferência A revolução somos nós, de Joseph Beuys, de 1973, entre outros. Esses textos podem ser encontrados em: FERREIRA, Glória. COTRIM, Cecília (Orgs). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. –, em relação à nova concepção que começou a predominar após a metade dos anos 80 – o artista profissional que se adequa às demandas intitucionais e de mercado, que experimenta seu trabalho novamente pautado pelas especificidades de linguagem e discurso formalista, que busca construir sua carreira unicamente dentro de museus e galerias. É quase incrível perceber como nas décadas imediatamente subsequentes a postura crítica e experimental do artista começou a ser desqualificada e rotulada como uma manifestação datada, moda que passou, algo demodé, numa superficialidade argumentativa digna de uma campanha publicitária mercantilista.

Faz sentido dizer que a sociedade brasileira – e dentro dela o meio cultural (e dentro ainda o artístico) – sofreu dois golpes de longa duração, um Golpe de Estado, em 1964, seguido de um golpe de mercado após a abertura política, que também teve seu efeito prolongado por “quase” sucessivos três governos de direita que se elegeram democraticamente após um governo de transição [5] Após a campanha das Diretas Já, e a eleição ainda indireta de Tancredo Neves, falecido antes de sua posse, deu-se então o governo de transição de José Sarney (1985-1990). Os três mandatos presidenciais decorrentes de eleições diretas, e com características neoliberais aqui enunciados, referem-se aos presidentes Fernando Collor e aos dois mandatos seguidos de Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002). Lembra-se aqui que com o impeachment de Collor, em 1992, assumiu a presidência o então vice-presidente Itamar Franco, o qual exerceu seu mandato nos anos de 1993 e 1994. Contextualiza-se, entretanto, a distinção de perfil entre Itamar (nacionalista) e os neoliberais Collor e FHC, justificando-se assim o “quase” do texto: “por ‘quase’ sucessivos três governos de direita”. Destaca-se ainda toda a mobilização popular antecedente ao impeachment de Collor, o movimento estudantil denominado de “os caraspintadas”, que levou às ruas de diversas cidades brasileiras toda uma juventude para exercer o ato democrático da crítica e da pressão políticas.. E o fato desses governos terem sido escolhidos em eleições diretas é um indicativo de como a ditadura civil/militar no Brasil foi eficiente em introjetar na sociedade algum sentimento conformista, de conivência com o opressor. Parece ter demorado demasiado para cair a ficha de que, de fato, os militares no Brasil sempre estiveram aliados da elite econômica local (inclusive dos empresários dos meios de comunicação de massa); ou seja, não haveria milagre capitalista nenhum a se realizar, pois o País da concentração das riquezas e da injustiça social era, assim, o mesmo antes e depois da abertura política. Mesmo estando com maior liberdade, de cara nova e com a esperança também renovada. O sonho nacional que continua a fazer sentido em ser desejado é de outra ordem, o desenvolvimento social.

A tradição no Brasil mostra, também, que a maioria de sua intelectualidade é historicamente aliada da elite econômica dominante e que essa tem vínculos de afinidade e dependência antes com a elite econômica internacional, que com a população de seu próprio País. Muitos já refletiram sobre esse contexto [6] Segundo o historiador Sergio Guilbault: “Nelson Rockefeller já em 1946 estava tentando, com resultados variáveis, encorajar os brasileiros a criar Museus de Arte Moderna em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, duplicando o MoMA, a fim de iniciar o Brasil no sentido da modernidade econômica e na energia do liberalismo dos livres negócios. Brasil e a Argentina, graças a tais esforços, embarcaram num ambicioso programa de Bienais Internacionais direcionadas para a apresentação de arte abstrata. O MoMA entendeu a importância dos museus modernos para a criação de alianças entre os grupos de elite no hemisfério ocidental, iniciando um amplo programa internacional (financiado pelo fundo Rockefeller) dedicado à defesa e divulgação da arte moderna, mas também da produção cultural norte-americana na Europa, Índia e América Latina” In: FREIRE, Cristina. Poéticas do processo: arte conceitual no museu. São Paulo: MAC-USP, Iluminuras, 1999. (p.49). Muitas outras histórias e contextos de alianças entre as elites latinoamericanas (inclusive brasileiras) com as internacionais podem ser acessadas no livro As Veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano., mas essa ainda não é uma literatura que se ensine nos cursos de arte universitários, os quais, em sua maioria, insistem em querer conceber greenberguianamente as disciplinas da arte como algo à parte do mundo, vivendo numa bolha autoreferente e restrita à própria história da arte. Missão acadêmica das mais esquizofrênicas essa, ou simplesmente comprometida com as mesmas elites e mercado, pois como ensinar arte contemporânea, Joseph Beuys, Cildo Meireles, Hans Haacke e tantos outros, subestimando-os ou esvaziando-os da dimensão política de suas obras? [7] O poder de legitimação cultural empreendido pelas universidades e museus de arte, assim como os vínculos destes com uma elite cultural e econômica, foram aprofundadamente abordados no livro a Economia das trocas simbólicas, de Pierre Bourdieu.

Seria surrealista aqui lançar um olhar sobre a paisagem (espaço/tempo) imaginando-a sem contiguidade com outros territórios que estejam além do horizonte. Uma montanha flutuando no espaço. Falar sobre uma amnésia geracional no meio das artes visuais, ou numa ruptura de paradigmas, sem considerar uma amnésia social de maiores proporções. De fato, o próprio termo amnésia coletiva surge como inapropriado, pois considera o fenômeno como algo espontâneo, emanado de algum distúrbio natural do povo brasileiro. O que vivenciamos está muito mais para a sequela de uma lobotomia social programada: a ditadura perseguiu, torturou, extraditou e matou opositores, inclusive intelectuais; censurou a imprensa e a produção artística; restringiu a atuação das instituições culturais públicas, intimidou a sociedade. Complementando o quadro programático de agir ontem para garantir o esquecimento e a manipulação no presente, a ditadura suprimiu o ensino das disciplinas Sociologia e Filosofia nas escolas (em 1971), situação que perdurou por quase 40 anos [8] As disciplinas de Filosofia e Sociologia estão voltando somente agora a serem obrigatórias nas três séries do ensino médio em todo o país, a partir da Lei 11.684, aprovada em 2 de junho de 2008. Em 1971, no auge da ditadura militar, as duas disciplinas foram excluídas e substituídas por Educação Moral e Cívica. Vale notar que antes de 2006, época do parecer do Conselho Nacional de Educação pelo retorno das referidas disciplinas aos currículos escolares, 17 Estados já haviam retornado a adotar tal política para área de educação., influenciando dessa forma uma maior alienação social e menor capacidade do exercício crítico por parte da população. Nas artes visuais houve uma desarticulação do repasse de conteúdos das gerações anteriores para as mais novas, principalmente sobre essa recente ancestralidade mais crítica e experimental. Com o pensamento crítico e a subjetividade em processo de varredura, a introjeção de valores-padrão, através da indústria cultural e da publicidade, passou a conquistar amplos territórios no imaginário coletivo [9] Felix Guattari, no texto Da Produção de subjetividade: “Nessa sociedade (a brasileira) dual – e como! – assistimos a uma subjetividade ser duplamente varrida: de um lado por uma onda ianque bastante racista – por mais que isso desagrade a alguns – que é veiculada por uma das mais potentes redes televisivas do mundo e, de um outro lado, por uma onda de caráter animista com religiões sincréticas (…). É impressionante ver o quanto, nesse contexto, a impregnação mass-midiática precede a aculturação capitalística”. In: PARENTE, André. Imagem Máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed 34, 1993. (p. 189)..

De alguma forma, isso ajuda a explicar a oscilação bipolar pela qual esteve sujeita nossa cena de artes visuais, passando de uma postura experimental, radical e crítica  – até os anos 70 e início dos 80, já num movimento minguante, por assim dizer – para outro posicionamento: acrítico, conformista e mercantil. Seria muito simplista achar que essa mudança foi só resultado de um desbunde de liberdade e sincronização sem atritos com uma cultura universalista advinda da globalização. A própria incompreensão generalizada entre os agentes culturais do meio, ao referirem-se ao circuito de arte como mercado de arte, revela alienação sobre as práticas sociais e traduz o quanto a ideologia de mercado já habita com naturalidade um certo inconsciente coletivo nas artes. Pois há diferenças conceituais e de predominância de valor entre concepções como arte, circuito de arte, economia da arte e mercado de arte.

