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Com Yuri Firmeza, Pierre Clastres, Oswald de Andrade, Eduardo Viveiros de Castro, Ludwig Wittgenstein, Hélio Oiticica, Giorgio Agamben, Sigmund Freud, Paul Valéry, Jacques Ranciere.
Beijo de maçã
Permitir o risco da reciprocidade: eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança. Amor pelo outro não é mantê-lo a salvo. Tampouco é devorá-lo para tê-lo cá dentro. Amor maior pelo outro é comê-lo para estabelecer o direito à vingança, eterna procura de uns pelos outros. Te como pra que você me coma pra que eu te coma pra você me comer. Ódio e amor se confundem.
Pedra na cabeça
Alteridade como fenômeno topológico da linguagem, não substancial: cortar, não fazer equivaler. Palavras, imagens e sentidos não se igualam. Eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança. Não prover ao outro uma interpretação de mundo, sequer plasmar-lhe um mundo para sua interpretação. Experimentá-lo como o fora, zona de ignorância. Ambiguidades de linguagem como participação do espectador, compulsória generosidade da arte.
Arrastar o corpo
Eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança. Ninguém é humano quando nasce: é preciso fazer-se humanos através dos outros, pelas mãos dos outros humanos, pelo uso que nos dão no seio da humanidade. Incessantemente. Se a profanação – colocação em uso – é pedra fundamental do humanizável, toda humanização deverá passar pela economia do valor de uso: regresso de deus à horda, do pai à condição de filho. Contínua transformação do tabu em totem.
Tijolo ao chão
Linguagem é superfície, pele da humanidade, o que temos de mais profundo. Nela, tudo está disponível porque nada está posto; o possível sempre supera a impossibilidade. Não há nada de errado na linguagem, desde que não se queira fazer equivaler palavras, imagens, sentidos. Eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança. Manter a linguagem em descolamento perpétuo: unir cacos não é função da arte ou da crítica. No terreno da ambiguidade, a tarefa é continuar mudando o valor das coisas.
Olhar vago
Positivação da superfície face à profundidade meritocrática: continuar fazendo nada de peito aberto. Gerúndio existencial do estando contra o afirmativo retórico do ser. Para além dos tabus das disjunções exclusivas (ou eu, ou o outro) e do imperativo categórico (colonização da liberdade pela reciprocidade entre eue outro): eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança.
Olhar cruzado
Mastigar dois olhos e deixá-los mastigar os teus, até que se possa descoincidir o ponto de fuga: desestabilização da fixidez pela devoração do outro. Desconjuntamento do regime óptico-ético unidirecional do cinema: há verdade em todos os lados do corpo e da questão. Eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança. Ambivalência originária: outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos.
Querer fazer parecer que chora
Fingir não é propor engodos, mas elaborar estruturas inteligíveis. Não há razão ou erro na linguagem. Não querer fazer coincidir palavras com imagens, com sentidos: manter aceso o conflito que desapareceria na realização utópica. Eu confio em você, mas talvez eu não seja de confiança. Ambivalência e contradição. Contra a síntese, morte e vida das hipóteses.
Sombra-cartaz
Outras dimensões se revelam na projeção na tela: a sombra do corpo é forma, não luz narrativa. Há todo um mundo por detrás, que talvez seja de confiança.