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Capa da revista

EDITORIAL

Em tempos de intensa circulação de informações, indivíduos e recursos, como tem sido produzida, pensada e viabilizada a arte? Em um contexto de mobilidade generalizada, em que o deslocamentose torna não apenas meio para realização de projetos, como também finalidade de muitos deles, que necessidades e demandas têm surgido? Entre fluxos globalizatórios e especificidades locais, como nos movemos?

Trabalho em rede, residências, tecnologia, programas de exportação, políticas de difusão, economia da cultura, intercâmbios, experiência estética, internacionalização,caminhadas, criação, história e crítica da arte são algumas das questões abordadas nesta Tatuí 11, que se apresenta como um debate construído por entre camadas de textos, entrevistas, cartas, falas e conversas entre artistas, curadores, críticos e gestores.

As ideias sobre a nossa crescente situação de trânsito são, por sua vez, trespassadas por desenhos de Nelson Félix, nos quais estão postas experiências (tantas vezes solitárias) de deslocamento pelo mundo.Um trabalho que se configura em movimentos de partida e retorno – momentos de quase absoluto evanescimento e, por outro lado, estrondosa aparição.

Entre as urgências do ir e vir,permanecem as inquietações do caminho, esobre as quais se debruça esta Tatuí.

Por Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz, editoras.

Colaboradores

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Conteúdo

Índice
  1. [LADO A] EDITORIAL - Escrito por Ricardo Basbaum
  2. [LADO A] Caminhando e cantando. Desenhos sobre a sensação de ir - Escrito por Beatriz Lemos
  3. [LADO A] SansPapiers - Escrito por Marcio Harum, Marcio Shimabukuro, Micheline Torres e Tatuí
  4. [LADO A] O lugar da negociação na mobilidade - Escrito por Lucas Bambozzi
  5. [LADO A] GLOBETROTTER_ENTREVISTA - Escrito por Ricardo Resende
  6. [LADO A] cartas. do deslocamento espaço-emocional - Escrito por Ana Luisa Lima e Mayra Redin
  7. [LADO A] carta. do deslocamento subjetivo pela experiência estética - Escrito por Ana Luisa Lima
  8. [LADO B ] Olinda, 15 de outubro de 2010 - Escrito por Mayra Redin
  9. [LADO B] “I’m lovin’ it” - Escrito por Clarissa Diniz
  10. [LADO B] Acumulação e Empreendimento - Escrito por Afonso Luz e Tatuí
  11. [LADO B] cartas. do deslocamento político-espacial - Escrito por Ana Luisa Lima e Mayra Redin
  12. [LADO B] NÃO SEJA MARGINAL, NÃO SEJA HERÓI : a arte brasileira no exterior em tempos de mobilidade acelerada - Escrito por Kiki Mazzucchelli
  13. [LADO B] SansPapiers - Escrito por Marcio Harum, Marcio Shimabukuro, Micheline Torres e Tatuí

[LADO A] EDITORIAL

Realmente acho muito importante essa ênfase na condição contemporânea do artista. Uma condição contemporânea que excede a produção de objetos ou obras, exibindo fluênciadeslocamento e mobilidade como valores. Trata-se de desenvolver ferramentas de trabalho que viabilizem esses deslocamentos. É uma prática que se caracteriza pela ação/intervenção sobre circuitos mediadores de sua funcionalidade e atuação. Deslocar-se através de relaçõesredes, compreendendo asi próprio como resultado dessa dinâmica. Trata-se de uma atuação na construção de eventos e situações. Através da produção e administração de suas diversas camadas de articulação e mediação.

Ricardo Basbaum

[grifos das editoras da Tatuí]

 

Trecho retirado de O que exatamente vocês fazem, quando fazem ou esperam fazer curadoria?, obra de Pablo Lobato e Yuri Firmeza (2010).

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[LADO A] Caminhando e cantando. Desenhos sobre a sensação de ir

Viajar? Para viajar basta existir.

Fernando Pessoa

 

1ª Viagem

Em 2005, na ocasião de minha primeira viagem a Buenos Aires, na qual fui, primeiramente, a passeio, entendi que ao conhecer artistas, circular por seus eventos e inteirar-se das dinâmicas sociais dos círculos de arte,a compreensão da história e cultura daquele país se tornava mais clara e as obras, bastante familiares. Seria possível rodar o mundo e entendê-lo tendo como porta de entrada a arte contemporânea? Compreender contexto através da estética e apreciar especificidades levando em conta situações foi – e continua sendo – motor para a minha mobilidade. Seguindo esta pista, inicio a pesquisa/articulação por países da América Latina com a constanteinquietação: como disseminar esta vontade de perceber o meu próprio trabalho a partir do embate com o outro, o diferente, o distante, o oposto?

Perseguindo este pensamento, tenho proposto exercícios migratórios entre artistas e teóricos do Brasil e demais países latino-americanos, assim como entre os do Rio de Janeiro (onde vivo e trabalho) e de outros estados e cidades brasileiros.

 

There are no foreigners in art[1] Frase proposta como um dos eixos curatoriais da 52ª Bienal de Veneza. Em português: “Não existem/ Não há estrangeiros na arte”

Vivemos o período dos deslocamentos com vigilância. A mesma euforia entusiasta da era das Grandes Navegações – período entre os séculos XV e XVI – é presente em tempos nos quais a tecnologia da comunicação se aprimora a cada instante e a globalização é muito mais disseminada, do que entendida em toda sua complexidade. Fatores econômicos e incentivos governamentais nos permitem presenciar a facilidade da viagem e das trocas culturais, contudo, em movimento paralelo e contrário, pipocam os obstáculos para os cruzamentos fronteiriços, devido à onda de medo e paranoia internacional, elevando tensões e frustrações.

Hoje em dia, não viajamos com caravelas, que adentram o mar à conquista de novos mundos ou ao encontro do exótico. Deslocamo-nos rapidamente (muitos sem um pouso fixo). Somos móveis, transitórios e compartilhamos da utopia de um mundo sem fronteiras.

É nítida a familiaridade com que percebemos semelhanças e diferenças culturais, apesar de vivermos este paradoxo do ir e vir. Se cultura é a maneira como entendemos e nos portamos diante do mundo, este re-conhecimento cultural, proveniente da deslocação, desencadeia diferentes formas de percepção e compreensão de mundo e vida. Ou seja: quanto mais temos oportunidades de nos desvincular de uma zona de conforto para experenciar inéditas situações, ou até mesmo situações externas à rotina, sabemos que ao voltar para casa estaremos mais híbridos [2] Pensamento defendido por Nestor García Canclini sobre a hibridez nas culturas in: CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006..

Na arte dos últimos anos esta busca pela hibridez cancliniana vem se tornando foco de investigações artísticas e curatoriais, gerando conceitos para obras e exposições [3] Como exemplos: 52ª Bienal de Veneza (2007)e Trienal de artes da TateBritain (2009)..Viagens, residências e diários de bordo já não fazem parte somente do processo, são também o resultado de pesquisas.O ateliê torna-se espaço móvel ou pode restringir-se a um caderno de notas: o registro, muitas vezes, é a memória.

Esta experiência no âmbito pessoal (vivência), que se traduz em arte, possibilita outras relações com o espaço e o tempo. Orientações cartográficas, alucinadas derivas e trocas afetivas em movimento oferecem oxigênio a pesquisas e trabalhos, ao mesmo tempo em que se constituem dinâmicas iniciais para a legítima interação com o lugar. Ao propor um trabalho a partir do deslocamento, atentando para especificidades de cada contexto, é preciso nutrir o sentido de pertencimento dispondo-se à identificação de conflitos, soluções e possibilidades para a mediação, ou seja, deixar-se ser afetado pelo lugar.

 

Rede de contatos – ações colaborativas

O deslocamento de artistas sempre foi fator importante para a construção de identidades e emoções sociais em toda a história da cultura. Atualmente, essa prática é difundida de forma expressiva através dos programas de residênciaartística. O artista não se move mais apenas pelo registro ou documentação. A mobilidade é praticada visando o amadurecimento da produção e a troca, seja entre pessoas ou em relação ao lugar. Através dos espaços de residência e suas ações em rede, o trabalho artístico recebe ferramentas para a interação.

Grande parte desses espaços se constitui em iniciativas independentes (alguns se iniciaram como projetos artísticos) e autogestionadas que fundamentam suas atividades a partir da experiência e do trabalho em processo.Sustentam-se por redes colaborativas de informação, difusão de projetos e da interseção de propostas para programas participativos, dos quais custos referentes ao intercâmbio são supridos. As colaborações também estão associadas à criação e produção de publicações, textos críticos, projetos de artistas e ações educativas.

No que diz respeito aos espaços de residência ibero-americanos, suas colaborações em rede, desde 2008, tem acontecido em grande escala através da residencias_en_red [residenciasenred.blogspot.com]. Esta rede, que atualmente é coordenada logística e financeiramente pelo Centro Cultural de Espanha em São Paulo, visa à costura de um projeto comum de autogestão e financiamento, levando em conta diversidades encontradas em cada contexto.

Em países onde políticas públicas para cultura não alcançam patamares satisfatórios, iniciativas que incentivam a prática de pensar outras maneiras de fazer arte, que não as vinculadas às grandes instituições legitimadoras, são mais do que respostas às demandas locais –são resultados de uma sociedade e suas reflexões.

Três exemplos de iniciativas independentes que transformaram a cena artística de suas cidades, e que pude conhecer de perto como curadora-residente, são: Lugar a Dudas em Cali, Colômbia; Kiosko em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia e Batiscafo em Havana, Cuba.

Lugar a Dudas [lugaradudas.org] foi minha primeira residência artística/curatorial. A partir dela e das experiências vividas em Cali, delineei as intenções de meu projeto de pesquisa.Idealizada pelo artista Oscar Muñoz e coordenada por ele e sua companheira Sally Mizrachi ,Lugar a Dudas, atualmente, concentra um espaço com acomodações para residência, centro de documentação, salas de exposições, periodicidade em publicações e festivais de cinema, gerando grande visitação e reconhecimento. Iniciou suas atividades em um panorama local completamente carente de espaços e políticas para arte contemporânea, porém hoje já é centro de referência em toda Colômbia, assim como nos demais países latino-americanos. Para a cena local, seu surgimento possibilitou intercâmbios com outros centros de residência em todo o mundo, o impulso de ações de arte coletivas e públicas e o incentivo à pesquisa e produção crítica, incrementando ainda mais a fervente produção colombiana em arte.

Na Bolívia, a linguagem contemporânea, todavia, encontra resistência da classe mais tradicional da arte e do governo atual, dificultando o trabalho de artistas, teóricos e gestores da área. Nos dois meses que passei no país como residente, não tive conhecimento de programas públicos de financiamento e encontrei poucos espaços independentes. A presença de Kiosko Galeria [kioskogaleria.com] e seuprograma de residências são de extrema força ativadora para o país. A galeria e o programa fazem parte do organograma do estúdio de design Simple, que iniciou suas atividades de maneira autônoma devido à iniciativa deum grupo de artistas e designers. Localizada na cidade economicamente mais intensa (com características e posicionamentos políticos opostos à capital La Paz), Kiosko gera para a Bolívia um fundamental intercâmbio de projetos e reflexões, pois, ao lado do Proyecto Martadero de Cochabamba, articula as possibilidades de residências no país.