Com a situação assim posta, ou pior, assim desarticulada, os eleitos governos neoliberais do Brasil elaboraram seus projetos políticos para a cultura e as artes, ou seja, eximiram-se ainda mais de sua responsabilidade pública: arte e cultura foram repassadas ao mercado, à indústria cultural, à cultura do espetáculo. Essa privatização da cultura foi instituída, por um lado, através de mecanismos públicos de incentivo, as Leis de Incentivo (em especial o “Mecenato” da Lei Rouanet, Federal, que inspirou alguns outros modelos Estaduais e Municipais). Em outras palavras, muito da produção cultural e artística do Brasil passou a ser gerida por empresas culturais privadas e seus departamentos de marketing, só que com dinheiro público, de isenção fiscal. E vamos aí mais 13 anos nessa onda, de Collor à FHC. Em paralelo, sob o slogan de enxugar a máquina estatal (Estado mínimo), as instituições culturais públicas foram progressivamente desmontadas e enfraquecidas, ausentando-se mais e mais de uma atuação social. Com as vagas abertas, e os instrumentos financeiros criados, as empresas viram seu novo filão de atuação, a área cultural, um investimento sem custo, de lucro simbólico garantido, pois projeta a marca da empresa socialmente através de publicidade gratuita. Melhor ainda quando tudo isso se faz no espaço físico da própria instituição privada de cultura, potencializando os lucros não mais só para o âmbito da imaterialidade – o fortalecimento da marca –, como também para a própria materialidade das coisas – na requalificação de seus arquivos de dados, de seu acervo, de seus projetos, de sua equipe de profissionais especializados e, até, na melhoria de seu espaço físico e equipamentos. Assim cresceu o Itaú Cultural, destacado player desse sistema, o que melhor soube usar a conjuntura social de um Ministério da Cultura ausente (durante os governos liberais) e a oportunidade da Lei de Incentivo à Cultura a seu favor, tornando-se inclusive o maior beneficiário dela, como proponente de projetos [10] Em fevereiro de 2010, um inédito conjunto de dados estatísticos sobre a economia da cultura no Brasil começou a ser disponibilizado pelo Governo Federal. No âmbito das Leis de Incentivo à Cultura, no website do Ministério da Cultura, há um setor destinado ao Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura – o Salicnet – http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php. Pesquisando-se as informações é possível constatar que o Instituto Itaú Cultural tem sido o maior beneficiário da Lei Rouanet ao longo dos 17 anos em que ela está em prática. Vale ressaltar as distinções de status entre financiador e proponente, sendo o primeiro aquele que repassa recursos e o segundo, o usuário deles: na imbricação das funções, o Itaú torna-se financiador de si mesmo com recursos públicos de renúncia fiscal. Seis dos 10 maiores projetos realizados são dessa instituição. Por 11 vezes (considerando o ano corrente de 2010) o Itaú Cultural consta em primeiro lugar na lista dos 10 maiores proponentes anuais, com valores geralmente bastante destacados aos dos demais, algumas vezes na casa das dezenas de milhões de reais. Há de se averiguar ainda o quanto da produção intelectual acessada, apoiada e veiculada pelo Itaú Cultural, e financiada com recursos públicos, pode também ter se tornado propriedade privada da instituição, através de contratos firmados com artistas, pesquisadores ou seus herdeiros, o que transformaria a situação em algo ainda mais complexo em relação a questionamentos sobre o que seja público ou privado.. É como se diz na política tradicional: “na política não há vácuo”. Minimizando a dimensão política dos fatos, se possível, pode-se reconhecer que o Itaú Cultural realizou bons projetos, de relevância cultural (e talvez isso até sirva de consolo para alguns). Existem muitas outras grandes empresas atuando no campo da cultura através da Lei Rouanet, como a Petrobras, por exemplo, que é de longe a maior empresa financiadora de atividades artísticas e culturais no Brasil [11] A Petrobras é a maior empresa incentivadora cultural do Brasil através de renúncia fiscal, com destinação de recursos que chegam às vezes às centenas de milhões de reais anuais. Na lista das 15  maiores empresas finaciadoras anuais, lidera por 14 vezes, com aparição constante a partir de 1998, e com valores muito superiores aos das demais empresas. (Fonte: ://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php).. Entretanto há de se fazer diversas distinções entre elas, a começar pelo fato de que muitas atuam somente no campo do financiamento à cultura (como a Petrobras), ou seja, apoiam projetos de diferentes proponentes da sociedade civil, inclusive pequenos e médios produtores, e sequer investem em si mesmas através de renúncia fiscal. Há de se destacar  que  essa segunda postura é bem mais coerente com o que pode haver de fundamentação social numa Lei de Incentivo à Cultura, no que tange à sua modalidade de “Mecenato”.

No anos 90, para além da atuação de alguns museus e da Bienal de São Paulo, o circuito institucional de arte estava restrito praticamente à política das tradicionais mostras e salões de arte empreendidas pelas Secretarias de Cultura Estaduais ou Municipais, como o Salão Paranaense, o Salão Pernambucano, Salão de Artes da Bahia, a Bienal Nacional de Santos, o Salão do Pará, a Mostra da Gravura Cidade e Curitiba, entre muitos outros do mesmo formato que se multiplicavam pelo país. Com um Ministério da Cultura e a Fundação Nacional de Arte quase fora da cena nacional (o Salão Nacional de Artes era uma de suas poucas iniciativas, assim abrangente, perdurando até 1996), o território das artes visuais viu eclodir diversos projetos de mapeamento da produção artística brasileira protagonizados por empresas privadas, financiados pela Rouanet, como o Antártica Artes com a Folha (1995), o ABRA/Coca-cola de arte atual (1998) e mesmo o Rumos Itaú Cultural (desde 1997). O SESC também empreendeu e financiou sua própria cartografia cultural com o Balaio Brasil (2000). Esses mapeamentos foram como curadorias-relâmpago, nas quais a curta permanência de um ou dois dias do curador em cada cidade haveria de ser suficiente para se tentar conhecer a produção local, acessar e selecionar participantes, fato indicial do quanto essas avaliações foram, em princípio, pré-acordadas com informantes ou aliados dos circuitos locais. A retórica de uma pesquisa curatorial estaria praticamente limitada a uma escolha à la carte num cardápio de artistas oferecida pelo mainstream da localidade. Alguns salões de arte nacionais passaram por uma reformulação buscando valorizar o trabalho dos artistas instituindo pró-labores para todos os participantes (Salão Nacional de Arte de Belo Horizonte, 1997; Salão Nacional da Bahia, 1998). O senso comum nessa época, para um jovem artista que quisesse se inserir no circuito, era tentar ser selecionado em salões de arte, estar numa galeria comercial ou ser chamado a participar de alguns desses mapeamentos da produção. O melhor seria estar nas três opções. Pouco se falava de ações ou intercâmbios de grupos de artistas, de busca de diálogo social direto do artista com o público, ou do artista como intelectual crítico, inclusive capaz de desempenhar outras funções dentro do circuito. A internet não estava popularizada, nem mesmo o uso dos computadores pessoais. As publicações de pesquisa crítica sobre a arte contemporânea brasileira eram raras e mal circulavam, assim como as exposições do gênero. Havia uma grande desinformação sobre arte contemporânea, principalmente brasileira, e uma conformação à estrutura institucional e seus valores. Ser artista era se inserir no circuito instituído, esse era o espírito da época, a falta de espírito.

Quando se fala em mercado de arte no Brasil, vale notar tratar-se de uma concepção ainda bastante retrógrada, calcada basicamente na venda do objeto artístico, geralmente de cunho também decorativo, numa relação na qual praticamente nem se cogita considerar o “valor de exibição” do trabalho intelectual do artista visual como o produto a ser negociado, o acontecimento cultural em si, independente da venda do objeto. Sem falar nos percentuais exorbitantes de lucro do galerista sobre o trabalho do artista, uma prática vampiresca. Entretanto, se esse é o costume, é porque há consentimento. Na dita contrapartida, a galeria busca projetar o nome do artista (como uma empresa faz com sua logomarca). E paga curadores para legitimar seus “produtos”, curadores que podem vez ou outra ocupar o cargo de alguma instituição pública ou de um grande evento, abrindo novos nichos de mercado, espelhando compromissos anteriores agora num contexto público/privado. As galerias de arte e os eventos de cartografia da produção artística empreendidos pelas empresas culturais projetaram para a crista da onda a figura do curador e poucos deles, ou quase nenhum, precisou justificar sua nova posição na hierarquia social a partir de pesquisa ou texto crítico, restringindo seu labor a golpes de vista e a meros textos de apresentação de catálogos de arte [12] Uma década antes desse fenômeno ganhar corpo no Brasil, Umberto Eco já havia refletido sobre o meio das artes visuais, o poder de influência do crítico de arte sobre a visibilidade do artista, bem como a falta de isenção deste quando da elaboração de suas “apresentações de catálogos de arte” feitas por encomenda. Essas análises constam no texto Como apresentar catálogos de arte, publicado no livro Viagem na irrealidade cotidiana (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984).. O espaço de poder alcançado pela figura do curador dentro do circuito de arte, na maioria dos casos, foi antes uma consequência de mercado a um reconhecimento de mérito. Nos anos 90 o circuito de galerias comerciais cresceu, principalmente em São Paulo, e criou ramificações em outros centros urbanos. A expansão e homogeneização do circuito de arte no Brasil até quase o final dos 90 foi um fenômeno principalmente de ordem mercadológica.

