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Capa da revista

EDITORIAL

Em março de 2011, durante seis longos dias, os editores desta revista reuniram-se em Porto Alegre. Participavam do festival Cine Esquema Novo de formas variadas quando, à convite de seus organizadores e da Tatuí, reuniram-se num projeto que desejava misturar cinema, artes visuais e crítica. Assim nascia Cruza – experimento fílmico, bloco de sensações –, que, por sua força silenciosa, nos impulsionou a editar esta Tatuí 13. A vontade de levar adiante questões surgidas naquele encontro, circunscrevendo-as em alguma concretude reflexiva, conduziu-nos às colaborações aqui reunidas e indicadas – parte delas está disponível em vídeo, na página da Tatuí no Vimeo. Lá, e aqui, estão falas e sensações que, de um lado, problematizam as relações entre arte-cinema-crítica e, de outro, partem já do alargamento desse lugar, acontecendo para além dos limites que insistem em conservar a economia desses campos. Havendo uma voz distante acompanhando-nos em Porto Alegre através do eco da frase “eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança”, também a Tatuí 13 intenciona alimentar processos de ressonância ao produzir e disseminar outros sons, palavras, ruídos. Confiando na reverberação dessa experiência, ao passo que desconfiando de nós mesmos, entrecruzamo-nos todos.

Os editores

Colaboradores

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Conteúdo

Índice
  1. A PRIMA do Hélio, a pemba da marginália, o pó da boemia: anotações —Inside the Héliocopter - Escrito por Max Hinderer
  2. Cine Esquema Novo - Escrito por Tatuí
  3. Comentário - Escrito por Luiz Pretti
  4. Cruza como devoração - Escrito por Clarissa Diniz, Cristiano Lenhardt e Pablo Lobato
  5. O expanded cinema de Valie EXPORT: uma resposta ao esgotamento do cinema estrutural - Escrito por Yann Beauvais
  6. Tiago Mata Machado e Francis Vogner - Escrito por Francis Vogner e Tiago Mata Machado
  7. O cineasta, o músico e o poeta - Escrito por Dellani Lima e Luiz Pretti Lacerda Jr

A PRIMA do Hélio, a pemba da marginália, o pó da boemia: anotações —Inside the Héliocopter

Tradução Isabella Atayde Henrique

Vendo o panorama discursivo que enfrentava ao pesquisar sobre as interseções cinematográficas na obra de Hélio Oiticica, percebi que querer falar das instalações quase cinematográficas Cosmococa-programa in progress, como exemplo mais famoso e aparente, necessariamente resultaria na busca de como poder falar em vários planos ao mesmo tempo. Aqui não só se misturam arte e cinema, mas também categorias em um outro plano maior. A cocaína destaca absolutamente a margem de categorias e instrumentação analítica comuns na história da arte. Falar sobre Cosmococa, então, implica sobretudo duas coisas: querer falar do artista considerado o mais famoso dos artistas brasileiros do século XX em nível internacional, Hélio Oiticica; com todo o magnífico e heterogêneo corpo de obras que isso abrange, desde antes dosNúcleos até depois dosQuase-Cinema. E ao mesmo tempo, implica querer falar da história de uma substância ilícita e condenada moralmente — Cocaína — com toda a bagagem histórica, política e econômica que ela carrega. De fato, não é uma combinação fácil, porque a dimensão da representação do primeiro parece contradizer-se com a dimensão subterrânea do segundo. Sem falar das quantidades de livros que foram escritos sobre cada um dos temas independentemente (sobretudo sobre a coca e cocaína), que parecem impossíveis de serem abrangidos. Mas dada a ocasião, escrevendo para a Tatuí #13, pensando em como falar da economia midiática expandida do encontro arte/cine, hoje gostaria de desenvolver apenas umas ideias para criar uma consciência crítica deste espaço de interseção, no qual a cocaína se converte na cocaína de Hélio, sua PRIMA, como ele costumava chamá-la com carinho, e assim compreender as Cosmococas não somente como um dos encontros mais memoráveis entre a linguagem da arte e do cinema brasileiro, mas como um espaço de interseção múltipla, em que diferentes circuitos discursivos, circulações econômicas e fluxos energéticos convergem. Sobretudo um espaço cuja urgência política espera ser explorada fora dos padrões acadêmicos e suas respectivas disciplinas herméticas. Mas de que tratamos quando falamos de Cosmococa como alinhamentos entrecruzados ou circuitos convergentes?

                                               — Max Jorge Hinderer Cruz, Berlim, 29 de março de 2012

… um outro Heliocóptero que veio seguramente de um outro “plá” anunciando um outro mundo, confirmando o precário como novo conceito, a magia do ato na sua imanência e também a negação do objeto que perdeu toda sua carga poética ainda projetada, para se transformar num poço onde a multidão se debruça para se encontrar na sua essência.

                                               — Carta de Lygia Clark a Hélio Oiticica, Paris, 26 de outubro de 1968

Se é possível dizer simplesmente, como Hélio Oiticica escrevia em uma carta à sua amiga íntima Lygia Clark — “ CRÍTICO OU É DA POSIÇÃO DE ARTISTA OU NÃO É” –, confesso que minhas obras favoritas de Hélio Oiticica são as chamadas bloco-experiências, ou bloco-experimentos,Cosmococa-programa in progress(1973-74): as primeiras cinco colaborações com Neville D’Almeida (CC1-CC5), que aqui dou por conhecidas, uma outra menos conhecida com Thomas Valentin (CC6), e outras três inacabadas com participações programadas de Guy Brett, Silviano Santiago e Carlos Vergara (CC7-CC9). Inclusive, penso em algumas séries deslides particulares e fitas de áudio batizadas Héliotapes por Haroldo de Campos, material Super 8 e outras proposições soltas, que se encontram no arquivo do Projeto Hélio Oiticica e que giram em torno de Cosmococa como se fossem seus satélites, interferindo com as órbitas das demais referências-satélite que giram em torno de Oiticica, tais como: Mario Montez, John Cage, Soussândrade, Mick Jagger e seu “Sweet Cousin Cocaine”, Freud, Fanon, Malevitch, Nietzshe, Rimbaud, McLuhan, para citar alguns. E se é possível dizer simplesmente, também confesso que Cosmococa foi minha favorita, desde que vi pela primeira vez uma das instalações, CC5-Hendrix War, instalada no Museu de Arte Moderna de Viena (MUMOK) em 2003, mostrando o rosto de Hendrix com pintura de guerra traçada por linhas de cocaína. Eu, um jovem estudante de artes plásticas nos primeiros anos, criado na Bolívia, pressentia que o que D’Almeida e Oiticica em um nível semiótico estavam fazendo com a coca, planta sagrada dos povos andinos, era comparável ao que Caetano tinha feito com o violão de madeira uns anos antes: eletrificá-lo. E tampouco era nada diferente da eletromacumba que estava celebrando Hendrix enquanto cantava seu hino aos Black Panthers e literalmente colocava fogo em seu violão: “cause I’m a voodoo child / Lord knows I’m a voodoo child baby / Yeah!” Não sabia muito de Tropicália, mas o suficiente para entender que o que estava vendo era nada menos que um tropicalismo farmacológico ao beat da diáspora.

É por este forte impacto que teve minha primeira experiência com a Cosmococa, que pesquisando sobre a importância da cocaína para a obra de Hélio Oiticica, costumava deter-me em vão com o deliberado desprezo que enfrentava ao ler textos de supostos expoentes da história da arte política latinoamericana. Não podia entender: por acaso não viam que a história da coca, e logo da cocaína, em que D’Almeida e Oiticica se inscreviam, era profundamente política e intrinsecamente ligada à história da economia e lógica colonial, até os dias de hoje? Que a coca é inseparável da própria resistência ao colonialismo pré-republicano, inseparável também do cume de organização anarcossindicalista no continente americano do século XX, e inseparável da subsequente criminalização da luta dos movimentos sociais hoje por parte das Nações Unidas? Consequentemente, eu começava a desrespeitar o trabalho de pesquisadores como Luis Camnitzer ou Mari Carmen Ramírez por sua miopia moral, por mais que sejam considerados avanços importantes para a disciplina da história da arte latinoamericana.

Foi aí que me dei conta: justamente nesses textos se refletia uma maneira fantasmagórica, como de um velho conflito entre os ativistas políticos no Brasil no fim dos anos 60 ou começo dos anos 70, e o que foi a cultura marginal, Marginália, a contracultura subterrânea nos centros urbanos do Brasil e nas metrópoles que acolheram seus agentes exilados, Londres, Paris, Nova Iorque, etc. A cultura política da esquerda organizada, depois de 68, criticava a subcultura marginal de maneira pejorativa como desbunde político, oportunista em sua transgressão moral/sexual e subalterna à indústria cultural yankee. Enquanto isso, os da contracultura criticavam os partidários da esquerda “tradicional”, afirmando que o que lhes faltava era justamente serem desbundados da lógica dicotômica da Guerra Fria, e subsequentemente de sua subalternidade ao princípio da realidade e seus padrões paternalistas-chauvinistas-dogmáticos.

De certa forma, a história da arte parece ter herdado esta oposição, ou melhor dizendo, parece tê-la conservado à sua maneira idiossincrática. No discurso sobre a arte de Hélio Oiticica, isto se expressa na maneira de dividir sua obra emantes de 69/70 e depois de 69/70. Esta é uma referência ao momento no qual Oiticica vai a Londres para apresentar sua legendária exposição na Galeria Whitechapel em 1969, seguida por sua viagem a Nova Iorque em 1970 para sua contribuição à exposição Informationno MoMA. A referência inclui a sua volta a esta mesma cidade no mesmo ano, a fim de assumir uma bolsa Guggenheim e ficar até 78 vivendo em condições precárias em Nova Iorque, porque voltar ao Brasil, para dizer em uma só palavra, lhe parecia “desastroso”. Antes, no imaginário predominante, Oiticica era o artista de vanguarda modernista brasileiro, lutador pela liberdade nacional, e depois —continuamos na narrativa predominante — se converte no “artista trágico” (empregando um conceito estritamente contrário ao usado por Nietzsche e Oiticica), que depois de ver suas “utopias desvanecerem” e “inspirado pelo mundo das drogas e discotecas”, se deixa levar pela moral dúbia dos prazeres “fáceis”, isto é, se torna marginal de verdade. O mais comum é que se fale de um Oiticica antes do exílio (“exílio voluntário”) e depois do exílio, sem poder evitar colocar no último um tom miserável.

