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Saber e não saber, ter consciência da completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, endossar a moralidade em repúdio à própria moralidade, crer na impossibilidade da Democracia, agindo em defesa da mesma Democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e, acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Em algum momento simultaneamente marcante e impreciso, a vida ensinava a desatar nós: induzir conscientemente à inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Simples. O que pouco tempo antes seria compreendido como entrega ou cinismo, emergia como a estruturação de uma nova relação com o mundo, uma curiosa política do etéreo.
A cidade crescera implodida, vertical e extremamente polarizada. Diante dos extremos, a antiga lógica racional impunha seguidas ciladas éticas, demandando justiça na injustiça, decisão na desmesura, responsabilidade na impossibilidade. Diante da angústia, a juventude perdia o sabor e cristalizava. As vidas vertiam, dedicadas ao tecer de grandes quebra-cabeças analíticos, de geração a geração, críticas e distantes – paralisadas. A este momento radical, a cidade já se desnudara e era possível ouvir: “vejam!.. como é claro!.. é igualitária, tal qual humanitária é a sua ficção!..” Os discursos se vulgarizavam – esperança, paz e utopia experimentavam ostracismo. A proferir verdades, restaram as mulheres de longos cabelos, compridas e apertadas saias jeans a representar esbravejantes homens de terno e seus livrinhos; e também outros homens de terno, de fala mais escarnecida, a representar uns outros de fala mais terna, a obedecer rituais legais de camisetas e apertos de botões, para a perpétua garantia de que tudo continuasse exatamente o mesmo. Pairava um mal-estar, um sentimento agudo e generalizado de descontinuidade histórica; não existia passado, nem futuro. Mesmo o presente hiperaguçado arrefeceu, calcificou, perdeu o tato no superestímulo. Disseminavam-se inseguranças, ameaças, medos, proximidades de planetas desconhecidos, calendários ancestrais, ciclos apocalípticos, conchavos, vinganças naturais, desastres ecológicos, maremotos; inexistia o gôzo comunitário.
E de repente, tal qual o sólido que se dissolveu no ar, ou a água que virou vinho, um renascimento. Da contradição indissolúvel, uma reinterpretação da natureza do xeque-mate: tal qual um motor estrutura sua impulsão no movimento entre os pólos opostos, internalizar a contradição como potência explosiva, experimentando despudoradamente ser o sim e o não, talvez s i m u l t a n e a m e n t e. Incorporar a revolta sendo preto no branco, pobre burguês. E começaram a entreolhar-se, a reconhecer-se: faca nos peitos, peitos pra fora. Ainda politicamente adormecidos e de maneira um tanto infantil, retomavam o desenho de uma nova geração, encontrando um outro pulso, o próprio gatilho; abriam caminhos de disponibilidade explosivamente contraditória num mundo racionalmente inviável. E tomados por uma excitação saborosa própria da criação e do recomeço, perguntavam entre si o que cada um pretendia fazer antes daquela primeira década terminar.