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F: Quero começar abordando o contexto histórico e social em que seu filme existe, porque ele tem sido alvo de críticas que não se relacionam com o que ele efetivamente propõe, mas sim críticas que quase reclamam que o filme é de uma maneira que “não se deve ser”. O seu filme estimulou um tipo de situação interessante entre críticos, jornalistas, público e outros realizadores que o viram e com os quais eu conversei. Foi um estranhamento geral, o que não é novidade para filmes – como Os Residentes –que divergem de tendências muito em voga no cinema contemporâneo, ou que não se relacionam de maneira muito óbvia com a tradição. Não houve resistência, por exemplo, à rarefação dos filmes O céu sobre os ombros e Transeunte, nem à extravagância infantilóide e reacionária de A Alegria. As “estranhezas” desses filmes não são estranhezas, são códigos absolutamente subjetivados entre a crítica e certo tipo de público, um público/crítica que despreza propostas estéticas mais desbocadas (José Mojica Marins, por exemplo), mas também recusa coisas mais sofisticadas (os filmes do Júlio Bressane, por exemplo). Partidários (para usar um termo de Ruy Garnier) do “meio-termo aguado”. O máximo de transgressão que permitem são os filmes dos ditos “cinemas de arte”. O seu filme se chocou contra essa cultura do “meio-termo aguado”. Foi rechaçado por alguns por má vontade, recalque e ignorância pura e simples. Outros talvez não tenham falado mal, mas lhes faltourepertório (para entender o que realmente está implicado no filme) e curiosidade (para se deixar provocar pelo filme).
T: Devo dizer que o embate com essa cultura que rege o cinema brasileiro hoje me foi fundamental. Me colocar como uma voz dissidente, assumidamente minoritária, fez a minha força. As reações contrárias serviram para fortalecer algumas convicções, os inimigos fizeram o combate valer a pena. A princípio, a minha situação era mais ou menos a mesma da de meus personagens. Uma fragilidade algo quixotesca. Meu filme era uma aposta em um leitor que ainda estava por vir e que talvez nem existisse, como aquelas cartas que Quixote escrevia para a sua Dulcineia e pedia para Sancho entregar, uma carta de amor escrita para uma amante imaginária, em uma linguagem que esta, se existisse, talvez não compreendesse, carta que talvez nem chegasse a um destinatário, que talvez nem fosse entregue, nem lida, muito menos entendida. Aos poucos, comecei a encontrar os meus leitores. Encontrei as minhas Dulcineias e também os meus moinhos de vento: desde o princípio, é verdade, eu sabia que o pequeno complô lunático de meus personagens era também um complô (nosso) contra o cinema brasileiro, uma forma de afirmar a liberdade de expressão e de invenção em um momento em que imperavam as cartilhas dosavoir-fairee regras de conduta de toda espécie, toda uma ordem simbólica (essa espécie de constituição não escrita da vida em sociedade).
F: Mas esses problemas não são de formação, não são só problemas da nossa cultura brasileira. São problemas geracionais. Hoje a provocação estética e a transgressão precisam vir com manual de instruções. As pessoas se deixam provocar na medida em que possuem uma leitura satisfatória para essa provocação, na medida em que podem “domesticar” essa provocação. Antigamente as provocações pareciam funcionar melhor porque os interlocutores dos filmes (sejam ou mais conservadores ou os mais liberais) tinham convicções mais sólidas. Hoje, quais são as convicções? Aceitar as ideias ou valores que se vendem de modo mais convincente segundo certa pauta de flexibilidade de valores. É omarketingintelectual e cultural. Se não fosse por outras qualidades, Os Residentes já valeria por desvelar a fragilidade da subjetividade dessa cultura (não só de cinema) que temos não só no Brasil, mas na contemporaneidade; a impostura dos discursos e a disseminação de uma ignorância arrogante, que não entende as coisas e por isso diz que elas “não importam”.
T: A reação ao meu filme não se deu apenas por ele ter quebrado as regras estéticas vigentes (a verossimilhança para o cinemamainstream, a rarefação para o cinema emergente, os novos efeitos de realidade). Essas regras estéticas implicam também normas de conduta: todas as críticas que me foram dirigidas vinham acompanhadas de comentários personalistas, notas sobre o meu comportamento nos debates, as reportagens até mais do que as críticas, até mesmo os prêmios que recebi vieram acompanhados de ressalvas assim, sobre a minha conduta (eu que sempre fui tão discreto). Essa é para mim uma prova de que estamos falando de um espaço simbólico com limites claros, uma estrutura.
