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“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.”
Walter Benjamin, Teses sobre a história.
“O passado é um país estrangeiro, lá eles fazem as coisas de modo diferente.”
L. P. Hartley, O mensageiro.
Relíquias, vestígios, souvenires, rastros, mementos, arquivos… A cultura contemporânea está marcada indelevelmente por sua relação com o passado, com a memória e, de muitos modos diferentes, com a nostalgia. Este artigo trata de entender como a nostalgia passa de enfermidade, de maladia, de patologia que precisa ser curada, aliviada e dissipada, a dominante estético e artístico. Linda Hutcheon é uma das que explica essa origem médica do termo:
With its Greek roots–nostos, meaning “to return home” and algos, meaning “pain”–this word sounds so familiar to us that we may forget that it is a relatively new word, as words go. It was coined in 1688 by a 19-year old Swiss student in his medical dissertation as a sophisticated (or perhaps pedantic) way to talk about a literally lethal kind of severe homesickness (of Swiss mercenaries far from their mountainous home) (HUTCHEON, 1998).
O conceito de nostalgia empregado aqui, portanto, tem suas raízes nas teorias pós-modernas e nos debates mais recentes sobre o papel da estética nos Estudos Culturais (BERUBÉ, 2005). É inevitável, em se tratando de nostalgia e pós-modernismo, acedermos a Jameson (1991, 279-296), que fala sobre o processo pós-modernista de reificação do passado através da recuperação de artefatos culturais; através de uma recriação metonímica, a nostalgia pelo estilo, pelo modo em que certas épocas foram eternizadas, mais do que pelo passado em si. Jameson, tanto neste texto, como em trabalhos posteriores nos quais tratou sobre a utopia, ataca o pós-modernismo justamente no que ele considera “nostalgia regressiva”, talvez no sentido de que nostalgia geralmente se refere a um anseio por “dias melhores” que vai paralisando o presente.
Jameson vê a insistência na nostalgia como uma maneira de demonstrar uma falha do presente – ou uma historicidade esquizofrênica. Vai definir o pastiche como sintoma da incapacidade do nosso tempo de se pensar historicamente. Assim, o retorno quiçá ingênuo, ou historicamente deformado, do pós-moderno ao passado, a nostalgia como sintoma, para Jameson, são sinais de regressão, de esvaziamento histórico. Mas é interessante ressaltar que as operações da nostalgia no pop vão além das suas encarnações já descritas e discutidas a partir dos conceitos de paródia e pastiche pós-modernos.
Linda Hutcheon (1998) aponta certa contradição entre o protesto que Jameson faz pela “nostalgia regressiva” do cinema (e da cultura pós-modernista como um todo) e seu gosto nostálgico e idealizador pelo mundo pré-capitalista tardio e pelo modernismo estético. O que, em todo caso, é bastante revelador dos paradoxos que constituem a cultura contemporânea. Aliás, Hutcheon vai tentar dar conta da tensão entre a tendência nostálgica do pós-modernismo e a ironia, que ela considera o aspecto mais seminal do contemporâneo, através de sua causticidade e auto-reflexividade. O argumento demonstra que grande parte da cultura contemporânea de fato está marcada por uma íntima associação com a nostalgia, mas que as expressões pós-modernas teriam plena consciência dos riscos, armadilhas e atração da nostalgia, e que buscam expô-los precisamente através da ironia. O que me parece instrumental para não apenas compreender a proeminência da nostalgia na cultura contemporânea, especialmente nos campos das artes visuais, da música, do cinema e da moda, como também vislumbrar as formas a partir das quais ela opera.
Um dos aspectos mais curiosos nesta “supremacia nostálgica” da arte e da cultura é a absoluta irrelevância da idéia de autenticidade histórica quando determinada forma, ou fato do passado, são evocados. Logicamente é algo que podemos ligar a Jameson e seu raciocínio sobre a (a)historicidade pós-moderna, mas também é uma tendência indissociável da cultura jovem contemporânea (tanto na esfera da produção, como principalmente da recepção). Os artefatos desta cultura e a sociabilidade sugerida pelo seu consumo revelam não necessariamente uma memória direta dos acontecimentos referidos, ou a familiaridade com o repertório citado; o que importa é sobretudo o afeto – seja por algo que foi efetivamente vivido, ou por algo que esses jovens gostariam de ter vivido. A nostalgia então funcionaria não tanto como comentário sobre o passado, mas como reação criativa ao presente, como articulação, às vezes intensamente subversiva, do sentimento de inadequação, ou deslocamento em relação ao aqui e ao agora.
Neste sentido, podemos pensar nesta articulação insistente da nostalgia como a projeção do passado para frente, como um paradoxo espaço-temporal que condensa passado e futuro, memória e desejo, nostalgia e utopia. Ou seja, a nostalgia se configura como uma temporalidade ambígua, como uma dimensão paralela da memória, como uma instância alternativa dos arquivos. Podemos pensar, então, na predominância da imaginação nostálgica – esta complexa conexão com o passado e com a história (que ora se apresenta como historicidade esvaziada, ora como persistência da memória subjetiva, ora como discreta revolta contra o passado) como complementar a outra operação relevante do contemporâneo: as narrativas utópicas.
Utopia é aquilo que não é, aquilo que não está em lugar nenhum, ou, melhor dizendo, aquilo que pertence exclusivamente à ordem da narrativa; utopia é a narração da utopia, um gênero que se debate em forma permanente contra e a favor de suas próprias impossibilidades (CORDIVIOLA, 2001, p.5).
Em alguma medida, é como se a utopia, engendrando suas narrativas redentoras (ou o seu avesso, a distopia, ao criar seus apocalipses), apontasse o espaço futuro da nostalgia, revelasse o sentido prospectivo da memória.
Esta leitura pode, inclusive, ser invertida. E talvez esteja nesta inversão uma chave importante para a compreensão da arte contemporânea: a nostalgia (pelo passado, por uma memória por vezes inventada, pelo cotidiano que se perdeu em meio ao turbilhão das imagens midiáticas, pela delicadeza das pequenas lembranças) também pode ser diagnosticada como um anseio utópico. De fato, as centelhas da imaginação nostálgica podem ser a marca de algo profundamente transgressor e penetrante: a capacidade de mobilizar o passado crítica e afetivamente como espaço de resistência cultural. Através de imagens que relampejam irreversível e velozmente, como mostrou Benjamin nas suas teses sobre a história, certas articulações da nostalgia terminam por desvelar promessas de beleza.
Referências Bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito da história. (http://www.geocities.com/jneves_2000/wbenjamin.htm)
CORDIVIOLA, Alfredo (org.). Um projeto inacabado. Identidades latino-americanas no ensaio do século XX. Recife: Bagaço, 2001.
HUTCHEON, Linda. “Irony, Nostalgia and the Postmodern”, University of Toronto English Library, 1998. http://www.library.utoronto.ca/utel/criticism/hutchinp.html (acessado em 15 de janeiro de 2008)
JAMESON, Fredric. Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism. Londres: Verso, 1991.