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Capa da revista

EDITORAL

Dando continuidade à empreitada de propor discussões acerca de assuntos que nos têm provocado inquietações, a Tatuí número 5 adensa o conjunto de esforços que formam um observatório dos aspectos da arte atual ao convidar artistas, críticos e pesquisadores a problematizar a relação que a produção artística brasileira tem instaurado com o “passado”.

Neste começo de século XXI, é possível perceber – não só nas artes visuais, como em outras linguagens – um evidente interesse pelo manancial de construções sócio-culturais desenvolvidas por gerações anteriores. Diferentemente da preocupação ou entusiasmo com o futuro que marcou parte da produção do começo do século XX, artistas de agora se dedicam a múltiplas abordagens do “passado”: nostálgicas, críticas, identitárias, fetichistas?

Diante das várias possibilidades de aproximação com esse “passado”, sublinhamos a pertinência em analisar e contextualizar tal fenômeno da contemporaneidade. Nesse sentido, acreditamos que as reflexões presentes neste novo número da Tatuí se dão à construção de pensamento acerca da arte por aqui produzida.

Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz, as editoras.

Colaboradores

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Conteúdo

Índice
  1. Pretérito (im)perfeito - Escrito por Ana Luisa Lima
  2. Incisus marmori - Escrito por José Rufino
  3. Conversa de botequim: a MPB e seus significados - Escrito por Mariângela Ribeiro
  4. O SALÁRIO SE PAGA COM SAL: O PASSADO NA LITERATURA CONTEMPORANEA - Escrito por Cristhiano Aguiar
  5. SEMENTES E URUBUS - Escrito por Clarissa Diniz
  6. A Imaginação nostálgica como utopia - Escrito por Angela Prysthon

Pretérito (im)perfeito

O modernismo, marcado pelo pós-guerra, se caracterizou por uma vontade construtivista, não necessariamente positiva, mas que agia em busca de reverberações para o futuro. O que marcou os movimentos de vanguarda são os pensamentos e posturas assumidos. Neste sentido, os artistas, enquanto produtores simbólicos, estavam intrinsecamente ligados a um pensando acerca daquele modus social ao qual eles se opunham, ou se aliavam. Mesmo posteriormente, com o advento da idéia de desconstrução, continuava a existir ali uma necessidade de transformação, de um (re)posicionamento da arte – ainda que como antiarte.

A questão da arte-atual é ela ter-nos tornado contemporâneos de toda a história da arte, mormente da modernidade e pós-modernidade (anos 60), só que em forma de modelos (tipo, formato, que se dá à mera reprodução, ou imitação) e não ideologias. Assim, o passado se nos é apresentado como o presente já “domesticado”. Ora, as idéias de presente e passado não são construtos inventivos de intenção meramente didática, são conceitos que nos referenciam o modus sócio-ideológico de espaços-tempos anteriores aos nossos. Parece uma observação evidente, mas de implicações bastante sólidas.

Lidar com o presente é situar-se num espaço-tempo desafiadora e angustiadamente cognoscível, mas, por natureza inevitável, pouco conhecido. Tal desafio e angústia vem do inaudito social contingente que surge discretamente amalgamado com nossas próprias alterações (nem sempre perceptíveis) intelecto-emocionais. A idéia de presente é saber posicionar-se no desconforto que é aquilo que ainda desconhecemos. Presentificar o passado é, talvez, uma tentativa de tornar mais cômodo o nosso diariamente.

Deslocar o passado (apenas enquanto formato sem conteúdo) para o presente evidencia a pouca, ou quase nenhuma, disposição de (pre)ocupar-se do gerúndio que clama uma ação. Pois, mais fácil dedicar-se ao particípio, com o qual se pode ter uma relação até mesmo displicente – porque o já acontecido não há de reclamar coisa alguma. Esse tipo de importação do passado revela um desinteresse pela novidade – daí não falo do absolutamente novo, mas daquilo que é recepcionado e reescrito criativamente de modo a ganhar um caráter de originalidade.

Ora, esse passado que tem sido transportado não traz consigo o aporte semântico com e pelo o qual foi criado. As ebulições sociais preconceituosas, porque também, naquela ocasião, apenas pré-conceituais, permanecem lá atrás. Quem usufrui hoje do modelo daquele passado não tem que lidar com as tensões e significados que tal modelo, naquele momento histórico, designava. A partir das festas Ploc 80’s no Rio de Janeiro e São Paulo, e as festas Trashdance em Recife, pode-se auferir esse estado febril que é a vivência de um passado descontextualizado e sem significado. As músicas eletrônicas dos anos 80 apontadas como de “nerds”, ou “gays”, as de punk-rock para “undergrounds” e as pop-rock para “rebeldes sem causa”, são compiladas e fazem uma playlist cobiçada. Hoje dançar freneticamente nessas festas ecléticas não traz o perigo de qualquer constrangimento, porque também, destituídas dos seus contextos, já não há nenhum tipo de associação do gosto a uma tomada de posicionamento daquele momento social.

É preciso dizer que não estou aqui na defesa de um purismo, sobretudo no sentido de que os juízos de gosto musical (ou de qualquer outra natureza) devem imediatamente designar um rótulo social. Mas demonstrar que, quando qualquer passado era o presente, os juízos de gosto implicavam um posicionamento diante da sociedade que trazia consequências diversas – desde um olhar maldoso de soslaio, até a execução sumária da lei de Lynch – e que por isso mesmo a tomada de posição era antes de tudo uma atitude sócio e politicamente salutar.

Sou a favor do exercício da plena liberdade. E não entendo como papel do crítico o de formular teorias que engessem o fazer artístico. Mas acredito, sim, que o crítico deve diagnosticar as construções estético-semânticas de seu tempo e procurar entender seus porquês e permitir que o processo histórico se encarregue dos para-quês (da arte). Nesse sentido, agora, de onde vejo, não penso nas importações de modelos do passado como formas ilegítimas de obras de arte – até porque, há algum tempo, já não acredito em ilegitimidade (ontológica) de uma obra de arte. Mas procuro me debruçar naquilo que essas práticas criam e que desdobramentos podem ter.

Ultimamente me pus a folhear catálogos de grandes exposições brasileiras dos últimos 8 anos e ficou difícil, para não dizer impossível, encontrar um grupo de artistas o qual possamos chamar de representante legítimo desse nosso tempo em razão de uma estética, discurso, ou mesmo posicionamento político-ideológico que nos sirva de referência. O que temos na verdade são práticas artísticas que apontam não uma referência estética, mas apenas sintomas de procedimentos estéticos que não produzem diferenciação. Assim, os nomes desses catálogos poderiam ser substituídos por outros e não necessariamente essa mudança se constituiria em impropriedade, sobretudo do ponto de vista sociológico, ou mesmo histórico. Será que essas constatações advêm de uma impossibilidade de enxergar as transformações e dessemelhanças, porque estou inserida nesse tempo? Ou, de fato, a coisa é como é: reflexo de nossa sociedade atual, displicente quanto às questões sócio-políticas, às tomadas de posição e ações coletivas construtivistas?

Ora, voltando ao que comecei dizendo, o ideário estético vanguardista era edificado a partir da sociedade e para a sociedade – inevitavelmente político. Nesse sentido, as construções estético-ideológicas fatalmente operavam transformações sociais em diversos seguimentos. O mesmo não ocorre na atualidade; em primeiro lugar porque não existe um conjunto de pensamento o qual possamos chamar de ideário estético (muito menos sócio-político), tampouco os poucos (quaisquer) pensamentos que surgem são compartilhados (de maneira crítica e sistemática). Em segundo, porque embora algumas obras de arte sejam criadas a partir do substrato social – há tempos o substrato de algumas obras são construtos filosóficos – não operam transformações sociais significativas (super-estrutura).

