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Para Fátima Cabral, interlocutora sempre presente nessas conversas musicais.
“Sem música a vida seria um engano”
(Nietszche)
A proposta feita a mim pela Revista Tatuí, escrever sobre as relações entre a Nova Geração da MPB e as canções dos anos 60 e 70, fez-me lembrar de uma pergunta que não soube responder há 5 anos, quando um professor me interpelou: “mas o que você entende por MPB?”.
Pergunta aparentemente inocente. Mas a resposta pode ser vista como “politicamente incorreta” ao não se incluir a imensa produção musical atual: pagode, rap, funk, pop rock nacional, sertanejo, axé, forró, romântica e assim por diante. Afinal, se a sigla MPB significa Música Popular Brasileira, não seria mero “preconceito de classe” afirmar que ela não representa os segmentos acima citados?
Tal debate é sem fim. Alguns reclamam porque artistas surgidos nos anos 60 e 70 são reverenciados como únicos representantes legítimos da MPB, enquanto muitos/as cantores/as, músicos/as e intérpretes que são mais consumidos não têm prestígio. Outros, que o grupo formado pelos “papas e damas” ainda sustenta uma produção de qualidade que não tem seguidores num cenário fonográfico “pobre”, marcado pela efemeridade, onde a cada mês uma nova moda substitui outra que também nascera há pouco. Há ainda os que acusam todos (compositores/as /intérpretes novos/as e velhos/as) de crise de inspiração, sugerindo que já não se faz mais música como antigamente.
Esta situação revela uma tradicional discussão sobre cultura e da arte que divide uma produção tida como “artística” de outra considerada “de massa”. Pensando nos termos de Bourdieu, os indivíduos estão inseridos espacialmente em determinados Campos Sociais, onde compartilham com seus pares certos capitais (cultural, social, econômico, político, artístico, etc.).Neste sentido, para que um indivíduo faça parte de determinado Campo, deve conhecer as regras e estar disposto a jogar a partir delas para ter sua atuação legitimada. Voltemos um pouco à história para observar o caminho da construção do campo musical brasileiro e, quem sabe, resolver o imbróglio sobre o significado do termo MPB, observando as relações entre a produção musical dos anos 60 e 70 e as gerações seguintes.
A MPB surge como uma nova proposta dentro da tradição. Vinda do desenvolvimento da Bossa Nova, que já se constituía uma renovação radical, foi chamada inicialmente de MMPB (Moderna Música Popular Brasileira) por trazer em seu conteúdo uma clara crítica social. Feita e consumida por jovens universitários em casas de show e teatros de São Paulo e Rio de Janeiro, consolidou-se nos Festivais da Canção veiculados pela TV em meados da década de 1960.
Portanto, em sua origem, o termo tem um teor mais político/ideológico que musical. Dizia respeito a uma produção de compositores de classe média que buscaram discutir o país através de suas canções.
Num primeiro momento (1960 – 1967), sintonizados com o projeto nacionalista encabeçado pela esquerda e pelos movimentos sociais, tais artistas produziram canções telúricas (a partir da utilização de temas, constâncias melódicas e harmônicas populares e instrumentos da tradição musical brasileira como violão e percussão); num segundo, após a autocrítica feita por seus pares aglutinados no movimento Tropicalista, aderiram à idéia de cultura antropofágica, preocupando-se mais com a questão da forma estética.
Apesar das divergências entre os adeptos da canção de protesto e dos tropicalistas, todos estiveram orientados pelo mesmo desejo de consolidar a nação brasileira. E foi essa orientação que marcou o nascimento e cristalização do termo MPB.
E esta história revela também a consolidação do campo musical brasileiro. A geração de 1960 não desconsiderou a lógica mercadológica, diferenciando-se da postura dos dirigentes pioneiros do campo musical nos anos 30 que tinham um discurso militante de oposição às regras do aparelho produtivo.
Mas é importante destacar que a geração de 1960 não aderiu ao mercado de forma ingênua, ou inocente. Os novatos da canção popular viam neste espaço tanto a possibilidade de se profissionalizar, quanto a de se fazer ouvir e, assim, congregar mais adeptos à causa nacional. Esta inserção consciente gerou uma relação profícua e crítica com o sistema. Os atores da cena musical abasteceram o aparelho de produção, mas também o modificaram – nos termos sugeridos por Benjamin em seu texto O autor como produtor.
A relação entre o campo musical dos anos 60/70 e o mercado me faz lembrar algumas idéias de Erza Pound sobre mestres e inventores. Mestres, aqueles que conjugam os processos artísticos já inventados com maior habilidade que os próprios criadores. Inventores são dedicados às pesquisas formais e à imanente atualização de conteúdos.
Explico-me: a inserção consciente fez com que os “nacionalistas” se consolidassem como os mestres e os tropicalistas como os inventores da MPB.Chico Buarque, Edu Lobo, Baden Powell, entre outros que, embora não fugissem à tradição musical brasileira (sobretudo, o samba dos anos 30, como Noel e Cartola, e a bossa nova dos anos 50), criaram obras-primas da MPB, tornaram-se mestres.
Os tropicalistas tornaram-se inventores (nos textos de jornais daquela época os irmãos Campos diziam inventivos, mas a referência era a mesma, Pound), porque atualizaram a criação da MPB a partir de novidades técnicas e tecnológicas.