Batiscafo [batiscafo.org] atua em Cuba de maneira clandestina, como as demais iniciativas da Ilha que não são administradas pelo governo. Não possui sede fixa –residentes se hospedam em casas de cubanos –e se constitui apenas de uma pequena equipe (que também não é fixa) trabalhando na logística e no acompanhamento dos artistas e curadores visitantes. Atualmente, a residência passa por indefinições quanto à sua continuidade, devido ao término de financiamento estrangeiro para as bolsas e nenhuma possibilidade de apoio local. Contudo, desde 2002, Batiscafo gestiona o intercâmbio entre duplas – sempre um artista cubano e um estrangeiro -, promovendo debates e ações por Havana que reverberam por todo o mundo. Batiscafo é antes de tudo uma iniciativa de resistência. Ativismo político em forma de programa de residência.

 

Articulações em pesquisa ou A curadora viajante

Incentivar a costura destas redes de afetos e desejos vem sendo minha atividade-praticamente cotidiana -, há 5 anos. Presencial ou virtualmente, tento tecer vivências de deslocamentos, físicas ou intelectuais, e propor situações entre zonas de intervalos. A noção de tempo-espaço via internet se alarga e se comprime simultaneamente, fazendo com que distâncias, ritmos pessoais e línguas mescladas promovam a comunicação à ferramenta que celebra a diversidade. Ao aproveitar esta grande rede tecnológica(o cérebro do mundo)temos a oportunidade de agir em cooperação para a efetividade e difusão de experiências entre países, estados ou cidades.

Alguns são os pensamentos e projetos que venho tocando a partir de minhas próprias viagens. Como o ato de ir de um a outro lugar distante interfere na produção de um artista? Qual lugar seria mais instigador para determinada pessoa? Que artista seria mais estimulador para determinado contexto? E ainda:quais seriam as maneiras possíveis, em panoramas de recursos escassos, para a realização de uma residência artística?

A abordagem dessas questões, através da lógica curatorial, só se torna possível (de maneira leal) após a pesquisa in situ, na qual especificidades locais são tratadas com respeito e se tornam condicionantes. Entender a curadoria como a ativação de diálogos responsáveis entre artista, contexto, obra, público, indivíduo e mundo conduz a prática a uma atuação articuladora de sentidos, próxima a um pensamento político e ideológico.

Como ramificações do Projeto de pesquisa Intercâmbios, propostas de exposições, obras em colaboração e residências móveis aconteceram no decorrer desses últimos anos, desempenhando um papel aglutinador. O projeto Arte in Loco (2009-2010) [inlocoproject.blogspot.com], no qual dividi a curadoria com Pablo Terra, realizou o intercâmbio entre brasileiros e argentinos envolvendo exposições e um mês de residência em cada país. As ações ocorreram em Buenos Aires e Rio de Janeiro, com exposições na Fundação de Estudos Brasileiros e Museu da Maré, respectivamente. Belén Gunset, Daniel Murgel, Ezequiel Semo, Federico Zukerfeld, Joana Traub Cseko, Loreto Garín, Luciana Lamothe e Yuri Firmeza participaram do projeto de intercâmbio, que gerou quase um ano de conversas e reflexões sobre o espaço urbano, o conflito entre culturas e a importância do divertimento em arte. Se não é divertido não é sustentável[4] Um dos critérios valorizados por moradores de comunidades sustentáveis em momentos de tomada de decisão.Aqui, a apropriação faz referência a alusão ao sentido do verbo suportar..

Como uma sugestão de reconectar laços atados durante minhas andanças e, literalmente, aproveitar dicas de cadernos de viagens, continuo o convite a artistas brasileiros às residências móveis dentro do projeto Mobil(c)idades: s. f. 1 movimento comunicado por uma força qualquer [mobilcidades.blogspot.com]. A residência móvel Mobilidades consiste em uma exposição e percurso por diferentes cidades de um mesmo país, com o intuito de agregar bagagem visual e sensível ao artista. Nesta proposta já embarcaram Gustavo Speridião para Bolívia, Guga Ferraz para o Equador e, em março de 2011, Julio Callado embarcará para o Chile. Esta iniciativa é apoiada por colecionadores e produtores de arte em parceria com os próprios artistas. Soluções estratégicas para a circulação de produções e transitórias vivências internacionais.

A proposta pioneira de deslocamento de artistas dentro de minha atuação curatorial foi o projeto 4 territórios [4territorios.blogspot.com],o qual acredito ser um bom exemplo de ampliação do entendimento público sobre residências artísticas. O projeto foi contemplado pelo edital Conexão Artes Visuais Funarte no ano de 2007 e teve sua realização em 2008 no Rio de Janeiro, Olinda, Brasília, Belém e Curitiba. Sete artistas e um coletivo, trabalhando em duos, trocaram de casas para realizar intervenções e vídeos que propunham diários de viagens. O projeto não consagrava catálogos, exposições ou palestras – entendidos como possibilidades de registro de resultados e comprovação de trabalhos realizados. Consistia, com ênfase em sua justificativa para o edital, na valorização da experiência.

A arte a partir da viagem alcança desdobramentos talvez antes impensados. Nestas  situações não é somente o artista ou sua obra que se tornam visíveis e com os quais é preciso relacionar-se. Em viagens, hospedagens solidárias [5] Como proposta de pesquisa, ao viajar sem convites prévios de espaços de residência, tento me hospedar em casas de artistas locais como um meio mais rápido para a interação com o lugar. O mesmo tento articular para artistas, ligados ou não a projetos artísticos, que desejam o deslocamento a baixo custo e a ampliação de suas redes de amizades. e colaborações de trabalho, o indivíduo por trás do profissional (artista)também está em constante evidência. É neste detalhe que o olhar do curador é de singular importância. O êxito de um projeto que depende de momentos de convivência muito se relaciona à escolha acertada entre lugar, ambiente e personalidade de cada pessoa. Esta feliz decisão deve estar intrinsecamente conectada à proposta curatorial. A convivência e o deslocamento, se quiserem ser produtivos, devem conter, em medidas idênticas e exatas, tensão, inquietude, riqueza e criatividade.

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[LADO A] SansPapiers

 

Conversa entre os viajantes Marcio Harum, Marcio Shimabukuro, Micheline Torres e Tatuí, realizada por e-mail entre setembro de 2010 e janeiro de 2011, a partir de cidades do Brasil, da França e da África.

TATUÍ _Como sabemos – e como a prática artística/curatorial de vocês tem demonstrado –, o lugar da mobilidade, dos deslocamentos, tem sido, cada vez mais, o de protagonista da arte contemporânea – em seu campo e para sua criação. Que sentidos tem, para vocês, a ideia de mobilidade? Como a percebem encarnada na arte e no pensamento que têm desenvolvido?

HARUM _ Mobilidade? Creio que são várias as circunstâncias da vida profissional nos dias de hoje que envolvem o que viemos chamar aqui de ‘mobilidade’. Pensando o sistema de arte em primeiro plano, se há as condições favoráveis, devemos ir aonde o trabalho nos chama – não importa tanto assim se é um convite de participação em algum seminário, júri de seleção de editais, comissão de premiação de algum salão interiorano, palestra, orientação de workshop, banca de mestrado ou até mesmo uma bolsa-residência para pesquisa ou realização de projeto. Claro que este desprendimento tem a ver com o estilo de vida pessoal, sobretudo são reações que surgem da junção de desejos: a rapidez de adaptação e a atitude de saber sobre um novo entorno, de olhar o mundo com curiosidade, de produzir diferentes coisas reais ou imaginárias. Qualquer corporação internacional, seja lá de que ordem, está mais do que atenta aos seus talentos de bastidor quando o assunto é levar para fora alguma marca conceitual ou matéria-prima. É divertido perceber aquilo que consideramos talvez como um comportamento bastante natural entre os agentes do meio – ser/estar inquieto – sendo nomeado por “mobilidade”. Mas nem todo o padrão segue regras comuns de realidade, a ver: numa experiência de trabalho recente, tive a constatação de um artista que tem enorme dificuldade de subir em avião e tampouco relaxa fora de casa, sequer em bons hotéis. Mas raro mesmo é o caso de uma curadora que conheço que sustenta uma pesada agenda internacional, mas detesta viajar. Agora vamos combinar que por aqui MO-BI-LI-DA-DE mesmo tem o Shima, que a cada 3-4 dias se move em alguma nova direção, e a Tatuí, que é lançada a cada número em diversas capitais.

SHIMA _ Fatos relevantes na minha história me fazem refletir sobre a ideia de mobilidade e não tenho dúvidas no quanto isto é importante para o pensamento que tenho desenvolvido no meu fazer artístico: sou filho de imigrantes japoneses – tanto do lado paterno quanto materno – que vieram para o Brasil em 1958. Instalados na cidade de São Paulo, desenvolveram um sistema de vida que os fixou nos locais onde habitam, criando inclusive esquemas de agrupamento e convívio social e político, com a criação de associações culturais e esportivas e a manutenção de um calendário de eventos que sustentam atividades semelhantes à vida que tinham no Japão, mas completamente influenciados pela cultura brasileira.

Meu avô paterno trabalhou em uma companhia naval no sudeste asiático por 12 anos (quando solteiro), meu pai teve que trabalhar por 17 anos no Japão por consequência do Plano Collor (de 1992 a 2009). Penso se um tanto dessa necessidade de deslocar-me não tem certa responsabilidade genética. Contudo, isso me induz a pensar também que conheço muitas pessoas – artistas ou não – que investem parte do seu tempo refletindo e investigando sobre sua própria presença. Estamos exatamente no meio e por conta de outras trajetórias encontramo-nos onde estamos. Para onde apontaremos nossa seta e estaremos direcionados no futuro? Não podemos nos esquecer que somos um país de mestiços.

MICHELINE _ Faz mais de 12 anos que percorro muitos países e cidades no mundo, apresentando trabalhos de arte. Sempre pensei que, para a maioria desses lugares, nunca teria dinheiro para ir se não estivesse apresentando esses trabalhos. É através do meu fazer artístico que posso percorrer territórios: geográficos, subjetivos, políticos, culturais, oceanos, passaportes e Juazeiro do Norte. Todos esses diferentes territórios compreendem tudo que vai por cima deles: suas pessoas e relações, as casas, seus contextos econômicos, culturais e políticos, suas crenças e contradições, além, é claro, das inúmeras situações não discursivas ou fotografáveis que experienciamos, experiências estas que, só estando no lugar e “gastando” o tempo em estar lá, ganhamos. Algo como pequenas preciosidades locais, souvenirs que ficam impressos no meu corpo e na minha produção tão cravadamente quanto o ferro de marcar touro reprodutor que vi em Goiânia semana passada.

Olhando para isso, me pergunto:

O fato de me mover fartamente, por diferentes contextos, é que me faz atentar para essas diferenças de lugares e como elas têm um impacto em mim? Mas e o fato de que, já antes desses fluxos afluentes de viagens, eu sempre me interessei por “outros lugares que não aqui”, entendendo esses outros lugares não só geograficamente, mas também esteticamente, economicamente, existencialmente ou “como isso se dá no campo da fotografia?”, ou “como aquele músico lida com diferentes dinâmicas e faz disso uma fuga para piano?”.