Acredito que a arte nos últimos tempos ocupou-se tanto em se auto-referenciar que os contextos político-sociais foram paulatinamente deixados ao largo. A auto-referência em demasia, pelo menos no que diz respeito às artes visuais, que inclui essas importações de modelos passados, acabou criando construções esquizofrênicas de fortalezas da solidão. Nesse sentido, são elaborações estéticas trazidas do passado para o presente sem re-significações; há uma espécie de des-conteúdos. Daí o que fica são os abrigos mudos, feitos de passado (um mundo que não existe mais), onde quase ninguém visita dada a estranheza fria da forma visivelmente deslocada que, por isso mesmo, não produz empatia.  A falta de empatia do público com essa arte contemporânea é menos a inabilidade de acessar os códigos da arte, e mais o reconhecimento de que se trata de uma construção que se volta ao passado e que não convida, no “hoje”, a um diálogo com o atual tempo-espaço.

Se ainda estivéssemos vivendo sob a égide dos “ismos”, não recairíamos em erro em chamar a atual estética de Fetichismo. Pois, esta se demonstra pouco afeita àquela vontade vanguardista de construção; muito pelo contrário, ainda embaladas pela idéia de desconstrução – não como proposição construtiva baseada no pensamento filosófico (Derrida) pela decomposição dos elementos (em princípio da escrita) – estagna a arte ao trazer do passado apenas modelos de aparências e procedimentos para fins estéticos sem nenhum tipo de re-significação; recaindo numa não-construção.

O Fetichismo estetiza partes do todo. Eis o início da obra esvaziada. E esse tipo de prática não seria de todo ruim se fosse feita de maneira consciente, deliberadamente trazida para a discussão, mesmo àquelas açodadas. Mas acredito que, pelo menos hoje, o fetichismo é o culto ao não-lugar que leva a lugar nenhum.

 

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Incisus marmori

Este pequeno depoimento pode ter um perigoso sentido de declaração de paradoxos, pode ser uma revelação de sérias dicotomias, pode servir como fonte banal de análise psicanalítica e pode até me classificar, irremediavelmente, no táxon de artista retroator, incapaz de me lançar no futuro mais imediato, de experimentar sem medos o que poderia ser chamado de inovador, porque aqui, pelo menos, fica revelado meu categórico ofício-vício mnemônico.

Vivo confortavelmente confinado no bucólico cativeiro do passado, eternamente voltando, arrastado por ondas de ecos perdidos, por perfumes de velhos jasmins e pelo toque enrugado e delicado da pele de tios e avós. Vivo sitiado em um vale cercado por paisagens onduladas, aninhado em campos muito verdes, matas fabulísticas e pomares de traquinagens memoráveis. Jamais deixarei minha grande-casa-cativeiro, mas posso caminhar pelo alpendre e até me debruçar no peitoril, sem nenhum medo de vertigem. Posso ver bem perto as mangueiras mais antigas, o longo pátio de tijolos escuros e as palmeiras, elegantes, balançando suas cabeleiras nos morros de pastos. Posso ouvir a melodia do vento se esfregando no chão, os assobios agudos das sericóias, o canto grave das jias e os mugidos abafados das rezes mais bravas, vindos lá do outro lado dos morros. Quando chove, posso gritar altíssimo em dueto com os trovões e posso também, mesmo em dia ensolarado, berrar as mais terríveis obscenidades, as mais perigosas heresias, ou as palavras mais difíceis e as mais esquecidas, como engriguilhado, engurujado, entupigaitado, escalafobético e escangalhado. Posso andar nu o dia inteiro, passeando pela cozinha, dançando levemente pelos corredores, brincando como gato com minha sombra nas paredes, pulando como menino nos colchões e fazendo aparições fantasmais nas janelas. Posso passar dias sem dormir, ou dias e até semanas dormindo ou simplesmente me espreguiçando na cama, gemendo e sonhando acordado, inventando estórias complexas, mudas, e pendurando os móveis nas paredes. Posso me deitar na mesa de rodar e girar-me como o banquete de tripas e peixes até o vôo centrífugo, lançando-me nas paredes como pinturas grotescas.

Como reino de forma absolutamente solitária, tenho também direito às vestimentas mais nobres, ao terno de linho branco-amarelado, delicadamente amassado, ao chapéu de veludo cinzento, revestido de cetim dourado, às calças mais bem cortadas, ao lenço bem dobrado, cheiroso, ao pijama de listras fininhas, macio e frio. À noite, posso usar o Patek Philippe escondido no casaco de lã e deixá-lo dormindo ao relento no parapeito do alpendre.Bem cedinho, ainda embriagado, posso lamber o orvalho das colunas e arrastar com os pés os montes de besouros da noite, redesenhando a geometria dos mosaicos com amontoados metálicos, quitinosos, quiméricos. Mais tarde, mais aquecido, mais faminto, posso comer os restos da gente de ontem, quase dejetos, quase coisas petrificadas, quase ferrugem, quase limo e, no fim do dia, vomitar a matéria densa num canto da biblioteca, como escultura disforme.

Aninhado no meu quarto, tenho sonhos barrocos, percorro antigos labirintos em profundas reentrâncias calcárias, me debruço em peitoris descascados, me encosto em espaldares assombrosos, me espremo em entalhes voluptuosos, meto a mão em escaninhos profundos, arranho o azinhavre doce das lápides do quintal, escuto calmamente o lamento sussurrado dos adornos do canto da sala, corto as raízes mais velhas da escrivaninha – somente as anastomóticas – sinto a respiração das gavetas azedas e os gritos do assoalho rancoroso, derramo nanquim em páginas alternadas do dicionário ilustrado, ouço o ganzá das armas dos meninos lá no pátio do colégio, misturo flores de manacá e mirra num imenso patuá celeste e, no domingo, em estado completamente demencial, liberto, visto o traje solene de chumbo, flor de gardênia na lapela: caminho incólume pela cidade perplexa, passando lentamente pelo ritual medonho que acontece na nave da igreja. Na volta, descendo o lado ocidental da serra com certa culpa de fugitivo, vejo o grande minarete na frente da casa e subo correndo, como muezim enlouquecido, para a aventura final: vaporosa.

Então, o que escrevo neste texto é apenas eco do prisioneiro do alpendre, do enviado, do relator, do emissário, do espião em constante estado de servidão, vestido no uniforme da melancolia.Estou, portanto, condenado ao macabro decreto de Nietzsche, como se estivesse lendo, em cada desejo de futuro, suas palavras gravadas no mármore: aquele que não sabe instalar-se no limiar do instante, esquecendo todo o passado, aquele que não sabe, como a deusa da vitória, colocar-se de pé uma vez sequer, sem medo e sem vertigem, este jamais saberá o que é a felicidade.E o que é ainda pior: ele jamais estará em condições de tornar os outros felizes. Imaginemos, para tomar um exemplo extremo, o homem que não possuísse força suficiente para esquecer e que estivesse condenado a ver em tudo um devir (Werden): um homem assim não acreditaria mais em sua própria existência, não acreditaria mais em si, veria tudo se dissolver numa multidão de pontos móveis e deixar-se-ia arrastar por essa torrente do devir: como um verdadeiro discípulo de Heráclito, ele acabaria por nem sequer mexer um dedo. [1] Nietzsche, Friedrich. 2005. II Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida. Apresentação, tradução e notas: Noéli Correia de Melo Sobrinho. Loyola, Rio de Janeiro, 360p., pg. 72.

 

 

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Conversa de botequim: a MPB e seus significados

Para Fátima Cabral, interlocutora sempre presente nessas conversas musicais.

“Sem música a vida seria um engano”

(Nietszche)

 

A proposta feita a mim pela Revista Tatuí, escrever sobre as relações entre a Nova Geração da MPB e as canções dos anos 60 e 70, fez-me lembrar de uma pergunta que não soube responder há 5 anos, quando um professor me interpelou: “mas o que você entende por MPB?”.

Pergunta aparentemente inocente. Mas a resposta pode ser vista como “politicamente incorreta” ao não se incluir a imensa produção musical atual: pagode, rap, funk, pop rock nacional, sertanejo, axé, forró, romântica e assim por diante. Afinal, se a sigla MPB significa Música Popular Brasileira, não seria mero “preconceito de classe” afirmar que ela não representa os segmentos acima citados?