Do final dos anos 90 ao presente, principalmente a partir do ano 2000, o ambiente começou a se transformar, esboçando uma paisagem realmente mais aberta ao debate crítico. Entre outros fatos, alguns acontecimentos ganharam corpo na cena contemporânea brasileira das artes visuais: o fortalecimento do meio editorial e a maior circulação de conteúdos (textos, livros e revistas de arte), a publicação de pesquisas críticas e a organização de exposições focadas numa reflexão sobre a arte contemporânea brasileira; o fortalecimento do ambiente institucional de arte (tanto o privado, quanto público); o surgimento de novos cursos de graduação e pós-graduação em arte; uma maior visibilidade mundial da produção artística brasileira e um subsequente interesse aquisitivo internacional sobre esse nosso capital simbólico; a popularização das redes de informação e discussão pela internet; a emersão e intensificação de circuitos artísticos autônomos – o fenômeno dos coletivos de artistas.

É inquestionável que com a chegada de Lula à presidência, a partir de 2003, e a instauração de um governo focado no desenvolvimento social, deu-se também uma mudança radical de postura do Estado frente à cultura, pois iniciou-se um resgate da responsabilidade pública do Ministério da Cultura pela guarda e fomento do patrimônio artístico e cultural brasileiro. O MinC, a Funarte e o IPHAN ressurgiram no cenário como importantes instituições do meio, buscando se estruturar em diversos níveis de atuação, enfim atingindo o território nacional em processo descentralizado de formato, curadoria e gestão de projetos culturais através de editais públicos. Das instituições e museus estatais espera-se isso mesmo a partir do presente: que estejam suficientemente fortalecidas em sua estrutura, propósito público e linhas de ação para não mais oscilarem em suas políticas culturais conforme ocorram mudanças de governo. Está em processo de criação o IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus), visando integrar e requalificar os museus brasileiros. Em paralelo, instaurou-se intenso processo de discussão participativa sobre as políticas públicas para o setor artístico e cultural através dos Colegiados Setoriais de Arte, dos Pontos de Cultura, do Conselho Nacional de Cultura,  das Conferências Nacionais de Cultura (e suas etapas predecessoras); instâncias que convergem para um inédito Plano Nacional de Cultura. Há, na atualidade, um projeto político integrado e abrangente para as áreas artística e cultural por parte do Estado brasileiro, com recursos financeiros expressivos para o setor. Hoje a área da cultura não está mais relegada pelo Estado ao âmbito do mercado, como se fosse uma atividade alheia à sua responsabilidade, cujos valores estariam restritos ao campo das finanças. O entendimento sobre a dimensão simbólica da produção cultural e artística re-ocupa seu lugar pertinente [13] Os Ministros da Cultura Gilberto Gil e seu sucessor Juca Ferreira são importantes protagonistas dessa mudança de paradigmas institucionais no âmbito da gestão cultural.. Essa reavaliação de responsabilidade cultural reverbera também nos Estados e Municípios. Complementarmente, a realização das edições do Fórum Social Mundial no Brasil, como contraponto do Fórum Econômico Mundial, passou a evidenciar toda uma reflexão autocrítica sobre as sociedades – a brasileira, as latino-americanas, as do Hemisfério Sul – e suas possibilidades de trocas e integração culturais, não apenas numa relação de compra e venda.

Porém, os bons novos ares do ambiente não significam ainda uma garantia permanente. Uma política cultural pública deve ser entendida também como responsabilidade do Estado, e não somente de um Governo. Mais fundamental ainda, é a cultura ser uma constante reinvindição pública da própria sociedade como um bem simbólico coletivo – material e imaterial – a ser acessado, mantido e incentivado. Se a cultura não estiver, assim, enraizada como uma necessidade pública, continuará vulnerável a novas rajadas de ventos neoliberais, que poderão deitar por terra algumas conquistas, e novamente reduzi-la à condição de bem de consumo, espetáculo, negócio, hobby, ou produto de luxo para poucos.

Ao manter o olhar sobre esse período do final dos anos 90 aos anos 2000, percebe-se que novas e fortes instituições culturais surgiram no meio das artes visuais, a exemplo da Bienal do Mercosul, o Santander Cultural, o Instituto Tomie Ohtake, a Fundação Iberê Camargo, o Inhotim. Enquanto outras firmaram e expandiram socialmente suas ações, como a Associação Cultural Videobrasil e o SESC. Alguns museus regionais souberam se colocar nacionalmente com autonomia e critério de atuação, como o MAMAM-PE e posteriormente, num período mais restrito, o Centro Dragão do Mar-CE. O SPA das Artes – PE tornou-se importante agregador da produção jovem mais experimental e processual. Antes, a Bienal da Antropofagia (24ª Bienal de SP – 1998) já havia inscrito suas reflexões com grande relevância dentro do debate crítico nacional e internacional. Redes autônomas de informação e debate pela internet se firmaram socialmente, como o Canal Contemporâneo, o Corocoletivo e o Fórum Permanente.

Surgiram também (e sucumbiram na mesma velocidade) grandes eventos oportunistas, como o Faxinal das Artes – PR, de fundamentação e estruturação equivocadas, e com finalidade obviamente eleitoreira (ou propagandística) por parte de um ex-governador. O debate público pode ajustar ou transformar as políticas culturais até de grandes empreendimentos empresariais na medida em que se clareiem os distintos interesses, práticas e responsabilidades dos setores público e privado. O território cultural é muito dinâmico, e mesmo protagonistas do setor tidos como dominantes, imprescindíveis ou impreteríveis podem sucumbir em suas próprias intenções, ou práticas ilícitas, como mostra a história recente da até então badalada empresa cultural Brasil Connects e seu aliado Banco Santos.

Hoje, um jovem artista, ao escolher por qual caminho seguir dentro do complexo sistema das artes, encontra uma diversidade de contextos e opções. Do artesão requintado que produz para o consumo de uma elite econômica descompromissada com seu entorno social, ao produtor intelectual que reavalia criticamente a dimensão simbólica da sociedade em que vive. Do fazedor de objetos para atender às demandas do mercado e da instituição, ao articulador de redes e circuitos de produção e trocas culturais autônomos. Em qual circuito se inserir? Qual arte se quer fazer? Que artista se quer ser? Diferentemente dos anos 90, hoje a reflexão crítica sobre o sistema das artes está posta em vários níveis. E a informação circula. Estar alienado é improvável. O embate é de valor e de opção.

Na imanência dos acontecimentos do território dado – essa sobreposição mutante de espaços/tempos dos circuitos de arte no Brasil –, a contingência de maior interesse aqui é refletir sobre dois aspectos a princípio antípodas que marcaram os últimos anos: por um lado, o fortalecimento do circuito institucional de arte, e por outro, a disseminação dos circuitos artísticos autodependentes. O desejo é remexer em parte dessa geografia, ajustar topografias e visualizar novos lugares e caminhos que possam ser opção para seguir adiante. Transformar uma paisagem-trouvée, por vezes inóspita, num habitável território inventado.

 

Paisagem nebulosa: embaraços administrativos remanescentes no circuito institucional

