– sensacional… Caos e Efeito.
– qual das obras?
– era uma cena dele com ele transando, tipo um artista se amando, sabe?
– mas como ele conseguiu fazer isso?
– uma montagem, sei lá… como a Globo faz a gêmeas, a Glória Pires ser duas, entendeu?
– ah, mas é uma coisa tecnológica.
– é, uma coisa tecnológica, ele pelado transando afu com ele mesmo… gente, era sensacional… tipo, ele pelado e ele também atrás, no cu, era bem explícito, o pau era dele…
– mas é uma ideia afudê.
– era sexo.
– pornográfico.
– pornográfico.
– um novo degrau do onanismo.
– tinha uma cama e não consegui entrar, porque eu sou meio claustrofóbica, um gavetão…
– o artista contemporâneo é bem isso… uma autoconfiança muito grande, uma autossuficiência…
– e agora essa cena super simbólica dela botando colírio… dessa visão que a gente tá tendo de abrir e discutir, de dialogar, sabe…?
– limpar o olho, né?
– isso é uma coisa tipo “não espere nada de mim: eu confio em você”. Eu acho que é uma promessa meio “não dá pra esperar, não dá pra acreditar em nenhuma promessa, não espere coisas de volta”.
- é que não é disso que vai vir o resultado, né?
- não é dessa confiança.
- tentando racionalizar a coisa, que não sei se tá no caminho certo, é o artista confiando no espectador pra que ele mesmo ache significado, não é o espectador que tem que confiar no artista…
- .. depende de você.
– “não confia em mim pra achar um significado pra isso, confia em ti”, sabe?
– e assim: “confia em ti, e pra interpretação que tu queira dar…”
– porque não existe uma interpretação.
– exatamente.
– seja lá a que gaveta isso signifique ou represente.
– não que a gente esteja confiante no que tá propondo fazer. Mas se arriscando… a gente pode passar por um período de desconfiança.
– sem dúvida. Mas é diferente falar assim de desconfiança, ou falar “eu não sou confiável”, “talvez eu não seja de confiança”.
– questione tudo, desconfie de tudo…
– e talvez isso que a gente fala de Cine Esquema Novo… as pessoas desconfiem.
– como assim?
- não tô falando que elas desconfiam do Cine Esquema Novo ser sério ou não…
- mas a cena agora era de um cara que vinha e estuprava a cabeça dela.
– eu acho que esse filme fala muito do momento, sabe? Porto Alegre, as pessoas reunidas…
– e esse áudio, é da Pina Bausch também?
– tá com toda a cara.
- mas o filme todo parece a arte dizendo um pouco isso.
- eu acho que é uma metáfora bem evidente essa do olhar deles, cada um pra um ângulo. Pra onde ele tá olhando e pra onde ela tá olhando. Os dois estão vivendo a mesma cosia, mas não estão olhando pro mesmo lugar.
– na hora que eles quase formam um rosto só, né?
- é… ou talvez seja como se a gente tivesse falando: “eu confio em você, mas eu não sou de confiança”. Talvez seja ainda uma coisa da gente estar descobrindo o que é, sabe? O que a gente tá fazendo, afinal? Tôsuper abrindo o questionamento…
- acredito no que eu tô fazendo, mas não sei no que isso vai dar. É por aí?
- tô abrindo as possibilidades de questionamento que todos nós estamos tendo e que eles devem ter percebido… eles viram a gente debatendo essas coisas. É um caminho que a gente tá descobrindo, de como integrar, de como fazer dialogar cinema e arte.
- as pessoas percebiam isso no Cine Esquema Novo, mas talvez não estivesse claro pra elas. É mais claro pras artes visuais do que pro cinema. A gente tá descobrindo como tratar isso também a partir do cinema, pra que cada vez que se fale isso não seja…
- pra que o falar disso seja mais presente.
- é, mais presente. Não no sentido de que seja nova essa discussão, mas ainda se discute isso pelo lado do cinema como se estivessem discutindo a invenção da roda, sabe? Há décadas…
- isso é arte, isso não é arte, isso é cinema, não é cinema…? Como se dá essa cruza…?
- acho que temos que nos voltar pra palavra “relação”. No caso específico do Cruza foi isso que se deu: a gente chamou eles pra irem lá… e é uma coisa totalmente pessoal.