Dois comentários pessoais ao respeito: (1) Considerando a complexidade da obra de Oiticica, fazer uma diferença entre a obra made in Brazil e a obra no-made in Brazil parece uma categorização pouco eficiente. Sobretudo se alguns dos Parangolés, Bólides e Penetráveis criados em Nova Iorque sim são considerados de alguma maneira “brasileiros”, mas as instalações multimídia, apologias à estética gay e consumo autodeterminado de substâncias psicoativas são todas consideradas “norte-americanas”. Na minha opinião, quem não sabe relacionar as Cosmococas com a fase neoconcreta de Oiticica não entendeu nem uma, nem outra. Esta estrita divisão, mais que contribuir de alguma forma produtiva, destaca a função subalterna da história da arte para o conceito representativo cultural do Estado-nação, ao mesmo tempo que adota sua moral e baixa ética pequeno-burguesa. Relacionado intimamente a isso, também considero que (2) falar de “exílio voluntário”, visto desde um ponto de vista político, é tão cínico como falar dos ativistas de oposição organizados e que ficaram no Brasil depois do AI-5 (1968) como “terroristas” que ameaçavam “a segurança dos cidadãos”. De fato, é esta argumentação a que diz: “Se não gostam daqui, por que não vão embora?”. E ao mesmo tempo legitima a repressão violenta. Mas certamente muitos dos que tiveram a oportunidade de sair antes de serem presos e puderam ficar fora, o fizeram. E se bem tiveram que lidar com trabalhos ilegais e assumindo uma vida precária, alguns ficaram melhor assim do que jamais tinham passado em ambientes reprimidos, católico-autoritários, nos quais tinham passado suas vidas até então. Quer dizer que quem não sabe relacionar as circunstâncias e decisões de vida (incluindo suas possibilidades) tomadas por Hélio Oiticica durante sua estadia em Londres e Nova Iorque, com as condições políticas e sociais vigentes no Brasil depois de 68, tampouco compreendeu nem umas, nem outras. Oiticica chamava o desdobramento das circunstâncias instáveis em sua vida “consequentizar” e até na escrita adicionava um decidido “yeah!”.

É o grande mérito da historiadora de arte Paula P. Braga, o de ter recuperado para a sua extensa e impressionante pesquisa monográfica quase indecifráveis manuscritos de Hélio Oiticica sobre seu relacionamento pessoal com a cocaína, além do seu uso nas Cosmococas e de ter agregado a isto uma reveladora excursão em uma espécie de segundo plano: o gesto metalinguístico. Isto se apresenta para nós como uma pequena análise do discurso moral sobre a cocaína na obra de Oiticica e em forma de uma extensa anotação de pé de página, que quis introduzir aqui sucintamente e logo citar algumas frases. [1] BRAGA, Paula.A trama da terra que treme: multiplicidade em Hélio Oiticica. Tese de doutorado defendida no departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007, p.40, anotação no. 71

Primeiramente, Braga cita um texto de Hélio Oiticica, com o título “SCORPIONAS”, de 7 de novembro de 1974, que se encontra na primeira página de um de seus famosos Notebooks. Neste, Oiticica compara suas práticas sexuais e “dealing” com práticas que adaptam o ato de criação artística, da mesma forma que o jogo de xadrez fazia para Marcel Duchamp.[2] Oiticica escreve sobre a comparação duchampiana: “Why not?: extravagant?: não vejo why!; mesmo porque não impede que outra coisa aflore mais floreante!: assim como aqui escrever p. ex. e ler!!: e mesmo assim lancar-planos-plantas-projetos!!” – Veja Hélio Oiticica: “SCORPIONAS”, nota de caderno de 7 de Novembro de 1974, Arquivo digital Hélio Oiticica Doc. 0148/74. Neste mesmo documento que Braga destaca o termo “consequentizar”, para discuti-lo em relação à produção artística de Oiticica. Veja Braga “A Trama da Terra que Treme” 2007, op cit. Partindo da expressão “dealing”, desenvolve sua anotação nº 71. Braga escreve:

“O “dealing” citado nesse fragmento provavelmente é a venda de cocaína. Nos anos 1970, em Nova Iorque, Oiticica estava bastante envolvido com o uso de cocaína, e logo esse estreito relacionamento com as drogas no período em que viveu em Nova Iorque é um dos assuntos mais delicados no estudo da obra de Oiticica. O comentador não pode ser apologético, tampouco trair-se em moralismos. Então usualmente aborda-se esse assunto após a ressalva de que as drogas nos anos 1960 e 1970 tinham um caráter libertador e de experimentalismo muito distinto da associação contemporânea de drogas com violência e tráfico. Essas ressalvas confirmam a extemporaneidade desse assunto, ainda tabu no século 21, mas parece-nos insatisfatório encobrir a discussão com a “aurahippie” das drogas como parte de uma geração sonhadora e rebelde. O ambiente das drogas em Nova Iorque nos anos 1970 talvez fosse diferente do universo contemporâneo do tráfico no Brasil, mas nem por isso menos violento.”

O esforço de Braga de relacionar o tráfico de drogas nos Estados Unidos com o Brasil é único na literatura sobre Oiticica e é absolutamente legítimo. No extenso catálogo de anotações particulares de Oiticica, também se encontra a evidência de que a cocaína que usava, pintava e vendia, provinha originalmente da Bolívia e da Colômbia, mas a recebia muitas vezes pelo Brasil.[3] Veja fichas de categorização de origem e qualidade que Hélio Oiticica fazia da cocaína que comprava entre 1974-75. Fichas manuscritas em inglês, Arquivo digital do Projeto Hélio Oiticica, Doc. 1508/sd. Também, a violência que Braga menciona é evidentemente consequência lógica de se mover em círculos marginais criminalizados. Não esqueçamos que em 1971 Richard Nixon iniciou sua “guerra contra as drogas”, que foi o pretexto para criminalizar as poderosas uniões obreiras na Bolívia, ao mesmo tempo que criminalizava outros distintos movimentos de liberação latinoamericanos, assim como os Black Panthers nos Estados Unidos, etc. Não é ocioso dizer que a “guerra contra as drogas” foi um instrumento para assegurar a hegemonia branca e capitalista sobre todo o continente americano.

Mas Hélio Oiticica não seria um bom “artista trágico” se não se colocasse em cena fazendo sexo oral no cano de um revólver (como podemos ver no curta-metragem H.O., de 1979, de Ivan Cardoso, que se encontra em várias versões na internet), ou cortando a cocaína sobre um livro de John Cage (CC4) com uma navalha de borboleta (balisong), insígnia de credibilidade e violência das ruas. O mesmo Oiticica atua no curta-metragem em Super 8 de Andreas Valentin,One Night on Gay Street (1975), no qual a trama desemboca em uma cena violenta com uma morte, depois de um impasse na transação de drogas por dinheiro (não sabemos qual droga especificamente, mas sabemos que o comprador é o mesmo Hélio e que não tem dinheiro, mas oferece seus “serviços sexuais” antes de apunhalar o negociador e sair correndo com a presa). De fato, a primeira vez que Oiticica aparece em uma cena de violência explícita é jogando com um revólver em Câncerde Glauber Rocha (1968-72), filmado em 1968 em plena Zona Sul do Rio de Janeiro, na varanda da família Oiticica no Jardim Botânico.

É chamativo que se encontrem apenas discussões críticas sobre a marginalidade como conjunto histórico-político entre narrações historiográficas ou em teorias de arte contemporânea. Sendo que a cocaína e a reflexão sobre distintas formas de violência (violência de Estado e violência no submundo marginalizado, ambas terminam sendo a mesma violência que se expressa de maneiras diferentes) deixaram um inegável rastro na vida e obra de Hélio Oiticica. No entanto, como Braga percebe corretamente, enquanto no discurso atual se enfatizam as virtudes modernistas de Oiticica, mantendo vivo um progressismo nostálgico, o deslocamento de seus vícios não se dá somente em um sentido geográfico (“longe, em Nova Iorque”), mas também em um nível temporal-histórico (“há muito tempo, nos anos 60/70”).

Apesar disso, as famosas Cosmococas sim foram objeto de estudo de vários destacados críticos e autores internacionais. Carlos Basualdo, Beatriz Scigliano Carneiro, Paula P. Braga, Sabeth Buchmann, Waly Salomão, Fred Coelho, Sérgio Bruno Martins, Paulo Herkenhoff, Kátia Maciel, Cauê Alvez y Dan Cameron, entre outros, desenvolveram extensamente a importância das Cosmococas eQuase-Cinemas (1969-75) para o estudo das vanguardas da arte brasileira, para a história da instalação multimídia em geral e para o estudo da interseção entre arte e cinema na obra de Oiticica em particular. Todas estas prolíficas pesquisas sobre as Cosmococas pressupõem de maneira assertiva a cocaína como um meio de produção, como, por exemplo, é o pigmento para um pintor. A mediatizam como cor-tempo, ou como signo/linguagem. E ainda que todos saibam que a cocaína era e segue sendo uma substância ilegal, a história da arte quase não menciona este importante aspecto em seu sentido político e econômico, mas sobretudo enfatiza a representação simbólica da transgressão moral no uso da cocaína como pigmento ou meio. Como tinha mencionado anteriormente, isto parece natural, já que o instrumentário analítico empregado normalmente na história da arte é perfeitamente capaz de analisar a cocaína/pigmento psicoativo como meio de produção, mas não o é de analisar a cocaína/PRIMA como substância que sintetiza ao mesmo tempo as relações de produção,  isto é, a totalidade de condições de produção que determinam a vida de Oiticica nesse momento. O nome Cosmo-coca, de fato uma invenção de Neville D’Almeida, já nos diz: a coca não é somente coca cósmica, mas também sugere pensar em um núcleo no qual em torno se abrem determinadas órbitas, constelações, planos e circuitos que se definem por estarem em movimento perpétuo.

De certo modo, as Cosmococas não são tão diferentes dos Bólides, não somente pela semântica astrológica que empregam ou pelo explícito uso de “pigmentos” para serem “experimentados”, senão porque ambas as estruturas podem nos ajudar a pensar em como virar o mundo exterior e suas condições de vida para dentro da obra, sem recair em realismos. Já os Bichos de Lygia Clark, precursores diretos dos Bólides, marcaram uma mudança no paradigma da arte de vanguarda, superando a relação estática entre sujeito-objeto para finalmente virá-la de dentro para fora como um par de meias velhas, criando assim uma estrutura capaz de perceber tensões e fluxos emergentes de maneira “flexível”. No caso das Cosmococas, não faz falta dizer que implica a subsistência sustentada pelos circuitos informais/criminalizados na democracia liberal e nas condições de violência militar e social no Brasil, igualmente. Como na cosmologia, na Cosmococatudo está conectado com tudo, em um movimento perpétuo, em circulações múltiplas e através de suas interseções e dinâmicas.

A grande diferença entre os Bichos/Bólidese a Cosmococa é que os planos e estruturas geométricas que encontramos nos primeiros são substituídos por outra lógica de movimentos, que convergem dando assim uma forma perceptível às últimas. Na Cosmococa, as duas categorias de movimentos imanentes, formações geométricas ou “abstratas” que constituem seu corpo são:

circulações: a cocaína como mercadoria e como substância psicoativa no sentido metabólico, a diáspora da contracultura, a mobilidade e reprodutibilidade do cinema e da fotografia em comparação com as disciplinas tradicionais da arte, discos e livros que são produtos da indústria cultural e ao mesmo tempo meios de produção importantes e acessíveis para Oiticica; e

fluxos: sensações, intensidades, consciência, libido, delírio, disponibilidade, extensões físicas/tecnológicas e afetivas, convergências de micro e macro-planos.