Depois de todo esse percurso contextual e histórico, as conjecturas feitas podem ajudar a entender alguns fatos que permanecem como nebulosos na estruturação do atual circuito institucional de arte no Brasil. Exemplos: uma importante instituição privada de cultura e um importante museu de arte serem presididos pela mesma pessoa (Itaú Cultural / MAM-SP). Duas distintas instituições públicas serem dirigidas pela mesma pessoa (Paço das Artes / MIS-SP).   Um museu que tem como diretora a esposa do ex-Governador do Estado, sendo esse o seu maior mérito específico para ocupar o cargo (Museu Oscar Niemeyer – PR). O Conselho Administrativo do maior projeto institucional de arte do Brasil e um dos mais respeitados no mundo ser composto por um grupo profissionalmente despreparado para gerir um empreendimento desse porte e perfil, além do próprio evento não possuir um planejamento de longo prazo adequado para sua realização (Bienal de São Paulo [14] Ver Relatório da curadoria da 28ª Bienal de São Paulo, documento assinado pelos curadores Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen, especialmente o item 5) Recomendações da Curadoria da 28BSP ao Conselho de Administração da FBSP.). O Portal na internet de um órgão do Ministério da Cultura ter ficado mais de dois meses no ar indicando ter sido patrocinado por uma empresa privada e outra de capital misto (Portal Funarte [15] O recém-inaugurado Portal da Funarte indicou – de meados de dezembro de 2009 (quando entrou no ar) ao início de março de 2010 – ter sido “patrocinado” pelo Itaú Cultural e pela  Petrobras. No caso do banco privado o fato beira o nonsense, pois como uma empresa que tanto se beneficia de incentivo fiscal Federal para fazer seu marketing cultural poderia ser, simultaneamente, patrocinadora do próprio Estado de quem obtém recursos? Questiona-se também a própria necessidade do Estado precisar de patrocínio para suas ações, visto ter fontes próprias para exercer sua política cultural. Observação: após algumas críticas públicas, essa situação foi revertida, parcialmente, com a realocação e requalificação da logo do Itaú Cultural. Sinal de que há necessidade constante do zelo coletivo pelo Estado em sua dimensão pública. Em qualquer outro campo de atuação Federal algo similar seria considerado absurdo e muito dificilmente essa possibilidade chegaria sequer a ser aventada: um Ministério da Saúde ser patrocinado por indústrias farmacêuticas; um Ministério do Planejamento por empreiteras, ou um Ministério da Agricultura por empresas do agronegócio, etc. O caso da Petrobras é algo a ser melhor avaliado, visto os enormes recursos que a empresa repassa ao setor cultural gerido pelo Estado.). O acervo com a obra de um dos principais artistas da arte contemporânea brasileira continuar exclusivamente como herança da família, em detrimento do interesse sobre a obra como patrimônio cultural nacional, mesmo os familiares já tendo recebido grandes investimentos públicos para a guarda e conservação da coleção (acervo Hélio Oiticica). Dois espaços públicos Federais de arte estarem há anos subutilizados (Funarte-SP; Funarte-DF). Um museu público Federal que está há mais de 15 anos sendo dirigido pela mesma pessoa (Paço Imperial [16] Não se questiona aqui a qualidade da gestão, mas sim o próprio modelo, pois torna-se problemático um cargo “quase vitalício” numa instituição pública, ainda mais sem concurso público específico para tal função.). Num campo inversamente problemático, a descontinuidade de projetos culturais institucionais e a falta de formação específica de muitos dos gestores institucionais da área artística, cujos cargos continuam a ser indicados, na maioria dos casos, antes como resultado de alinhamento partidário e político com os governantes, do que por consequência de mérito profissional. O segundo maior acontecimento institucional de arte do Brasil, que se sabe lá por que motivo não paga pró-labore para artistas [Bienal do Mercosul [17] O fato parece estender-se, em alguns casos, também à própria Bienal de São Paulo, além de replicar em diversas outras instâncias institucionais, estaduais e municipais.]. O maior prêmio nacional de arte e tecnologia ser dedicado a um ex-Ministro das Comunicações responsável pelo polêmico ato de privatizar todo o sistema de telefonia do país, como se não existissem, em nossa história, artistas e teóricos que realmente tenham feito alguma contribuição de ordem cultural no âmbito da pesquisa artística e produção crítica focados em arte e tecnologia (Prêmio Sergio Motta). E por último, nessa breve lista de imbróglios culturais e administrativos, um dos mais expressivos problemas vinculados ao sistema de arte no Brasil, que transpassa e articula-se com vários dos outros já elencados, e que no momento passa por uma profunda reavaliação: o uso excessivo da Lei Rouanet para financiar projetos de grandes empresas culturais e a cultura do espetáculo, e a interligada situação de concentração de quase 80% dos recursos na Região Sudeste, especialmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro [18] A Lei Rouanet (agora denominada PROCULTURA) tem sido reavaliada, buscando-se ajustar sua função social. Propoe-se restringir o “Mecenato” e fortalecer o “Fundo Nacional de Cultura” (a ser subdividido em nove fundos setoriais); democratizar o acesso geograficamente e por áreas de produção, e estabelecer critérios de seleção, garantindo assim o melhor uso de recursos públicos (antes vinculados ao marketing cultural e não ao mérito artístico e cultural). O empenho da Lei poderá ser então melhor acessado por artistas, pesquisadores e pequenos e médios produtores, ao invés de privilegiar grandes empresas culturais, como vinha ocorrendo. Infos  sobre a concentração geográfica e empresarial desses recursos estão em: http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php. E sobre a nova Lei de Incentivo: http://blogs.cultura.gov.br/blogdarouanet/.. Essas são algumas questões, de conhecimento público, que precisariam, no mínimo, ser revistas e arrumadas para se imaginar um melhor funcionamento do circuito institucional de arte brasileiro. São questões associadas à distorção de função de políticas públicas, concentração de poder e, também, ética e transparência na gestão institucional.

Qual é o simbólico que nossa sociedade enaltece, quem são nossos heróis culturais, quem homenageamos? Hélio Oiticica, Lygia Clark, Cildo Meireles, Mário Pedrosa, Walter Zanini, Frederico Morais, Waldemar Cordeiro, Vilén Flusser. Nossa cultura tem história, tem ancestralidades. Por que ainda hoje os dois maiores prêmios do meio das artes visuais e tecnológicas são dedicados a um galerista (Marcantonio Vilaça) e a um ex-Ministro privatista da era FHC? [19] Somente em 2009 Mário Pedrosa passou a ser justamente homenageado num concurso nacional de textos críticos em artes visuais promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, de Recife. Não dá para confundir Zumbi dos Palmares com Roberto Marinho.

Apoiar projetos artísticos é estratégia usada pelas empresas privadas para melhorar sua imagem pública, também como uma espécie de compensação social, no caso de empreendimentos vinculados às polêmicas atividades de alto impacto ambiental (como a mineração, a exploração de petróleo), ou que geram prejuízo à saúde (a indústria do cigarro); e também, em situações nas quais há grande insatisfação pública pelos maus serviços prestados por algumas companhias (como no caso das operadoras de telefonia [20] Os serviços de telefonia oferecidos pelas empresas privadas são líderes em reclamações públicas, como atestam os vários relatórios e rankings de reclamações dos últimos anos empreendidos pelos Procon estaduais – serviço de Proteção e Defesa do Consumidor.). O exemplo mais clássico de assédio empresarial à dimensão pública da arte como forma de melhorar a receptividade social da logomarca foi o da indústria de cigarro, apoiando eventos artísticos, até quando puderam fazer isso, antes da proibição legal definitiva no Brasil (no caso das artes visuais, houve o itinerante Free Zone, em 2001, “incentivado” pela Souza Cruz). Há casos em que o encontro das dimensões públicas da atividade empresarial e da artística, através do marketing cultural (inclusive com uso incentivos fiscais…),  vão muito além da busca de uma melhora da imagem pública por parte da empresa, podendo constituir-se numa oportuna (e criminosa) estratégia para lavagem de dinheiro proveniente de atividades ilícitas de diferentes ordens.

A questão não é ser contra o investimento privado em arte por parte das empresas. Elas que o façam, com recursos próprios, provando realmente considerar a produção artística e cultural algo estruturante da sociedade, acreditando em si mesmas como parceiras dessa construção coletiva. Fazer só com dinheiro público é engodo. Fazer só para limpar sua imagem pública é hipocrisia.

Da parte dos artistas e de outros agentes culturais do meio, inclusive da área da teoria, há os que hoje consideram indiferente associar-se e adaptar-se a qualquer parceiro institucional do circuito de arte (público ou privado), desde que esse esteja injetando recursos financeiros na atividade artística. A rastreabilidade do financiamento dos meios de produção, prática já há algum tempo comum em outros setores sociais, ainda se apresenta como algo quase inédito no meio artístico. É como se fizesse parte da natureza das coisas vincular-se indiscriminadamente a qualquer logomarca das grandes empresas, pois isso teria passado a ser o inevitável e inquestionável fundamento do circuito artístico contemporâneo. Num dos extremos dessa perspectiva da produção artística atrelada ao capitalismo, começam a inscrever-se determinados segmentos da produção artística tecnológica, quase como sendo a última etapa do processo de produção industrial, o último funcionário à beira da esteira da produção em série, o artista como um piloto de testes da própria empresa. Entretanto, isso não é regra, pois no contexto tecnológico (e no artístico tecnológico) repercutem grandes conflitos sociais, nos quais o conhecimento e o desenvolvimento de pesquisas também travam seus embates enquanto propriedade privada ou bem público. Conceber a rede de financiamento da produção como algo neutro ou indiferente faz parte da concepção que vê o campo de atuação artística como um circuito branco. A reboque desse discurso,  dessa prática pretensamente neutras e de livre trânsito entre arte e mercado, constrói-se um esvaziamento do discurso crítico. Tenta-se diluir a força política de repertórios artísticos da contracultura. A quem interessa financiar essa arte de circuito branco, feita em pretensos campos neutrais? Interessa aos que lucram com o atual estado das coisas, obviamente. Pois é fundamental ter aliados para que as coisas permaneçam como estão. Aliados criativos que reificam e renovam o campo simbólico como continuidade da mesma ordem tornaram-se ainda mais especiais e desejados.

Esses nebulosos campos de valor simbólico são também lugares que se apresentam às artes visuais, frente aos quais elas não podem se fingir de cegas.