Olho para a minha produção e entendo que essa pergunta axiomática apresenta um falso problema se procura uma resposta. E, ao mesmo tempo, oferece um fértil território se entende que é no matraquear mesmo de seu questionamento que está sua preciosidade permanente.

E isso me faz escrever esta frase assim: vivo de comer e ser comida por territórios e pessoas e contextos e diferenças. E esse tipo de ingestão, ruminação, vômito, passeia do slow ao fastfood, cheio de contradições e caroços.

TATUÍ_ Considerando as residências artísticas/curatoriais como um dos principais modos de deslocamento de artistas/curadores hoje, gostaríamos de saber como se dá, com vocês, a experiência de vivenciar outros contextos, cidades e indivíduos no processo dessas residências. É possível entender o residente, ainda, na ideia de flâneur? Que outro “lugar” o residente poderia estar ao se relacionar com a cidade?

MICHELINE _ Cada residência ou cada paragem num lugar se dá de uma maneira diferente, ainda que por vezes pareçam oferecer as mesmas condições de estada. Como também, a cada estada, se pode experienciar uma maneira diversa de estar no lugar e olhá-lo e sugá-lo ou ser por ele sugado. Ok, essas minhas palavras soam óbvias, não? “Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio”(Heráclito de Éfeso). Sim, sim, então vou começar de uma outra maneira, mais pontual.

Meu último trabalho, que se chama Eu Prometo, isto é Político, foi feito em/a partir de um contexto de residências artísticas em diferentes países, com condições econômicas, espaciais e participativas muito diversas. Essa característica se tornou o como o trabalho foi feito e se tornou sobre o quê o trabalho trata, também. Nesse processo de construção, que levou 2 anos, passei por Rio de Janeiro, São Paulo, França, Portugal, Noruega e México, experimentando maneiras de construir juntos, apontar diferenças e funcionar sobre distintas localidades, nacionalidades e condições materiais. Durante o processo artístico, estiveram inevitavelmente em jogo os assuntos de colaboração, da continuidade e as condições econômicas do entorno.

Sou resistente, insatisfeita, fico mesmo muito contrariada com a atitude de flâneur que porventura eu mesma possa desempenhar enquanto artista. Sim, esta contrariedade vem também de um entendimento (limitado?) meu de que “flâneur” é pouco, é pouco diante do envolvimento que sinto necessidade ao estar em um lugar. Ou, mais especificamente, quando flâneur é um adesivo de desterritorializado avagabundado e o adesivo vem com super bonder na página do meio do meu passaporte artístico. Não aceito mesmo esse adesivo.

HARUM _ Para além do modelo literário do flâneur baudelaireano, o artista e/ou curador em residência às vezes ainda é estigmatizado como desfixado e vagabundo por parte de uma camada conservadora de profissionais do mundo da arte. Há críticos e curadores que são capazes de comentar a miúdo que não confiam na práxis de artistas que vivem de residência em residência, por não terem a certeza de uma produção estável. Sem dúvida, este discurso caberia muito mais ao rol das preocupações comerciais de um galerista do que a sensibilidade/ lógica de um crítico. Dá no mesmo falar que um artista que não saiba falar inglês, então, não pode ser artista, concordam? E a respeito de residência curatorial, o Brasil enfrenta uma escassez generalizada de programas e de candidatos, o que gera um alto grau de desconhecimento sobre o tema. Não é raro um curador que parta com destino a um programa internacional de residência ser visto como um bon vivant pela ala ressentida institucionalmente. Afinal, não estamos defendendo a profissionalização das tarefas do curador o tempo inteiro? O que há de mais profissional do que receber e poder aceitar um convite oficial que inclua passagens aéreas, lugar para morar e uma bolsa de pesquisa? Não deveria representar mais novidade alguma perceber, já que tudo é mercado, que além do reconhecido papel de curador de instituição, do curador de bienal ou docente, existe também o curador que estrutura o circuito internacional de bolsas-pesquisa e residências. É justo esse que é visto ora como desempregado, freelancer, independente ou ora conquistador de sustento momentâneo mundo afora. Mas com médico em residência, ninguém mexe, não é?

MICHELINE _ Me senti péssima quando me vi, dentro de um grupo de europeus, visitando Monte Alban, um importante sítio arqueológico localizado a cerca de 10km de Oaxaca, no México, uma das mais antigas cidades pré-hispânicas, tendo sido capital dos Zapotecas entre os anos 500 a.C. e 800. O flâneur literário pode vir de Baudelaire e passear por muitas conotações e contextos, mas eu estava no México, eu não era dali, minhas roupas, meu grupo, minha nacionalidade não eram dali e assim mesmo, sendo o outro que compra o cartão postal, eu estava ali, vivendo aquele desconforto. Fiquei pensando que eu posso mergulhar mais fundo do que isto, estando em outros territórios. Sei que isso será meu exercício de todas as vezes e não tem um fim, apenas uma prática renovada.

SHIMA _ Quando não encontro familiaridade ou semelhança ao meu modo de vida, sinto-me estranho, deslocado, desencaixado. Os sentidos tornam-se aguçados para compreender este novo habitat, para entender este novo ‘estar no mundo’. Percebo padrões de comportamento, cronogramas distintos, hábitos peculiares, (diferentes) etiquetas, preconceitos e pensamentos. Não há como manter a individualidade em outro lugar, do contrário anulamos nossa presença em detrimento de uma integridade, uma unidade. O residente é obrigado a relacionar-se até para compreender o seu papel neste novo ambiente. Um indivíduo pode também estar onde sempre esteve, imerso em seu cotidiano, e tornar-se residente de seu próprio lugar.

Penso que, do contrário, para manter-se enclausurado em um ateliê, é melhor mesmo não sair de casa. O alienado não interage com o mundo. O convite para deslocar-se não é meramente geográfico, existem outras influências que acabam por afetar todo um pensamento e uma conduta de trabalho. Estar no inverno no interior da Holanda, onde o sol nasce de lado às 10h e se põe antes das 15h afeta profundamente os estados de um artista. É completamente chocante se comparado a um inverno do litoral pernambucano, por exemplo. Há ainda outros fatores que alteram a trajetória: alimentação, idioma e até a qualidade da água (da torneira ou do chuveiro, ou mesmo da chuva). Contextos sóciopolíticos, influências ambientais e econômicas, é preciso que um indivíduo tenha uma mínima consciência de onde se está para dar o próximo passo.

MICHELINE _ Gosto muito da frase do Antoni Muntadas: “ATENÇÃO, PERCEPÇÃO REQUER ENVOLVIMENTO”, e essa frase nós compreendemos quando um cientista se dá conta (e demorou para se dar conta!) de que ele não observa o evento com neutralidade e distanciamento, mas como um reativo em química, que atrapalha o meio.

Acredito mesmo que esse desconforto em ser um turista, ainda que momentaneamente, pode ser elucidativo, um veneno mesmo, que intrinca os pontos de vista e a relação com o lugar que se ocupa.

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[LADO A] O lugar da negociação na mobilidade

Tão logo uma imagem é apresentada como arte, por este próprio ato, uma nova estrutura de referência é criada da qual não pode escapar. Torna-se parte de uma instituição tão certamente quanto o brinquedo no berçário. (E.H. Gombrich) [1] Meditações sobre um cavalinho de pau”, ensaios reunidos publicado em 1963.

A inevitabilidade dos avanços nas telecomunicações, somada à sua crescente popularização, vem abalando ceticismos e endossando as potencialidades dos dispositivos celulares como ferramentas em rede, como dispositivos cinemáticos ou como estruturas plausíveis para a expressão artística. Diante de vertentes anteriores como a net-arte, as mídias locativas acumulam a simpatia de terem escapado dos limites da tela do computador desktop, e permitirem retomar experiências na trama da cidade, como preconizam Marc Tuters e Kazys Varnelis em Beyond Locative Media [2] Tuters, Marc e Varnelis, Kazys, Beyond Locative Media. Networked Publics, 2006  <http://networkedpublics.org/locative_media/beyond_locative_media>.

Desde o início dos anos 2000, enxerga-se nessas tecnologias uma perspectiva de criação séria e complexa, que se estende para aspectos sociais relevantes, potencializam comunidades e permitem, ao menos tecnicamente, uma participação nos fluxos da comunicação online em escala planetária.

Mas, se as mídias locativas aplicadas à arte endossam o discurso do “para além das galerias ou das telas de computador como territórios”[3] Ibid, onde estão estes trabalhos hoje? Por que não vemos o surgimento de uma produção realmente consistente e mais presente em nossas expectativas de confluência entre o virtual e o real? Se esse tipo de proposta guarda relações intrínsecas com práticas potentes no campo da arte, como o conceito de site-specific e da arte relacional, por que a apatia do circuito da arte com relação a projetos dessa natureza? Dentre as práticas correntes, subvencionadas na maioria das vezes, espontâneas em sua minoria, que consistência podemos esperar para essa ‘arte locativa’?

 

Por que não tem havido grandes artistas locativos?

Sempre que questões como essa sobressaem, me lembro de um artigo de Steve Dietz [4] Dietz, Steve, “Por que não tem havido grandes net-artistas?” in Leão, Lucia (org.) Derivas: Cartografias do Ciberespaço, São Paulo, Anablume/Senac, 2004, pgs. 137-147, que tem o título: Por que não tem havido grandes net-artistas? [5] Trata-se de uma formulação provocativa, baseada em uma outra, feita em 1971 pela historiadora de arte Linda Nochlin, em seu artigo: “Why Have There Been No Great Women Artists?” A pergunta apontou o quanto as questões feministas permaneciam presas a uma condição masculina hegemônica. “A primeira reação das feministas é engolir a isca, o anzol, a linha e o chumbo, e procurar responder o problema da forma como ele é dado”, comenta Nochlin. No caso, explicitar as armadilhas de um discurso sectário pode ser uma forma de enxergar as ideologias em jogo.. Tal pergunta aplicada ao universo da net-arte significaria, segundo Dietz, em refazer a armadilha de uma legitimação ansiosa, articulada retoricamente. Seria algo como assumir a fraqueza de um segmento em almejar-se como autêntico no circuito da arte contemporânea.

Assim, a pergunta ‘Por que não tem havido grandes artistas locativos?’ seria como declarar uma condição já deficitária, novamente ansiosa, que assume reativamente a limitação de um campo tecnológico – que busca se afirmar como prática de convergência, rompendo com circunscrições físicas dos suportes tradicionais – em se lançar no terreno da arte, problema que parece se encontrar menos na qualidade dos artistas, e mais nos mecanismos de apreciação e inclusão típicos do sistema da arte.

As contradições se evidenciam aos poucos. As estratégias demandadas pela arte sempre foram consideradas incompatíveis com ações sociais efetivas, bem como se mostram agora conflituosas as relações gerenciadas pelos artistas diante de fabricantes, marcas, operadoras, espaço urbano e poder público, especialmente em obras que se pretendem imersas no campo locativo.

Se listássemos o que de mais significativo foi produzido no mundo teríamos um panorama que valeria como contra-argumentação para a pergunta-ardil [6] Há centenas de dissertações ou teses atualmente sistematizando pesquisas deste tipo. Me coloco também como observador atento através de meu envolvimento com o Festival arte.mov, que desde 2006 discute criticamente a evolução das chamadas “artes locativas” através de projetos que se estendem para o espaço urbano e disparam aspectos sociais relevantes..  Mas a armadilha é mais danosa e corrosiva se não enxergamos o que está de fato sendo colocado.