Entender Cosmococacom um princípio embasado em circulações e intensificações, em vez de meramente como um encontro de arte e cinema, é um primeiro passo para entender outras proposições e escritos de Oiticica que “trabalham” com cocaína, ou que fazem uso das novas tecnologias relacionadas à aldeia global (global village) mcluhaniana. Em 1973, Oiticica percebia com uma lucidez particular que as desregulações em todos os setores de produção e as transformações da economia de subsistência do novo precarizado pós-industrial eram tão somente o começo de mudanças muito mais profundas. Mudanças que também iriam redefinir a relação entre os micro e macroplanos que constituem o corpo, o dispositivo do desejo e a autoconcepção da sociedade na época da Guerra Fria. Oiticica falava de uma “dilatação aguda de todos os começos (corpo, sensorialidade, etc.)” que “não pode ser descrita factualmente”. Parafraseando o que Oiticica dizia comparando aBaba Antropofágicade Clark (1973) com “minha relação com a PRIMA”, poderíamos dizer que é nesse contexto que Oiticica e D’Almeida lançam sua Cosmococa “como a criação cósmica de um universo desconhecido que se faz no lance de dados; que não depende de ‘escolhas dualistas”. Se bem que a mesma cocaína a figurar nas Cosmococas, como a transa da boemia libertária nova-iorquina, é também o estimulante dos corredores de Wall Street. Oiticica encontra uma linha de fuga incorporando-a ao mesmo tempo como o espírito que marca os pontos riscados da contracultura brasileira na diáspora.

Esta particular convergência faz das Cosmococasum testemunho verdadeiramente “brasileiro” em um momento de profundas transformações na economia global e na constituição social. Como diz Beatriz Scigliano Carneiro: as Cosmococas de certo modo antecipam “o deslocamento das técnicas de poder da sociedade disciplinar para as estratégias da sociedade de controle.”[4] Cit. Beatriz Scigliano Carneiro, “Cosmococa–Programa in Progress: Heterotopía de Guerra”, em “Fios Soltos, A Arte de Hélio Oiticica” org. Paula Braga, São Paulo: Perspectiva, 2008, p.208 — Violando a hermética de disciplinas acadêmicas, o trabalho da socióloga Scigliano Carneiro assinalou uma nova perspectiva, importante para comprender Clark e Oiticica, que supera deliberadamente as categorias de “obra” e “história da arte.” Veja tambén: Beatriz Scigliano Carneiro “Relâmpagos com claror: Hélio Oiticica e Lygia Clark, vida como arte” São Paulo: Editora Imaginário, 2004. Visto ante esse fundo, ainda nos faltam muitas interseções e planos convergentes por investigar.

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Cine Esquema Novo

– sensacional… Caos e Efeito.

– qual das obras?

– era uma cena dele com ele transando, tipo um artista se amando, sabe?

– mas como ele conseguiu fazer isso?

– uma montagem, sei lá… como a Globo faz a gêmeas, a Glória Pires ser duas, entendeu?

– ah, mas é uma coisa tecnológica.

– é, uma coisa tecnológica, ele pelado transando afu com ele mesmo… gente, era sensacional… tipo, ele pelado e ele também atrás, no cu, era bem explícito, o pau era dele…

– mas é uma ideia afudê.

– era sexo.

– pornográfico.

– pornográfico.

– um novo degrau do onanismo.

– tinha uma cama e não consegui entrar, porque eu sou meio claustrofóbica, um gavetão…

– o artista contemporâneo é bem isso… uma autoconfiança muito grande, uma autossuficiência…

– e agora essa cena super simbólica dela botando colírio… dessa visão que a gente tá tendo de abrir e discutir, de dialogar, sabe…?

– limpar o olho, né?

– isso é uma coisa tipo “não espere nada de mim: eu confio em você”. Eu acho que é uma promessa meio “não dá pra esperar, não dá pra acreditar em nenhuma promessa, não espere coisas de volta”.

  • é que não é disso que vai vir o resultado, né?
  • não é dessa confiança.
  • tentando racionalizar a coisa, que não sei se tá no caminho certo, é o artista confiando no espectador pra que ele mesmo ache significado, não é o espectador que tem que confiar no artista…
  • .. depende de você.

– “não confia em mim pra achar um significado pra isso, confia em ti”, sabe?

– e assim: “confia em ti, e pra interpretação que tu queira dar…”

– porque não existe uma interpretação.

– exatamente.

– seja lá a que gaveta isso signifique ou represente.

– não que a gente esteja confiante no que tá propondo fazer. Mas se arriscando… a gente pode passar por um período de desconfiança.

– sem dúvida. Mas é diferente falar assim de desconfiança, ou falar “eu não sou confiável”, “talvez eu não seja de confiança”.

– questione tudo, desconfie de tudo…

– e talvez isso que a gente fala de Cine Esquema Novo… as pessoas desconfiem.

– como assim?

  • não tô falando que elas desconfiam do Cine Esquema Novo ser sério ou não…
  • mas a cena agora era de um cara que vinha e estuprava a cabeça dela.

– eu acho que esse filme fala muito do momento, sabe? Porto Alegre, as pessoas reunidas…

– e esse áudio, é da Pina Bausch também?

– tá com toda a cara.

  • mas o filme todo parece a arte dizendo um pouco isso.
  • eu acho que é uma metáfora bem evidente essa do olhar deles, cada um pra um ângulo. Pra onde ele tá olhando e pra onde ela tá olhando. Os dois estão vivendo a mesma cosia, mas não estão olhando pro mesmo lugar.

– na hora que eles quase formam um rosto só, né?

  • é… ou talvez seja como se a gente tivesse falando: “eu confio em você, mas eu não sou de confiança”. Talvez seja ainda uma coisa da gente estar descobrindo o que é, sabe? O que a gente tá fazendo, afinal? Tôsuper abrindo o questionamento…
  • acredito no que eu tô fazendo, mas não sei no que isso vai dar. É por aí?
  • tô abrindo as possibilidades de questionamento que todos nós estamos tendo e que eles devem ter percebido… eles viram a gente debatendo essas coisas. É um caminho que a gente tá descobrindo, de como integrar, de como fazer dialogar cinema e arte.
  • as pessoas percebiam isso no Cine Esquema Novo, mas talvez não estivesse claro pra elas. É mais claro pras artes visuais do que pro cinema. A gente tá descobrindo como tratar isso também a partir do cinema, pra que cada vez que se fale isso não seja…
  • pra que o falar disso seja mais presente.
  • é, mais presente. Não no sentido de que seja nova essa discussão, mas ainda se discute isso pelo lado do cinema como se estivessem discutindo a invenção da roda, sabe? Há décadas…
  • isso é arte, isso não é arte, isso é cinema, não é cinema…? Como se dá essa cruza…?
  • acho que temos que nos voltar pra palavra “relação”. No caso específico do Cruza foi isso que se deu: a gente chamou eles pra irem lá… e é uma coisa totalmente pessoal.
  • porque não é confiança no que a pessoa faz, e sim naquela pessoa, no que a pessoa é. É menos o que ela faz e mais o que ela é.
  • é, isso é bem mais essencial.
  • a gente tava falando antes de umas outras coisas. Da confiança como ponto de partida.
  • porque a obra de arte dá para o espectador a confiança pra ele desconfiar.
  • e eu acho que no cinema isso se perdeu um pouco. O cinema não dá mais essa abertura pra pessoa desconfiar.
  • a sensação de qualquer tipo de troca de confiança?
  • a sensação de que tu dá tudo mastigado pras pessoas…
  • na hora que o Cine Esquema Novo faz uma sessão que o cara não sabe o que vai ver, dependendo, ele vai lá e vai achar chato: ele quer confiar cem por cento. Ele quer segurança.
  • é, segurança.
  • “Cine Esquema Novo 2013: pode confiar”.
  • acho que quando perceberam que o cinema gerava muita força política, simbólica, financeira, então começam a minimizar os riscos que aquilo poderia ter pra transformar. Deixou de ser o que deveria ser ou, enfim, se transformou numa coisa que não era o que era.
  • este papo do que é e o que não é me remete àquele cinema inicial, uma junção das outras artes, e ao mesmo tempo uma coisa discriminada por elas… o irmão bastardo das artes, pois não passava de pura trucagem… e as pessoas iam pro cinema num parque de diversões, numa feira… não tinham uma linguagem estabelecida para quebrar o código do que estavam vendo.
  • parece que agora, quando o cinema extrapola, ele é menos aceito do que quando uma obra de arte extrapola. Ou as pessoas se sentem menos à vontade de questionar.
  • porque “eu não entender” é excelente, né?
  • é arte e mais várias outras coisas.
  • e tipo, afirmações sobre algo, o questionamento, também são excelentes.
  • e essa frase “talvez eu não seja de confiança” tá aí pra isso… pra dizer assim: “por favor pergunte, pergunte, não se acomode, questione, não se acomode… não aceite…”
  • na real, tu precisa da dúvida. Ela é um pressuposto.
  • o papel do instigador é importante, “eu não vou te dar nenhuma certeza”.
  • mas eu acho que as imagens… o audiovisual já tá tão presente na vida das pessoas que elas já se assumem conhecedoras e entendidas da linguagem.
  • por isso que elas vão ao cinema com essa certeza, e isso não é bom pra o que a gente tá discutindo aqui. Aí elas vão numa bienal e não se sentem representadas e identificadas porque bate a preguiça. E nós, no meio?
  • mas eu vou te dizer que dez anos atrás eu ouvia muito mais “isso não é arte” do que escuto hoje. Outro dia saí com a minha tia do museu e ela saiu falando “ah, que diferente esse filme”, “ah, que legal esse outro”. Ela não disse “isso não é”, sabe?
  • mas aí tem a ver com o que se entende como arte contemporânea hoje. Muita gente liga as artes visuais imediatamente à arte feita agora, então a pessoa consegue aceitar. A tua tia consegue chegar lá e dizer “tá, isso é arte contemporânea”, ou “isso não é cinema, é outra coisa”.
  • eu acho que o Cine Esquema Novo vem trabalhando uma proposta um pouquinho mais ampla do que isso. Mas que pelo formato de festival de cinema acabou ficando trancada em algo específico demais.
  • é por isso que as coisas vão mudar.
  • ou a gente acha que vai. Não é uma coisa do dia pra noite.
  • é uma questão contextual, não é uma questão de formato.
  • mas será que a gente não estaria intervindo na criação, na obra, no momento que a gente vê um filme e sugere que ele aconteça de um jeito diferente do imaginado pelo autor dentro do Cine Esquema Novo?
  • E qual é o problema da gente sugerir? A coisa tá viva, não tá morta.
  • sempre vai ser assim quando o artista estiver sujeito a uma curadoria. É uma cruza…
  • acontece que a leitura que um cara faz é uma coisa, mas o cara fazer parte da construção disso é outra. Tem artistas que não sujeitam a obra deles a isso.
  • mas daí o cara vai dizer e pronto.
  • a gente vai pra sombra ou vai ficar aqui nesse sol?
  • não tem sol…

 

 

Porto Alegre, fevereiro de 2012

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Comentário

Assistindo aqui à entrevista que dei ao Dellani, fica bastante claro que, quanto menos tentamos responder a questões generalizantes sobre o lugar da arte e do artista na contemporaneidade, mais nos aproximamos de uma conversa interessante. Era necessário então abandonar questões que não nos pertenciam para conseguir falar qualquer coisa mais reveladora de quem somos. Falamos melhor quando falamos a partir de nossos interesses mais íntimos (lembrando que esses interesses nascem dos encontros).