- porque não é confiança no que a pessoa faz, e sim naquela pessoa, no que a pessoa é. É menos o que ela faz e mais o que ela é.
- é, isso é bem mais essencial.
- a gente tava falando antes de umas outras coisas. Da confiança como ponto de partida.
- porque a obra de arte dá para o espectador a confiança pra ele desconfiar.
- e eu acho que no cinema isso se perdeu um pouco. O cinema não dá mais essa abertura pra pessoa desconfiar.
- a sensação de qualquer tipo de troca de confiança?
- a sensação de que tu dá tudo mastigado pras pessoas…
- na hora que o Cine Esquema Novo faz uma sessão que o cara não sabe o que vai ver, dependendo, ele vai lá e vai achar chato: ele quer confiar cem por cento. Ele quer segurança.
- é, segurança.
- “Cine Esquema Novo 2013: pode confiar”.
- acho que quando perceberam que o cinema gerava muita força política, simbólica, financeira, então começam a minimizar os riscos que aquilo poderia ter pra transformar. Deixou de ser o que deveria ser ou, enfim, se transformou numa coisa que não era o que era.
- este papo do que é e o que não é me remete àquele cinema inicial, uma junção das outras artes, e ao mesmo tempo uma coisa discriminada por elas… o irmão bastardo das artes, pois não passava de pura trucagem… e as pessoas iam pro cinema num parque de diversões, numa feira… não tinham uma linguagem estabelecida para quebrar o código do que estavam vendo.
- parece que agora, quando o cinema extrapola, ele é menos aceito do que quando uma obra de arte extrapola. Ou as pessoas se sentem menos à vontade de questionar.
- porque “eu não entender” é excelente, né?
- é arte e mais várias outras coisas.
- e tipo, afirmações sobre algo, o questionamento, também são excelentes.
- e essa frase “talvez eu não seja de confiança” tá aí pra isso… pra dizer assim: “por favor pergunte, pergunte, não se acomode, questione, não se acomode… não aceite…”
- na real, tu precisa da dúvida. Ela é um pressuposto.
- o papel do instigador é importante, “eu não vou te dar nenhuma certeza”.
- mas eu acho que as imagens… o audiovisual já tá tão presente na vida das pessoas que elas já se assumem conhecedoras e entendidas da linguagem.
- por isso que elas vão ao cinema com essa certeza, e isso não é bom pra o que a gente tá discutindo aqui. Aí elas vão numa bienal e não se sentem representadas e identificadas porque bate a preguiça. E nós, no meio?
- mas eu vou te dizer que dez anos atrás eu ouvia muito mais “isso não é arte” do que escuto hoje. Outro dia saí com a minha tia do museu e ela saiu falando “ah, que diferente esse filme”, “ah, que legal esse outro”. Ela não disse “isso não é”, sabe?
- mas aí tem a ver com o que se entende como arte contemporânea hoje. Muita gente liga as artes visuais imediatamente à arte feita agora, então a pessoa consegue aceitar. A tua tia consegue chegar lá e dizer “tá, isso é arte contemporânea”, ou “isso não é cinema, é outra coisa”.
- eu acho que o Cine Esquema Novo vem trabalhando uma proposta um pouquinho mais ampla do que isso. Mas que pelo formato de festival de cinema acabou ficando trancada em algo específico demais.
- é por isso que as coisas vão mudar.
- ou a gente acha que vai. Não é uma coisa do dia pra noite.
- é uma questão contextual, não é uma questão de formato.
- mas será que a gente não estaria intervindo na criação, na obra, no momento que a gente vê um filme e sugere que ele aconteça de um jeito diferente do imaginado pelo autor dentro do Cine Esquema Novo?
- E qual é o problema da gente sugerir? A coisa tá viva, não tá morta.
- sempre vai ser assim quando o artista estiver sujeito a uma curadoria. É uma cruza…
- acontece que a leitura que um cara faz é uma coisa, mas o cara fazer parte da construção disso é outra. Tem artistas que não sujeitam a obra deles a isso.
- mas daí o cara vai dizer e pronto.
- a gente vai pra sombra ou vai ficar aqui nesse sol?
- não tem sol…
Porto Alegre, fevereiro de 2012