 

Trilhas alternativas: autogestão de circuitos artísticos

Na história da arte brasileira, o recente fenômeno dos coletivos de artistas é algo tão expressivo quanto o foram a Semana de 22, o Concretismo, o Neoconcretismo ou a Tropicália. Enunciar isso não é exagero, nem premonição de legitimação histórica, é avaliação crítica. A contribuição mais expressiva desse contexto emergente foi ter atravessado e chacoalhado o sistema institucional de legitimação cultural nas artes, inserido nele diferentes possibilidades de articulação de circuitos de arte em vários níveis de atuação: produção artística e reflexiva, mecanismos de circulação de conteúdos, trocas simbólicas, intercâmbios de artistas. Novamente o espaço público foi trazido à tona como campo de debate crítico. Esses circuitos artísticos autodependentes ou circuitos artísticos heterogêneos [21] Sobre coletivos de artistas e circuitos autodependentes em artes visuais, ver, entre outros, o texto “Sentidos (e circuitos) políticos da arte”, In: GOTO, Newton. Circuitos Compartilhados. Catálogo de sinopses/Guia de contextos. Curitiba: Edital Arte e Patrimônio 2007 / MinC / IPHAN / Petrobras / Paço Imperial / epa!, 2008; e os websites: Circuitos Compartilhados – http://circuitoscompartilhados/wp , Coro Coletivo – http://corocoletivo.ning.com/ e http://www.corocoletivo.org/ ; Reverberações – http://www.corocoletivo.org/reverberacoes/publicacao.htm ; a dissertação de Mestrado na USP de André Mesquita: Insurgências poéticas: arte ativista e ação coletiva, os textos de Ricardo Rosas: Gambiarra: alguns pontos para se repensar uma tecnologia recombinante, Notas sobre o coletivismo artístico no Brasil e Hibridismo Coletivo no Brasil: Transversalidade ou Cooptação; e de Gavin Adams: Coletivos de arte e a ocupação Prestes Maia em São Paulo e Como passar um elefante por baixo da porta?. A edição n. 07 da revista Tatuí também dedicou seu editorial a esse contexto. ultrapassam a questão de um programa estético, eles incorporam a própria noção de circuito como matéria-prima e possibilidade criativa. Recolocam com maior ênfase no campo do debate público questões vinculadas à prática da arte processual e conceitual, de crítica institucional, o happening, a ação multimídia, a performance, a intervenção urbana, a arte de envolvimento social, o trabalho colaborativo, a autogestão cultural nas artes visuais, o ativismo cultural.

Já há 10 anos que o sistema das artes no Brasil convive com esses novos circuitos artísticos autônomos, os quais dialogam também com os circuitos institucionais mais tradicionais. Em diferentes momentos da história recente, esses circuitos autodependentes constituíram-se como algumas das maiores fontes fruidoras e aglutinadoras da discussão artística em diferentes regiões – como o Torreão (Porto Alegre), Agora/Capacete (Rio de Janeiro), CEIA (Belo Horizonte), Ocupação Prestes Maia (São Paulo), Alpendre (Fortaleza), entre muitos outros. A questão da autonomia – existencial, de diálogo, e de proposição – é fato fundamental para se pensar tanto o circuito de arte, como a sociedade. Uma sociedade, por mais complexa, multicultural e populosa que seja, não pode fundar sua identidade balizada por expectativas de um Estado ou mercado. Num mesmo sentido, também os circuitos de arte não haveriam de ser, simplesmente, provedores das demandas das instituições e do mercado.

Está claro que a autonomia da arte da qual se fala aqui é de ordem existencial, política e também poética, porém, não no sentido de uma dissociação da arte da sociedade, como o pensamento  modernista da autonomia das linguagens específicas, tampouco como a exacerbação dessa expectativa, a exemplo de alguns dos paradigmas artísticos minimalistas, como uma arte de pura presentificação (“simples exterioridade”), sem uma interioridade relacionada ao psicológico do artista, ou uma exterioridade relativa ao contexto social [22] Sobre esses parâmetros do fazer da arte minimalista –  de negação da subjetividade, por um lado, e do contexto social, por outro, ver Rosalind Krauss, em Caminhos da escultura moderna (São Paulo: Martins Fontes, 1998): “Sua prática (dos minimalistas) consistia  em explorar  a ideia do readymade de uma forma bem menos anedótica do que os artistas pop, considerando antes suas implicações estruturais do que suas implicações temáticas” (p. 299-300); e “A ambição do minimalismo, portanto, era relocar as origens do significado de uma escultura para o exterior, não mais modelando sua estrutura na privacidade do espaço psicológico, mas sim na natureza convencional, pública, do que poderíamos denominar espaço cultural” (p.323). Há de se criticar, entretanto – e novamente, pois a própria crítica não seria inédita sobre esse assunto – dois aspectos insuficientes desses fundamentos: 1) O de que uma subjetividade individual seja incomunicável com a subjetividade de outros indivíduos, gerando uma impossibilidade de linguagem. Se isto fosse fato, negar-se-ia a própria possibilidade de existência das subjetividades coletivas e suas muitas implicações, inclusive da ordem de diferentes convenções culturais e costumes que podem coabitar numa mesma sociedade; 2) O purismo como se concebe a noção de “espaço cultural” e suas “implicações estruturais”, restringindo suas percepções a questões de fisicalidade das coisas e sua relações estritamente espaciais. Há uma limitação conceitual aí, pois qualquer assertiva artística, mesmo que indiretamente, está contida numa lógica maior de valores e “estrutura” dos acontecimentos, um conjunto de fatos, contextos e convenções de ordem social, cultural, política e, complementarmente, de interesses econômicos também determinantes para realização da própria arte.. A autonomia de afirmação de circuitos e a autonomia de diálogo simbólico aqui argumentados são extensões da arte  rumo à sociedade e seus códigos culturais.

Entretanto, os coletivos de artistas estão na moda e nessa condição alguns fundamentos críticos podem ser esvaziados na aparência do fenômeno (prática de diluição essa bem ao gosto do mercado) [23] Sobre essa capacidade do mercado em apropriar-se das diversidades reais, torná-las somente estilo e até mesmo de diluir sentidos críticos fabricando falsas resistências culturais, ver: FOSTER, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996. (p. 225).. Ou será que já saíram da moda? É tudo tão rápido no mundo do marketing, pois é preciso criar novas necessidades sazonais, novos produtos e novos consumidores…

Para que a potencialidade mais singular, crítica e radical dos circuitos autodependentes possa prosperar, longe da anestesia conformista e da redução a mero aspecto de uma moda passageira, há de se fortalecer os fundamentos que singularizam a própria experiência.

 

Um outro olhar sobre o território: reinvenção de um simbólico coletivo

Está em curso um lento e complexo movimento de reconstrução da subjetividade coletiva da sociedade brasileira, depois de décadas de ditadura e neoliberalismo. É um acontecimento com ampla participação dos setores culturais e facilitado pelo Estado. Os Pontos de Cultura [24] Além das articulações locais promovidas pelos Pontos de Cultura em diversas regiões do Brasil, realiza-se também o Forum Nacional dos Pontos de Cultura, importante encontro para trocas de experiências e incremento da rede de atuação, cuja 3ª. edição foi o Teia Fortaleza, em março de 2010., algumas dessas ações, facilitadas pelo Estado, têm oportunizado grande incentivo à reorganização e instrumentalização social, inclusive no campo da inclusão digital, passando a ser um referencial de convergência dos movimentos sociais e das diversidades culturais. Seu atual lema “empoderamento / autogestão / protagonismo” lembra da força do sujeito na construção de sua história e traduz a importância da participação popular na criação e execução de políticas públicas, sendo ideário que vai de encontro a anseios e práticas de outros grupos da sociedade civil organizada. O que se quer é que as heterogeneidades culturais possam conviver e prosperar num País mais justo.

Os circuitos artísticos autodependentes também empreendem seus movimentos de redesenho do circuito das artes, em paralelo aos diversos grupos, movimentos sociais e coletivos ciberativistas. Começam a se estabelecer algumas intersecções e confluências de caminhos. Ao se pensar a função social da arte, faz muito mais sentido que os artistas, coletivos de artistas ou circuitos artísticos autodependentes estejam aliados aos movimentos sociais, do que meramente atendendo demandas do mercado. Entretanto, falta ainda para à maioria desses circuitos artísticos autodependentes um aprimoramento de consciência sobre o próprio fenômeno, uma maior autocrítica e politização, uma melhor fundamentação de valores e objetivação de práticas comuns; enfim, falta uma melhor qualificação e estruturação das redes autônomas, um upgrade. Quanto maior for a consciência sobre a potência da própria ação, melhores serão as condições relacionais entre os integrantes de cada grupo, entre os grupos e circuitos, e entre estes e a sociedade. E melhores serão também as condições de sobrevivência e de existência de seus propositores. A partir disto, o diálogo ampliado com o sistema das artes e sociedade pode ser inventado com maior autenticidade, se tornando mais transformador.