Tal debate é sem fim. Alguns reclamam porque artistas surgidos nos anos 60 e 70 são reverenciados como únicos representantes legítimos da MPB, enquanto muitos/as cantores/as, músicos/as e intérpretes que são mais consumidos não têm prestígio. Outros, que o grupo formado pelos “papas e damas” ainda sustenta uma produção de qualidade que não tem seguidores num cenário fonográfico “pobre”, marcado pela efemeridade, onde a cada mês uma nova moda substitui outra que também nascera há pouco. Há ainda os que acusam todos (compositores/as /intérpretes novos/as e velhos/as) de crise de inspiração, sugerindo que já não se faz mais música como antigamente.

Esta situação revela uma tradicional discussão sobre cultura e da arte que divide uma produção tida como “artística” de outra considerada “de massa”. Pensando nos termos de Bourdieu, os indivíduos estão inseridos espacialmente em determinados Campos Sociais, onde compartilham com seus pares certos capitais (cultural, social, econômico, político, artístico, etc.).Neste sentido, para que um indivíduo faça parte de determinado Campo, deve conhecer as regras e estar disposto a jogar a partir delas para ter sua atuação legitimada. Voltemos um pouco à história para observar o caminho da construção do campo musical brasileiro e, quem sabe, resolver o imbróglio sobre o significado do termo MPB, observando as relações entre a produção musical dos anos 60 e 70 e as gerações seguintes.

A MPB surge como uma nova proposta dentro da tradição. Vinda do desenvolvimento da Bossa Nova, que já se constituía uma renovação radical, foi chamada inicialmente de MMPB (Moderna Música Popular Brasileira) por trazer em seu conteúdo uma clara crítica social. Feita e consumida por jovens universitários em casas de show e teatros de São Paulo e Rio de Janeiro, consolidou-se nos Festivais da Canção veiculados pela TV em meados da década de 1960.

Portanto, em sua origem, o termo tem um teor mais político/ideológico que musical. Dizia respeito a uma produção de compositores de classe média que buscaram discutir o país através de suas canções.

Num primeiro momento (1960 – 1967), sintonizados com o projeto nacionalista encabeçado pela esquerda e pelos movimentos sociais, tais artistas produziram canções telúricas (a partir da utilização de temas, constâncias melódicas e harmônicas populares e instrumentos da tradição musical brasileira como violão e percussão); num segundo, após a autocrítica feita por seus pares aglutinados no movimento Tropicalista, aderiram à idéia de cultura antropofágica, preocupando-se mais com a questão da forma estética.

Apesar das divergências entre os adeptos da canção de protesto e dos tropicalistas, todos estiveram orientados pelo mesmo desejo de consolidar a nação brasileira. E foi essa orientação que marcou o nascimento e cristalização do termo MPB.

E esta história revela também a consolidação do campo musical brasileiro. A geração de 1960 não desconsiderou a lógica mercadológica, diferenciando-se da postura dos dirigentes pioneiros do campo musical nos anos 30 que tinham um discurso militante de oposição às regras do aparelho produtivo.

Mas é importante destacar que a geração de 1960 não aderiu ao mercado de forma ingênua, ou inocente. Os novatos da canção popular viam neste espaço tanto a possibilidade de se profissionalizar, quanto a de se fazer ouvir e, assim, congregar mais adeptos à causa nacional. Esta inserção consciente gerou uma relação profícua e crítica com o sistema. Os atores da cena musical abasteceram o aparelho de produção, mas também o modificaram – nos termos sugeridos por Benjamin em seu texto O autor como produtor.

A relação entre o campo musical dos anos 60/70 e o mercado me faz lembrar algumas idéias de Erza Pound sobre mestres e inventores. Mestres, aqueles que conjugam os processos artísticos já inventados com maior habilidade que os próprios criadores. Inventores são dedicados às pesquisas formais e à imanente atualização de conteúdos.

Explico-me: a inserção consciente fez com que os “nacionalistas” se consolidassem como os mestres e os tropicalistas como os inventores da MPB.Chico Buarque, Edu Lobo, Baden Powell, entre outros que, embora não fugissem à tradição musical brasileira (sobretudo, o samba dos anos 30, como Noel e Cartola, e a bossa nova dos anos 50), criaram obras-primas da MPB, tornaram-se mestres.

Os tropicalistas tornaram-se inventores (nos textos de jornais daquela época os irmãos Campos diziam inventivos, mas a referência era a mesma, Pound), porque atualizaram a criação da MPB a partir de novidades técnicas e tecnológicas.

Mas a incipiência da indústria cultural brasileira que garantia uma produção cultural mais autônoma tinha seus dias contados. Essa situação foi modificada com as inovações tecnológicas possibilitadas no país via “modernização conservadora”. Com elas, após 1969, o termo MPB é ampliado. É o momento da contracultura, dablack music, da canção social sem as grandes pretensões de antes, da música romântica, etc.

Ainda naquele momento, as novidades foram criticadas tanto pelos produtores e consumidores da restrita MPB, quanto por representantes do próprio Estado. Em qualquer jornal ou revista publicados entre finais de 1960 e meados de 1970, é possível encontrar debates calorosos sobre os caminhos da nossa MPB. Cito a recomendação feita pelo então ministro da Educação e Cultura, Ney Braga, ao Departamento de Assuntos Culturais: “sugiro a sondagem entre compositores, pesquisadores e órgãos de produção e divulgação a fim de descobrir as causas da aparente decadência da música popular brasileira e, se possível, saná-las”.

De lá para cá, muitos destacaram que a produção musical pós-70 é formada por seres “estranhos, híbridos e fugazes” (BAHIANA, 1980), “objetos não identificados” (NAPOLITANO, 2001), “Não-MPB” (SILVA, 1994), Pós-MPB (SANDRONI, 2004). Então assim chegamos à história que conhecemos…

Dada a importância da produção da geração 60/70 para a “institucionalização” de nossa canção popular, ela tornou-se parâmetro para toda criação posterior. Mas diante do exposto, penso que a defesa da MPB como um gênero musical específico revela mais um conteúdo ideológico que estético. Afinal, gênero musical é uma categoria para descrever a partilha de elementos comuns tais como instrumentação, texto, estrutura, função. Partilha nunca hegemônica nesse campo, a não ser no que diz respeito aos projetos políticos.

Ao mesmo tempo, embora seja indiscutível que toda produção nacional não-erudita é popular e é brasileira, não me parece plausível compreender a sigla MPB apenas como uma abreviação de toda canção popular feita já que se reporta, originalmente, a uma produção que está no mercado, mas não é feita apenaspara o mercado.

Isto porque embora não seja um gênero musical específico (podendo ser samba, bossa, coco, modinha, rock, etc.), é formada por canções que trabalham ainda com a forma estética e não com a fórmula mercadológica– o que não significa dizer que toda criação desse campo seja de qualidade indiscutível.

E para os pessimistas que não vêem luz no fim do túnel desse cenário dominado pela fórmula padronizadora dos meios, sugiro uma atualização de fontes. Há, atualmente, um movimento considerável em torno de uma produção que se coloca como parceira/herdeira daquela MPB. Movimento que conta com gravadoras (Biscoito Fino, selo Quitanda, Trama, etc.), espaços de divulgação (rádios especializadas, casas de show, blogs, etc.) e patrocinadores (como o Prêmio Visa de Música Brasileira) e merece um estudo atento que possa nos dar as dimensões de suas relações com a busca pela identidade nacional que marcou grande parte de nosso pensamento social e artístico.

Alguns palpites. Composições como as de Consuelo de Paula comprovam uma impressionante inspiração e marcante herança da nossa tradição musical, conforme seus próprios versos: “Hoje sou a terra onde nasceu/ Onde minha tribo nunca morreu/ Meus pés irão/ Desenhar/ O coração/ A montanha/ E a nação” (Dança para um poema).

Da mesma forma, interpretações de A Barca, de Kátya Teixeira e de Déa Trancoso, parecem dar continuidade à proposta de se fazer uma apropriação “sofisticada”, ou “moderna”, de elementos da cultura popular. As interpretações de Mônica Salmaso e Renato Braz sugerem releituras e diálogos com aquela MPB; tal qual o movimento de “resgate” e renovação do choro e do samba no Rio de Janeiro, puxado por nomes como Tereza Cristina, Tira Poeira, Zé Paulo Becker; as atualizações de tradições folclóricas por Cris Aflalo, Mariene de Castro, Rita Ribeiro; ou mesmo os novo sambas compostos por Arnaldo Antunes, o som claramente tropicalista de Chico Science… A lista seria imensa.Isso para não falar da produção renovada e ainda impecável de nomes consagrados, como Maria Bethânia e Ney Matogrosso, que não se acomodam com o já estabelecido.