F: Bem, não era de se estranhar esse tipo de mal-estar dos “guardiões da cultura”. Guardiões não pensam, mas “guardam”, precisam de normas e manual de instrução.
T: É um pouco aquela história: a cultura é a regra e é da natureza da regra ir contra a exceção. Se o cinema brasileiro vai mal, isso se deve muito à cultura que o gera e alimenta. Um espaço simbólico protagonizado por críticos zelosos de sua autoridade, cineastas zelosos de sua carreira, produtoras truculentas, repórteres aduladores e eminências pardas que legitimam ou deslegitimam projetos em suas vastas zonas de influência. Um ambiente propício ao arrivismo e ao darwinismo social, como tudo mais no Brasil. O jovem cineasta emergente que cuida de dar os passos certos para se inserir no mercado de festivais do dito cinema contemporâneo não difere muito, nesse sentido, do cineasta mainstream que se quer provar à altura dos padrões do mercado internacional. Ambos os nichos seguem estratégias de inserção. Todos seguem regras que são, antes de tudo, regras de conduta. Há demasiado cálculo nas ações dos cineastas brasileiros, o que impede o surgimento espontâneo de um verdadeiro cinema. Há demasiada ambição, mas não a ambição de explorar toda a riqueza de possibilidades do dispositivo cinematográfico em suas relações simbólicas com o real. É bem previsível afinal que, nesse contexto, um filme escalafobético como Os Residentes seja visto como uma provocação indesculpável. Um filme que vai contra todas as regras do como-se-deve-fazer-para-continuar-uma-carreira-promissora, que não segue cartilha nenhuma. Além do mais, um trabalho cheio de convicção e pretensões estético-existenciais, tudo o que os agentes culturais brasileiros mais abominam. Os cineastas brasileiros hoje, inclusive e especialmente os do dito novíssimo cinema brasileiro, dividem-se, para mim, entre aqueles poucos que se arriscam de verdade em nome da experiência cinematográfica e os que só fazem cálculos para a carreira. O gesto cinematográfico que eu acredito hoje é aquele que começa não sendo um gesto calculado de carreira, demasiado estratégico de partida, um passo seguro em uma carreira bem administrada. Um verdadeiro gesto de risco hoje começa por colocar em risco a carreira daquele que nele se lança. Entre os jovens realizadores há também os administradores, aqueles que cuidam de dar passos seguros na carreira, mas, de uma forma geral, ainda há uma saudável dose de amadorismo no novíssimo e é desse amadorismo que devemos cuidar frente ao profissionalismo de estampa do cinema mainstream brasileiro. Estamos mesmo aqui nos antípodas da estética da fome (Ivana Bentes falou em cosmética): tudo o que parece importar aos cineastas de carreira é provar que são capazes de fazer cinema “como os outros”, mostrar certo padrão de qualidade, certa eficiência na emulação do cadáver do cinema clássico, seu modelo vazio estandardizado, para adquirir no mercado internacional uma carta de habilitação que lhes permita servir de capatazes em produções hollywoodianas ou grandes coproduções internacionais. Diante desse profissionalismo, que resulta em filmes não apenas padronizados e sem personalidade (ética e estética), mas também sem verdadeiro caráter ou convicção, é inevitável falarmos em nome do verdadeiro cinema nacional e evocarmos as potências do inigualável amadorismo cinematográfico brasileiro, cantar a impureza e o excesso, celebrar o tosco e o primitivo (ir de Glauber a Candeias, ou mesmo da chanchada à pornochanchada). É preciso fazer do amadorismo uma reserva utópica. Diante dos profissionais, esses cineastas do selo de qualidade, que se pretendem mais sérios e mais adultos, sejamos as crianças que levam o jogo cinematográfico até o fim. Qualquer criança sabe que brincar é mais nobre do que trabalhar.