Diante desse jogo de forças, caberia perguntar que pontos de tensão, expressividades ou qualidades artísticas percebe-se, de forma objetiva ou subjetiva, num trabalho dito locativo, a partir daí buscando compreender os supostos desapontamentos com relação a uma arte dessa natureza.

 

Um novo nomadismo entre expectativas e presunções

Em algum ponto, no âmago de nossas expectativas ou na própria tecnologia, talvez haja uma sensação sutil de decepção diante das práticas locativas da arte. Talvez não estejamos equalizando bem nossas euforias. Talvez esperássemos por maior número de projetos sendo disparados em redes 3G para que uma potencialização entre arte e vida pudesse ser melhor amparada pela tecnologia. Alguns talvez desejassem ver as grandes bienais ou feiras de arte absorvendo essa produção e produzindo as novas estrelas de uma arte do posicionamento e da localização.

Do ponto de vista operacional, tensões dessa prática são evidentes: projetos ditos locativos demandam uma logística que associa interesses nem sempre confluentes. Para acontecerem dependem de subsídios, de uma estrutura lateral, paralela, que implica em negociações, investimentos em programação e setups, envolvendo produtores, agenciadores, fabricantes, operadoras de comunicação, corporações. Essas dependências não significam necessariamente submissão ideológica, como querem os puristas, mas um fazer que implica em estratégias e acordos que são parte do circuito da arte no mínimo desde a Renascença. Por sua vez, a manutenção ou permanência implica esforços à parte, na maioria das vezes mobilizando estruturas e equipes de acompanhamento de seu funcionamento.

Mas de um ponto de vista mais teórico, percebemos como os postulados eufóricos caem por terra, como tecnologias e conceitos a ela associados começam a apresentar efeitos colaterais. Ou como deixam transparecer presunções latentes, a exemplo de retóricas típicas de slogans como Anytime, Anywhere, Everywhere, ou Connecting People [7] A expressão “Em qualquer momento, em qualquer lugar, em todo lugar” (em uma tradução literal), tem sido largamente utilizada por corporações ligadas à telecomunicação, nem tanto como slogan, mas como discurso generalizado. Connecting People (Conectando pessoas) é um slogan associado à Nokia e busca salientar o aspecto supostamente humano e íntimo de seus produtos. São dois dentre vários outros exemplos possíveis, que buscam incutir um aspecto eufórico e idealizado de nosso tempo., que demonstram menos uma eficiência persuasiva junto ao público e mais as vontades de onipresença de uma marca.

Dentre as possíveis distopias, estão as frustrações com relação a participações sociais mais efetivas ou a crença de que os avanços tecnológicos estariam promovendo mobilizações nunca antes vistas – mas que operam segundo as lógicas de um capitalismo semiótico e cognitivo.

Outra presunção corrente, quando se fala em ‘mobilidade’, refere-se às supostas facilidades em darmos conta do espaço físico em escala global, muitas vezes traduzidas em bordões acerca das possibilidades de um deslocamento supostamente livre, ‘nomádico’. Assim, quando pensamos em deslocamentos, não apenas físicos, mas experimentados em condições subjetivas, somos incitados a nos imaginarmos em uma condição ‘nômade’, criativa, excitante pelo desconhecimento das especificidades dos espaços transitoriamente habitados. Contudo, os problemas da extensão espacial foram suplantados por problemas temporais, de tempo vencido ou faltante.

Todos nós gostaríamos de acreditar mais nos prazeres desse estado em deslocamento, em constante porvir, uma atualização do ‘vir-a-ser’ em função do espaço, a perspectiva de habitar simultaneamente contextos distintos. Para Jordan Crandall [8] Crandall, Jordan, Tracking and its landscapes of readiness, Nettime.org, 2005., essa seria uma condição de readiness, de prontidão, de eficiência e alerta contínuo que nos é solicitada. Contudo, tal estado é evidentemente incompatível com sistemas precários – com a iniquidade social, com as gambiarras do terceiro mundo –, demandando junções heterogêneas, como uma configuração de periferia e centro juntos, a favela em rede, o local em conflito com o global. Obstáculos não de ordem física, mas principalmente econômicos e políticos, que impedem o livre fluxo das comunicações.

Nesse contexto, que tipo de nomadismo pode, por exemplo, ser caracterizado por tecnologias que não permitem uma comunicação telefônica minimamente cômoda entre países vizinhos na América do Sul? Que tipo de nomadismo pode ser concebido para um contexto de cerceamento de liberdades civis por tecnologias que se apuram em controle, posicionamento e biometria? As fronteiras físicas, nessa nova equação espaço-temporal, não se esvaneceram. Pelo contrário, parecem estar cada vez mais rígidas.

Há 20 anos caiu o muro de Berlim, mas hoje se complica o controle alfandegário pelo mundo. Apesar da crise de oportunidades na Europa, calcula-se que na última década mais de 2.500 imigrantes perderam suas vidas por tentar entrar clandestinamente em países europeus. Pergunta-se: o ir e vir, o trânsito entre fronteiras, o deslocamento entre culturas, tem sido de fato facilitado a partir de um mundo mediatizado? As evidências apontam que o trânsito se torna mais complexo, mais desconfiado, sujeito a medições biométricas, dadas as ferramentas de escrutinização que utilizamos às vezes conscientes – como os cookies, pequenos Cavalos de Troia – sabendo da inutilidade de colocarmos na balança os prós e contras, cientes de que em algum momento tudo pode se voltar contra nossas escolhas. Falamos aqui menos de vigilância mas de rastreamento e controle, como enfatizado por autores nem tão apocalípticos como Thomas Levin, David Lyon, Felix Stalder ou Brian Holmes.

A multidão hiperconectada em um país como o Brasil (são mais de 168 milhões de aparelhos celulares em uso [9] Segundo dados da Anatel. Fonte: http://www.anatel.gov.br/Portal/exibirPortalInternet.do) envolve inevitavelmente a participação, em rede, dos “homens lentos” delineados pelo geógrafo Milton Santos [10]Santos, Milton, A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção, São Paulo: Hucitec, 1996, pgs. 50, 75, 204., que sugere estratégias de sobrevivência para os fatalmente excluídos da instantaneidade e crescente mediação tecnológica da vida atual. Essas seriam “forças subjetivas implicadas, […] vontades e desejos que recusam a ordem hegemônica, […] linhas de fuga que forjam percursos alternativos”, como interpreta Peter Pál Pelbart [11] Pelbart, Peter Pál, Vida Capital: Ensaios de Biopolítica, São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 88 a respeito das “forças do império” de Hardt e Negri.

Poderíamos então entender que ‘lugares’ não são mesmo rígidos em sua constituição física e que estar sob a égide de um mundo que visa a eficiência não implica apenas em conivência ou cooptação. Isso significa acreditar em potências micropolíticas, no nomadismo como um espaço de invenção, e talvez em novas nuances semânticas para a palavra ‘negociação’.

Como afirma Crandall, “se as tecnologias das redes, da velocidade e rastreamento reativaram estes lugares do ‘micro’ – do espaço afetivo, do reconhecimento da intimidade, da disposição e prontidão – então este é um espaço que pode ser politizado” [12] Crandall, Jordan, Op. cit.. Antes de empacotarmos mais um slogan eufórico para uma Era, é preciso entender as negociações que envolvem estes fluxos ditos nômades, que residem para além das aparências, na ânsia e predisposição à conectividade full-time, entre a submissão e a conscientização aos sistemas midiáticos.

 

Lugares móveis 

O lugar ‘lá fora’, o espaço exterior, vem sendo re-imaginado, com a ajuda ou não dos sistemas de mediação. Mas a partir de experiências percebidas pela portabilidade, pela miniaturização de câmeras e processadores da computação ubíqua, passamos a ser pautados com maior insistência sobre suas urgências. No contexto de um novo nomadismo, falaríamos de um lugar que se habita transitoriamente. Por isso se generaliza, se torna qualquer – e que tende a não gerar urgências ou comprometimentos.

Haveria então um quase-paradoxo: a especificidade do lugar demanda reconhecimento, envolvimento, atenção concentrada para um contexto. Ao passo em que a portabilidade e as qualidades dos fluxos que caracterizariam um novo nomadismo, implicariam muitas vezes num desprezo às particularidades do contexto. De fato, com o crescimento do chamado ‘espaço informacional’, o contexto se torna maleável, aferido por leitura semântica e semiótica, como efeito de determinadas estruturas urbanas constituídas a partir da comunicação e informação.

Esse ‘entranhamento’ dos fluxos de informação nas formas físicas do mundo vem permitindo imaginar geografias possíveis, em processos experimentais e subjetivos – em cartografias que se potencializam a partir de novos procedimentos de medição, localização e posicionamento.

Assim, na medida em que as pesquisas em torno da mobilidade passam a buscar o entendimento das macrorealidades e envolvem saberes entrecruzados (paradigmas que até há pouco não se sobrepunham tão nitidamente) constitui-se uma base comum de problematização da noção de lugar, da discussão do espaço público e dos mapeamentos em múltiplas escalas – onde micro e macropolítica não mais se contrapõem, mas se tornam uma preocupação contínua.

 

Negociando especificidades

De um modo ou de outro, o lugar se mostra novamente em pauta. Diante da vastidão de possibilidades entre Spiral Jetty de Robert Smithson, uma obra de Richard Serra, uma projeção de grande escala de Jenny Holzer e um projeto de ‘realidade aumentada’ para um espaço específico da cidade, surgem também pontos em comum. As possibilidades ‘entre’ uma noção e outra de ocupação do espaço não evitam a pergunta, talvez rasteira, sempre subtraída do fazer artístico em grande escala: como foram negociados esses trabalhos? Como eles puderam acontecer?

Que tipo de obras ainda surgirão nesses novos e movediços ‘lugares’ que tomam forma no mundo? De que forma explicitam, no contexto da arte, seus acordos ou mecanismos de negociação?

Dentre os projetos locativos relevantes já apresentados no Brasil percebe-se que estabeleceram uma relação bastante profícua com a realidade social, mas não exatamente com o sistema da arte. Os projetos AIR(2007), do Preemptive Media; CanYouSee Me Know? (2008)do BlastTheory; Tactical Sound Garden (2007-2010) de Mark Shepard;  Bi Ciclos(2010) de Andrés Burbano ou Como se fosse a última vez (2010) do grupo Subtlemob [13] Projetos viabilizados pelo Festival arte.mov., foram adaptados ao contexto local no sentido de produzir uma conscientização com relação ao contexto e ao meio ambiente, numa visão ampla e distante da superficialidade ou oportunismos que permeiam alguns projetos nessa linha. A configuração final desses projetos foi resultante de uma esfera local em diálogo (leia-se também ‘negociação’) com as particularidades de seu entorno – e menos, como seria de esperar, de uma associação mais rasteira, com questões comerciais ou ligadas ao patrocínio. Ou seja, deram conta das premissas associadas a uma obra locativa, além de terem levado em conta os aspectos políticos derivados de um embate entre tecnologia e poderes corporativos. Todavia, uma suposta frustração estaria associada talvez à idealização do impacto esperado nos meios de comunicação, ou pelo pouco que lograram dialogar com o estado ‘oficial’ da arte local.