A produção mercadológica e estandardizada não elimina a autoral, embora não ofereça espaço para ampla divulgação. Termino lembrando uma fala do nosso polêmico Caetano num debate promovido pela Revista Civilização Brasileira em 1966 (ano !, n.7): “Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema. Paulinho da Viola me falou há alguns dias da sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus discos. Tenho certeza de que, se puder levar essa necessidade ao fato, ele terá contrabaixo e terá samba, assim como João Gilberto tem contrabaixo, violino, trompa, sétimas, nonas e tem samba. Alias João Gilberto é o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música popular brasileira”.

Daquele passo à frente dado por João Gilberto até hoje, a “linha evolutiva” de nossa MPB nunca parou. Tornou-se uma “praga”: mesmo quando alguns juram que morreu por falta de inspiração, está lá, atualizando-se, nos convidando a cantar e dançar e nos lembrando que, apesar de tudo, há beleza nesse mundo “racional”.

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O SALÁRIO SE PAGA COM SAL: O PASSADO NA LITERATURA CONTEMPORANEA

Gosto de Kafka, porque suas metáforas se multiplicam. No seu romance inacabado “O castelo”, por exemplo, temoso suposto agrimensor K, que passa o livro todo tentando, em vão, entrar num castelo para o qual parece destinado.Talvez o castelo tenha um trabalho a lhe oferecer – ao menos, é o que K afirma, é a justificativa para se instalar na aldeia. A história, coberta por neve, sombras, burocracia ilógica e ambiguidades, seduz. Por que não aproximar esta imagem do próprio percurso da leitura, ou melhor, do caminho trilhado por este leitor encalacrado, o tal do “crítico”? No fundo, acredito que todo trabalho de crítica de arte, seja qual for o seu objeto, um poema, uma performance, uma imagem, é um outro modo de uma história ser contada, cujo personagem principal é o próprio olhar da leitura. É possível dizermos que cada leitor constrói, a partir da obra, um castelo ao qual pleiteia acesso; o trágico, o excitante, meus caros, é que há sempre um intervaloentre o crítico e seu objeto de estudo e nele cabesomente uma pantomima de sombras.

Não sei se o leitor lembra da lição que nos ensinou a mulher de Ló. Por causa dos pecados de Sodoma e Gomorra, cidade na qual Ló e sua família viviam, Deus, que naquela época ainda não criara a ONU, decidiu destrui-la.Numa fuga desesperada, auxiliado por dois anjos, Ló, sua esposa e suas duas filhas deixam tudo para trás e se refugiam numa cidade próxima, antes que sejam devorados pelo fogo e pelo enxofre que cairão dos céus. “Não olhes para trás, nem pares em toda a campina”, alertam os anjos. As filhas e o patriarca cumpriram o que foiexigido, porém sua mulher, não: como punição, ela é transformada numa estátua de sal. Por que ela desobedeceu, afinal? Piedade? Curiosidade? Havia alguma coisa, lá onde “da terra subia fumaça, como a fumarada de uma fornalha”, que ela não conseguiu deixar? A Bíblia, com seu jeitinho elíptico que tanto intrigou Auerbach no livro “Mimesis”, não explica.

O leitor já deve ter percebido que quero conversar sobre dívidas. Que preço um escritor paga, afinal de contas, ao olhar para trás? Oque ele pode encontrar nas ruínas? Como podemos interpretar estes diferentes retornos? Perguntas nascem geralmente de outras, mais amplas, mais simples, por isso mais difíceis. No caso destas, não seria diferente: se nosso objetivo, atendendo ao convite da Tatuí, consistirá em debater acerca da presença do passado na produção artística de hoje, de quantos passados estamos tratando?

Sim, porque, pasmem, quem disse que o passado existe? O caminho que sigo, naturalmente, não é o do relativismo como credo, mas sim como método. Como sintoma do devir. Pois, digo isto por insatisfeita experiência própria, se um casal, digamos, nem sempre consegue chegar a um consensoacerca do passado que compartilham juntos, isto significa que arrancamos muito dos nossos próprios ossos e carne para constituir esse passado do qual bebemos com tanta sede. Os monumentos, os vestígios, eles estão lá, mas a relação que temos com eles pode mudar a cada tempo: às vezes, ficamos horrorizados com as ruínas e procuramos restaurá-las, ou acreditamos que são intocáveis, que seria um equívoco tentar a restauração; em outros momentos, nós as alteramos e as modificamos, construímos coisas nelas, ou então as achamos perigosas às nossas crenças e as explodimos. O objeto do passado continua lá, porém parte considerável de sua alma se move dentro de cada cultura, de cada momento da história. Estas não são reflexões novas, porém necessárias: se todo encontro com uma obra de arte é labiríntico, que possamos ao menos discernir a quais castelos, dentro da geografia da crítica de arte, queremos chegar.

O retorno do passado na literatura brasileira contemporânea pode ser pensado a partir de dois eixos, dentre outros possíveis:a) a retomada de tradições e procedimentos formais; b) o passado recolonizado.

Comecemos pelo final. Se há um filão editorial nos últimos tempos, é o dos romances históricos. Se prestrarmos atenção em parte considerável das listas de best-sellers, ao lado de magos, exotismos, cachorros simpáticos e detetives, encontraremos a história. Vivemos uma fome desmesurada de realidade, cuja forma extrema implica numa alergia à ficcionalidade e à imaginação. A consequência disto, que não aprofundaremos aqui, é a profusão, por exemplo, de literatura que esconde a própria ficcionalidade, geralmente marcada por estéticas ultra-realistas,neodocumentais (lembremos de um “Cidade de Deus”, de Paulo Lins, por exemplo), ou de livros-reportagens, como o famoso “O livreiro de Cabul”. Uma outra consequência desta busca é um interesse renovado pela história, como pode ser atestado pelo livro “1808”, de Laurentino Gomes, que se tornou um dos maiores best-sellers dos últimos dois anos, assim como o sucesso de biografias que contam “histórias reais”.

Dentro deste horizonte de leituraestão os romances históricos. Históriassobre homens pré-históricos, imperadores romanos, interpretações “históricas” de mitos como o do Rei Artur, sagas de grandes famílias capitalistas; há todo um leque de opções. O romance histórico, claro, não é uma novidade e sua força já pode ser encontrada entre os séculos XVIII e XIX, num contexto no qual uma série de fatores sociais direcionou escritores e leitores à história. É o caso, para ficarmos apenas num fator, da construção de identidades nacionais tanto na Europa, quanto na América Latina. Por isso, temos um Alencar, aqui, escrevendo romances que mapeiam aspectos considerados formadores da história brasileira e entronizando o índio como unidade primeira da dignidade de nossa raça.

Há romances históricos e romances históricos, que variam desde best-sellers até romances com propostas menos voltadas à satisfação de imediatas demandas de mercado; no caso destes últimos, há uma preocupaçãoem inscrever-se noscânones da literatura erudita. Na verdade, trazendo para perto Luiz Costa Lima, em “Dispersa Demanda”, que cita o Silviano Santiago de“Vale quanto pesa”, dizemos, junto com eles, que uma vertente forte da nossa literatura está ligada à memória. Alguns de seus momentos mais importantes estariam relacionados a uma escrita memorialística que procura articular impasses de trajetórias individuais e interpretação social. É só lembrar do grande ciclo da cana de açúcar de José Lins do Rego.

Hoje, um bom exemplo desta continuidade pode ser encontrado num escritor como Milton Hatoum, cujos romances, embora não estejam vinculados ao regionalismo do nosso escritor paraibano, continuam o tema da decadência das grandes famílias burguesas diantedos processos de modernização dos espaços sociais brasileiros. Desta vez, no lugar do nordeste canavieiro, temos o estado do Amazonas e suas encruzilhadas migratórias: europeus, índios, árabes, brasileiros. Tudo isto escrito por personagens que “sobreviveram” às crises familiares e se dispõem, partindo da memória, a contar o passado.