De qualquer modo, assistir ao vídeo ativou em mim uma vontade de encontrar maior justeza entre a experiência íntima e a social, entre aquele que fala e aquele que ouve. Entre o que se quer dizer e o que se consegue dizer. Por isso, acredito que vale a pena alguns poucos comentários a mais:

– No início dessa conversa eu queria dizer “Sou um homem de cinema”. Eu sou do cinema e o que faço é cinema. Gosto dessa clareza de escolha e não acredito que ela seja redutora, pelo contrário;

– Essa clareza também é necessária para que cheguemos num ponto comum de onde possamos partir. Pelo menos no que diz respeito à elucidação (pensamento) sobre o que fazemos (arte);

– Por outro lado, percebo que só sinto a necessidade de dar nome à arte que faço (cinema) quando estou dialogando com outro ou então quando é com fim educativo;

– Criar obras de arte para meios (lugares) de “exposição” diferentes não muda em nada o cerne do ato criativo. Ou seja, um filme meu na internet continua sendo cinema;

– O que me parece essencial é achar uma forma de me manter aberto e curioso, guardando uma certa inocência jovial no momento em que me deparo com novas descobertas.

O que escrevo aqui é apenas uma ponta de um diálogo, incompleto e com suas contradições. A ideia aqui era a de reagir àquilo que tinha falado nessa videoentrevista, mas agora isso me parece sem sentido. É muito melhor que outros reajam. E que o diálogo se expanda.

 

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Cruza como devoração

Com Yuri Firmeza, Pierre Clastres, Oswald de Andrade, Eduardo Viveiros de Castro, Ludwig Wittgenstein, Hélio Oiticica, Giorgio Agamben, Sigmund Freud, Paul Valéry, Jacques Ranciere.


Beijo de maçã

Permitir o risco da reciprocidade: eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança. Amor pelo outro não é mantê-lo a salvo. Tampouco é devorá-lo para tê-lo cá dentro. Amor maior pelo outro é comê-lo para estabelecer o direito à vingança, eterna procura de uns pelos outros. Te como pra que você me coma pra que eu te coma pra você me comer. Ódio e amor se confundem.

Pedra na cabeça

Alteridade como fenômeno topológico da linguagem, não substancial: cortar, não fazer equivaler. Palavras, imagens e sentidos não se igualam. Eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança. Não prover ao outro uma interpretação de mundo, sequer plasmar-lhe um mundo para sua interpretação. Experimentá-lo como o fora, zona de ignorância. Ambiguidades de linguagem como participação do espectador, compulsória generosidade da arte.

Arrastar o corpo

Eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança. Ninguém é humano quando nasce: é preciso fazer-se humanos através dos outros, pelas mãos dos outros humanos, pelo uso que nos dão no seio da humanidade. Incessantemente. Se a profanação – colocação em uso – é pedra fundamental do humanizável, toda humanização deverá passar pela economia do valor de uso: regresso de deus à horda, do pai à condição de filho. Contínua transformação do tabu em totem.

Tijolo ao chão

Linguagem é superfície, pele da humanidade, o que temos de mais profundo. Nela, tudo está disponível porque nada está posto; o possível sempre supera a impossibilidade. Não há nada de errado na linguagem, desde que não se queira fazer equivaler palavras, imagens, sentidos. Eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança. Manter a linguagem em descolamento perpétuo: unir cacos não é função da arte ou da crítica. No terreno da ambiguidade, a tarefa é continuar mudando o valor das coisas.

Olhar vago

Positivação da superfície face à profundidade meritocrática: continuar fazendo nada de peito aberto. Gerúndio existencial do estando contra o afirmativo retórico do ser. Para além dos tabus das disjunções exclusivas (ou eu, ou o outro) e do imperativo categórico (colonização da liberdade pela reciprocidade entre eue outro): eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança.

Olhar cruzado

Mastigar dois olhos e deixá-los mastigar os teus, até que se possa descoincidir o ponto de fuga: desestabilização da fixidez pela devoração do outro. Desconjuntamento do regime óptico-ético unidirecional do cinema: há verdade em todos os lados do corpo e da questão. Eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança. Ambivalência originária: outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos.

Querer fazer parecer que chora

Fingir não é propor engodos, mas elaborar estruturas inteligíveis. Não há razão ou erro na linguagem. Não querer fazer coincidir palavras com imagens, com sentidos: manter aceso o conflito que desapareceria na realização utópica. Eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança.  Ambivalência e contradição. Contra a síntese, morte e vida das hipóteses.

Sombra-cartaz

Outras dimensões se revelam na projeção na tela: a sombra do corpo é forma, não luz narrativa. Há todo um mundo por detrás, que talvez seja de confiança.

 

 

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O expanded cinema de Valie EXPORT: uma resposta ao esgotamento do cinema estrutural

Tradução Eloísa Araújo Ribeiro

Considerar o cinema como uma prática artística emancipada de todo controle, afirmá-lo desdobrando as particularidades que o meio esconde, compreender e esclarecer a singularidade de atuar que ele permite, examinar as modalidades de fabricação, apresentação e distribuição dos filmes. Aqui encontramos algumas das particularidades que caracterizam o campo conhecido como cinema experimental e que tantas vezes responde de maneira crítica ao cinema dominante por suas formas, conteúdos, meios de produção e condições de exposição (distribuição e espaços de exibição). Nas relações estabelecidas entre cinema experimental e as artes plásticas, encontra-se a singular posição de Valie EXPORT. Desde o início, a artista escolheu trabalhar com cinema. Não com qualquer tipo de cinema, mas com aquele que ela chama deexpanded cinema (cinema expandido).

Conservaremos o nome inglês, pois se trata de uma compreensão do cinema mais próxima àquela dos artistas plásticos dos anos 90 e, portanto, radicalmente diferente do cinema expandido dos cineastas experimentais do fim dos anos 60 e 70. Diversamente à produção americana – dominada desde o fim dos anos 60 pelo cinema estrutural –, mas também diferentemente da escola materialista europeia, encarnada pelo cinema britânico e alemão do início dos anos 70, Valie EXPORT privilegia o conteúdo em detrimento da forma, tal como tradicionalmente compreendida. A artista não cultiva uma dinâmica essencialista em relação ao cinema: “nunca fui ligada a uma interrogação puramente formal do material fílmico, mas sempre me preocupei com o conteúdo da imagem, isso sempre foi importante para mim [1] Entrevista publicada no livro de Roswitha Mueller Valie Export Fragmens of the Imagination Indiana University Press, Bloomington and Indianapolis, 1994. (tradução do autor)”.

Em Viena, no contexto do fim dos anos 60, o corpo – em todas as suas expressões – torna-se matéria-prima para os acionistas vienenses (Otto Mühl, Rudolph Swarzkogler, GunterBrus e Hermann Nitsch). Em especial, a forma de exploração da mulher por aquele grupo de artistas torna-se um ponto de partida crítico para a obra de Valie EXPORT. Apesar do reivindicado radicalismo e insubordinação dos acionistas – que visavam perturbar uma sociedade voltada para si mesma, fechada em um conservadorismo pós-fascista –, suas ações utilizavam e representavam a mulher como qualquer outro grupo, como um objeto cujo único crédito era o de ser um dos elementos da performance, triturado pela instância dominante: o homem. Assim, EXPORT criticará “o papel das mulheres nas ações materiais realizadas por artistas masculinos (como feminista, não me interesso pelos papéis dos homens)”. Em suas performances, a ação

visa obter a união do ator e do material, da percepção e da ação, do sujeito e do objeto. O acionismo feminista procura transformar o objeto da história natural do homem, o material “mulher”, subjugado e mantido na escravidão pelo criador masculino. Numa atriz e criadora independentes, ela é sujeito de sua própria história. Pois, sem a capacidade de se expressar por si só e sem campo de ação, não poderia haver dignidade humana”.

Mais adiante, se os acionistas saturavam o sentido por sobrecarga, denunciando os tabus e a repressão da sociedade austríaca por meio do espetáculo, eles o faziam ainda com uma linguagem que procedia da pintura gestual e de um determinado expressionismo, diferentemente de Valie EXPORT, ou Peter Weibel. Na obra desses, estamos diante de uma análise da comunicação, que se expõe na projeção de um corpo compreendido como superfície receptora-produtora dos fenômenos de socialização: “Meu trabalho deveria ser compreendido como uma crítica das ações materiais, uma resposta artística distinta para responder a essas ações materialistas”. Foram esses, portanto, os trabalhos identificados como expanded cinema.

Com Valie EXPORT, trata-se, então, de ações cinematográficas: projeções de signos que se produzem fora do lugar de consumo clássico do cinema:

o conceito e a intenção dos primeiros trabalhos em expanded cinema consistiam em descodificar a realidade tal como ela é manipulada no filme. Levar o dispositivo cinematográfico para o espaço e para a temporalidade da instalação, a fim de romper a bidimensionalidade da superfície plana. No cerne de minha análise, encontrava-se a desconstrução da realidade dominante, a desconstrução e a abstração do material, a tentativa de produzir novas formas de comunicação e sua realização. Meu trabalho empenhava-se em se afastar das formas do cinema tradicional, de sua produção comercial – produção convencional das sequências cinematográficas segundo a filmagem, montagem, projeção, e substituí-las, em parte, por aspectos da realidade como novos signos da realidade. Apresentação, produto, produção, realidade, formam um todo no expanded cinema. Na ação Cutting (1967-68), eu não cortava a película de celuloide, mas o corpo da tela iluminada pela luz do projetor. O som do corte (a raspagem), da respiração e do projetor sem filme, constituem a faixa sonora. A iluminação, a revelação e as imagens eram, portanto, produzidas simultaneamente[2] Valie Export in RM,p 219, op.cit..

