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Contrastando com a fábula oficial construída acerca da arte brasileira dos últimos anos, em que os personagens surgem a caminho de um final feliz, as conversas por aqui se deram a partir de impressões muito diversas. O lugar de onde falamos, nossas preocupações e os interesses daqueles a quem servimos são outros e, como tal, nos inspiram horizontes diferentes – distintos também entre cada um de nós.
Mas por entre as críticas, as reclamações e os desabafos que – ao lado de verdades parciais advindas de esferas que nem sempre reconhecemos – demarcam nossas posições, rondaram também evidências da perpetuação de uma moral cristã e burguesa: estaríamos sendo demasiadamente críticos, tendendo a um possível pessimismo?
Sobrevivência crítica
O medo de soarmos presunçosos não parece ter sido maior que o medo de não sermos compreendidos, todavia. Talvez ainda maior e mais perverso, o receio de sermos adaptados em nossa verve crítica em franco processo de amadurecimento: o sistema que quer conservar sua capacidade de adaptação mais facilmente saboreia aqueles que de imediato gritam e se distinguem entre a tímida multidão. Sobreviver se torna, então, razão e finalidade do conflito.
A questão está posta: quais as reais possibilidades para uma posição crítica nos dias de hoje e, em especial, na arte e no campo da arte? Nula ou parcial? (Há, aqui, o deliberado escanteamento da ideia de uma criticidade plenamente realizável em sua potência de transformação, considerada ilusória após o trauma que herdamos).
Esperanças e descrenças à parte, entre a nulidade e a parcialidade da crítica, persiste a questão do “método” (ou de uma possível antítese sua). Momentaneamente aqui suspendendo a discussão dos porquês, perguntamos: como e onde colocar a crítica? Inevitavelmente, a pergunta invade o sujeito da crítica: como e onde colocar-se?
Ambivalências
Inseparáveis, sujeito e posição (ação e enunciação) demandam também a análise das condições ambientais (contexto). Em relação, a soma dessas instâncias será, entretanto, sempre menor – e injusta – perante a complexidade do todo do sistema social e da arte. E então, na impossibilidade da totalidade existencial e crítica, “assumir ambivalências” pode converter-se em potência e, por que não?, em estratégia:
É preciso entender que uma posição crítica implica inevitáveis ambivalências; estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto às ambivalências, já valores absolutos tendem a castrar quaisquer liberdades; direi mesmo: pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente – envelhecer fatalmente; conduzir-se a uma posição conservadora (conformismos, paternalismos; etc.); o que não significa que não se deva optar com firmeza: a dificuldade de uma opção forte é sempre a de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço por pedaço cada problema. Assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão. Eis a questão. [1]
No usufruto das ambivalências, a diferença em relação à lógica do “transformar o sistema a partir de seu interior”, ideologia que tomou – política e esteticamente – a geração da virada do século. Na (i)lógica dos sistemas, entrar de cabeça é depender. Quando se precisa equilibrar dependência e autonomia, o mergulho total e inequívoco tende ao suicídio.
É preciso ter reservas não só de oxigênio, mas de atmosferas e ecossistemas inteiros. Para ser crítico no interior, é preciso esbanjar exterioridade. É preciso habitar em paralelo; dentro e fora. Não perder – de vez – a noção da superfície. Mais: é preciso saber alcançá-la e nela atirar-se por ansiar também o que está para além da borda. É para depois da borda que devem estar as reservas de ar, alimento e prazer.
Chantagem sistêmica
Não se deixar chantagear pelo sistema de dentro: é preciso ter argumentos externos para não afundar passivamente. Saber que há vida – e arte – para além da superfície e, assim, inversamente, chantagear a parte sistêmica que lhe cabe. Conhecer o caminho que leva à borda – e vivenciar o que está para além dela – pode ser argumento para tentar nadar fora das raias. Na contramão da correnteza.
Manter sempre aceso, e à vista, o caminho que leva à saída. Cotidianamente, entrar e sair. A saída nunca deve ser apenas de emergência. A saída é, antes de tudo, a entrada.
É preciso ser dependente para ser autônomo [2]
Não há independência possível. Mas há graus variados de dependência e interdependência. E há a autonomia: a dependência que, espalhada por entre múltiplos centros, pode abdicar de alguns deles quando necessário e desejável.
A autonomia é a dependência que conhece a vida do lado de lá da borda. É a dependência que sabe dizer não. Que constrói espaços e estratégias para a recusa das responsabilidades sistêmicas: ética da convicção (Edgar Morin, novamente). A autonomia é a dependência que sabe chantagear a parte do sistema que lhe cabe. A autonomia é a dependência que sabe argumentar consigo mesma.
Fábulas insistentes
Mudar o sistema a partir de seu interior. Explorar ambivalências. Revolução.
Pessimismo
Com ou sem culpa?
[1] — Oiticica, Hélio. Brasil Diarréia, 1970. In: Ferreira, Glória (Org.). Crítica de arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.
[2] — Morin, Edgar. O método 6: ética. 2 ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.