O sistema das artes no Brasil ressente-se ainda de distorções conceituais e processuais, como se mostrou, inclusive subjugando valores culturais e artísticos a práticas meramente mercantilistas. Esse sistema precisa ser modificado. Sem desmerecer a força do ato individual como potência de consciência, sabe-se que qualquer nova base de valores criada no âmbito das artes só terá condições de sustentabilidade quando isso for manifestação do desejo coletivo.

Na instauração dos próprios circuitos de trocas culturais, necessita-se, também,  ser crítico em relação aos lugares institucionais pelos quais se transita e aos interlocutores que se escolhe. A recusa pode ser, também, uma alternativa crítica, preferencialmente acompanhada da publicização do ato, para melhor contribuir para o debate público. Diante da falência simbólica de um sistema das artes impregnado de ideologia capitalista, ressurge como alternativa buscar alimento em outras fontes de repertórios culturais, de práticas populares e de experiências de épocas específicas, que por diferentes motivos tenham sido eliminadas, abafadas ou subestimadas ao longo da história oficial, tentando acessar e incorporar essas outras riquezas de conteúdos, significados e formas de agir. Esse outro conjunto de valores pode contribuir na reinvenção dos circuitos de arte, da sociedade e mesmo de uma memória e subjetividade coletivas.

Assim, algumas inspirações para novas táticas:

Estratégia MST: os sem-terra não são excluídos da sociedade, e nem se sentem assim, querem estar incluídos, só que numa outra ordem social, que oportunize qualidade de vida e desenvolvimento social. Por isso se organizaram no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, para contestar, reivindicar, propor e agir. Pois aceitar as atuais regras opressivas do agronegócio latifundiário e monoculturista seria, aí sim, querer ser excluído, pois endividados e pressionados, logo teriam de vender suas terras e migrar para as favelas nas cidades. Assim é com o mercado de arte. Não se trata querer estar fora do mercado, ser um artista sem galeria. Entretanto, para que haja um desejo de inclusão nesse sentido, haveria de existir um outro mercado de arte, que considerasse o valor de exibição da produção artística (e não só a venda do objeto), que apoiasse o custeio de produção de uma obra, que trabalhasse com percentuais de lucro menores sobre a venda, que lidasse com o artista primeiramente como um produtor intelectual e não como uma marca a ser projetada para ganhar status. Essa postura aplica-se também nas relações de trabalho e exibição junto às instituições. Outro mundo é possível, inclusive no mercado de arte.

Mais envolvimento social: numa obra artística de conteúdo social é fundamental que a distância entre a teoria e a prática seja mínima. Para que o conteúdo social de um trabalho não passe a figurar somente como tema ou linguagem, o que poderia gerar um esvaziamento de significado, o artista deve buscar um contato real com o referente de sua investigação, as pessoas e comunidades que habitam as palavras. É pouco somente apropriar-se de uma imagem ou de um contexto vinculados a uma determinada conjuntura social, usando-os estritamente como recurso de linguagem. Há uma necessidade real de trocas simbólicas, uma necessidade do encontro humano, de uma imersão, de identificação de caminhos comuns, de um redesenho das forças produtivas, de um trabalho colaborativo e de participação criativa. Há comunidades tradicionais e populares em risco de extinção de seus modos de vida, diante da padronização global dos comportamentos veiculados pela indústria cultural, pelos meios de comunicação de massa e pelo consumo inconsequente dos produtos da sociedade industrial. O artista, como potencial mediador cultural que é, pode solidarizar-se com as culturas tradicionais e, quando possível, contribuir na busca de soluções que preservem a diversidade ou facilitem hibridizações. Um trabalho de arte que surja desse encontro deve resguardar, enquanto potência de linguagem, algum valor da diferença cultural ou da condição de conflito. A ideia de uma intelectualidade crítica associada em ação direta a comunidades ou movimentos populares não é uma proposta nova, entretanto continua sendo uma prática rara e necessária.

Compartilhamento, colaboração, mutirão, pixirão, moitará: esgotada qualquer esperança no  capitalismo, de que alguma humanidade melhor possa brotar de um sistema que apregoa a desigualdade social, a concentração de riquezas, a competição e a exploração do trabalho entre as pessoas, é tempo de nos voltarmos para outros exemplos de práticas sociais que oportunizam diferentes formas de relação humana e de  produção e trocas culturais. A hora de buscarmos a transposição e a tradução dos ensinamentos de culturas tradicionais, tribais e comunitárias, entre as que ainda resistem em seus modos de vida, ou mesmo entre as que já se foram, deixando somente sua memória como legado. Práticas que por fugirem dos padrões capitalistas tradicionais passaram despercebidas ou subestimadas pela grande sociedade urbana ocidental. Buscar adaptar esses conhecimentos a novas práticas da economia da cultura, da economia criativa, da economia solidária. Repensar essas potências relacionais e produtivas também dentro dos circuitos artísticos.

Cooperativa de arte, feira de produtores, feira de trocas: ao se repensar o mercado de arte, planejar situações nas quais um potencial público consumidor possa adquirir obras de arte direto do produtor, como ocorre em feiras de agricultores: sem intermediários, sem atravessadores, com a garantia da qualidade do produto. O comprador pode ter a oportunidade de conversar com o próprio artista e assim fazer a rastreabilidade cultural da proposta, acessando o ambiente reflexivo que impulsiona seu imaginário, sua poética e produção, evitando assim a propaganda enganosa, alicerçada em argumentos legitimadores de uma crítica comprada, ou o elogio publicitário. Os ambientes dessas situações podem instaurar momentos de encontro entre as pessoas, humanizando as relações.

Resgate do ideário das Assembleias anarquistas do começo do século XX: o artista visual no Brasil contemporâneo, de uma forma geral, talvez ainda seja, dentre os agentes culturais do meio das artes, o mais alienado do valor de seu trabalho, assim como da definição das políticas culturais para o seu setor. É simplesmente básico dizer que é necessário maior envolvimento e participação. As políticas públicas, e mesmo as privadas, não são para serem somente passivamente recebidas. As políticas são para serem construídas coletivamente. Há um grande descrédito social em relação à política tradicional, seus políticos e partidos, então outros procedimentos políticos tem de ser criados, ou mesmo resgatados. Não é a multiplicação de sindicatos e burocracias que vai transformar o meio. É a discussão pública, o debate crítico, a proposição, e as tomadas de posição coletivas que podem criar uma consciência coletiva transformadora, ou aperfeiçoadora do sistema. O debate público sempre ativado é muito mais fundamental que a legalidade de um sindicato, o qual, como já mostrou a história, muitas vezes acaba por se tornar cooptado pelo próprio Estado e mercado, um anestesiador da voz da própria classe. A experiência das assembleias dos trabalhadores anarquistas do começo do século XX surge como melhor inspiração para um resgate histórico e atualização das práticas, incluindo agora a internet como aliada.

Incorporar e reativar algumas práticas de alguns dos grupos de militância da esquerda dos anos 70: fortalecer os coletivos de artistas que atuam na autogestão de circuitos culturais a partir de  fundamentos como o entrosamento afetivo; interesse e valores comuns em relação às práticas sociais; a vivência e o encontro; estabelecer um bibliografia básica relativa à arte, história, sociologia, filosofia e outras disciplinas focadas no aspecto humano e social,  para incrementar um repertório comum. Incentivar valores e práticas reforçadoras da questão identitária, o ethos do grupo, buscando agregar aliados e expandir a ação.  Dentre as muitas configurações e práticas dos grupos militantes dos anos 70, essas são inspiradas no grupo Dissidência Guanabara. Complementando essas práticas: ativar redes de intercâmbio entre artistas, inclusive residências e propostas de encontro e trabalho em imersão coletiva, incrementando as relações de amizade e o sentimento de comunidade. Buscar conectar os circuitos de contracultura das cidades brasileiras e mesmo das internacionais. Enfim, várias estratégias que fazem pensar a arte e as relações entre as pessoas de uma forma humanamente mais ampla, diferentemente da impessoalidade, superficialidade, pedantismo, empáfia, esnobismo, burocracia e autoritarismo que muitas vezes regem as conversas nos circuitos tradicionais (institucionais e mercantilistas).

