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Vivo confortavelmente confinado no bucólico cativeiro do passado, eternamente voltando, arrastado por ondas de ecos perdidos, por perfumes de velhos jasmins e pelo toque enrugado e delicado da pele de tios e avós. Vivo sitiado em um vale cercado por paisagens onduladas, aninhado em campos muito verdes, matas fabulísticas e pomares de traquinagens memoráveis. Jamais deixarei minha grande-casa-cativeiro, mas posso caminhar pelo alpendre e até me debruçar no peitoril, sem nenhum medo de vertigem. Posso ver bem perto as mangueiras mais antigas, o longo pátio de tijolos escuros e as palmeiras, elegantes, balançando suas cabeleiras nos morros de pastos. Posso ouvir a melodia do vento se esfregando no chão, os assobios agudos das sericóias, o canto grave das jias e os mugidos abafados das rezes mais bravas, vindos lá do outro lado dos morros. Quando chove, posso gritar altíssimo em dueto com os trovões e posso também, mesmo em dia ensolarado, berrar as mais terríveis obscenidades, as mais perigosas heresias, ou as palavras mais difíceis e as mais esquecidas, como engriguilhado, engurujado, entupigaitado, escalafobético e escangalhado. Posso andar nu o dia inteiro, passeando pela cozinha, dançando levemente pelos corredores, brincando como gato com minha sombra nas paredes, pulando como menino nos colchões e fazendo aparições fantasmais nas janelas. Posso passar dias sem dormir, ou dias e até semanas dormindo ou simplesmente me espreguiçando na cama, gemendo e sonhando acordado, inventando estórias complexas, mudas, e pendurando os móveis nas paredes. Posso me deitar na mesa de rodar e girar-me como o banquete de tripas e peixes até o vôo centrífugo, lançando-me nas paredes como pinturas grotescas.
Como reino de forma absolutamente solitária, tenho também direito às vestimentas mais nobres, ao terno de linho branco-amarelado, delicadamente amassado, ao chapéu de veludo cinzento, revestido de cetim dourado, às calças mais bem cortadas, ao lenço bem dobrado, cheiroso, ao pijama de listras fininhas, macio e frio. À noite, posso usar o Patek Philippe escondido no casaco de lã e deixá-lo dormindo ao relento no parapeito do alpendre.Bem cedinho, ainda embriagado, posso lamber o orvalho das colunas e arrastar com os pés os montes de besouros da noite, redesenhando a geometria dos mosaicos com amontoados metálicos, quitinosos, quiméricos. Mais tarde, mais aquecido, mais faminto, posso comer os restos da gente de ontem, quase dejetos, quase coisas petrificadas, quase ferrugem, quase limo e, no fim do dia, vomitar a matéria densa num canto da biblioteca, como escultura disforme.
Aninhado no meu quarto, tenho sonhos barrocos, percorro antigos labirintos em profundas reentrâncias calcárias, me debruço em peitoris descascados, me encosto em espaldares assombrosos, me espremo em entalhes voluptuosos, meto a mão em escaninhos profundos, arranho o azinhavre doce das lápides do quintal, escuto calmamente o lamento sussurrado dos adornos do canto da sala, corto as raízes mais velhas da escrivaninha – somente as anastomóticas – sinto a respiração das gavetas azedas e os gritos do assoalho rancoroso, derramo nanquim em páginas alternadas do dicionário ilustrado, ouço o ganzá das armas dos meninos lá no pátio do colégio, misturo flores de manacá e mirra num imenso patuá celeste e, no domingo, em estado completamente demencial, liberto, visto o traje solene de chumbo, flor de gardênia na lapela: caminho incólume pela cidade perplexa, passando lentamente pelo ritual medonho que acontece na nave da igreja. Na volta, descendo o lado ocidental da serra com certa culpa de fugitivo, vejo o grande minarete na frente da casa e subo correndo, como muezim enlouquecido, para a aventura final: vaporosa.
Então, o que escrevo neste texto é apenas eco do prisioneiro do alpendre, do enviado, do relator, do emissário, do espião em constante estado de servidão, vestido no uniforme da melancolia.Estou, portanto, condenado ao macabro decreto de Nietzsche, como se estivesse lendo, em cada desejo de futuro, suas palavras gravadas no mármore: aquele que não sabe instalar-se no limiar do instante, esquecendo todo o passado, aquele que não sabe, como a deusa da vitória, colocar-se de pé uma vez sequer, sem medo e sem vertigem, este jamais saberá o que é a felicidade.E o que é ainda pior: ele jamais estará em condições de tornar os outros felizes. Imaginemos, para tomar um exemplo extremo, o homem que não possuísse força suficiente para esquecer e que estivesse condenado a ver em tudo um devir (Werden): um homem assim não acreditaria mais em sua própria existência, não acreditaria mais em si, veria tudo se dissolver numa multidão de pontos móveis e deixar-se-ia arrastar por essa torrente do devir: como um verdadeiro discípulo de Heráclito, ele acabaria por nem sequer mexer um dedo. [1]
[1] — Nietzsche, Friedrich. 2005. II Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida. Apresentação, tradução e notas: Noéli Correia de Melo Sobrinho. Loyola, Rio de Janeiro, 360p., pg. 72.