F: Me parece que a crítica (ou os críticos) e os cineastas sofrem da seguinte questão: o que afirmar para além da constatação de sintomas? Não se trata de ser contra o plano-sequência, o plano tableau, contra o documentário, contra o cinema de gênero ou contra certo tipo de plasticidade das imagens, mas sim de questionar as implicações de certo uso recorrente de procedimentos, códigos, elementos formais. E que implicações seriam essas? Meramente formais? Não. Mas sim éticas (o que propõem efetivamente como sistema de valores) e morais (o que afirmam em seus procedimentos), não no sentido de fazer um policiamento pelo bom uso dos procedimentos artísticos, mas sim de tentar entender o que esses filmes estão dizendo (mostrando). Esses filmes – como sujeito, não como objeto –, o que estariam dizendo acerca do mundo em que vivemos? O que estariam propondo além do diagnóstico de “sintomas” da contemporaneidade? Sempre usei a metáfora do legista para entender certo estado-limite do crítico de cinema, mas hoje serve também para os cineastas. Um legista trabalha sobre um corpo morto: abre, disseca, separa e distingue, dá nomes aos orgãos, reconhece-os e inclusive consegue dizer com mais precisão a causa mortis. O legista não precisa de um sujeito, mas de um cadáver. O legista seria capaz de falar sobre o estado de um corpo e do mal que poderia ter-lhe tirado a vida, mas não sobre seu espírito, seus conflitos, seus ódios e seus amores, coisas que inclusive poderiam ter contribuído para o agravamento de seu estado de saúde. Rabelais era médico aparentemente competente e sacerdote católico medíocre, segundo relatos, mas foi como escritor que se destacou, justamente porque foiassim que conseguiu dizer coisas de que a ciência e a religião não davam conta. ArthurSchnitzlerera a mesma coisa: um médico que com a literatura buscou entender enfermidades da alma de um sujeito, de uma classe social, de uma época… Estamos na contramão disso: muitos críticos e acadêmicos de cinema agem menos como escritores e mais como legistas na busca do conhecimento acerca do que constitui as obras artísticas e o “espírito” de nossa época. Como se fossem falar sobre o amor dissecando um coração, como se fossem falar sobre o ódio tentando entender o funcionamento da produção de bílis no fígado. Eu entendo que a maior parte dos filmes hoje parece não conseguir dizer muita coisa sobre o mundo em que vivemos e entendo que esses pesquisadores de cinema que deixaram de acreditar no cinema (viúvas do cinema moderno) venham se aproximar de outros fenômenos ligados às experiências com imagens hoje, seja em nível tecnológico, social, midiático… Me parece que muitos transferiram o anseio de intervenção histórica que o cinema (e a crítica) moderno propunha, para outras coisas que estão bem aquém do cinema. A diferença é que no cinema moderno os fenômenos eram os grandes filmes, hoje vem a ser qualquer coisa: vídeodeYoutube, programas de auditório, experiências de oficina de cinema… Seráque realmente os filmes nada têm a dizer? Será que vivemos em um período de afasia e derrota total do cinema? Ou será que as ferramentas de nossos críticos, teóricos e pesquisadores estão obsoletas? Será que essa atitude de estudar os fenômenos existentes e autônomos (inclusive nos filmes), em detrimento de uma reflexão arriscada, propositiva, que vise algo para além da hermenêutica elementar, não seria traço de nossa época pragmática, metódica e funcional? Não seria a maneira de olhar as coisas que teria de mudar, mas sim o modo de falar dessas coisas? Você deve concordar comigo: podemos até ler textos por aí com cacife intelectual, mas que são tão melindrados nos seus posicionamentos que ficamos sem saber ao certo o que o escriba achou do filme. Artigos e textos que parecem trabalhos escolares, relatórios de legistas (para voltar à metáfora). Vejo método, vejo pesquisa, embasamento, mas não ouço (leio) a voz do escriba. Ora, o estilo seria não só a voz, mas a dicção do crítico, onde eu sentiria, para além de todo o seu esforço de embasamento, sua afirmação, seus ódios e seus amores, seus desejos e sua recusa, e por meio disso, entraria em contato com esse olhar sobre o filme, sobre o mundo. Li outro dia um texto do crítico Luiz Carlos Oliveira Júnior em que critica duramente Viajo porque preciso volto porque te amo e que no fim cita uma entrevista com Marguerite Duras em 1980, no qualela falava mais ou menos isso que concluí aqui, no sentido em que ela vê (e eu também vejo) nessa afasia a perda de sentido político. Transcrevo: “Para mim a perda política é antes de tudo a perda de si, a perda de sua cólera, assim como a de sua doçura, a perda de seu ódio, de sua faculdade de odiar, assim como a de sua faculdade de amar, a perda de sua imprudência, assim como a de sua moderação, a perda de um excesso, assim como a perda de uma medida, a perda da loucura, de sua ingenuidade, a perda de sua coragem como a de sua covardia, a de seu terror diante de tudo, assim como a de sua confiança, a perda de suas lágrimas, assim como a de seu prazer (…). Marguerite Duras, “La perte politique”, Cahiers du Cinéma nº 312-313, junho de 1980)”.