Fazer arte é uma potencialidade básica do ser humano, tanto quanto pensar, ou amar. Em última instância, não importa o reconhecimento institucional ou do circuito de arte, não é o julgamento e a autorização do outro que vai fundamentar a necessidade de uma criação artística. Inclusive porque os instrumentos de aferição e legitimação institucionalizados muitas vezes estão com defeito, e não é de hoje. Fundamental, nesse caso, é criar os mecanismos de legitimação da própria história, cuidar da própria memória, cultivar uma desejada rede social de trocas simbólicas na qual se está inserido. O maior desafio para o artista consiste em conseguir conversar com a sociedade na qual vive através de sua obra. Uma conversa consigo mesmo e entre muitos. O diálogo é a invenção do encontro. No meio da conversa, há uma linguagem da arte, um lugar para a arte, um circuito de arte, uma política cultural para a arte, uma história da arte, uma economia da arte, uma coletividade de artistas (ou tudo isso no plural). O território de atuação do artista é vasto, entre o já conhecido e o ainda imperceptível. Ele pode atuar em diferentes funções simultaneamente. Sujeito individual e coletivo, seu trabalho o transforma numa pessoa pública. Como sujeito capaz de lidar com o imaginário coletivo, sua responsabilidade é grande. Entre algumas das capacidades humanas pelas quais zela estão a criatividade e a liberdade. Na condição de experimentador e compartilhador de estados de consciência, busca estar em sintonia e aberto a outras dimensões complementares do conhecimento e integrado a uma visão planetária.

No território da arte, tudo se inventa durante o percurso: a paisagem, o caminho, a caminhada, o artista.

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Enquete Geracional

De qual geração em arte você faz parte? Como a nomearia? Ela tem data?

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Cite até 7 palavras-chaves que na sua opinião caracterizam sua geração.

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Qual a cor preferida da sua paleta?

(    )  Vermelho cor de sangue O-

(    )  Azul cor de céu de Brasília

(    )  Branco cor de paz eterna

(    )  Amarelo cor de mostarda do Mc Donald´s

(    )  Suor cor de gota

(    )   Outra? ____________________________

(    )  Outra que não interessa

 

Numa quadrilha de São João, para passar debaixo do túnel, quais artistas da tua geração você levaria contigo?

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Você se leva a sério? Exemplifique.

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Qual animal melhor representa o circuito de arte contemporânea? Por quê?

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O que um artista contemporâneo diria sobre comer com colher?

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Você faz arte? (Se a resposta for positiva, passe para a pergunta abaixo)

(    ) Sim

(    ) Não

(    ) Ainda não me decidi

 

Quando você faz a tua arte, acredita estar mobilizando o capital ( $$$ ) ?

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Se você pudesse matar descompromissadamente alguns artistas, quais seriam?

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Qual é sua solução genial para mobilizar um circuito de arte alternativo? Se se sentir incapaz, deixe em branco.

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Responsável técnico: Maicyra Leão

* Para sugestões, críticas, reclamações e declarações sobre circuitos alternativos de arte, aproveite qualquer cubo em branco disponível (ou indisponível).

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Escrevendo como nós, mas falando por mim

Fábula e pessimismo

Contrastando com a fábula oficial construída acerca da arte brasileira dos últimos anos, em que os personagens surgem a caminho de um final feliz, as conversas por aqui se deram a partir de impressões muito diversas. O lugar de onde falamos, nossas preocupações e os interesses daqueles a quem servimos são outros e, como tal, nos inspiram horizontes diferentes – distintos também entre cada um de nós.

Mas por entre as críticas, as reclamações e os desabafos que – ao lado de verdades parciais advindas de esferas que nem sempre reconhecemos – demarcam nossas posições, rondaram também evidências da perpetuação de uma moral cristã e burguesa: estaríamos sendo demasiadamente críticos, tendendo a um possível pessimismo?

 

Sobrevivência crítica

O medo de soarmos presunçosos não parece ter sido maior que o medo de não sermos compreendidos, todavia. Talvez ainda maior e mais perverso, o receio de sermos adaptados em nossa verve crítica em franco processo de amadurecimento: o sistema que quer conservar sua capacidade de adaptação mais facilmente saboreia aqueles que de imediato gritam e se distinguem entre a tímida multidão. Sobreviver se torna, então, razão e finalidade do conflito.

A questão está posta: quais as reais possibilidades para uma posição crítica nos dias de hoje e, em especial, na arte e no campo da arte? Nula ou parcial? (Há, aqui, o deliberado escanteamento da ideia de uma criticidade plenamente realizável em sua potência de transformação, considerada ilusória após o trauma que herdamos).

Esperanças e descrenças à parte, entre a nulidade e a parcialidade da crítica, persiste a questão do “método” (ou de uma possível antítese sua). Momentaneamente aqui suspendendo a discussão dos porquês, perguntamos: como e onde colocar a crítica? Inevitavelmente, a pergunta invade o sujeito da crítica: como e onde colocar-se?

 

Ambivalências

Inseparáveis, sujeito e posição (ação e enunciação) demandam também a análise das condições ambientais (contexto). Em relação, a soma dessas instâncias será, entretanto, sempre menor – e injusta – perante a complexidade do todo do sistema social e da arte. E então, na impossibilidade da totalidade existencial e crítica, “assumir ambivalências” pode converter-se em potência e, por que não?, em estratégia:

É preciso entender que uma posição crítica implica inevitáveis ambivalências; estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto às ambivalências, já valores absolutos tendem a castrar quaisquer liberdades; direi mesmo: pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente – envelhecer fatalmente; conduzir-se a uma posição conservadora (conformismos, paternalismos; etc.); o que não significa que não se deva optar com firmeza: a dificuldade de uma opção forte é sempre a de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço por pedaço cada problema. Assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão. Eis a questão. [1] Oiticica, Hélio. Brasil Diarréia, 1970. In: Ferreira, Glória (Org.). Crítica de arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.

No usufruto das ambivalências, a diferença em relação à lógica do “transformar o sistema a partir de seu interior”, ideologia que tomou – política e esteticamente – a geração da virada do século. Na (i)lógica dos sistemas, entrar de cabeça é depender. Quando se precisa equilibrar dependência e autonomia, o mergulho total e inequívoco tende ao suicídio.

É preciso ter reservas não só de oxigênio, mas de atmosferas e ecossistemas inteiros. Para ser crítico no interior, é preciso esbanjar exterioridade. É preciso habitar em paralelo; dentro e fora. Não perder – de vez – a noção da superfície. Mais: é preciso saber alcançá-la e nela atirar-se por ansiar também o que está para além da borda. É para depois da borda que devem estar as reservas de ar, alimento e prazer.

 

Chantagem sistêmica

Não se deixar chantagear pelo sistema de dentro: é preciso ter argumentos externos para não afundar passivamente. Saber que há vida – e arte – para além da superfície e, assim, inversamente, chantagear a parte sistêmica que lhe cabe. Conhecer o caminho que leva à borda – e vivenciar o que está para além dela – pode ser argumento para tentar nadar fora das raias. Na contramão da correnteza.

Manter sempre aceso, e à vista, o caminho que leva à saída. Cotidianamente, entrar e sair. A saída nunca deve ser apenas de emergência. A saída é, antes de tudo, a entrada.

 

É preciso ser dependente para ser autônomo[2] Morin, Edgar. O método 6: ética. 2 ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.

Não há independência possível. Mas há graus variados de dependência e interdependência. E há a autonomia: a dependência que, espalhada por entre múltiplos centros, pode abdicar de alguns deles quando necessário e desejável.

A autonomia é a dependência que conhece a vida do lado de lá da borda. É a dependência que sabe dizer não. Que constrói espaços e estratégias para a recusa das responsabilidades sistêmicas: ética da convicção (Edgar Morin, novamente). A autonomia é a dependência que sabe chantagear a parte do sistema que lhe cabe. A autonomia é a dependência que sabe argumentar consigo mesma.

 

Fábulas insistentes

Mudar o sistema a partir de seu interior. Explorar ambivalências. Revolução.

 

Pessimismo

Com ou sem culpa?

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Feijoada – ou – depoimento vincado

Poucas são as frustrações maiores do que esta que agora sinto: a de ser o inimigo do (anti)herói que para nós foi construído – e construímos. Não são poucos os fatos que me fazem pensar que somos a merda da diarreia apontada por Oiticica, e a perspectiva de uma apenas longínqua descarga em nada diminui o peso do fardo. Mesmo diluído entre todos nós, o fato persiste.

Há que se dizer que nela há mais matéria que cheiro: a merda só se faz no toque (da mão, da água ou do cu). Antes dele, tudo é digestão. Somente na proximidade do ambiente cagado é que nos percebemos dejetos: sobras dos heróis e seus combates, de suas armas e escudos. Eles nos tomaram tudo! O herói está nu.

Há gula no passado. Comeram entradas, pratos principais e sobremesas. Esconderam o cardápio e cá nos deixaram, com fome. Sem comer, cagamos mole. (e nunca falta o quê pôr para fora). Com pouca água e pouco pão, a merda é quase vento: espirra em todo lugar. Contamina; mas pouco faz feder – sem alimento, não há digestão e não há cheiro.

Antropofagicamente, tudo foi comido. E nós não aprendemos a caçar.