Mas há entre nós os romances históricos propriamente ditos. Temos, na nossa literatura atual, bons representantes, dos quais destacamos Ana Miranda, Luis Antonio Assis Brasil e Luzilá Ferreira Gonçalves. Num livro como “Rios Turvos”, de Luzilá, temos a condição da mulher no século XVI pontuando a reconstrução histórica, através da história de amor e morte entre o poeta barroco Bento Teixera e sua esposa Filipa Raposa. Passado recolonizado, portanto: na literatura contemporânea, as inquietações do presente – emancipação feminina, impasses multiculturais – levam a ficção a alargar a experiência da história “oficial”.

Citamos, quase agora, José Lins do Rego e o regionalismo. Outro exemplo da presença do passado no presente da nossa literatura é a renovação da tradição regionalista. O termo regionalismo pode abranger vários sentidos. Numa concepção mais ampla, o leitor pode chamar de regionalista qualquer obra literária que seja ambientada num espaço rural. O sentido que utilizo aqui, entretanto, implica a idéia de que regionalismo consiste num projeto estético e político vinculado a momentos específicos da nossa cultura. No livro “Formação da Literatura Brasileira”, Antonio Candido afirma que o regionalismo nordestino de 30 – o mais importante, que nos legou Gilberto Freyre, Zé Lins, Graciliano – se fundamenta em três elementos: o senso da terra, ou seja, a ligação estreita com a paisagem nordestina; opatriotismo regional, expresso no orgulho pelo legado histórico da região, como, por exemplo, a exaltação da presença holandesa, do patriarcado açucareiro, ou das rebeliões nativistas; a preeminência do Nordeste, associando esta região à pureza e ao nacional em estado bruto, em detrimento de outras regiões do país. Portanto, alguns escritores contemporâneos, como Raimundo Carrero, Pedro Salgueiro e Ronaldo Correia de Brito, muitas vezes são chamadas de regionalistas num sentido amplo, no entanto suas obras pouco dialogam com a idéia de regionalismo enquanto projeto.

Na verdade, as marcas do regionalismo, nos termos de Candido, se encontram presentes com força maior em outros dois momentos importantes. Primeiro, na renovada atenção que tem se dado à obra de Ariano Suassuna e ao seu Movimento Armorial, que foi, até agora, o último movimento regionalista do Brasil. Apesar da importância do Movimento Armorial e da qualidade de algumas das obras ligadas aos seus ideais – lembremos do “Romance da Pedra do Reino”, das gravuras de Samico e da música de Madureira – é inegável que ele contém limitações, como é o caso da sua relação com a cultura popular, por exemplo. Se estas limitações continuam se repetindo e ecoando sem o devido balanço crítico, a hipótese é de que elas respondem a alguns consensos que ainda persistem na visão que temos da nossa cultura; consensos estes que precisam receber umas sacudidas. Já o segundo momento pode ser encontrado na sólida obra do sergipano Francisco Dantas, que em livros como “Coivara da Memória” retoma alguns personagens e temas consagrados pelo regionalismo de 30.

Temos, neste caso, um diálogo e não uma repetição: Dantas consegue imprimir uma voz própria ao que parecia “ultrapassado”, apostando numa linguagem que concilia o registro das falas populares com uma pegada proustiana. Uma das hipóteses que explicaria esse diálogo da obra de Dantas com o regionalismo estaria, como bem apontou Lafetá na resenha que fez a “Coivara da Memória”, na permanência, em plenos anos 90 e 00, de certas mazelas sociais, como a do mandonismo local, mazelas estas que foram abordadas pelo regionalismo de 30 e que ainda sugam o nosso sangue (e dinheiro).A literatura continua trazendo, ao presente, o tanto de passado que o sustenta.

Por fim, vamos saltar da prosa à poesia contemporânea. Nela, fica claro outro aspecto do passado no presente, uma espécie de nostalgia-simulacro (uma reflexão teórica mais aprofundada sobre isto o leitor pode encontrar no ensaio de Clarissa Diniz, publicado nesta mesma Tatuí). O palavrão é horrível, porém procura traduzir o seguinte: alguns artistas – e isto parece ser bem pós-moderno, embora eu não goste da palavra – criam bolhas de passado no tempo presente e que são capitaneadas pela repetição de certas imagens eprocedimentos formais. Queremos exemplos? Se o leitor não assistiu, certamente ouviu falar nos filmes de Indiana Jones. Neles, Spielberg e George Lucas tentam reconstruir certos “climas” de filmes e seriados antigos. Ao rever os filmes de Indiana Jones, inclusive este novo, lançado em 2008, me surpreendi com o clima retrô de todos eles. O que parecia, na nossa memória, tipicamente uma estética anos 80 se revela, em parte, uma angústia que procura a coexistência passado-presente na forma.Sim, este passado enquanto malassombro parece ser uma característica do nosso tempo, principalmente dos 80 para cá.Outro exemplo, ainda no cinema, seria Kill Bill, de Tarantino.

A partir da década de 90, se tornou mais claro que alguns poetas brasileiros procuram realizar coisas semelhantes. Certos procedimentos consagrados pela história da literatura são ressuscitados de maneira mais evidente, sistemática. De modo grosseiro, sem pretensão de esgotar o assunto, podemos colocar estes tipos de poemas em três grandes grupos, nos quais predominam: a) a retomada da poesia visual das vanguardas do século XX, notadamente o concretismo; b) a retomada do barroco; c) o retorno do simbolismo.Aqui, cabe uma observação: há uma diferença entre aquilo que influencia um poeta, ou seja, os textos e tradições que contribuem à formação da sua palavra, e o escrever à maneira de. Logo, poetas como Frederico Barbosa, Delmo Montenegro, Alexei Bueno, Amador Ribeiro Neto, Augusto Contador Borges, Mariana Ianelli, Claudio Daniel, Jussara Salazar, Marco Lucchesi, Arnaldo Antunes e Wellington Melo, entre outros, correm, apesar de serem tão diferentes entre si, o mesmo risco da mulher de Ló. Em maior, ou menor grau, são todos bons poetas, mas alguns poemas escritos por elesjá corroboram nossa preocupação. Ao poeta iniciante, o conselho:de nada adianta manter-se nas bolhas das nostalgias-simulacros. Talvez isto nos divirta em Tarantino e Indiana Jones, contudo da poesia esperamos outra experiência, outra voz.

O escritor se enfraquece ao ver o passado como heróico, acreditando que os problemas continuam os mesmos e as soluções, também. Em todas as tendências pelas quais passamos rapidamente o olhar, foi possível perceber este perigo. A nostalgia da pós-modernidade parece nos iludir com a vontade de repetir as histórias dos nossos heróis, ou seja, escrever como eles; “chocar a sociedade”, como eles; “varrer do mapa os parnasianos”, como eles. “Seja marginal, seja herói”: isto fazia sentido no tempo de Oiticica, porém pode soar ridículo hoje. Mas quantos e quantos artistas visuais – aqui já pulei de um galho ao outro –não criam obras e personas estereotipadas pelo próprio passado sobre o qual leram?O sal, ainda. É preciso jogar o jogo da arte sem medo dos riscos, claro. Sem esquecer, porém, que aquilo que nós, artistas, procuramos, é simplesmente o sabor.

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SEMENTES E URUBUS

o ‘passado’ como espaço estético vivenciável para além dos tempos

Se o começo do século XX, em seu estágio específico de modernização, infiltrou nos artistas um desejo pelo futuro, uma sedução pela máquina e um pensamento utópico, o princípio do século XXI se apresenta de forma diversa, despertando uma onda de interesse que se debruça sobre o ‘passado’. Uma recente cultura da ‘nostalgia’, identificada por vários autores e manifestada em parte da arte e das plataformas midiáticas atuais, tem encorpado um modo existencial formado a partir de referências claramente trans-geracionais, por meio das quais as gerações jovens vivenciam sobretudo as construções políticas e estéticas de outras, anteriores.