Por sua vez, Armin Medosch, em 45 Revolutions Per Minute: history on heavy rotation [14] Texto apresentado como palestra de abertura do simpósio do arte.mov 2007, sob o tema “Utopias, distopias e comunidades emergentes”., nos incita a pensar o quanto ainda podemos estar repetindo euforias anteriores. Utopias com relação à transmissão sem fio, já houve algumas: na transmissão de energia elétrica sem fio por Nicola Tesla, nos manifestos Futuristas em que Marinetti elegia as ondas de rádio como benéficas, estimulantes para o cérebro. Até o presente momento, o curso da história das mídias móveis parece ter caminhado em direção contrária à expectativa de Bertold Brecht, por exemplo, tendo em vista que as emissões de rádio e televisão se consolidaram não de muitos para muitos, mas de poucos para muitos.

É fato, porém, que o caráter potencialmente distributivo e aberto de sistemas de comunicação em rede sem fio ainda está sob configuração. Haveria, portanto, um mundo de possibilidades ainda por serem exploradas.

Tais possibilidades se mostram atraentes sob diversos ângulos, sobretudo o comercial, especialmente em países-mercados como China e Brasil. No caso brasileiro, a infraestrutura de telefonia por fio levou 100 anos para conectar cerca de 40 milhões de aparelhos. Em pouco mais de 15 anos de desenvolvimento da telefonia móvel, chegamos aos já mencionados 168 milhões de aparelhos em operação. Do ponto de vista social, ou das expressões individuais, o que se pergunta é como esse mar de conectividade pode se converter em alguma plataforma de uso comum e distribuído. Como essa base pode potencializar a expressão individual para além das redes sociais ‘a la Orkut’ [15] O Brasil ocupa o primeiro lugar no uso desta plataforma, com 62% dos usuários do planeta, muito acima dos EUA (14%) e Índia (10%). Fonte: http://novo-mundo.org/log/wp-content/uploads/orkut-stats.gif ou Facebook ou para além da conexão ‘um para um’, entre bolhas privadas? O que dizer ou fazer quando se tem finalmente as ferramentas para tanto, em uma perspectiva global?

Na tentativa de resposta a perguntas como essa, há não apenas o desafio de enfrentarmos um sistema de forças e fraquezas ainda em turbulência, mas também uma noção de responsabilidade: para que a realidade social não seja mediada de forma a se tornar inócua, lisa, sem os relevos e as intensidades da vida.

Para comentar aspectos menos evidentes dos agenciamentos sociais que envolvem tecnologias de comunicação, destaco o projeto Ouvidoria, dos pernambucanos Lourival Cuquinha e Thelmo Cristovam, apresentado pela primeira vez na exposição O Lugar Dissonante (2009), na Torre Malakoff, em Recife, e posteriormente, de maneira ampliada, na Praça do Carmo, no centro de Belém em 2010.

O projeto visava ofertar ligações telefônicas gratuitas ao público em geral, em aparelhos do tipo ‘orelhão’ localizados em espaços de circulação aberta e pública. Em troca, como forma de obter a gratuidade da ligação, o usuário cede o direito de uso do conteúdo de sua conversa, que é roteado para uma sala de audição, onde os visitantes podem ouvir os telefonemas – através de um sistema de processamento de áudio que mixa as fontes sonoras. O usuário é notificado de antemão sobre este detalhe, através de um impresso colocado ao lado dos aparelhos.

O que se estabelece nesse ‘escambo’ é uma forma aplicada de gift economy [16] O conceito, originário das ciências sociais, está aqui utilizado em referência à atualização do termo feita por Richard Barbrook em seu ensaio The Hi-Tech Gift Economy (1998) que se refere aos modos de troca utilizados no contexto da Internet. , em que os participantes recebem pequenos benefícios privados, gerados a partir do bem gerado por uma comunidade. Em nome de um projeto artístico, o usuário tem acesso a certas regalias. Em função de sua ação, associada à telefonia e seus custos, percebe-se numa relação que equaciona os benefícios e eventuais prejuízos associados à sua privacidade. Cabe ao público decidir sobre essa interação. Conforme enfatiza a crítica de arte Clarissa Diniz [17] A curadoria de O Lugar Dissonante é assinada por Clarissa Diniz e Lucas Bambozzi. O texto relativo à obra Ouvidoria no catálogo da exposição foi redigido na sua maior parte por Clarissa, como é o caso do trecho citado., “mais do que promover a ‘interação’ do público, Ouvidoria transforma o público em cúmplice da obra”. Não seria uma coautoria, evitando um jargão típico do boom da interatividade, mas sim uma forma de co-responsabilidade.

Não apenas assumindo a condição de troca que lhe é dada, mas também participando dos conflitos gerados por uma espécie de ‘mais-valia comunicacional’, o público negocia sua privacidade, ou na maioria dos casos, abre mão dela por falta de opções. Reposicionando uma tecnologia simples e renegociando o social – que ressoa na sala de audição vazia e vaza intersticialmente para além do espaço expositivo –, Ouvidoria acaba transferindo para o público o dilema da negociação.

Esse seria um tipo de trabalho que não acontece sem um agenciamento. Ou, talvez, o agenciamento seja o próprio trabalho.

Dada a dificuldade dos trabalhos em rede – das mídias locativas apresentarem uma forma reconhecível para apreciação visual ou de outros sentidos no campo da arte-, sobressaem-se a negociação, a mediação, o agenciamento e a troca de valores entre o artístico, o social, o comercial e o entretenimento. Ao assumir de forma mais explícita esses processos e interconexões, talvez as artes da comunicação alcancem outros patamares. Sem o compromisso de cumprir com expectativas associadas a preceitos artísticos estritos, pode ser mais interessante detectar as urgências de participação na chamada vida pública, por exemplo.

Ou talvez a ética funcione como definidora também de um conjunto estético, em um tipo de obra que nem sempre produz imagens, mas nos faz ver o que circula entre elas.

Os valores inerentes às práticas artísticas mais específicas nem sempre se fazem ver pelos olhares convencionais. Demandam a vontade de enxergar os saberes entrecruzados embutidos em suas articulações. Sua legitimação depende de aproximações entre esses olhares, colocando-se lado a lado as similaridades entre conceitos, conotações políticas, formas de enunciação e tensões.

De fato, as estruturas da negociação e da estratégia não são nada novas, estão apenas mais visíveis. De uma forma ou de outra, se embutiram no sistema da arte e das relações que estabelecemos em espaços públicos.

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[LADO A] GLOBETROTTER_ENTREVISTA

TATUÍ_Habitualmente, à ideia de mobilidade – e à consequente rede formada pelo deslocamento de profissionais do campo da arte Brasil afora – agregamos intencionalidades democratizadoras. À mobilidade soma-se a ideia de descentralização. Por outro lado, estando hoje, no Brasil, a mobilidade mais vinculada ao deslocamento de indivíduos (profissionais) e não necessariamente de ações (eventos, exposições, publicações etc.), até que ponto você acredita na potência de descentralização e democratização advinda com essa prática? Não estaríamos, paradoxalmente, correndo o risco de acumular sobre determinados indivíduos, sob o argumento da “experiência”, uma grande quantidade de informações, conhecimento etc, de um modo que dificilmente pode ser, de fato, apropriado coletivamente? O que sua experiência como curador e gestor o faz pensar a esse respeito?

 

No instante que lia a pergunta e tentava entender a sua complexidade, pensava no que efetivamente importava, ou para que serviria o deslocamento do artista físico ou apenas virtual. Na primeira metade do século XX, havia um deslocamento temporário com o claro objetivo de estudar, frequentar e receber orientação em um ateliê no exterior (casos de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, entre muitos outros que receberam o Prêmio Viagem ao Exterior do Salão Nacional). Iam com o propósito de se atualizar e se inserir em um ambiente de transvanguarda, em grandes centros da época, como Paris e Nova Iorque. Era fundamental para a formação do artista viver por um tempo ou pelo menos passar por estas cidades.

 

Mas, atualmente, são várias as cidades que permitem um ambiente favorável ao desenvolvimento de uma arte mais experimental ou de um mercado de arte com instituições museológicas fortes. No entanto, o artista vai não só para estas capitais ou centros como Berlim, Londres, Madrid, São Paulo, Rio de Janeiro. Vai também para cidades periféricas e menores, como Belo Horizonte, Cali, Cordoba, Valparaiso, Natal, Recife, Bogotá, entre muitas outras. E até mesmo para vivências nas florestas e regiões remotas do planeta, como um vilarejo na Jordânia ou nas zonas de conflito como a Palestina.

 

Na Bienal de Istambul de 2009, pude observar que a maioria dos artistas que dela participava tinha nascido em uma cidade, porém vivia e trabalhava em outra, muitas vezes outro país, ou continente. Mas entendo que o trabalho artístico, a materialização de uma ideia, a criação artística, a formalização de um conceito, são o resultado dessa contaminação ou espelhamento estético, político, conceitual, que se dão nestes deslocamentos. Na ideia de uma arte globalizada, isto acaba por se tornar condição ou exigência na arte contemporânea. Por outro lado, parece ser uma necessidade o convívio, o contato, a livre troca com outras pessoas e culturas. O acúmulo de conhecimento e experiências é consequência desta nova condição do artista globetrotter.

 

 

TATUÍ_Decerto, há um indivíduo dos dias de hoje que se desloca constantemente – talvez, não à toa, alguns dos projetos institucionais recentes de mapeamento e difusão da arte contemporânea, no Brasil, carreguem em seu seio, já através do nome, essa predisposição e intencionalidade para a mobilidade: Rumos (Instituto Itaú Cultural, SP), Trajetórias (Fundação Joaquim Nabuco, PE), Projéteis (Funarte), dentre outros. Todavia, nosso ímpeto “andarilho” parece mesmo individual, sendo ainda muito rarefeita a circulação nacional de ações, projetos, exposições etc. em sua inteireza, e que, porventura, poderiam “descentralizar” mais sistematicamente, para além da esfera do indivíduo, no campo da experiência (e, portanto, não através da “documentação ou registro dessas experiências”), o potencial do deslocar-se. Nesse sentido, retomando a pergunta inicial, gostaríamos de explorar melhor sua opinião acerca do risco de acumularmos “sobre determinados indivíduos (…) uma grande quantidade de informações, conhecimento etc., de um modo que dificilmente pode ser, de fato, apropriado coletivamente”.

 

Não vejo risco.

 

Acrescentaria no começo da formulação do questionamento o edital Rede da Funarte, que melhor exemplificaria as políticas institucionais para circulação do artista, do crítico de arte (curador), da obra e do pensamento.

 

O edital, criado em 2004, tem por pressuposto o deslocamento físico e de ideias. O proponente da ação deve obrigatoriamente levar ou trazer. Tem gerado experiências ricas na formação de artistas e da plateia. Aí sim,  como formas de apropriação coletiva e disseminação de ideias e práticas.

 

Estes questionamentos têm muito a ver com o discurso do francês Nicolas Bourriaud, a Estética Relacional, embasada na necessidade que tem o artista contemporâneo de interatividade e convívio – ambiente de trocas, experiências e sociabilidade.