É assim que, inimigos de nossos heróis, vamos aprender a enterrá-los. Somente a partir de seu sepultamento teremos ossos suficientes para o cozido de amanhã:

Enfiar o dedo goela adentro e assim, como se fosse um papel, dobrar o sistema digestivo. Uma dobradiça já conformada pela quantidade de vezes que abriu e fechou. Como o cu de onde saímos e adentramos. Uma dobradiça nitidamente vincada. É preciso agora amassar, desorganizar. Não para chegarmos a um cocô consistente, mas a um cu sem pregas, cu disforme, cu que não seja meramente um espanta-bosta. Que, antes disso, possa operar uma desestratificação (e não diluição) da própria merda. Como uma feijoada – ou merda – enlatada.

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Notas sobre a minha geração

A minha geração?

– A nossa geração, amor.

De fato soa um tanto áspero, intragável até. Mas que geração? A da primeira década de 2010? Que virará história? E quem irá contá-la? A partir de que paradigmas?

– Comece, amor.

A minha geração caricaturada, a minha geração lipoaspirada, a minha geração bottox, a minha geração big brother, a minha geração cooptada, a minha geração desbotada, a minha geração desencarnada, a minha geração siliconada, a minha geração despolitizada, a minha geração pós-pós-pós-tudo.

– Coragem, amor…

Olho pela janela do Branco do Olho, uma imagem regionalista (se estamos em São Paulo, quando falamos de urbano, de metrópole, também não seria um tipo de regionalismo?) de um jumento manco; uma cela corroída, possivelmente, pela maresia; uma viseira restringindo o campo de visão; o olhar focado em um horizonte de prévio destino; a carroça enguiçada; o pequeno ruído de madeira rangendo em madeira. Manco como uma geração de viseiras aparentemente inexistentes (viseiras invisíveis), de ruídos formatados em sussurros surdos. Olhar para trás e não se reconhecer – nem dentro, nem fora dessa paisagem pitoresca. Porém, ainda assim, ter a certeza de que faz parte e, mais que isso, de ser parte inerente.

– A geração se apaixona quando se conhece, amor. Por isso se esquiva. Foge do amor. Leonilson não concluiu sua lição sobre amar… O amor o desconheceu.

Ele não conseguiu mudar o mundo (?). Mas o mundo conseguiu mudá-lo (?).

– Leonilson não tentou mudar o mundo, amor. Apenas quer que acreditemos que tentou tão verdadeiramente, assim como nós queremos acreditar que tentamos mudar o mundo nós mesmos. É uma mentira autolegitimatória e condescendente. Mais fácil fracassar mediante tentativa do que fracassar por imobilidade. “Falhar melhor” como lema do mundo e da arte é o que temos dito uns aos outros enquanto afago. Passar a mão na cabeça e aliviar a tensão. Incapacidade de lidar com a dor: e o dorflex sempre à mão. Mas isso não é amor…

Leonilson ensinou a lidar com a morte (?). Talvez, por isso, sem termos esperanças de mudar o mundo, já projetamos seu corpo defunto. Sem coragem de suicidarmo-nos, às vezes matamos os outros. Colecionamos os gritos dos coitos que interrompemos traumaticamente. O trauma somos nós.

– Para onde foi o gozo, amor?

Virou tempo tântrico. Exercício de economia de energia de pulsão vital. Mas é pelo gozo que o tempo tem se feito presente. É assim que ele é medido em sua desmesura, pelo palpitar de seu coração. O coração do tempo.

– O coração, amor…

A perna se abre, escancara-se com ódio.

– Onde está o coração, amor?

A vontade é de abocanhar com a vulva.

– Amor.

O mundo. O mundo de Leonilson – ele, sim, defunto. Mas vivo. Comestível e saboroso como o presunto que é. Eu quero superar o trauma (?).

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O Gatilho

Saber e não saber, ter consciência da completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, endossar a moralidade em repúdio à própria moralidade, crer na impossibilidade da Democracia, agindo em defesa da mesma Democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e, acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Em algum momento simultaneamente marcante e impreciso, a vida ensinava a desatar nós: induzir conscientemente à inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Simples. O que pouco tempo antes seria compreendido como entrega ou cinismo, emergia como a estruturação de uma nova relação com o mundo, uma curiosa política do etéreo.

A cidade crescera implodida, vertical e extremamente polarizada. Diante dos extremos, a antiga lógica racional impunha seguidas ciladas éticas, demandando justiça na injustiça, decisão na desmesura, responsabilidade na impossibilidade. Diante da angústia, a juventude perdia o sabor e cristalizava. As vidas vertiam, dedicadas ao tecer de grandes quebra-cabeças analíticos, de geração a geração, críticas e distantes –  paralisadas. A este momento radical, a cidade já se desnudara e era possível ouvir: “vejam!.. como é claro!.. é igualitária, tal qual humanitária é a sua ficção!..” Os discursos se vulgarizavam – esperança, paz e utopia experimentavam ostracismo. A proferir verdades, restaram as mulheres de longos cabelos, compridas e apertadas saias jeans a representar esbravejantes homens de terno e seus livrinhos; e também outros homens de terno, de fala mais escarnecida, a representar uns outros de fala mais terna, a obedecer rituais legais de camisetas e apertos de botões, para a perpétua garantia de que tudo continuasse exatamente o mesmo.  Pairava um mal-estar, um sentimento agudo e generalizado de descontinuidade histórica; não existia passado, nem futuro. Mesmo o presente hiperaguçado arrefeceu, calcificou, perdeu o tato no superestímulo. Disseminavam-se inseguranças, ameaças, medos, proximidades de planetas desconhecidos, calendários ancestrais, ciclos apocalípticos, conchavos, vinganças naturais, desastres ecológicos, maremotos; inexistia o gôzo comunitário.

E de repente, tal qual o sólido que se dissolveu no ar, ou a água que virou vinho, um renascimento. Da contradição indissolúvel, uma reinterpretação da natureza do xeque-mate: tal qual um motor estrutura sua impulsão no movimento entre os pólos opostos, internalizar a contradição como potência explosiva, experimentando despudoradamente ser o sim e o não, talvez s i m u l t a n e a m e n t e. Incorporar a revolta sendo preto no branco, pobre burguês.  E começaram a entreolhar-se, a reconhecer-se: faca nos peitos, peitos pra fora. Ainda politicamente adormecidos e de maneira um tanto infantil, retomavam o desenho de uma nova geração, encontrando um outro pulso, o próprio gatilho; abriam caminhos de disponibilidade explosivamente contraditória num mundo racionalmente inviável. E tomados por uma excitação saborosa própria da criação e do recomeço, perguntavam entre si o que cada um pretendia fazer antes daquela primeira década terminar.

 

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Por favor, posso fazer uma digressão?

Em meio a divagações calorosas (entre a lamúria e o inconformismo), a voz amena e angustiada interroga: vocês conhecem alguém que se suicidou por conta da “perversidade” do sistema das artes?

Outra voz, menos receosa e de aparente prontidão, murmurou como se tivesse se antecipado à pergunta:

– “Fracos de alma, mal nasceram e já começam a morrer, sonham com as doutrinas do cansaço e da renúncia”.

Tantos suicidados perambulam como se estivessem vivos. E, mesmo que literalmente não estejam mortos, de vivos apenas espectros.  Mortos em vida. Vermes, agonizantes pregadores da eternidade. Não se sabem mortos ou fazem questão de não nascer. Ou de não saber. Corretores do paraíso em terra, do lugar idílico, da santa paz. Devoradores de hóstias sagradas. Pregadores da enfermidade. Homens-jazigo. Mantenedores de mausoléus caducos. De paradigmas caducos. De pensamentos esquálidos. De valores caducos. Catequizadores do templo da arte. Entonadores de cânticos da morte em vida; do célebre ritual dos astros; do ritual das celebridades cínicas; do hipócrita ritual da boa vizinhança.

Vocês sabem de casos de artistas que se suicidaram por não suportar o “mundo” da arte? (mas de que arte?)

Tantos mortos ziguezagueiam vivos. Mesmo que literalmente não estejam vivos, de mortos apenas um estado. Vivos na morte por não pregarem a eternidade. Afirmam a tragédia e finitude da vida enquanto nos amordaçam com a corda no seu próprio pescoço. E gozam da corda, como quem se sabe vivo – bem mais do que a vasta catatonia que se crê viva. Embora arrastem a cadeira para o lado e tenham seus corpos suspensos, continuam entre nós. E esbravejam: pensar é também amordaçar! E rufam: só se pensa com a corda no pescoço!

A voz hesitante, vocês sabem de casos de artistas que se suicidaram por não suportar…?

A voz trêmula, vocês sabem de casos de artistas…?

A voz minguada, vocês sabem…?

A voz…

Talvez eu venha a ser o primeiro. Chutou a cadeira ao lado e seu corpo dependurado grunhia e esperneava-se, não por arrependimento, mas de prazer. Com extrema tranquilidade, a palmos do chão, ele pendulava enquanto o sorriso franzia sua testa.

O silêncio.

Artista bom é artista morto!?!?!

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