Diferentemente das releituras que foram (e são ainda) reincidentes na produção cultural – e que operam majoritariamente por meio da representação – refiro-me aqui a outros tipos de aproximação ao ‘passado’, pouco afeitos à representação e que, consequentemente, evitam tecer situações de inequívoco apelo interpretativo, por sua vez amparando-se preponderantemente numa operação de cunho estético. Em enfoque e metodologia, este tipo de produção se distingue, por exemplo, da febre das ‘novelas de época’ recentemente vivenciada na televisão brasileira e que, apesar de reificar também o interesse da indústria cultural pelo ‘passado’, desta se diferencia radicalmente por não tratá-lo como tema, mas como ‘lógica’ de articulação de forma e sentido. Ou seja: evidencia-se uma transformação no olhar que a produção cultural lança sobre aquilo que é cronologicamente anterior – o ‘passado’ emancipa-se da condição de assunto e do campo da história para estender-se a um amplo campo semântico e cognitivo. Transcende a condição temporal, apresentando-se como modo de pensamento e ação que se realiza no espaço.

Se o processo de espacialização do tempo é apontado como uma das características da pós-modernidade, decerto o lugar que o ‘passado’ atualmente ocupa no ‘presente’ é um de seus sintomas, como também o são as possibilidades existenciais instauradas pela alta tecnologia. Mesmo a construção da anterior frase deste texto, apoiada numa concepção de espacialização temporal, evidencia essa mudança – ‘atual lugar do passado no presente’.

Entretanto, o que a produção cultural toma desse ‘passado’ são menos suas “razões” e “causas” próprias (aspectos notadamente do interesse de disciplinas como a história, antropologia ou sociologia) do que suas construções estéticas. Parece-me que tal ‘preferência’ advém de verdadeira espacialização do tempo que, ao desintegrar a qualidade narrativa e linear das temporalidades, imprime menor ‘sentido’ numa abordagem historicista dessas. Assim, enfatizada a crise na historicidade como tradicionalmente compreendida, potencializa-se o poder de uma aproximação ao ‘passado’ pelo viés estético.

Também por sua natureza, ‘as estéticas’ – simultaneamente solução e problema ‘de época’, uma vez que produtos e produtoras da cultura – têm conseguido atravessar gerações com mais facilidade, ainda que através de contundentes processos de ressignificação. Contínua construção de modos de percepção e sentido, a estética tantas vezes tem se desenvolvido a ponto de se desprender de condicionantes temporais para constituir um território de relativa autonomia e que, portanto, vincula-se mais ao espaço que ao tempo, tornando-se efetiva interface entre diferentes períodos históricos e revelando-se peculiarmente vivenciável e ativa por entre gerações.

O crescente uso da paródia e do pastiche, amplamente perceptível também na indústria cultural, demonstra a visada eminentemente ‘estilística’ que os artistas de hoje lançam sobre a produção estética desenvolvida em décadas anteriores. Após a falência da modernista ideologia do estilo e, na seqüência, a partir da descrença na concepção da ‘autonomia da arte’, a produção cultural pós-1960, baseada nas estratégias da citação e do comentário, tem cada vez mais se nutrido dos aspectos estéticos (de discussões teóricas a soluções plásticas) de outrora para, por meio de seu olhar a um só tempo crítico e de apologia, construir uma “identidade” da produção cultural pós-moderna por diferenciação. Essa posição de afirmação do eu por meio da problematização/“negação” do outro – no campo da cultura, quase sempre uma “negação” apaixonada[1] “Jamais faríamos paródia ou chacota das coisas que não pudéssemos amar”, assume Caetano Veloso em referência aos procedimentos do Tropicalismo brasileiro. VELOSO, “Lost in Translation”. Fader, 23 , August 2004, p. 105.  –, sendo esse outro não necessariamente cronologicamente anterior, mas qualquer identidade diversa do eu (como, por exemplo, no antigo duopólio vanguarda artística x indústria cultural), é, ademais, identificada por inúmeros teóricos como uma das principais características da cultura pós-moderna. E se, em sua maioria, estes tomam a arte norte-americana como parâmetro para pensar acerca da condição de clara autofagia cultural em que estamos afundados (da qual o pastiche é sintoma por vezes pessimista), aqui sugiro um breve pouso reflexivo sobre as artes visuais brasileiras na tentativa de investigar como nossos artistas têm se posicionado diante desse, digamos, frisson estético da contemporaneidade: o tesão pelo ‘passado’.

Por aqui me parece haver, em diversos âmbitos e de várias formas, razoável intimidade – e afeto – com o outro. Sem precisar me aventurar numa abstrata consideração da formação afetiva do brasileiro, posso, ainda assim, restringir-me ao campo da cultura para sustentar tal paixão: já passamos ao menos por dois grandes momentos de pública devo(ra)ção do alheio – Movimento Antropofágico e Tropicalismo. Mesmo antes de pairar sobre nossos céus o faminto urubu pós-moderno, estávamos de barriga cheia. E nosso estômago já experimentava também uma temporalidade espacializada que se instaurava por meio do debate acerca da cultura popular que – fortemente presente desde o começo do século XX e negando, desde então, uma concepção evolucionista da produção cultural – demonstrava a coexistência de diferentes modos existenciais conjugados a paradigmas estéticos igualmente distintos. Dessa forma, de Flávio de Carvalho, passando por Hélio Oiticica, pelo Armorial, pelo Movimento Mangue e chegando aos artistas da geração 2000, dentre tantos outros, apuramos uma intimidade no trato com o alheio que, hoje, quando ativada na discussão do ‘passado’ em suas múltiplas abordagens, suscita uma série de especificidades que, acredito, diferem do aclamado pastiche e afins. A articulação possível entre as obras de Rosângela Rennó (Belo Horizonte, MG, 1962), Dora Longo Bahia (São Paulo, SP, 1971), Jonathas de Andrade (Maceió, AL, 1982) e Cristiano Lenhardt (Itaara, RS, 1975) está, então, a partir daqui tecida na tentativa, breve e ainda nebulosa, de fazer entrever algumas dessas especificidades – advindas, ademais, da particular exploração da fotografia (e do vídeo).

Mesmo antes de decidir como fotografar, manipular uma câmera fotográfica nos coloca diante de um problema de tempo, espaço e representação. Manipular fotografias, idem. Assim, ao fotografar, tomar consciência e, num segundo momento, explorar as idiossincrasias da linguagem fotográfica (e, de modo geral, da imagem) – um dos esforços da produção artística das décadas de 80 e 90 –, chega, aos mais jovens artistas brasileiros (em especial, aqueles surgidos nos anos 2000), quase como uma premissa, uma ‘responsabilidade’ social e artística. Através da obra de Rosângela Rennó, por exemplo, aprendemos a observar criticamente a memória, o arquivo, o ‘passado’, a desconstrução da imagem, a metalinguagem, a “verdade”, o esquecimento, o estereótipo, a relação entre o público e o privado, a subjetividade etc.; genericamente, desenvolvemos um olhar mais aguçado para o papel protagonista da fotografia (mais ampliadamente, da estética) no processo de construção de identidades no âmbito do psíquico e, sobretudo, do social. Dotados de conhecimento crítico acerca desse poder, dispondo de amplo repertório (como aquele que vem sendo instaurado por Rennó) e vivenciando um período de intensa proliferação do uso da imagem através da tecnologia digital, nossa – geracional? – posição diante da fotografia plasma-se com inúmeras peculiaridades e, obviamente, faz surgir um imenso conjunto de trabalhos que problematizam tal situação.

Se na obra de Rosângela Rennó prevalece uma preocupação com a colocação social da fotografia – sendo as manipulações por ela efetuadas levadas a cabo por meio do deslocamento e re-contextualização da imagem (ou do texto) – os jovens artistas que tenho em mente quando me refiro a uma geração que já parte da premissa do poder da fotografia se aventuram também numa manipulação ontológica da mesma. Ainda que esta distinção entre o social e o ontológico tenha aqui características didáticas – visto que são instâncias retroativas e, portanto, pouco diferenciáveis – é possível perceber como tais artistas brincam com a “verdade” não exatamente a partir do escancaramento de suas fragilidades (Rennó), mas a partir de sua construção, na intenção de criar identidades e existências através da estética. Ainda que tal procedimento não seja específico de nosso momento histórico, hoje, em plena era digital, ele tem encontrado ecos expandidos. As artes visuais brasileiras, por exemplo, revelam trabalhos que manipulam o “real” (mormente por meio da fotografia e do vídeo) para dar conta de possibilidades existenciais evidenciadas através de construções estéticas.