T: Um aforismo de Karl Kraus, o mestre de Brecht e Benjamin: “O político é alguém metido na vida, não se sabe onde. O esteta é alguém que quer fugir da vida, não se sabe para onde”. Os Residentes é um filme de personagens que fugiram da vida, não se sabe para onde – “A verdadeira vida está ausente. Não estamos no mundo” (Rimbaud). Em que pé eles ainda estão metidos nesta vida, é preciso pensar e é algo que tem a ver com os limites e possibilidades de se fazer cinema de invenção hoje em dia. Se o filme vacila em sua busca por uma ruptura, se ele demonstra às vezes uma consciência demasiada de si mesmo e da possibilidade de a história se repetir como farsa, é por conta disso.
F: Os Residentes é um filme sobre arte e estética que busca se relacionar frontal e organicamente com isso, mas ao mesmo tempo desvela o limite dos conceitos de arte e estética. Acho queestá claro que não é uma ode às vanguardas, mas uma reatualização dos princípios vitais das vanguardas, que existe no filme mais como gesto do que como programa (o que é fundamental). Acho um gesto político fundamental o filme afirmar a potência da arte em causar um estranhamento a partir do que propõe como reorganização/destruição do mundo. O filme é o luto das vanguardas, mas ao mesmo tempo a relativização desse luto. Ele ri do luto. Não há mais espaço ou solenidade para chorar esse luto, pois o tipo de lamentação decadente do fracasso da reinvenção da sociedade (em sua destruição criativa) trai essencialmente esse projeto moderno de reinvenção permanente. Por isso, a intervenção da personagem mais misteriosa do filme (a artista que passa boa parte do tempo amarrada e vendada no banheiro) no discurso de um personagem – uma espécie de mecenas do grupo – sobre Robespierre é justamente um choque de agressividade sarcástica, porém verdadeira, com ojeriza a “discursos codificadores e doutrinadores”. Ela “caga” no “sermão” (“chupa a minha boceta”, “enfia esse projeto no cu”) que esse personagem dá ao grupo de artistas-guerrilheiros, ridiculariza o exerciciozinho de poder de Andru (o tal mecenas) e o constrangimento geral do grupo. Contra o discurso, que denota um tipo de poder, o gesto. Se todo discurso tem promessas de reconciliação futura, o gesto em si é urgente e desestabilizador. Os Residentes é um filme cheio dessas rachaduras nos discursos a partir de um gesto (puro, duro, direto) que problematiza o que estamos vendo, coloca em perspectiva, estabelece uma crise. Você falou das artes plásticas, mas eu coloco o cinema em questão, porque o cinema – pelo menos o nosso aqui no Brasil – vê as coisas na esfera de “sensibilidade”, uma espécie de reconciliação new age (o termo se deve, com alguma ironia, a essa influência do cinema oriental) com a ordem do mundo a partir da potência do indivíduo. Tem até crítico e cineasta por aí que fazem elogios à ingenuidade/ignorância como “elemento político”.
T:Os Residentes é um filme de depois das vanguardas que tenta repotencializar alguma coisa (a começar da premissa de que a arte não se concebe sem violento militantismo estético), mas que também repete a história como farsa. A vanguarda é também um gênero, uma escolha ética e estética sim, um modo de vida (uma aventura estético-ideológica), mas também um gênero que se constrói ao longo do modernismo. E que se esgota e morre com o modernismo, a princípio, porque o fundamental não é fazer uma obra de vanguarda, o gênero aí está para ser trabalhado, mas fazer uma obra para um público e uma crítica que sejam de vanguarda. Não dá para fazer obra de vanguarda sem público e crítica de vanguarda que a ressoem. Da mesma forma, o cinema de invenção: ele pertence a uma época em que se pretendia mudar a um só tempo o cinema e a sociedade, e a época ressoava esse gesto, tornava-o orgânico. Mas como fazer cinema de invenção em uma época em que predomina o mais estrito pragmatismo? Ok, a época está mudando, tenho a esperança de estarmos vivendo uma cisão neste exato momento. Em Os Residentes, a proposta era fazer das filmagens a possibilidade temporária de uma revolução na vida cotidiana – potencialmente, toda filmagem é ou deveria ser assim. Nossa intenção era criar uma possibilidade de utopia ao menos durante o encontro das filmagens, envolver a equipe em um pequeno complô lunático, fazer da casa em que filmávamos uma verdadeira zona autônoma