Enquanto o espaço habitual do cinema só funciona na doce neutralidade de seu entorno acolchoado – tratando-se, portanto, de um lugar de mão única, sem reciprocidade –, Valie EXPORT redefine o cinema como lugar de troca, ativando-o como um espaço de comunicação. Valie EXPORT põe literalmente o cinema para fora das quatro paredes.Ele sai de seu armário e de seu uso amortecido, se expõe. Tal exposição é particular, já que manifesta o dispositivo e, a um só tempo, se realiza através de ações precisas que só recorrem de modo secundário às ferramentas do cinema. Essa inversão desloca, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto do cinema, na medida em que se refere aos usos dominantes do cinema, criticando-os pelo simples fato de expô-los. Assim, Valie EXPORT procura restituir novas perspectivas de percepção para nossos sentidos amputados. Às vezes, ela interroga a questão da materialidade do suporte e dos processos, substituindo alguns de seus elementos. Outras vezes, privilegia o momento da recepção do filme – ou seja, a interação com os espectadores induzida pelo dispositivo –, em outras, ainda, ela fará do corpo, o dela, um objeto de osculação, como em TappundTastkino a Glotis, ou em The Voice as Performance, ActandBody (2007).

Por sua vez, Abstract Film N°1 (1967-68) trata da produção e projeção da imagem segundo um sistema particular de trocas, que recorre a elementos naturais – como pedras, água e árvores – que fazem as vezes de tela.  O recurso a tais elementos permite afastar o aspecto tecnológico em prol da relação entre natureza e cultura, sublinhando a existência de um indivíduo-superfície: para EXPORT, o corpo é lugar de determinações culturais, no qual estão gravados o espaço e a lei da sociedade [3] Pensamos imediatamente na aquisição da memória descrita por Nietzsche naGenealogia da Moral., mas também capaz de se mostrar para o mundo e de se comunicar com ele. Mais adiante, InstantFilm (1968), um retângulo de plástico transparente que faz as vezes de filme instantâneo, trabalho de Valie EXPORT e Peter Weibel, leva adiante algumas dessas questões: “InstantFilm é um meta filme, reflexo do filme e da realidade. Depois do desenvolvimento do café instantâneo e do leite em pó, conseguimos, finalmente, produzir o filme instantâneo, que é tela, projetor e câmera ao mesmo tempo. A junção deles depende do espectador”. O trabalho demanda a participação dos espectadores para existir como filme – vale ressaltar que, frequentemente, quando as instalações não recorrem à participação do espectador, elas o deixam de lado.

Há, na produção de Valie EXPORT, diversos projetos interativos. Em PingPong(1968), a questão da recepção é abordada como um jogo: com uma raquete e uma bola, o jogador mira alvos redondos que aparecem e desaparecem independentemente da reação do performer. Se, por sua vez, TappundTastkino(1968) – outro de seus projetos interativos – demanda um dispositivo particular, é porque interroga o cinema segundo modalidades distintas e, principalmente, põe em cena o voyeurismo inerente ao consumo cinematográfico. A pulsão escópica ativa atitudes e modalidades de apreensão que salientam o poder do olhar do homem em relação à mulher-objeto (objeto de todas as suas cobiças), a tal ponto que fixa as regras do olhar, dela e do próprio dispositivo. Com TappundTastkino, a artista inverte o processo de consumo do filme na sala escura. O olhar do voyeur não está mais protegido pela escuridão, engajado de maneira anônima para satisfazer seu prazer falsificado; ele está engajado em ter seu prazer de verdade, publicamente, diante do olhar do outro – que o examina –, mas também do público, que o vê fazer. Um dispositivo de troca, de comunicação, se atualiza ao vivo.

Vamos nos deter um instante nas diferentes apresentações de TappundTastkino, realizadas por EXPORT. Se na primeira apresentação ela recorreu a um cúmplice, um ator que agarrava o cliente (na pessoa de Peter Weibel), na segunda, Valie EXPORT recorreu a uma mulher como aliciadora – o que provocou as mais variadas reações, hostis em sua maioria: “essa ação foi bem interessante, pois éramos duas mulheres, as pessoas ficaram muito agressivas. Pensavam que éramos prostitutas”. Com TappundTastkino, Valie EXPORT quer, efetivamente, modificar a consciência das pessoas:

nessa ação, na linguagem do filme, autorizo quem quiser a tocar meu corpo-tela, meus seios. Rompo com os confins socialmente legítimos da comunicação social. Meus seios já não eram parte da sociedade do espetáculo, esta última fazendo da mulher um objeto. Meus seios já não eram a propriedade de um só homem, ao contrário, a mulher tenta, com a livre disponibilidade de seu corpo, determinar sua identidade independente, o primeiro passo que vai do objeto ao sujeito. (…) O fato de tudo se passar na rua, e de o consumidor poder ser qualquer pessoa, homem ou mulher, constitui uma infração reveladora do tabu da homossexualidade”.

Encontramos um recurso à homossexualidade como marcador social em Menschenfrauen [mulher humana] (1979), no qual duas mulheres grávidas, Anna e Petra, se beijam num restaurante, provocando um protesto geral. Com Genitalpanik (1969), Valie EXPORT expõe seu sexo para a visão dos espectadores de um cinema onde entrou. Com uma arma à tiracolo, os cabelos arrepiados, pensa-se imediatamente em Angela Davis, que teria decidido atacar os machões de plantão como deslocamento de reivindicação racial. A inscrição do político nesse trabalho é patente.

Em trabalhos do início dos anos 60, a preocupação com as questões sociais da mulher já se coloca como central na obra de EXPORT: “com TappundTastkino, já havia esse confronto entre a análise da feminilidade e da imagem da mulher, do olhar sobre a mulher (…), tema muito presente e muito importante”. As questões que rodeiam a imagem da mulher são problematizadas num procedimento recorrente: a artista atua a partir de lugares que, conforme os tipos de relações que instauram, fazem ver determinadas regras e regulamentações sociais, que são portanto retomadas em seus termos. É o corpo da mulher, na pessoa de Valie EXPORT, que é interrogado, através de encenação que visa fazer uma voz ser ouvida: sua voz; a voz de uma mulher. Assim são compreendidas obras como bodyandsign (1970), que perpetuam as ações precedentes, propondo uma imagem congelada cujo movimento inscreve o trabalho do pensamento.

O equívoco do signo tatuado atua em vários registros, vários planos, como também o fazem os dispositivos de vídeo e as fotografias que separam camadas sucessivas de partes de corpos. A foto, a performance e alguns filmes salientam ainda esses deslocamentos, que nos fazem passar do corpo de uma mulher ao de Valie EXPORT em prol de uma exteriorização de estados mentais, cujo vestígio pode ser lido segundo várias mídias. Trabalho da transferência, passa-se de uma superfície à outra, fazendo a tinta subir para ser reabsorvida ou impressa sobre uma superfície sensível, pele, película, papel. O signo faz sentido por seu próprio transporte.

À época da exibição de TappundTastkinoem Munique, o feminismo ainda não preocupava artistas como Birgit Hein – “para mim, havia o cinema estrutural, Freud e Marx” –, de modo que Valie EXPORT antecipa a reflexão engajada, alguns anos mais tarde, pelas feministas anglo-saxãs. Seu expanded cinema fica à margem daquele dos cineastas do momento, mais preocupado com questões estruturais do dispositivo e com a materialidade do suporte, do que com conteúdos que interrogam tanto o olhar quanto aquele que olha, e investindo sobre campos excluídos, para não dizer proibidos.

O expanded cinema da época, produzido antes de tudo nos Estados Unidos, vinha da estética underground, tal como ilustrada por Andy Warhol em PlasticInevitable, ou ainda porEvents no Moviedrome, de Stan Vanderbeek, nos quais verdadeiras colagens, assemblages audiovisuais, são elaboradas ao vivo. É preciso esperar os anos 70 para ver eclodir uma escola que trabalha os processos e investe as relações efetuadas pela projeção no espaço – o que está presente, antes de tudo, no cinema materialista britânico, bem como em algumas figuras importantes nos Estados Unidos, como Paul Sharits e Michael Snow, para citar apenas duas delas. Tendo em vista esse contexto – marcado, de um lado, pelo cinema estrutural e, de outro, por um expanded cinema de estética underground –, inevitavelmente as ações do expanded cinema de Valie EXPORT tornam-se ambíguas: elas manifestam questionamentos diferentes, e singulares, privilegiando, ao mesmo tempo, uma estética minimal.

Suas ações se aproximam das ações da body-art, mas se distinguem delas por uma afirmação propriamente feminista. Valie EXPORT aventura-se num território relativamente intacto – onde tudo é possível pois tudo, ou quase tudo, está por ser feito. Devemos lembrar que o artigo essencial de Laura Mulvey, Visual Pleasure and Narrative Cinema, é publicado na revista Screen, em 1974. Nesse artigo, Laura Mulvey questiona, por intermédio da ferramenta psicanalítica, o trabalho patriarcal no cinema narrativo e, mais precisamente, a representação das mulheres através do olhar dos homens. Valie EXPORT, entretanto, não é a única a interrogar e a inscrever a especificidade de uma fala, a traçar uma escritura feminista. Carolee Schneemann já abrira a via, já esboçara caminhos em conflito com as instituições.

Se compreendermos o trabalho de Valie EXPORT como um trabalho de resistência diante do conjunto de imagens de mulheres defendido pelo acionismo vienense, encontraremos aí uma semelhança com os filmes de Carolee Schneemann e, principalmente, com Fuses, que vai de encontro à ideologia de Stan Brakhage. Schneemann, como EXPORT, não seguia um cronograma: elas subvertem a arte para que suas vozes de mulher sejam ouvidas. Suas obras têm a particularidade de trabalhar a representação do prazer sexual, como Fuses (1965), PlumbLine (1970) e Menstruation (1967), hoje perdido, e Mann, Frau& Animal (1973), de Valie EXPORT. A afirmação do prazer do feminino choca tanto o bom gosto quanto os hábitos dos homens, na medida em que já não se trata do prazer deles. O que fala, o que se mostra na imagem, é o outro, a grande ausência. Essa fala é, antes de mais nada, política.

Com Mann, Frau& Animal, e Remote Remote, ambos de 1973, Valie EXPORT explora registros mais pessoais e põe em cena a dor, a automutilação, o prazer. Mais uma vez, encontramos nessas encenações semelhanças com várias ações de Gina Pane. Nesses dois filmes, Valie EXPORT exterioriza estados mentais. Em um caso, o prazer; no outro, a dor. Retomando os termos de Juan Vicente Aliaga, em Mann, Frau& Animal Valie EXPORT explora o percurso do prazer individual, solitário e autossuficiente de uma mulher com um fim sangrento (estupro simbólico?) ao som de gemidos viris. A irrupção do sangue, a menstruação na imagem, quebra um tabu. O que é chocante aqui, em todos os sentidos do termo, é o fato de fazer ver, a um só tempo, o prazer, o orgasmo e a menstruação.