 

Essa vertente convivial – sociológica – da arte (e não é que ela não existiu antes) gera um acúmulo de conhecimento e o resultado dessas experiências estéticas e relacionais é natural, pertence a todo indivíduo. Viver é acumular experiências e a arte em tempos de arte relacional torna-se mais e mais experiências sociais. No entanto, desse conhecimento nem tudo é compartilhável.

 

Qual conhecimento deve ser compartilhado pelo artista em uma época em que as palavras-chaves têm sido o multiculturalismo, a desterritorialização e a globalização?

 

Investe-se no indivíduo. Investe-se na formação do artista. Investe-se no seu deslocamento. Investe-se no acúmulo de informações. É da contemporaneidade este acúmulo de conhecimento, que necessariamente não tem que ser compartilhado. O compartilhamento se dá no trabalho de arte, nas práticas artísticas. De alguma maneira, o conhecimento acumulado se transformará em conhecimento coletivo quando o artista leva o seu trabalho para o espaço expositivo e divide-o com o público.

 

TATUÍ_Diante desse panorama de incentivo à mobilidade, percebemos que hoje há uma tendência a tratar o deslocamento em si como valor agregado à produção de arte e pensamento. Nesse sentido, muitas vezes artistas e outros profissionais do campo da arte são legitimados menos por aspectos inerentes à sua produção, e mais pela quantidade e caráter dos deslocamentos que suas obras ou eles próprios realizam. O que você pensa a esse respeito?

 

O preenchimento dos vazios vai sempre ocorrer. As pessoas que necessitam ficar de um lado para o outro apenas para superar uma falta de artisticidade, de conhecimento, o  tal vazio de ideias e criação,vão sempre existir. Muitos desses artistas ou intelectuais se deslocam apenas para preencher o vazio que existe em suas obras.

 

Para os artistas artistas, as viagens, as residências ou mesmo esta mobilidade toda que vemos no meio artístico, tende a ajudar no amadurecimento da obra. Você conhece, troca experências artísticas, melhora o vocabulário e atualiza o discurso. Permite o conhecimento do mundo. No entanto, com ou sem deslocamento, sempre vai existir o mau artista ou o mau crítico, o bom artista e o bom crítico. São os tais globe trotters que chegam atrasados aos encontros nos ateliês dos artistas ou nas residências artísticas. Chegam de salto quinze e olhando para o relógio para a próxima visita ou viagem.

 

Estamos nos tempos de exposições e teorias com títulos bastantes sugestivos sobre o que se discute aqui:Como viver junto; Em vivo Contato; Como construir mundos; Arte Relacional; Sociedade Líquida; Amor Líquido; Há sempre um um copo de mar para o homem navegar; A Contemplação do Mundo…

Também sintomaticamente, Marc Augé, que ficou conhecido pelo livro O Não-Lugar, lançou este ano uma publicação que promete se tornar um best-seller no meio artístico, Por uma antropologia da mobilidade (coedição Edufal e Unesp, 2010), que trata da transculturalidade.

No entanto, a transculturalidade já era entendida muito antes deste fenômeno, como evidencia entrevista (O Estado de São Paulo, 18/12/10) do pianista e compositor de jazz norte-americano Dave Brubeck, que revolucionou o gênero há 51 anos com o disco Time Out, mencionando o que lhe ensinara seu professor, Darius Milhaud: “Milhaud falava com frequência da época em que viveu no Brasil e como o país influenciou sua linguagem musical. Ele me relatou suas viagens pelo interior do país para ouvir canções folclóricas que o inspiraram a escrever algumas de suas mais populares e encantadoras peças. O conselho que me deu, então, foi viajar e manter os ouvidos abertos. Ele acreditava firmemente na importância de ouvir música folclórica de diferentes culturas, citando particularmente o caso de Stravinski e Bartók, cujos trabalhos foram marcados por essa aproximação. De algum modo, a introdução de ferramentas clássicas no jazz é semelhante à adoção de métodos de composição clássica de Milhaud para incorporar a música folclórica brasileira”.

O entrevistado fala de algo como 50 anos atrás.

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[LADO A] cartas. do deslocamento espaço-emocional

Olinda, quatro de setembro de 2010.

Querida Ma,

Ultimamente, não tenho dado conta do excesso de cansaço que tem me tomado. Não são raros os momentos que me pego pensando em Terra UNA [1] Ecovila localizada na Serra da Mantiqueira – MG que promoveu o Prêmio Interações Florestais 2010 de residência artística com o patrocínio da FUNARTE/MINC.  De 08/03 a 04/04/2010 acompanhei, como crítica de arte convidada, os trabalhos de quatro artistas, entre esses Caroline Valansi e Mayra Redin, que se tornou grande amiga. Na ecovila os acessos à internet e ao uso do telefone celular eram limitadíssimos, por isso decidi acessá-los apenas uma vez por semana quando íamos à cidade de Liberdade-MG. Nessa edição do prêmio, além dos espaços da Ecovila, os artistas interagiram com o Ponto de Cultura e Sustentabilidade gerido por Terra UNA nesta cidade. http://www.terrauna.org.br. E em como vários aspectos daquela vivência nos colocaram num ritmo de prazer imenso de estar vivo.

Lembro bem que quando aceitei o convite para participar daquela experiência, imediatamente fui inundada de certo pânico quando percebi a quantidade de deslocamentos que haveria de enfrentar para estar dedicada a um trabalho ali por um mês. Outro estado, outra cidade, outros obstáculos a serem vencidos no dia a dia – que aqui em Olinda já não eram mais possíveis imaginar: escuridão, mosquitos, lama, alimentação ovo-láctea-vegetariana, vida intimamente compartilhada…

Mas bastou vencer a subida da serra, talvez o maior dos medos que tive que lidar. A vida, muito rapidamente, a despeito de minhas próprias dificuldades de adaptação, criou sua rotina pacífica. Apesar dos muitos quilômetros que percorríamos em nossas pequenas expedições pelos arredores da nossa Tartaruga [2] Nome da casa que moramos durante a residência., não chegava no fim do dia com essa sensação (atualmente costumeira) de completa exaustão.

Sinto falta da hora de dormir, abrigada pelo silêncio e escuridão seguros.

Ali, bastava dar conta do diariamente – por vezes cutucado por um turbilhão de saudades do(s) que havíamos deixado –, porque era certo que, quando a noite caísse, haveria o conforto de estar em casa. Penso que em Terra UNA vivemos numa espécie de ilha espaço-emocional. Uma suspensão do tempo, um deslocamento do corpo e da alma para um lugar seguro de entrega e liberdade.

A vida aqui de volta é bem diferente. Não há ilha. Em meu cotidiano preciso empreender dezenas de deslocamentos, ainda que não precise dar, sequer, um passo. Em frente da tela, habito territórios diversos ao mesmo tempo. Convivo com tantas pessoas que não dou conta de abrigá-las, nem desabrigá-las, aqui, em (de) mim.

Pela janela luminosa, tenho que dar conta de um diariamente – por sua natureza, sempre (in)comum. Não sei com quem vou estar. Nem onde irei chegar. Ainda assim, sempre latentes as vivências das perdas e das construções de novas possibilidades. Nessa terra, de ninguém e de todos simultaneamente, preciso dar conta de passados, de futuros, de presentes expandidos. A jornada nunca acaba, tampouco é possível, ainda que a noite caia, voltar para casa.

 

Beijos saudosos,

.a

 

Porto Alegre, 7 de setembro de 2010

Ana, querida…

“Não há ilha”.

A ilha de que você fala talvez seja este espaço para um novo corpo. Um novo corpo é um novo jeito de sentir. Como se faz para sentir diferente de sempre?

É esta pergunta que me faço quando percebo que estou, como você, simbiotizada pela cidade, pela rotina, pelo cotidiano, pelas pessoas que amo, pelas tarefas que escolhi realizar, pelas escolhas que nem sei que fiz.

É aí que entra a ilha.

Como construir ilhas mesmo sem se deslocar geograficamente?

Penso que a experiência de Terra UNA possibilitou um deslocamento geográfico ao mesmo tempo em que “espaço-emocional”, como você disse. Ou melhor, deslocamentos geográficos (que envolvem mudanças de terras abaixo dos nossos pés, mas também mudanças de jeitos de pensar a vida, de viver, de conviver, mudanças de rotinas, de paisagens horizontais e céus, mudanças nas manhãs e nas idas do sol, etc.) provocam deslocamentos nas nossas vivências “espaço-emocional”.

A experiência de residência artística, no caso de Terra UNA, é a experiência de habitar uma nova casa por um tempo determinado. Acho que o tempo preestabelecido torna a vivência mais intensa. Dentro deste tempo de um mês, convivendo com a proximidade (e aqui diria que convivemos com a convivência, o que em nossas grandes cidades se torna menos constante), convivendo com o ar puro e as águas de cachoeira, e também com os mosquitos e bichos desconhecidos, acabamos convivendo com nós mesmos: nós outros de nós mesmos.

Mudar de casa é mudar de corpo. Nem que seja provisório. Mesmo sabendo que a provisoriedade não garante o retorno ao mesmo anterior. Talvez somente por isso, Ana, você tenha se perguntado o porquê do seu cansaço. Somente porque não voltou para a mesma casa de que saiu. E nem se voltássemos a Terra UNA, encontraríamos a nossa Tartaruga. Talvez não se trate de retornos, de buscas mesmas, e sim de um ir adiante. A estrada nunca termina e é entediante voltar pelo mesmo caminho. Mas independente deste tédio, mesmo que quiséssemos a estrada de volta, a mesma não seria a mesma. Fato é que não decidimos quase nada.

Pensando nisso, me lembrei da mais forte sensação que vivi em Terra UNA. É como se até então eu não tivesse noção (percepção talvez) da grandiosidade do universo e da infimidade do homem na terra. A sensação de estar abaixo e acima ao mesmo tempo (mudando o eixo, a referência e as escalas do visível, do tátil). Na verdade, a sensação de não saber onde se está. De perder o sentido de lugar/espaço/proporção. Não ter a capacidade de perceber estas relações, tanto do grandioso, quanto do mínimo. Claro, a gente sente isso frente a outras situações que nos acometem também dentro das cidades, mas em Terra UNA isso tudo se tornou cotidiano. E foi a partir desta sensação que passei a me relacionar com o entorno.

Eu queria simplesmente ver passar. Ver como é que passam e voltam (sempre outros?): o sereno, as águas da cachoeira, a noite, os dias. Isso que independente da gente, passa. Talvez o sereno, a chuva, a cachoeira seja o que se vê de todo o processo que não se vê. Em Terra UNA, compreendi que estamos entre.

E estar entre é o que desloca.

Saudade

Mayra

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[LADO A] carta. do deslocamento subjetivo pela experiência estética

São Paulo, quatro de outubro de 2010.

Querida amiga,

Nunca vislumbrei o desejo de voltar – considerando que fosse possível caminhar pela mesma estrada tal qual era quando a percorremos juntas naqueles dias. Meu olhar de volta, nostálgico, não é vontade de reconstrução daquelas situações, mas necessidade de (re)aconchegar aquelas lembranças num lugar seguro. Porque não há dúvidas que meu (novo) corpo – que hoje (re)habita o que parecia ser O meu lugar –, não dá conta de (re)viver as mesmas experiências cotidianas pré-Terra UNA. Meu corpo atual cansa diante da repetição das coisas que já não lhe interessam mais: os excessos de: característica perversa da vida urbana.