Jonathas de Andrade, por exemplo, desenvolve Amor e Felicidade no Casamento (trabalho de muitos desdobramentos, de instalações a fotonovelas) provocado por homônimo livro de ‘moral e bons costumes’ de Fritz Kahn ao criar imagens que, pensadas na estética fotográfica dos anos 60 (data do livro), remetem, através de sua construção (e aliadas a excertos do texto de Kahn), à cultura do período, numa espécie de ‘sociologia implícita’. Suas imagens, realizadas em adequação às condições técnicas dos meios fotográficos de então, aludem também à estética do período em aspectos cenográficos e de expografia (em desdobramento recente, Jonathas submeteu fotografias a processos de envelhecimento e contaminação por fungos), numa operação de verossimilhança que explora o ‘passado’ pela estratégia da simulação. Entretanto, ainda que ali estejam postas situações que dificilmente teriam sido produzidas décadas antes, o artista, senão pela comercialização de suas fotonovelas em livrarias/bancas sem menção a datas, mantém relativamente estável uma distinção temporal em sua obra. Se Jonathas faz uso do pensamento estético surgido no ‘passado’ para vivenciá-lo, o faz, contudo, como leitura deste, numa ainda tímida espacialização temporal que, por exemplo, é diferentemente explorada por Dora Longo Bahia.

Numa abordagem notadamente metalingüística, Marcelo do Campo 1969-1975, dissertação apresentada pela artista em 2003 à Escola de Comunicações e Artes – USP, é a construção de uma identidade, um tempo, um espaço e uma estética; a criação de uma ‘realidade’ que, numa lógica ficcional, seria, por sua vez, uma ‘ficção do passado’[2]  “(…) Entrei em contato com [a obra de Marcelo do Campo pela primeira vez ao pesquisar informações sobre o projeto de Vilanova Artigas para o novo prédio da FAU no campus da USP. Junto às plantas de Artigas, encontrei cópias heliográficas de desenhos contendo os seguintes dizeres: Planta modificada por Marcelo do Campo. (…) Instigada por essas aberrações arquitetônicas, procurei informações na biblioteca da FAU sobre o autor dos desenhos. Defrontei-me, então, com os registros de uma interessante produção artística desenvolvida por jovens, nas rampas da Faculdade, durante os anos negros da ditadura. (…) Suas pesquisas artísticas problematizavam os limites da obra de arte, e a precária documentação arquivada na biblioteca da FAU é seu único vestígio. (…) Esses registros – textos e algumas imagens de ações e intervenções – são o único indício das obras de Marcelo, todas efêmeras. Entrevistando seus antigos colegas, consegui informações e fotografias de arquivos pessoais que viabilizaram a reconstrução de uma breve biografia de Marcelo do Campo. Essa biografia é o centro desta pesquisa que visa, através do trabalho de um entre muitos jovens artistas, chamar atenção para um período ainda nebuloso de nossa história.” BAHIA, Dora Longo. Marcelo do Campo, 1969-1975. São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2006.]. Mais do que explorar as possibilidades da verossimilhança (por meio da “reprodução” de um ‘passado’) e, assim, revelar o potencial simulador da estética, seu trabalho faz ver como esta instaura uma possibilidade existencial cuja veracidade, na perspectiva da espacialização do tempo, está garantida não como fato (historicidade), mas como sentido (campo da cognição, percepção), visto que Marcelo do Campo busca se inserir no campo da arte como “verdade”. A questão levantada pela obra de Dora é, portanto, menos como hoje podemos ‘dominar’ o ‘passado’ (reinventando-o a partir de sua análise) e mais como este ‘passado’ nos oferece modos de percepção e sentido que geram formas de existência no ‘presente’. Como dito no começo deste texto, trata-se de uma concepção de ‘passado’ que transcende a condição temporal, apresentando-se como modo de pensamento e ação que se realiza no espaço.

Dora Longo Bahia inscreve Marcelo do Campo num espaço-tempo que alude menos à idéia de sociedade da amnésia – e à qual trabalhos de Rosângela Rennó ou Jonathas de Andrade propositadamente se filiam em seus procedimentos – para, por sua vez, problematizar o ‘passado’ a partir de porta de entrada vizinha. Trata-se – em alguma medida, e ainda timidamente – de uma relação menos indicial com o tempo. Ao explorar construções estéticas cronologicamente anteriores não para indicar, mas sobrepor; criar, e não reproduzir; enevoar, e não escancarar; a artista funde, noutras dinâmicas que não a negação, o eu ao outro. Ao não recorrer à ironia, à paródia ou ao pastiche, a porteira que, inclusive moralmente, tenta separar temporalidades entreabre-se, e, literalmente, já não se pode distinguir, por exemplo, as obras de Marcelo da obra de Dora. Inclusive o nome Marcelo do Campo alude a Marcel Duchamp, que criara também sua Rrose Sélavy numa indistinção identitária canibal. Tempo espacializado, estética como interface.

Mais adiante, esse tempo espacializado surge nos vídeos de Cristiano Lenhardt de forma bastante peculiar, e que se distingue de grande parte da produção cultural que se volta ao ‘passado’ a partir da tomada de dois posicionamentos: a não-vinculação às concepções tradicionais de memória (mais evidente exploração de uma idéia não-indicial de tempo e, conseqüentemente, de estética) e a quase não-utilização de estratégias desconstrutivas deste (sejam elas de tendência historicista ou lingüística, como a citação, a ironia ou o pastiche). É propiciado que se vá além da observação do ‘passado’ para investir em sua vivência. O observador passa a ser incluído na observação (adoção de um modo não racionalista-cientificista-modernista de compreensão do mundo), e, portanto, surge potencializada a cumplicidade que se instaura entre o eu e o outro: “(…) mexi nos Bichos de Lygia Clark, um quebrou na minha mão, fiquei com medo… (…) depois vi a Baba antropofágica… fiquei pensando: an-tro-po-fa-gia… an-tro-po-fa-gia…”[3] Cristiano Lenhardt em entrevista concedida a Fernando Oliva. Catálogo da exposição Cristiano Lenhardt, Diamante. Recife: Instituto Cultural Banco Real, 2008..

Esta cumplicidade evidencia o efeito da espacialização do tempo que me parece embasar a obra de Lenhardt. Em vídeos como Capanema ou Retratante & Retratado, recursos técnicos analógicos ou efeitos ruidosos postos sobre imagens digitais corroboram para a construção de uma temperatura/atmosfera que, mais do que remeter ao ‘passado’ – simulando-o, recontextualizando-o, relendo-o etc –, geram um estado espaço-temporal suspenso da habitual linearidade deste. Em sua obra, ocorre a potente união de dois aspectos que intensificam tal ‘suspensão’: a exploração de imagens aparentemente fantásticas e que, portanto, nos remetem a uma idéia de ficção (futuro, imaginação, utopia) aliada ao uso de paradigmas estéticos surgidos em décadas passadas. Experimentando, cada vez mais sem discursos rigidamente configurados (de ordem metalingüística, ou sociológica, por exemplo), simultaneamente e por meio da estética, “identidades” lugar-comum do ‘passado’ e do ‘futuro’, sua particular inclinação diante deste ‘frisson contemporâneo do passado’ passa a incidir diretamente sobre os modos de recepção de seus trabalhos: o ‘passado’ é explorado não para estabelecer significações (sobretudo narrativas), mas para anulá-las, conduzindo-nos a outro campo semântico e cognitivo que, na falta de melhor definição, tem sido circunscrito por termos como intuição e espiritualidade.