Com Remote Remote, não é tanto o prazer, mas a mutilação que é exposta – e, mais exatamente, a automutilação. O ato de cortar sua própria pele, ou seja, o cuidado estético bruto, a manicure, pertence aos códigos elementares da representação feminina. Em Remote Remote, o ato é prolongado na duração. Insistentemente, passa-se do cuidado ao mau trato; fere-se, inflige-se aos dedos tratamentos no mínimo sangrentos. Isso é feito com um estilete. Não apenas corta, mas se insiste. A repetição dessas mutilações induz à percepção de uma dor para o público e remete ao temor da castração para os homens. Ela anula o uso patriarcal do prazer cinematográfico, desnaturando-o. A mão é lavada em uma tigela de leite, que expressa calma e purificação – mistura de elementos aparentemente opostos que aparece com frequência na obra de Valie EXPORT. A artista anula o conforto da performance quando sai de campo para nos deixar diante da imagem de duas crianças violentadas vestidas com pijama listrado, que evocam outras lembranças da sociedade austríaca contemporânea.

Esses filmes, próximos das ações do expanded cinema, afastam-se dele, entretanto, pela utilização parcial – no que concerne Mann, Frau& Animal – de técnicas que mesclam diferentes suportes (fotos, grafismo) no mesmo filme. Valie EXPORT desenvolve, com o vídeo, dispositivos que unem, simultaneamente, vários pontos de vista, que podem se encaixar uns nos outros para produzir um acontecimento específico. É o caso de Split Reality (1970-73), ou Adjunct Dislocations (1973) e sua segunda versão (1973-78), que evocam um trabalho próximo ao de Dan Graham e serão formidavelmente orquestrados em Syntagma, com uma única tela. Os dispositivos com duas câmeras, habitualmente usados por Valie EXPORT, partilham com os de Dan Graham semelhanças de atitudes e de questionamentos quanto à percepção simultânea de uma ação através de dois pontos de vista. Assim, Roll (1970) e Helix/Spiral (1972) antecipam e lembram os dispositivos de tomada simultânea de Valie EXPORT. Nessa junção de uma filmagem simultânea e de sua restituição sincrônica, é abordada a questão do fora de campo, como também a anexação do campo-contra-campo simultâneo. Não há mais distância; fica-se, a um só tempo, fora e dentro. Esse trabalho sobre a questão da simultaneidade dos pontos de vista é compreendido em relação à situação do cinema experimental austríaco da época.

Como se podia ainda realizar filmes depois do cinema métrico de Kubelka? Como abrir outros horizontes para o cinema? É assim que se deve compreender a interrogação em torno da simultaneidade, cujo primeiro vestígio é encontrado no filme Hernals (1967), de Hans Scheugl, no qual

“procedimentos documentais e pseudo documentais foram simultaneamente utilizados por duas câmeras situadas em ângulos diferentes. Cada fase de movimento foi dividida. Durante a montagem, cada uma dessas fases foi duplicada. As técnicas utilizadas para isso variam. O som também foi duplicado e, aí também, diversas técnicas foram utilizadas. Duas realidades diferentemente percebidas, devido às condições de filmagem, foram montadas em uma realidade sintética na qual tudo se repete. Essa duplicação destrói o postulado da identidade da cópia e da imagem. Perda de identidade, perda de realidade (esquizofrenia)”[4]Peter Weibel escrevendo sobre o filme de Hans Scheugl no catálogo online Light Cone. Disponível em: http://lightcone.org/en/film-1293-hernals.html..

Já com InvisibleAdversaries, Valie EXPORT trabalha a narração. A abertura e o fim do filme evocam o último plano de Profissão Repórter, de Antonioni, no qual uma câmera sai de um cômodo para percorrer a cidade. Ela não é a primeira a se lançar numa aventura dessas. Com certeza foi Yvonne Rainer quem impulsionou esse aspecto no campo do cinema experimental. Com Livesof Performer, de 1972, Yvonne Rainer deixa o campo coreográfico, reforçando o emprego de elementos narrativos. Mas tudo é feito com distanciamento. Encontramos estratégias semelhantes em Valie EXPORT no que diz respeito à não aderência de um personagem a seu papel, ou pelo jogo sutil de repetições defasadas, como na cena do lado de fora do café, ou no momento de um diálogo organizado por monitores de vídeo. Esse agenciamento de planos, que antecipa, freia e relança a narrativa, confere a esses filmes sua matéria de assemblage; constituídos de momentos mais ou menos narrativos, por meio da mescla de elementos de diferentes procedências, eles deslocam a experiência do filme da narrativa para a própria trama. Em Yvonne Rainer, elementos autobiográficos estão lado a lado com ensaios e espetáculos de dança; já Valie EXPORT incorporará ou recriará peças fotográficas que ela põe em situação.

Para as duas artistas, e em graus diversos, o trabalho cinematográfico trata de ir além do filme estrutural que, à época, estava se esgotando, ficando sem saída, e oferecendo indícios que já deixavam perceber alternativas a esse cinema. Para Valie EXPORT, tratava-se, antes de tudo, de introduzir formas e conteúdos da vanguarda no cerne dos longas-metragens: “tentei introduzir, nos filmes convencionais, discursos alternativos de um artista das mídias. Eu queria encontrar uma maneira de criar uma polifonia com ajuda de metáforas visuais, para ilustrar os diferentes processos psíquicos pessoais”.

Desde então, o expanded cinema de Valie EXPORT adensa o contexto do cinema experimental, problematizando as normas do discurso cinematográfico clássico, donde advém seu caráter transgressivo, subversivo. Hoje, essa prática mantém-se marginalizada do domínio da produção de imagens em movimento, tantas vezes estando forçada a regimes de invisibilidade. É certo que sua relevância histórica é reconhecida. Todavia, tal reconhecimento é, por vezes, forma de despojar as produções contemporâneas experimentais, acusadas de não corresponder às expectativas do discurso crítico do momento.

Assim, dada a amplitude das redes de circulação que atualmente detêm o poder do consenso estético, o cinema experimental contemporâneo enfrenta o problema de “ilustrar-se pela sua ausência” – situação partilhada também por outras linguagens artísticas –, razão pela qual precisa (re)definir-se constantemente. Por isso o cinema experimental é, cada vez mais, simultaneamente combate e resposta.

Fazer cinema experimental é ser o agente desse cinema, continuamente buscando estratégias de resistência que evitem sua aniquilação. É também inventar as condições de sua partilha pública. Finalmente, fazer cinema experimental é refletir sobre uma história subavaliada e, ao mesmo tempo, questionar as formas desnarrativas (isto é, que rompem com os padrões históricos de narração no cinema) de um suporte linear: o filme.

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Tiago Mata Machado e Francis Vogner

F: Quero começar abordando o contexto histórico e social em que seu filme existe, porque ele tem sido alvo de críticas que não se relacionam com o que ele efetivamente propõe, mas sim críticas que quase reclamam que o filme é de uma maneira que “não se deve ser”. O seu filme estimulou um tipo de situação interessante entre críticos, jornalistas, público e outros realizadores que o viram e com os quais eu conversei. Foi um estranhamento geral, o que não é novidade para filmes – como Os Residentes –que divergem de tendências muito em voga no cinema contemporâneo, ou que não se relacionam de maneira muito óbvia com a tradição. Não houve resistência, por exemplo, à rarefação dos filmes O céu sobre os ombros e Transeunte, nem à extravagância infantilóide e reacionária de A Alegria. As “estranhezas” desses filmes não são estranhezas, são códigos absolutamente subjetivados entre a crítica e certo tipo de público, um público/crítica que despreza propostas estéticas mais desbocadas (José Mojica Marins, por exemplo), mas também recusa coisas mais sofisticadas (os filmes do Júlio Bressane, por exemplo). Partidários (para usar um termo de Ruy Garnier) do “meio-termo aguado”. O máximo de transgressão que permitem são os filmes dos ditos “cinemas de arte”. O seu filme se chocou contra essa cultura do “meio-termo aguado”. Foi rechaçado por alguns por má vontade, recalque e ignorância pura e simples. Outros talvez não tenham falado mal, mas lhes faltourepertório (para entender o que realmente está implicado no filme) e curiosidade (para se deixar provocar pelo filme).

T: Devo dizer que o embate com essa cultura que rege o cinema brasileiro hoje me foi fundamental. Me colocar como uma voz dissidente, assumidamente minoritária, fez a minha força. As reações contrárias serviram para fortalecer algumas convicções, os inimigos fizeram o combate valer a pena. A princípio, a minha situação era mais ou menos a mesma da de meus personagens. Uma fragilidade algo quixotesca. Meu filme era uma aposta em um leitor que ainda estava por vir e que talvez nem existisse, como aquelas cartas que Quixote escrevia para a sua Dulcineia e pedia para Sancho entregar, uma carta de amor escrita para uma amante imaginária, em uma linguagem que esta, se existisse, talvez não compreendesse, carta que talvez nem chegasse a um destinatário, que talvez nem fosse entregue, nem lida, muito menos entendida. Aos poucos, comecei a encontrar os meus leitores. Encontrei as minhas Dulcineias e também os meus moinhos de vento: desde o princípio, é verdade, eu sabia que o pequeno complô lunático de meus personagens era também um complô (nosso) contra o cinema brasileiro, uma forma de afirmar a liberdade de expressão e de invenção em um momento em que imperavam as cartilhas dosavoir-fairee regras de conduta de toda espécie, toda uma ordem simbólica (essa espécie de constituição não escrita da vida em sociedade).

F: Mas esses problemas não são de formação, não são só problemas da nossa cultura brasileira. São problemas geracionais. Hoje a provocação estética e a transgressão precisam vir com manual de instruções. As pessoas se deixam provocar na medida em que possuem uma leitura satisfatória para essa provocação, na medida em que podem “domesticar” essa provocação. Antigamente as provocações pareciam funcionar melhor porque os interlocutores dos filmes (sejam ou mais conservadores ou os mais liberais) tinham convicções mais sólidas. Hoje, quais são as convicções? Aceitar as ideias ou valores que se vendem de modo mais convincente segundo certa pauta de flexibilidade de valores. É omarketingintelectual e cultural. Se não fosse por outras qualidades, Os Residentes já valeria por desvelar a fragilidade da subjetividade dessa cultura (não só de cinema) que temos não só no Brasil, mas na contemporaneidade; a impostura dos discursos e a disseminação de uma ignorância arrogante, que não entende as coisas e por isso diz que elas “não importam”.

T: A reação ao meu filme não se deu apenas por ele ter quebrado as regras estéticas vigentes (a verossimilhança para o cinemamainstream, a rarefação para o cinema emergente, os novos efeitos de realidade). Essas regras estéticas implicam também normas de conduta: todas as críticas que me foram dirigidas vinham acompanhadas de comentários personalistas, notas sobre o meu comportamento nos debates, as reportagens até mais do que as críticas, até mesmo os prêmios que recebi vieram acompanhados de ressalvas assim, sobre a minha conduta (eu que sempre fui tão discreto). Essa é para mim uma prova de que estamos falando de um espaço simbólico com limites claros, uma estrutura.