temporária, reinventando o mundo a partir da reatualização das forças de embriaguez revolucionárias do passado – uma história (para lembrar Benjamin), em que o atual se move na selva do outrora e o passado está carregado do agora. Enfim, não propriamente um cinema de invenção, mas a invenção através do cinema, temporária, perecível, não propriamente uma utopia, mas algo como uma utopia portátil. Há no filme uma abordagem contraditória que resulta do convívio da possibilidade com a impossibilidade de se recuperar velhos sentimentos, velhas paixões. O sentido de urgência: não há o que esperar, é preciso que haja um presente puro para aarte, o combate artístico contra a esclerose e a morte. A esclerose dos mercados, para começar: em sua zona autônoma, os residentes forjam uma nova economia vital, tentam restituir a arte à vida, fazem circular signos e representações por aquele espaço, temporariamente, e acabam caindo no mesmo erro daquela mesma economia que recusavam, elevando o excesso e o desperdício à condição de princípio. As vanguardas pertencem a um sentimento do século 20, a “paixão pelo real” (Badiou). As vanguardas, seus manifestos, uma violenta tensão visando sujeitar o real a todos os poderes da forma. Uma revolução sensível, várias, em meio à busca ativa pelo homem novo, essa utopia permanente do século sob a qual correram muitos rios de sangue – e de tinta… As primeiras vanguardas eram grupos que se decidiam em um presente, que proclamavam violentamente o presente da arte, diziam “nós começamos”, e esse começo era sempre uma presentificação intensa da arte. Um presente puro. Com o passar do século, as novas vanguardas se viram repetindo nesse eterno recomeço, essa eterna manhã. Toda nova vanguarda que surgia a partir dos anos 50/60 tinha que se anunciar, doravante, como a própria morte da vanguarda. O fim da vanguarda, a superação do artista, a diluição da arte na vida deviam começar pelo suicídio da vanguarda, uma consciência adquirida. As novas vanguardas se faziam solenes, patéticas, desesperadas, mas sem perder a ironia jamais, teatralizando a sua própria morte comosedo último e supremo gesto vanguardista se tratasse. Em parte, para as vanguardas, a história se repetia como farsa. De outra parte, as novas vanguardas, as verdadeiras, conseguiram reatualizar o gesto de ruptura inicial das vanguardas históricas, repotencializá-los a ponto de consumar-lhes os projetos. No filme, acho que essas duas tendências estão presentes: a ideia da greve da arte pode ser vista tanto como uma farsa quixotesca (como os manifestos neoístas, que reduziam as vanguardas a um discurso vazio, a um beco sem saída retórico), quanto como uma reatualização do situacionismo, uma tentativa de repotencializar o gesto crítico debordiano na era da arte contemporânea.
F: Utopia, como sabemos, não é um lugar a se chegar (a “Topia” seria esse lugar pleno e sem contradições), mas um horizonte necessário para a aventura humana. Por isso essa imagem da “utopia portátil” é formidável, porque coloca em crise o projeto utópico (a ressignificação desse projeto, na verdade) a partir do que parece uma reprise das vanguardas: os seus dois filmes parecem se erigir em cima das ruínas que o século 20 nos deixou e ruínas no sentido benjaminiano. O que me faz pensar em Walter Benjamin é o fato de ele partir das ruínas da história (ou da história como ruína) como uma possibilidade de pensar o “movimento” da história, mas a história a partir da contingência (não da universalidade) e do alegórico que, diferente do simbólico, precisa sempre ser novo e encontra seus infinitos sentidos na sua morte e na sua descontextualização. Os Residentes fala de política e ideologia, mas para chegar aí fala de arte, das representações do mundo. Existe a consciência desse mundo forjado por regimes estéticos, de transformação da vida num experimento estético, tudo é representação de algo que “foi”. É um mundo de construção, não de ontologia, por isso é possível inverter papéis e reconfigurá-los, recriar espaços. A matéria com que os personagens trabalham são “destroços ideológicos” e, a partir desses destroços, já não é mais possível um certo tipo de ação (como em Rossellini e Fuller), mas a sua representação, seja nas barricadas imaginárias dos personagens que jogam pedras e bombas invisíveis, seja no próprio conceito de um coletivo criativo.