Mas a incipiência da indústria cultural brasileira que garantia uma produção cultural mais autônoma tinha seus dias contados. Essa situação foi modificada com as inovações tecnológicas possibilitadas no país via “modernização conservadora”. Com elas, após 1969, o termo MPB é ampliado. É o momento da contracultura, dablack music, da canção social sem as grandes pretensões de antes, da música romântica, etc.
Ainda naquele momento, as novidades foram criticadas tanto pelos produtores e consumidores da restrita MPB, quanto por representantes do próprio Estado. Em qualquer jornal ou revista publicados entre finais de 1960 e meados de 1970, é possível encontrar debates calorosos sobre os caminhos da nossa MPB. Cito a recomendação feita pelo então ministro da Educação e Cultura, Ney Braga, ao Departamento de Assuntos Culturais: “sugiro a sondagem entre compositores, pesquisadores e órgãos de produção e divulgação a fim de descobrir as causas da aparente decadência da música popular brasileira e, se possível, saná-las”.
De lá para cá, muitos destacaram que a produção musical pós-70 é formada por seres “estranhos, híbridos e fugazes” (BAHIANA, 1980), “objetos não identificados” (NAPOLITANO, 2001), “Não-MPB” (SILVA, 1994), Pós-MPB (SANDRONI, 2004). Então assim chegamos à história que conhecemos…
Dada a importância da produção da geração 60/70 para a “institucionalização” de nossa canção popular, ela tornou-se parâmetro para toda criação posterior. Mas diante do exposto, penso que a defesa da MPB como um gênero musical específico revela mais um conteúdo ideológico que estético. Afinal, gênero musical é uma categoria para descrever a partilha de elementos comuns tais como instrumentação, texto, estrutura, função. Partilha nunca hegemônica nesse campo, a não ser no que diz respeito aos projetos políticos.
Ao mesmo tempo, embora seja indiscutível que toda produção nacional não-erudita é popular e é brasileira, não me parece plausível compreender a sigla MPB apenas como uma abreviação de toda canção popular feita já que se reporta, originalmente, a uma produção que está no mercado, mas não é feita apenaspara o mercado.
Isto porque embora não seja um gênero musical específico (podendo ser samba, bossa, coco, modinha, rock, etc.), é formada por canções que trabalham ainda com a forma estética e não com a fórmula mercadológica– o que não significa dizer que toda criação desse campo seja de qualidade indiscutível.
E para os pessimistas que não vêem luz no fim do túnel desse cenário dominado pela fórmula padronizadora dos meios, sugiro uma atualização de fontes. Há, atualmente, um movimento considerável em torno de uma produção que se coloca como parceira/herdeira daquela MPB. Movimento que conta com gravadoras (Biscoito Fino, selo Quitanda, Trama, etc.), espaços de divulgação (rádios especializadas, casas de show, blogs, etc.) e patrocinadores (como o Prêmio Visa de Música Brasileira) e merece um estudo atento que possa nos dar as dimensões de suas relações com a busca pela identidade nacional que marcou grande parte de nosso pensamento social e artístico.
Alguns palpites. Composições como as de Consuelo de Paula comprovam uma impressionante inspiração e marcante herança da nossa tradição musical, conforme seus próprios versos: “Hoje sou a terra onde nasceu/ Onde minha tribo nunca morreu/ Meus pés irão/ Desenhar/ O coração/ A montanha/ E a nação” (Dança para um poema).
Da mesma forma, interpretações de A Barca, de Kátya Teixeira e de Déa Trancoso, parecem dar continuidade à proposta de se fazer uma apropriação “sofisticada”, ou “moderna”, de elementos da cultura popular. As interpretações de Mônica Salmaso e Renato Braz sugerem releituras e diálogos com aquela MPB; tal qual o movimento de “resgate” e renovação do choro e do samba no Rio de Janeiro, puxado por nomes como Tereza Cristina, Tira Poeira, Zé Paulo Becker; as atualizações de tradições folclóricas por Cris Aflalo, Mariene de Castro, Rita Ribeiro; ou mesmo os novo sambas compostos por Arnaldo Antunes, o som claramente tropicalista de Chico Science… A lista seria imensa.Isso para não falar da produção renovada e ainda impecável de nomes consagrados, como Maria Bethânia e Ney Matogrosso, que não se acomodam com o já estabelecido.
A produção mercadológica e estandardizada não elimina a autoral, embora não ofereça espaço para ampla divulgação. Termino lembrando uma fala do nosso polêmico Caetano num debate promovido pela Revista Civilização Brasileira em 1966 (ano !, n.7): “Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema. Paulinho da Viola me falou há alguns dias da sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus discos. Tenho certeza de que, se puder levar essa necessidade ao fato, ele terá contrabaixo e terá samba, assim como João Gilberto tem contrabaixo, violino, trompa, sétimas, nonas e tem samba. Alias João Gilberto é o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música popular brasileira”.
Daquele passo à frente dado por João Gilberto até hoje, a “linha evolutiva” de nossa MPB nunca parou. Tornou-se uma “praga”: mesmo quando alguns juram que morreu por falta de inspiração, está lá, atualizando-se, nos convidando a cantar e dançar e nos lembrando que, apesar de tudo, há beleza nesse mundo “racional”.