F: Bem, não era de se estranhar esse tipo de mal-estar dos “guardiões da cultura”. Guardiões não pensam, mas “guardam”, precisam de normas e manual de instrução.

 T: É um pouco aquela história: a cultura é a regra e é da natureza da regra ir contra a exceção. Se o cinema brasileiro vai mal, isso se deve muito à cultura que o gera e alimenta. Um espaço simbólico protagonizado por críticos zelosos de sua autoridade, cineastas zelosos de sua carreira, produtoras truculentas, repórteres aduladores e eminências pardas que legitimam ou deslegitimam projetos em suas vastas zonas de influência. Um ambiente propício ao arrivismo e ao darwinismo social, como tudo mais no Brasil. O jovem cineasta emergente que cuida de dar os passos certos para se inserir no mercado de festivais do dito cinema contemporâneo não difere muito, nesse sentido, do cineasta mainstream que se quer provar à altura dos padrões do mercado internacional. Ambos os nichos seguem estratégias de inserção. Todos seguem regras que são, antes de tudo, regras de conduta. Há demasiado cálculo nas ações dos cineastas brasileiros, o que impede o surgimento espontâneo de um verdadeiro cinema. Há demasiada ambição, mas não a ambição de explorar toda a riqueza de possibilidades do dispositivo cinematográfico em suas relações simbólicas com o real. É bem previsível afinal que, nesse contexto, um filme escalafobético como Os Residentes seja visto como uma provocação indesculpável. Um filme que vai contra todas as regras do como-se-deve-fazer-para-continuar-uma-carreira-promissora, que não segue cartilha nenhuma. Além do mais, um trabalho cheio de convicção e pretensões estético-existenciais, tudo o que os agentes culturais brasileiros mais abominam. Os cineastas brasileiros hoje, inclusive e especialmente os do dito novíssimo cinema brasileiro, dividem-se, para mim, entre aqueles poucos que se arriscam de verdade em nome da experiência cinematográfica e os que só fazem cálculos para a carreira. O gesto cinematográfico que eu acredito hoje é aquele que começa não sendo um gesto calculado de carreira, demasiado estratégico de partida, um passo seguro em uma carreira bem administrada. Um verdadeiro gesto de risco hoje começa por colocar em risco a carreira daquele que nele se lança. Entre os jovens realizadores há também os administradores, aqueles que cuidam de dar passos seguros na carreira, mas, de uma forma geral, ainda há uma saudável dose de amadorismo no novíssimo e é desse amadorismo que devemos cuidar frente ao profissionalismo de estampa do cinema mainstream brasileiro. Estamos mesmo aqui nos antípodas da estética da fome (Ivana Bentes falou em cosmética): tudo o que parece importar aos cineastas de carreira é provar que são capazes de fazer cinema “como os outros”, mostrar certo padrão de qualidade, certa eficiência na emulação do cadáver do cinema clássico, seu modelo vazio estandardizado, para adquirir no mercado internacional uma carta de habilitação que lhes permita servir de capatazes em produções hollywoodianas ou grandes coproduções internacionais. Diante desse profissionalismo, que resulta em filmes não apenas padronizados e sem personalidade (ética e estética), mas também sem verdadeiro caráter ou convicção, é inevitável falarmos em nome do verdadeiro cinema nacional e evocarmos as potências do inigualável amadorismo cinematográfico brasileiro, cantar a impureza e o excesso, celebrar o tosco e o primitivo (ir de Glauber a Candeias, ou mesmo da chanchada à pornochanchada). É preciso fazer do amadorismo uma reserva utópica. Diante dos profissionais, esses cineastas do selo de qualidade, que se pretendem mais sérios e mais adultos, sejamos as crianças que levam o jogo cinematográfico até o fim. Qualquer criança sabe que brincar é mais nobre do que trabalhar.

F: Me parece que a crítica (ou os críticos) e os cineastas sofrem da seguinte questão: o que afirmar para além da constatação de sintomas? Não se trata de ser contra o plano-sequência, o plano tableau, contra o documentário, contra o cinema de gênero ou contra certo tipo de plasticidade das imagens, mas sim de questionar as implicações de certo uso recorrente de procedimentos, códigos, elementos formais. E que implicações seriam essas? Meramente formais? Não. Mas sim éticas (o que propõem efetivamente como sistema de valores) e morais (o que afirmam em seus procedimentos), não no sentido de fazer um policiamento pelo bom uso dos procedimentos artísticos, mas sim de tentar entender o que esses filmes estão dizendo (mostrando). Esses filmes – como sujeito, não como objeto –, o que estariam dizendo acerca do mundo em que vivemos? O que estariam propondo além do diagnóstico de “sintomas” da contemporaneidade? Sempre usei a metáfora do legista para entender certo estado-limite do crítico de cinema, mas hoje serve também para os cineastas. Um legista trabalha sobre um corpo morto: abre, disseca, separa e distingue, dá nomes aos orgãos, reconhece-os e inclusive consegue dizer com mais precisão a causa mortis. O legista não precisa de um sujeito, mas de um cadáver. O legista seria capaz de falar sobre o estado de um corpo e do mal que poderia ter-lhe tirado a vida, mas não sobre seu espírito, seus conflitos, seus ódios e seus amores, coisas que inclusive poderiam ter contribuído para o agravamento de seu estado de saúde. Rabelais era médico aparentemente competente e sacerdote católico medíocre, segundo relatos, mas foi como escritor que se destacou, justamente porque foiassim que conseguiu dizer coisas de que a ciência e a religião não davam conta. ArthurSchnitzlerera a mesma coisa: um médico que com a literatura buscou entender enfermidades da alma de um sujeito, de uma classe social, de uma época… Estamos na contramão disso: muitos críticos e acadêmicos de cinema agem menos como escritores e mais como legistas na busca do conhecimento acerca do que constitui as obras artísticas e o “espírito” de nossa época. Como se fossem falar sobre o amor dissecando um coração, como se fossem falar sobre o ódio tentando entender o funcionamento da produção de bílis no fígado. Eu entendo que a maior parte dos filmes hoje parece não conseguir dizer muita coisa sobre o mundo em que vivemos e entendo que esses pesquisadores de cinema que deixaram de acreditar no cinema (viúvas do cinema moderno) venham se aproximar de outros fenômenos ligados às experiências com imagens hoje, seja em nível tecnológico, social, midiático… Me parece que muitos transferiram o anseio de intervenção histórica que o cinema (e a crítica) moderno propunha, para outras coisas que estão bem aquém do cinema. A diferença é que no cinema moderno os fenômenos eram os grandes filmes, hoje vem a ser qualquer coisa: vídeodeYoutube, programas de auditório, experiências de oficina de cinema… Seráque realmente os filmes nada têm a dizer? Será que vivemos em um período de afasia e derrota total do cinema? Ou será que as ferramentas de nossos críticos, teóricos e pesquisadores estão obsoletas? Será que essa atitude de estudar os fenômenos existentes e autônomos (inclusive nos filmes), em detrimento de uma reflexão arriscada, propositiva, que vise algo para além da hermenêutica elementar, não seria traço de nossa época pragmática, metódica e funcional? Não seria a maneira de olhar as coisas que teria de mudar, mas sim o modo de falar dessas coisas? Você deve concordar comigo: podemos até ler textos por aí com cacife intelectual, mas que são tão melindrados nos seus posicionamentos que ficamos sem saber ao certo o que o escriba achou do filme. Artigos e textos que parecem trabalhos escolares, relatórios de legistas (para voltar à metáfora). Vejo método, vejo pesquisa, embasamento, mas não ouço (leio) a voz do escriba. Ora, o estilo seria não só a voz, mas a dicção do crítico, onde eu sentiria, para além de todo o seu esforço de embasamento, sua afirmação, seus ódios e seus amores, seus desejos e sua recusa, e por meio disso, entraria em contato com esse olhar sobre o filme, sobre o mundo. Li outro dia um texto do crítico Luiz Carlos Oliveira Júnior em que critica duramente Viajo porque preciso volto porque te amo e que no fim cita uma entrevista com Marguerite Duras em 1980, no qualela falava mais ou menos isso que concluí aqui, no sentido em que ela vê (e eu também vejo) nessa afasia a perda de sentido político. Transcrevo: “Para mim a perda política é antes de tudo a perda de si, a perda de sua cólera, assim como a de sua doçura, a perda de seu ódio, de sua faculdade de odiar, assim como a de sua faculdade de amar, a perda de sua imprudência, assim como a de sua moderação, a perda de um excesso, assim como a perda de uma medida, a perda da loucura, de sua ingenuidade, a perda de sua coragem como a de sua covardia, a de seu terror diante de tudo, assim como a de sua confiança, a perda de suas lágrimas, assim como a de seu prazer (…). Marguerite Duras, “La perte politique”, Cahiers du Cinéma nº 312-313, junho de 1980)”.

T: Um aforismo de Karl Kraus, o mestre de Brecht e Benjamin: “O político é alguém metido na vida, não se sabe onde. O esteta é alguém que quer fugir da vida, não se sabe para onde”. Os Residentes é um filme de personagens que fugiram da vida, não se sabe para onde – “A verdadeira vida está ausente. Não estamos no mundo” (Rimbaud). Em que pé eles ainda estão metidos nesta vida, é preciso pensar e é algo que tem a ver com os limites e possibilidades de se fazer cinema de invenção hoje em dia. Se o filme vacila em sua busca por uma ruptura, se ele demonstra às vezes uma consciência demasiada de si mesmo e da possibilidade de a história se repetir como farsa, é por conta disso.

 

F: Os Residentes é um filme sobre arte e estética que busca se relacionar frontal e organicamente com isso, mas ao mesmo tempo desvela o limite dos conceitos de arte e estética. Acho queestá claro que não é uma ode às vanguardas, mas uma reatualização dos princípios vitais das vanguardas, que existe no filme mais como gesto do que como programa (o que é fundamental). Acho um gesto político fundamental o filme afirmar a potência da arte em causar um estranhamento a partir do que propõe como reorganização/destruição do mundo. O filme é o luto das vanguardas, mas ao mesmo tempo a relativização desse luto. Ele ri do luto. Não há mais espaço ou solenidade para chorar esse luto, pois o tipo de lamentação decadente do fracasso da reinvenção da sociedade (em sua destruição criativa) trai essencialmente esse projeto moderno de reinvenção permanente. Por isso, a intervenção da personagem mais misteriosa do filme (a artista que passa boa parte do tempo amarrada e vendada no banheiro) no discurso de um personagem – uma espécie de mecenas do grupo – sobre Robespierre é justamente um choque de agressividade sarcástica, porém verdadeira, com ojeriza a “discursos codificadores e doutrinadores”. Ela “caga” no “sermão” (“chupa a minha boceta”, “enfia esse projeto no cu”) que esse personagem dá ao grupo de artistas-guerrilheiros, ridiculariza o exerciciozinho de poder de Andru (o tal mecenas) e o constrangimento geral do grupo. Contra o discurso, que denota um tipo de poder, o gesto. Se todo discurso tem promessas de reconciliação futura, o gesto em si é urgente e desestabilizador. Os Residentes é um filme cheio dessas rachaduras nos discursos a partir de um gesto (puro, duro, direto) que problematiza o que estamos vendo, coloca em perspectiva, estabelece uma crise. Você falou das artes plásticas, mas eu coloco o cinema em questão, porque o cinema – pelo menos o nosso aqui no Brasil – vê as coisas na esfera de “sensibilidade”, uma espécie de reconciliação new age (o termo se deve, com alguma ironia, a essa influência do cinema oriental) com a ordem do mundo a partir da potência do indivíduo. Tem até crítico e cineasta por aí que fazem elogios à ingenuidade/ignorância como “elemento político”.