Você (como discurso) questiona a obsessão pelo real e pelo naturalismo do cinema brasileiro, e como resposta a isso (e posicionamento) investe em um cinema que, como você mesmo já disse, é impuro porque tem em sua tessitura elementos de outras modalidades de arte, sobretudo artes plásticas. Nisso a contribuição da artista plástica Cinthia Marcelle parece fundamental, porque há sequências em que seu filme dialoga (e integra) direta e abertamente com os trabalhos dela.
T: Acredito que quando duas pessoas não sucumbem à ilusão de que os laços que as unem as tornaram uma só pessoa, essas duas pessoas são capazes de inventar um mundo novo entre si. O mundo é sempre o que está entre as pessoas e é por isso que nossa comunidade-por-vir começava necessariamente, no filme, pelo casal. O filme é, em grande parte, fruto do diálogo criativo que marcou o início de minha relação com Cinthia. Ela talvez nem tenha se dado conta, mas era a verdadeira artista sequestrada da história. Por mais de dois meses, consegui retirá-la do mercado de arte. A ideia de greve da arte, que eu vejo como central ao filme, veio como uma crítica de viés debordiano a um sistema de arte que transforma artistas criativos como Cinthia em uma espécie de experimentadores profissionais a serviço da esteira de produção que serve aos sentidos. Estamos em um momento em que o mercado de cinema parece caducar diante dessa perfeita amálgama do capitalismo avançado que se tornou o mercado de arte. O cinema é cada vez mais anexado ao grande museu de arte contemporâneo. Por mais que desprezem esse novo mercado, os cineastas não podem deixar de invejar a liberdade da arte contemporânea (ainda que dificilmente a entendam), que é, em última instância, a liberdade de circulação do grande capital, seu excedente. Estamos falando de uma espécie de capital art em que o artista deve provar sua capacidade de produção, tornar-se uma espécie de empresário, gerenciar “times de trabalho” e aceitar que o seu nome se torne uma espécie de marca. No espírito vanguardista de arte diluída na vida, fomos buscar uma linha de fuga para essa situação claustrofóbica. Essa linha de fuga acaba, no filme, com os personagens em meio à natureza, seguindo um pouco o percurso dos últimos vanguardistas (como Beuys e os neoconcretos), cuja arte passou, em determinado instante, a nutrir pretensões terapêuticas e xamânicas. Uma fase, nos 70, em que essa tentativa de diluição da arte na vida flerta com o sentido religioso, que eu vejo sobretudo como uma tentativa de, no embate contra a institucionalização crescente da arte (hoje consumada), recuperar o valor e a função terapêutica (transcendental) da arte. A verdadeira arte sempre foi uma sublimação do sofrimento humano, sempre teve uma função terapêutica e didática para a existência humana. A verdadeira arte nos serve de alimento, nos ajuda a viver. Um bom romance, um bom filme, me são essenciais para tocar a vida. Não se trata de autoajuda, mas da arte como um alimento psíquico – a própria psicanálise nasceria daí, como fruto e evolução mais racionalizada da terapia estética, das tragédias gregas, de Shakespeare. No desespero das vanguardas em seu lema da diluição da arte na vida havia ainda um pouco o resquício dessa vontade de verdadeira arte frente à museificação e institucionalização da arte. Hoje, a instituição de arte venceu e a arte (contemporânea) se resume cada vez mais a um mecanismo de distração e produção de sensações supérfluas e inócuas que não (re)ligam nada e que alimentam mais o capital (como mercadoria que encarna o excedente do capital para colecionadores/investidores) do que as pessoas – como são representantes e empregados das instituições, os curadores, que ditam a cultura da arte contemporânea, as regras, tendem naturalmente a condenar qualquer resquício dessa antiga ambição artística hoje, tornando-a histórica.
A ideia da greve de arte também vem da noção de que o verdadeiro gesto de resistência hoje está em afirmar não aquilo que podemos fazer, mas aquilo que podemos não fazer. Enquanto as democracias modernas nos impelem a tudo fazer e a crer em nossas capacidades (do “just do it” ao “yes, wecan”), todo o maldito imperativo da produção, é a possibilidade do não fazer que deve redefinir o estatuto de nossas ações. Essa é uma ideia que retiro de Agamben: “Aquele que é separado do que pode fazer, pode ainda resistir, não fazendo. Aquele que é separado da sua impotência perde, em contrapartida, antes de tudo, a capacidade de resistir. E como é somente a calcinante consciência do que não podemos ser que garante a verdade do que somos, assim é somente a visão lúcida do que não podemos ou podemos não fazer a dar a consistência ao nosso agir”.