O que se deu lá, nos dias compartilhados naquela ecovila, não foi apenas um deslocamento espacial, ou espaço-emocional, como já mencionamos. As experiências estéticas proporcionadas na construção dos trabalhos, que você e Caroline desenvolveram, arrebataram-me dos lugares que tinha por certos nessa minha (ainda que curta) trajetória junto às artes (visuais?). Formas e conteúdos, dentro desse poroso campo da arte contemporânea, deixaram de ser apenas discursos – ao contrário do que comumente acontece nessa relação esquizofrênica que aprendemos a ter com as obras: sempre mediadas pela instituições, textos curatoriais (bulas), portfólios etc. –, para tornarem-se lugares próprios. E assim, fazer-nos capazes de inventar novo corpo para fruir destes lugares experienciais.

Novo corpo, nesse sentido, não se trata da dimensão meramente carnal (fisiológica), mas corpo-encarnado: emocional, intelectual, espiritual, material… Uma vez inventado esse corpo-experiencial, ele permanece em nós e permite-nos potencializar outras entradas para as vivências cotidianas. Assim, as experiências estéticas (e estésicas – porque também de afeto) como as que vivi com Sob(re) sereno [1] Veja algumas imagens através do link: http://www.terrauna.org.br/InteracoesFlorestais2010/MayraMartins/Pages/observatorio_do_sereno.html e Ninho de gente [2] Veja algumas imagens através do link: http://www.terrauna.org.br/InteracoesFlorestais2010/CarolineValansi/Pages/escolhidas_100x75cm.html me fizeram criar novos corpos que hoje se misturam em mim e já não me permitem sentir-pensar, nem pensar-sentir, como antes.

Como escrevi [3] Textos que fazem parte do catálogo IF 2010: http://www.terrauna.org.br/InteracoesFlorestais2010/AnaLuisaLima.html certa vez, o mergulhar naquele seu trabalho, me requereu, no mínimo, a alma desnuda, despudorada, sem medo das ameaças do ridículo. Aquela experiência trazia consigo uma simetria com as portas de Hermann Hesse – “só para loucos” (Do livro o Lobo da Estepe).  Ao me (re)inventar para me debruçar sobre as coisas ínfimas – como aquela busca (insana?) de experienciar o sereno – o quanto daquilo tinha de inteiro? Tratar das coisas inúteis com propriedade parece sempre arranjar um caminho inevitável para a reelaboração das grandes coisas.

Coisa parecida se deu ao me deixar abrigar no Ninho de gente de Caroline. Meu corpo anterior jamais havia imaginado permitir-se uma nudez explícita – porque inevitavelmente erotizada. Naquela ocasião teve que se inventar passarinho para descolar-se do corpo anterior, impregnado de elaborações, vivências e construções culturais que não me deixariam vivenciar com calma e delícia necessárias a relação da pele nua, que pedia abrigo não mais de roupas, mas palhas, cipós e matos em forma de ninho.

Não dá para mapear as desconstruções culturais que me ocorreram por ter vivido aquilo. Porém, posso lhe contar de uma experiência recente, de poucos dias atrás, que só me foi possível com esse novo corpo pós-Ninho de gente. Durante a minha estadia em Curitiba, viajei com amigos até uma cidadezinha próxima para comer um prato típico (barreado). No decorrer do dia, fomos parar numa cachoeira. Eu não havia levado roupa de banho e naquele momento estive certa de que, se não fosse esse meu novo corpo, jamais teria me permitido tamanha liberdade, alegria e entrega àquela experiência única que se desenhara.

Hoje eu trago em mim que a arte pulsante desperta a experiência nua (Foucault): porque de uma verdade só possível encarnada – percepção, vivência, apesar de única da pessoa é compartilhável. Diferente se fôssemos pensar a “experiência pura” como se pudéssemos atribuir uma única verdade, um algo ligado à essência, portanto distante do corpo. Na experiência estética, enquanto experiência nua, faz-se um lugar de construção da subjetividade através da troca simbólica capaz de acionar a (re)invenção do espaço, do tempo, do uso vulgar das coisas e situações cotidianas. Um lugar político por natureza, onde são possíveis as construções simbólicas coletivas: imaginário comum, não no sentido de igualdade, homogeneidade, mas de compartilhamento. Se pensarmos em experiência estética como acontecimento – e penso mesmo que a obra de arte é acontecência, deixa-se acontecer em cada (novo) encontro, potencializando as formas de (re)invenção a quem se dispõe –, é possível entendê-la como algo que reverbera e extrapola a experiência do corpo de um indivíduo apenas.

Espero que Sob(re) sereno, tanto quanto Ninho de gente, possam ser experienciados por outros tal como eu pude: sem mediação pelo discurso – até porque naquela ocasião ainda estava sendo construído. Aliás, é assim mesmo que se deve dar a elaboração de qualquer pensamento sistemático sobre uma obra de arte: a posteriori. Qualquer coisa diferente disto é especulação danosa e castradora de como a obra pode acontecer, e assim ferir sua condição de acontecência.

Grande beijo,

.a

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[LADO B ] Olinda, 15 de outubro de 2010

Amiga querida!

Lendo sua carta fiquei me lembrando do corpo-passarinho que criamos para habitar o ninho de Caroline. Então me passou pela cabeça o tanto de deslocamentos geográficos (e não só geográficos) realizados por nossas cartas desde que começamos a nos escrever. De Olinda para Porto Alegre, de Porto Alegre para São Paulo, de São Paulo para Olinda e imagino que agora a carta vá para Belo Horizonte… Uma carta-pombo-correio fazendo par com nossos corpos-passarinhos.

Eu gosto desta ideia do corpo-passarinho. Primeiramente, por isso que você narrou, relacionado diretamente ao “passarinho – ser vivo” que o trabalho de Caroline nos suscita através da experiência do ninho. Mas também gosto do corpo-passarinho pela sutileza que ele estabelece. Uma existência tímida e sutil: que voa porque sim, que come porque sim, que faz o ninho porque sim. Porque vida. E que nem por isso deixa de ser complexa, a vida.

A complexidade é justamente este “corpo-encarnado”, como você disse. Corpo que é: emocional, intelectual, espiritual, material… E por ser tudo isso ao mesmo tempo é político, e mais do que isso (ou seria menos?), é corpo micro-político. Aqui volto à sutileza do corpo do passarinho: voar pelas brechas; construir o ninho com o que está ao seu redor; partir da vida mesma lá onde ela é necessidade, para construir um entorno de desejo.

Estamos falando de arte? Creio que as proposições de experiência (tanto no trabalho de Caroline quanto no meu) fazem perguntar se a experiência é arte. Ou onde está a arte na experiência. São perguntas que sempre me remetem a uma outra pergunta: como funciona este movimento de propor e de fazer (se) experimentar?

Você contou da sua vivência junto aos nossos trabalhos. Falou da sua experiência nua, na qual não há verdade ou essência percebida por todos de igual forma. Para mim, a proposição de Sob (re) sereno funcionou assim: partiu de uma ideia tímida de observar a formação do sereno. Realizar é algo forte, é existir, fazer existir. Eu preciso do outro para ver e fazer existir qualquer coisa que seja. Há a necessidade do outro para compartilhar a experiência do inútil. Contar deste desejo é também fazê-lo existir. A partir do momento em que as pessoas ao meu redor passam a participar (de alguma forma – e aqui incluo imaginar, inventar, fazer, discutir, etc.) disto que é apenas um desejo, aí o trabalho surge. Surge de uma incapacidade de apreender, já que o sereno é algo tão efêmero e translúcido. Desta inapreensão visual surge a proposição de criar estruturas que permitam a observação de uma passagem.

Vejo que o “Ninho de Gente” de Caroline Valansi parte também de um desejo de construir. Construir e habitar a construção. Assim como a construção do observatório de sereno, o Ninho de Gente torna experimentável algo que sim, faz parte do nosso cotidiano (a vida ínfima dos passarinhos e o ciclo rotineiro do sereno), mas que não percebemos. Acho que se trata de uma “re-invenção” (“do espaço, do tempo, do uso vulgar das coisas e situações cotidianas”, como você escreveu): reinvenção proporcionada pela proposição do artista (e aqui inclui-se todo o processo de construção de uma proposta) e a reinvenção  vivida pelas pessoas que se propõem a construir e experimentar tais proposições por vezes estranhas e deslocadas.

Ainda: penso que estes são trabalhos que não existem sem a experimentação do outro. E penso que é preciso propor-se para tal, assim como você se propôs. Há um incômodo nisto. O incômodo de deslocar-se (em todos os sentidos que já falamos)…

Aqui lembro de Paul Valèry em sua frase célebre “o mais profundo é a pele” e de Suely Rolnik em suas leituras de Deleuze e Guattari.É pela pele que o corpo se des-forma e passa a abrigar o corpo-passarinho, o corpo-coletor, o corpo-passagem. É por esta pele agitada e porosa que as novas experiências alojam-se (nunca para sempre e nunca de forma estável).

É uma espécie de alergia que toma conta. Estado alérgico que deve ser necessariamente desejado e provocado (e por vezes contagiado), no qual a pele arde, coça, comicha e deseja sempre coçar mais. Ao mesmo tempo, quer que acabe, que pare; ao mesmo tempo, deseja estabilizar, inerte, para a respiração voltar à sua constância – um descanso, um tempo para acomodar a pele novamente… Pronta para novas alergias. Acho que há também, junto com o incômodo, um grande entusiasmo…

uma letra que muda de lugar
elle se déplace
deixando
alergia e alegria

Penso que é esse o desejo do meu trabalho e do de Caroline: provocar a pele. As nossas, as dos outros. Provocar não com a arrogância da autoria ou com as pretensões de grandes mudanças. Não. Penso que aqui a aposta é mesmo no mínimo. E para criar este universo mínimo é preciso pensar/viver mínimos detalhes. É toda uma construção de entorno, de encontros, de formas de propor. É toda uma desconstrução de concepções e vícios que o artista traz na sua bagagem.

 

Beijo,

Carinho

Mayra

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[LADO B] “I’m lovin’ it”

McAlterDonalds’ Art?

O curador Nicolas Bourriaud, em seu Altermodern Manifesto (2009), proclamado – não pouco sintomaticamente – a partir da Tate Britain (Londres), após linhas apologéticas à diversificação e negociação cultural global, deduz que o “artista se torna um ‘homo viator’, um protótipo do viajante contemporâneo cuja passagem por entre signos e formatos refere-se a uma experiência contemporânea de mobilidade, viagem e transpassagem” [1] Disponível em http://www.tate.org.uk/britain/exhibitions/altermodern/manifesto.shtm..

Com seu Manifesto, na sequência dos pensamentos que exploram diversos horizontes conceituais para a condição plural das identidades culturais – como as ideias de mestiçagem, contaminação, crioulização, hibridismo, tradução, agenciamento e outros –, Bourriaud vai além da aposta numa “forma de arte” que se dá relacionalmente (como circunscreve sua Estética Relacional, 1998), para sugerir também um modo/método de produção da arte (“forma de trabalho”). Esse modelo produtivo, que o autor enxerga como uma “evolução”, se daria na “forma-viagem (…), materializando trajetórias mais do que destinações”; seria “um curso, um vaguear, em vez de um espaço-tempo fixo”, e estaria relacionado a “linhas de voo” e “programas de tradução”.