T:Os Residentes é um filme de depois das vanguardas que tenta repotencializar alguma coisa (a começar da premissa de que a arte não se concebe sem violento militantismo estético), mas que também repete a história como farsa. A vanguarda é também um gênero, uma escolha ética e estética sim, um modo de vida (uma aventura estético-ideológica), mas também um gênero que se constrói ao longo do modernismo. E que se esgota e morre com o modernismo, a princípio, porque o fundamental não é fazer uma obra de vanguarda, o gênero aí está para ser trabalhado, mas fazer uma obra para um público e uma crítica que sejam de vanguarda. Não dá para fazer obra de vanguarda sem público e crítica de vanguarda que a ressoem. Da mesma forma, o cinema de invenção: ele pertence a uma época em que se pretendia mudar a um só tempo o cinema e a sociedade, e a época ressoava esse gesto, tornava-o orgânico. Mas como fazer cinema de invenção em uma época em que predomina o mais estrito pragmatismo? Ok, a época está mudando, tenho a esperança de estarmos vivendo uma cisão neste exato momento. Em Os Residentes, a proposta era fazer das filmagens a possibilidade temporária de uma revolução na vida cotidiana – potencialmente, toda filmagem é ou deveria ser assim. Nossa intenção era criar uma possibilidade de utopia ao menos durante o encontro das filmagens, envolver a equipe em um pequeno complô lunático, fazer da casa em que filmávamos uma verdadeira zona autônoma temporária, reinventando o mundo a partir da reatualização das forças de embriaguez revolucionárias do passado – uma história (para lembrar Benjamin), em que o atual se move na selva do outrora e o passado está carregado do agora. Enfim, não propriamente um cinema de invenção, mas a invenção através do cinema, temporária, perecível, não propriamente uma utopia, mas algo como uma utopia portátil. Há no filme uma abordagem contraditória que resulta do convívio da possibilidade com a impossibilidade de se recuperar velhos sentimentos, velhas paixões. O sentido de urgência: não há o que esperar, é preciso que haja um presente puro para aarte, o combate artístico contra a esclerose e a morte. A esclerose dos mercados, para começar: em sua zona autônoma, os residentes forjam uma nova economia vital, tentam restituir a arte à vida, fazem circular signos e representações por aquele espaço, temporariamente, e acabam caindo no mesmo erro daquela mesma economia que recusavam, elevando o excesso e o desperdício à condição de princípio. As vanguardas pertencem a um sentimento do século 20, a “paixão pelo real” (Badiou). As vanguardas, seus manifestos, uma violenta tensão visando sujeitar o real a todos os poderes da forma. Uma revolução sensível, várias, em meio à busca ativa pelo homem novo, essa utopia permanente do século sob a qual correram muitos rios de sangue – e de tinta… As primeiras vanguardas eram grupos que se decidiam em um presente, que proclamavam violentamente o presente da arte, diziam “nós começamos”, e esse começo era sempre uma presentificação intensa da arte. Um presente puro. Com o passar do século, as novas vanguardas se viram repetindo nesse eterno recomeço, essa eterna manhã. Toda nova vanguarda que surgia a partir dos anos 50/60 tinha que se anunciar, doravante, como a própria morte da vanguarda. O fim da vanguarda, a superação do artista, a diluição da arte na vida deviam começar pelo suicídio da vanguarda, uma consciência adquirida. As novas vanguardas se faziam solenes, patéticas, desesperadas, mas sem perder a ironia jamais, teatralizando a sua própria morte comosedo último e supremo gesto vanguardista se tratasse. Em parte, para as vanguardas, a história se repetia como farsa. De outra parte, as novas vanguardas, as verdadeiras, conseguiram reatualizar o gesto de ruptura inicial das vanguardas históricas, repotencializá-los a ponto de consumar-lhes os projetos. No filme, acho que essas duas tendências estão presentes: a ideia da greve da arte pode ser vista tanto como uma farsa quixotesca (como os manifestos neoístas, que reduziam as vanguardas a um discurso vazio, a um beco sem saída retórico), quanto como uma reatualização do situacionismo, uma tentativa de repotencializar o gesto crítico debordiano na era da arte contemporânea.

F: Utopia, como sabemos, não é um lugar a se chegar (a “Topia” seria esse lugar pleno e sem contradições), mas um horizonte necessário para a aventura humana. Por isso essa imagem da “utopia portátil” é formidável, porque coloca em crise o projeto utópico (a ressignificação desse projeto, na verdade) a partir do que parece uma reprise das vanguardas: os seus dois filmes parecem se erigir em cima das ruínas que o século 20 nos deixou e ruínas no sentido benjaminiano. O que me faz pensar em Walter Benjamin é o fato de ele partir das ruínas da história (ou da história como ruína) como uma possibilidade de pensar o “movimento” da história, mas a história a partir da contingência (não da universalidade) e do alegórico que, diferente do simbólico, precisa sempre ser novo e encontra seus infinitos sentidos na sua morte e na sua descontextualização. Os Residentes fala de política e ideologia, mas para chegar aí fala de arte, das representações do mundo. Existe a consciência desse mundo forjado por regimes estéticos, de transformação da vida num experimento estético, tudo é representação de algo que “foi”. É um mundo de construção, não de ontologia, por isso é possível inverter papéis e reconfigurá-los, recriar espaços. A matéria com que os personagens trabalham são “destroços ideológicos” e, a partir desses destroços, já não é mais possível um certo tipo de ação (como em Rossellini e Fuller), mas a sua representação, seja nas barricadas imaginárias dos personagens que jogam pedras e bombas invisíveis, seja no próprio conceito de um coletivo criativo.

Você (como discurso) questiona a obsessão pelo real e pelo naturalismo do cinema brasileiro, e como resposta a isso (e posicionamento) investe em um cinema que, como você mesmo já disse, é impuro porque tem em sua tessitura elementos de outras modalidades de arte, sobretudo artes plásticas. Nisso a contribuição da artista plástica Cinthia Marcelle parece fundamental, porque há sequências em que seu filme dialoga (e integra) direta e abertamente com os trabalhos dela.

T: Acredito que quando duas pessoas não sucumbem à ilusão de que os laços que as unem as tornaram uma só pessoa, essas duas pessoas são capazes de inventar um mundo novo entre si. O mundo é sempre o que está entre as pessoas e é por isso que nossa comunidade-por-vir começava necessariamente, no filme, pelo casal. O filme é, em grande parte, fruto do diálogo criativo que marcou o início de minha relação com Cinthia. Ela talvez nem tenha se dado conta, mas era a verdadeira artista sequestrada da história. Por mais de dois meses, consegui retirá-la do mercado de arte. A ideia de greve da arte, que eu vejo como central ao filme, veio como uma crítica de viés debordiano a um sistema de arte que transforma artistas criativos como Cinthia em uma espécie de experimentadores profissionais a serviço da esteira de produção que serve aos sentidos. Estamos em um momento em que o mercado de cinema parece caducar diante dessa perfeita amálgama do capitalismo avançado que se tornou o mercado de arte. O cinema é cada vez mais anexado ao grande museu de arte contemporâneo. Por mais que desprezem esse novo mercado, os cineastas não podem deixar de invejar a liberdade da arte contemporânea (ainda que dificilmente a entendam), que é, em última instância, a liberdade de circulação do grande capital, seu excedente. Estamos falando de uma espécie de capital art em que o artista deve provar sua capacidade de produção, tornar-se uma espécie de empresário, gerenciar “times de trabalho” e aceitar que o seu nome se torne uma espécie de marca. No espírito vanguardista de arte diluída na vida, fomos buscar uma linha de fuga para essa situação claustrofóbica. Essa linha de fuga acaba, no filme, com os personagens em meio à natureza, seguindo um pouco o percurso dos últimos vanguardistas (como Beuys e os neoconcretos), cuja arte passou, em determinado instante, a nutrir pretensões terapêuticas e xamânicas. Uma fase, nos 70, em que essa tentativa de diluição da arte na vida flerta com o sentido religioso, que eu vejo sobretudo como uma tentativa de, no embate contra a institucionalização crescente da arte (hoje consumada), recuperar o valor e a função terapêutica (transcendental) da arte. A verdadeira arte sempre foi uma sublimação do sofrimento humano, sempre teve uma função terapêutica e didática para a existência humana. A verdadeira arte nos serve de alimento, nos ajuda a viver. Um bom romance, um bom filme, me são essenciais para tocar a vida. Não se trata de autoajuda, mas da arte como um alimento psíquico – a própria psicanálise nasceria daí, como fruto e evolução mais racionalizada da terapia estética, das tragédias gregas, de Shakespeare. No desespero das vanguardas em seu lema da diluição da arte na vida havia ainda um pouco o resquício dessa vontade de verdadeira arte frente à museificação e institucionalização da arte. Hoje, a instituição de arte venceu e a arte (contemporânea) se resume cada vez mais a um mecanismo de distração e produção de sensações supérfluas e inócuas que não (re)ligam nada e que alimentam mais o capital (como mercadoria que encarna o excedente do capital para colecionadores/investidores) do que as pessoas – como são representantes e empregados das instituições, os curadores, que ditam a cultura da arte contemporânea, as regras, tendem naturalmente a condenar qualquer resquício dessa antiga ambição artística hoje, tornando-a histórica.

A ideia da greve de arte também vem da noção de que o verdadeiro gesto de resistência hoje está em afirmar não aquilo que podemos fazer, mas aquilo que podemos não fazer. Enquanto as democracias modernas nos impelem a tudo fazer e a crer em nossas capacidades (do “just do it” ao “yes, wecan”), todo o maldito imperativo da produção, é a possibilidade do não fazer que deve redefinir o estatuto de nossas ações. Essa é uma ideia que retiro de Agamben: “Aquele que é separado do que pode fazer, pode ainda resistir, não fazendo. Aquele que é separado da sua impotência perde, em contrapartida, antes de tudo, a capacidade de resistir. E como é somente a calcinante consciência do que não podemos ser que garante a verdade do que somos, assim é somente a visão lúcida do que não podemos ou podemos não fazer a dar a consistência ao nosso agir”.

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