E é neste ponto em que me parece relativamente claro que as construções estéticas herdadas de períodos históricos diversos do nosso têm sido também vivenciadas como forma existencial, possível para além de seus condicionamentos de ‘origem’. As teorias da paródia, ou do pastiche, contudo, dão conta da exploração do ‘passado’ marcadamente como método de afirmação existencial por meio de uma operação de diferenciação do eu em relação ao outro, pouco abordando a potência que a estética, em suas variadas nuances, tem crescentemente apresentado inclusive como alternativa existencial diante de um panorama de descrença nas ideologias – dentre elas, a utopia. Ainda que nosso interesse pelo passado tenha nos parecido, inicialmente, como ‘única alternativa’ cultural (pois seria o que restara após diagnosticado o ceticismo pós-moderno), ao que parece, atualmente, ele tem se transformado em opção que pode se fazer não por uma já bastante explorada estratégia de desconstrução, mas através de um esforço propositivo de sua territorialização, tentativa de revolver a terra do ‘passado’ não para arqueologicamente efetuar-lhe escavações, mas para fertilizá-la na intenção de comer seus frutos e novamente lançar suas sementes. Territorialização esta a que talvez equivalha um “tirar o chão dos pés”[4] Cristiano Lenhardt em carta a Manuela Eichner. 2008..

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A Imaginação nostálgica como utopia

“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.”

Walter Benjamin, Teses sobre a história.

“O passado é um país estrangeiro, lá eles fazem as coisas de modo diferente.”

L. P. Hartley, O mensageiro.

Relíquias, vestígios, souvenires, rastros, mementos, arquivos… A cultura contemporânea está marcada indelevelmente por sua relação com o passado, com a memória e, de muitos modos diferentes, com a nostalgia. Este artigo trata de entender como a nostalgia passa de enfermidade, de maladia, de patologia que precisa ser curada, aliviada e dissipada, a dominante estético e artístico. Linda Hutcheon é uma das que explica essa origem médica do termo:

With its Greek roots–nostos, meaning “to return home” and algos, meaning “pain”–this word sounds so familiar to us that we may forget that it is a relatively new word, as words go. It was coined in 1688 by a 19-year old Swiss student in his medical dissertation as a sophisticated (or perhaps pedantic) way to talk about a literally lethal kind of severe homesickness (of Swiss mercenaries far from their mountainous home) (HUTCHEON, 1998).

O conceito de nostalgia empregado aqui, portanto, tem suas raízes nas teorias pós-modernas e nos debates mais recentes sobre o papel da estética nos Estudos Culturais (BERUBÉ, 2005). É inevitável, em se tratando de nostalgia e pós-modernismo, acedermos a Jameson (1991, 279-296), que fala sobre o processo pós-modernista de reificação do passado através da recuperação de artefatos culturais; através de uma recriação metonímica, a nostalgia pelo estilo, pelo modo em que certas épocas foram eternizadas, mais do que pelo passado em si. Jameson, tanto neste texto, como em trabalhos posteriores nos quais tratou sobre a utopia, ataca o pós-modernismo justamente no que ele considera “nostalgia regressiva”, talvez no sentido de que nostalgia geralmente se refere a um anseio por “dias melhores” que vai paralisando o presente.
Jameson vê a insistência na nostalgia como uma maneira de demonstrar uma falha do presente – ou uma historicidade esquizofrênica. Vai definir o pastiche como sintoma da incapacidade do nosso tempo de se pensar historicamente. Assim, o retorno quiçá ingênuo, ou historicamente deformado, do pós-moderno ao passado, a nostalgia como sintoma, para Jameson, são sinais de regressão, de esvaziamento histórico. Mas é interessante ressaltar que as operações da nostalgia no pop vão além das suas encarnações já descritas e discutidas a partir dos conceitos de paródia e pastiche pós-modernos.
Linda Hutcheon (1998) aponta certa contradição entre o protesto que Jameson faz pela “nostalgia regressiva” do cinema (e da cultura pós-modernista como um todo) e seu gosto nostálgico e idealizador pelo mundo pré-capitalista tardio e pelo modernismo estético. O que, em todo caso, é bastante revelador dos paradoxos que constituem a cultura contemporânea. Aliás, Hutcheon vai tentar dar conta da tensão entre a tendência nostálgica do pós-modernismo e a ironia, que ela considera o aspecto mais seminal do contemporâneo, através de sua causticidade e auto-reflexividade. O argumento demonstra que grande parte da cultura contemporânea de fato está marcada por uma íntima associação com a nostalgia, mas que as expressões pós-modernas teriam plena consciência dos riscos, armadilhas e atração da nostalgia, e que buscam expô-los precisamente através da ironia. O que me parece instrumental para não apenas compreender a proeminência da nostalgia na cultura contemporânea, especialmente nos campos das artes visuais, da música, do cinema e da moda, como também vislumbrar as formas a partir das quais ela opera.
Um dos aspectos mais curiosos nesta “supremacia nostálgica” da arte e da cultura é a absoluta irrelevância da idéia de autenticidade histórica quando determinada forma, ou fato do passado, são evocados. Logicamente é algo que podemos ligar a Jameson e seu raciocínio sobre a (a)historicidade pós-moderna, mas também é uma tendência indissociável da cultura jovem contemporânea (tanto na esfera da produção, como principalmente da recepção). Os artefatos desta cultura e a sociabilidade sugerida pelo seu consumo revelam não necessariamente uma memória direta dos acontecimentos referidos, ou a familiaridade com o repertório citado; o que importa é sobretudo o afeto – seja por algo que foi efetivamente vivido, ou por algo que esses jovens gostariam de ter vivido. A nostalgia então funcionaria não tanto como comentário sobre o passado, mas como reação criativa ao presente, como articulação, às vezes intensamente subversiva, do sentimento de inadequação, ou deslocamento em relação ao aqui e ao agora.
Neste sentido, podemos pensar nesta articulação insistente da nostalgia como a projeção do passado para frente, como um paradoxo espaço-temporal que condensa passado e futuro, memória e desejo, nostalgia e utopia. Ou seja, a nostalgia se configura como uma temporalidade ambígua, como uma dimensão paralela da memória, como uma instância alternativa dos arquivos. Podemos pensar, então, na predominância da imaginação nostálgica – esta complexa conexão com o passado e com a história (que ora se apresenta como historicidade esvaziada, ora como persistência da memória subjetiva, ora como discreta revolta contra o passado) como complementar a outra operação relevante do contemporâneo: as narrativas utópicas.

Utopia é aquilo que não é, aquilo que não está em lugar nenhum, ou, melhor dizendo, aquilo que pertence exclusivamente à ordem da narrativa; utopia é a narração da utopia, um gênero que se debate em forma permanente contra e a favor de suas próprias impossibilidades (CORDIVIOLA, 2001, p.5).

Em alguma medida, é como se a utopia, engendrando suas narrativas redentoras (ou o seu avesso, a distopia, ao criar seus apocalipses), apontasse o espaço futuro da nostalgia, revelasse o sentido prospectivo da memória.
Esta leitura pode, inclusive, ser invertida. E talvez esteja nesta inversão uma chave importante para a compreensão da arte contemporânea: a nostalgia (pelo passado, por uma memória por vezes inventada, pelo cotidiano que se perdeu em meio ao turbilhão das imagens midiáticas, pela delicadeza das pequenas lembranças) também pode ser diagnosticada como um anseio utópico. De fato, as centelhas da imaginação nostálgica podem ser a marca de algo profundamente transgressor e penetrante: a capacidade de mobilizar o passado crítica e afetivamente como espaço de resistência cultural. Através de imagens que relampejam irreversível e velozmente, como mostrou Benjamin nas suas teses sobre a história, certas articulações da nostalgia terminam por desvelar promessas de beleza.

Referências Bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito da história. (http://www.geocities.com/jneves_2000/wbenjamin.htm)

CORDIVIOLA, Alfredo (org.). Um projeto inacabado. Identidades latino-americanas no ensaio do século XX. Recife: Bagaço, 2001.

HUTCHEON, Linda. “Irony, Nostalgia and the Postmodern”, University of Toronto English Library, 1998. http://www.library.utoronto.ca/utel/criticism/hutchinp.html (acessado em 15 de janeiro de 2008)

JAMESON, Fredric. Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism. Londres: Verso, 1991.

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