Buscando trazer à tona distinções entre “os trabalhos site-specific dos anos 1960”e aqueles atuais aos quais se refere, Bourriaud afirma serem estes últimos “time-specific” pois, “vagueando através da geografia bem como pela história”, “o artista traduz e transcodifica informação de um formato a outro”.Atribuindo a essa “forma de trabalho” um caráter de alteridade mais adequado do que as “identidades pós-modernas” ou a “linguagem abstrata e ocidentalizada do modernismo”, o autor parece colocar, sobre a informação e a comunicação, o protagonismo absoluto do processo de (re)conhecimento do outro a ponto de pensá-lo em termos de tempo (por onde “invisivelmente” circulariam os dados?), e não necessariamente de espaço (onde se daria, com mais ênfase, a experiência?).Seu destaque às questões temporais da “forma-viagem” de várias maneiras se associa à eficientização produtivaherdada da indústria, já há bastante tempo influente no campo da arte com seus muitos artistas de“studionotebooks” ou curadores que fazem “’studionotebooks’visits” por entre aviões, aeroportos e hotéis.

A questão é que – para ficar num exemplo, e deixando de lado a opção “cozinhe em sua própria exposição” de Rirkit Tiravanija –, ouvi já de alguns artistas que, quando em residência, na intenção de poupar tempo, trabalho, desconforto e paciência, preferem comer numa McDonald’s local a “exercitar a capacidade de negociação” com cardápios ou garçons ainda não tão poliglotas quanto os artistas em trânsito.

E o “problema” é que, a despeito das raríssimas vezes em que isso ocorreu no Brasil (e esse é um assunto que mereceria investigação), em diversos lugares do mundo as McDonalds’ adentraram o século XXI oferecendo também itens “site-specific” em seus cardápios – gorgonzola no McCheese parisiense, bacalhau no McFish de Portugal – além de promoverem festivais “globais” com ingredientes e receitas dos cinco continentes. Talvez mais do que gostaríamos, em épocas de “confraternização mundial” como se julga ser o caso das Olimpíadas, por exemplo, a pluralidade cultural é argumento igualmente posto para ampliar o lucro das multinacionais ou dos museus.

A pergunta que –genericamente– surge é, então, no que o método “forma-viagem”, encarado enquanto “forma de trabalho” na qual o artista opera uma “tradução de formatos”, se diferenciaria do método McDonald’s de tradução de seu formato original (americano) para as especificidades locais? Em que medida estamos diante de processos de invenção(espacial e temporalmente em diálogo com o local), e em que medida perpetramos mormente uma adaptação funcionalista de um modelo pré-existente?

Estética relacional como relações públicas?

No contexto do capitalismo corporativo, como analisa Chin-Tao Wu em Privatização da Cultura (São Paulo: Boitempo, 2006), a arte “funciona como moeda de valor simbólico e material para as corporações e, de uma forma diferente, para os altos executivos nas democracias capitalistas ocidentais do fim do século XX”:

“Atentas à sua posição simbólica na mente das pessoas (consumidores), as empresas usam as artes, carregadas de implicações sociais, como mais uma forma de estratégia de propaganda ou de relações públicas, ou ainda, para usar o jargão da cultura corporativa, encontrar um “nicho de marketing” (…). É nesse espaço de interesses que a busca do capital cultural como meio para se atingir fins econômicos, ou a conversão de capital cultural em econômico, assume sua forma mais transparente e às vezes mais politicamente perniciosa”. (2006, p. 32)

Econômica e corporativamente implicada, parte significativa das práticas artísticas contemporâneas (sobretudo aquelas identificadas como “relacionais” dentro da perspectiva de Nicolas Bourriaud) desenvolveu-se, como problematiza Claire Bishop em seu ensaio Antagonismo e Estética Relacional (October, volume 110, 2004), “como resposta direta à mudança da economia de bens a uma economia baseada em serviços”. Levando adiante o processo de desmaterialização da arte – perpetrado nos anos 1960/70já com intenções de crítica institucional –, tais práticas substituem o tradicional fetiche emais-valia sobre o objeto/bem de arte por outros, de caráter ligeiramente diverso, ainda que de estrutura semelhante dada à manutenção das lógicas fundantes do capitalismo.Propondo experiências, coletividades e processos de sociabilidade, os trabalhos “relacionais” desejam subverter a lógica do capital pelo suposto impedimento da apropriação individual do “lucro”, dada sua aparente não existência material (como capital social, teoricamente o “lucro” se dá somente na relação, no espaço do entre e não nas estruturas, enquanto os outros capitais (natural, humano, financeiro) podem ser facilmente apropriados individualmente).

Demandam, portanto, um mercado relativamente distinto, capaz de organizar-se sobre uma mais-valia simbólica, ainda que calcado sobre um sustento evidentemente usável (minério, petróleo, metalurgia, mercado financeiro, etc.). A economia que tais trabalhos talvez demandem coincide, assim, com o mercado transnacional das grandes empresas, corporativamente organizadas e sedentas por enriquecer suas imagens sociais.

Ao lidar diretamente com o público, “democratizando” a experiência estética que outrora teria sido “hierárquica e impassível”, as práticas relacionais cumprem inevitavelmente, e mais diretamente, um papel de relações públicas (o Ronald McDonald existe desde 1966, tendo sido criado antes do Big Mac). Identidade, imagem e opinião pública estão escancaradamente em jogo, e certa “estética relacional” parece caminhar na direção de conformar-se como uma espécie de “terceiro setor” da arte contemporânea (a Ronald McDonald House, braço filantrópico da McDonald’s, existe desde 1974).

Sinergia.You gotta serve.

Mas tudo isso pode ser positivamente compreendido dentro de uma perspectiva século XXI de responsabilidade social, adotada também por alguns artistas e teóricos que almejam, para continuar nas palavras de Bourriaud, “constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente”, “aprendendo a habitar melhor o mundo”.

Se, quarenta anos atrás, a crítica (institucional, ou não) instaurada pela arte agia, em sua maioria, numa “lógica” contracultural (a ideia de contracorrente, literalmente levada a cabo por Flávio de Carvalho em Experiência n. 2 (1931), quando o artista caminhou na contramão de um cortejo católico em São Paulo, foi continuamente explorada por artistas brasileiros, sobretudo nos anos de chumbo), agora a lógica é outra. Não só no nosso país, como no mundo, artistas deixam de lado uma cultura do “antagonismo” (que remonta ao duopólio Estado x sociedade civil) para apostar numa cultura sinérgica – Estado + sociedade civil. O cooperativismo que então vai se consolidando como política de responsabilidade social, esforço coletivo pela estruturação de uma sociedade mais justa, é também argumento para fusões de grandes empresas, instituições de arte, artistas, curadores etc. – entre si e uns com os outros. Não à toa, as três últimas edições da Bienal de São Paulo pressupunham, em seus projetos curatoriais, modelos sinérgicos (e microutópicos) de convivência entre arte, sociedade e política (entenda-se também: artistas, público e instituições), como evidenciado já nos títulos escolhidos: “Como viver junto” (27ª Bienal de São Paulo, 2006); “Em vivo contato” (28ª Bienal de São Paulo, 2008) e “Há sempre um copo de mar para um homem navegar” (29ª Bienal de São Paulo, 2010).

Nesse contexto de ansiedade pelo outro (consideremos igualmente o quanto tardou a chegar essa alteridade expandida), o indivíduo é visto não somente como ser interdependente mas, numa inclinação civile cristã, também como cidadão cujo dever é “servir ao próximo”. Vários são os artistas que, literalizando concepções tal qual Flávio de Carvalho o fizera com a ideia de contramão, se põem então a oferecer serviços (aulas, auxílios, entretenimento, etc.). O possível dilema entre “servir ou não servir” – já publicamente vivenciado entre o Bob Dylan da fase gospel com sua You Gotta Serve Somebody (1979) e John Lennon, que em resposta compôs a irônica Serve Yourself (1980) –, e que mantém a lógica dualista que ainda pauta cognição e cultura, parece ficar menos agudo quando “a serviço” da arte:o outro da sinergia econômica, visto como cliente, é na sinergia da artedemandado (e desejado) como participante. O modelo do servilismo enquanto clientelismo é pretensamente substituído pelo da participação – voluntária, sensível e cívica. (No Brasil, o McDia Feliz existe desde 1988). E o ‘homo viator’, na condição daquele que viaja para conhecer (e agir a partir de)contextos e outros, parece ter mesmo que participar.

“Invenção: modos de usar”.

Na arte brasileira, todavia, muitas vezes a ideia de participação parece vir junto à de nostalgia, dadas as experiências neoconcretas e outras, menos devedoras daquele desenho específico de subjetividade, mas igualmente propiciadoras de espaços-tempos de criação e relação, como as que se desenvolveram no contexto dos Domingos da Criação, em 1971, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Esse momento da produção de arte do País, muito referenciado (e por vezes fetichizado), mas pouco conhecido e analisado – sobretudo pelas gerações mais recentes –, ressoa em parte da “jovem arte contemporânea brasileira” de maneiras variadas, sendo inclusive por vezes lido homologamente à estética relacional bourriaudeana. Dentre as várias compreensões possíveis, talvez haja o desejo de aproximação (simbólica e experimental) a esse momento numa necessidade de contaminação por suas premissas libertárias, como também por seu caráter genealogicamente legitimador.

O fato é que, em 2010, realizou-se, no mesmo MAM do Rio de Janeiro, o conjunto de atividades Encontros com os Domingos da Criação, proposto pelas empresas de produção cultural Matizar e Automática, em parceria com o Museu e o Instituto Moreira Salles. Composto por uma exposição, mostra de filmes, três mesas de debate e três encontros entre artistas, suas proposições e o público, o evento, ciente da impossibilidade de reproduzir, “na atualidade, o impacto e a importância da reunião da população ao redor da arte em um espaço público e em plena ditadura militar”, rejeitava “qualquer re-tomada ou re-visão, afastando o ranço nostálgico de uma visita ao passado e aceitando a impossibilidade de re-fazer os Domingos da Criação”[2] http://encontros.art.br/domingos-no-mam.. Propunha, então, “articular a memória dos eventos de 1971 com as novas possibilidades de reunir artistas e população ao redor de um impulso criativo. Se as formas de lazer mudaram, se a relação da cidade com o espaço público e com o Museu (…) mudou, devemos partir dessa mudança para sugerirmos um novo formato”.Curioso mesmo perceber a diferença entre as concepções dos Domingos de 1971 e dos Encontros com os Domingos, em 2010.

Em especial, intriga a preponderância da ideia de participação face à de criação nos Encontros. Ou, noutra leitura, o acoplamento da preocupação e “exercício” de alteridade à criação, a ponto de um dos domingos de atividade – do qual participaram os coletivos GIA e Opavivará! – chamar-se Invenção: modos de usar.

Para além dos trabalhos que demandavam participação ocorridos em outros dias do evento, naquele domingo em especial os coletivos propuseram práticas/estruturas com caráter de “serviço” e “entretenimento”, como redes, churrasco, samba, bingo. Dessa forma, em sua versão “modos de usar”, o “estado de invenção” preconizado por Hélio Oiticica (“o que resta é apenas a proposição da grande invenção, algo que mobilize o participador, o ex-espectador (…) a um estado de invenção”, dizia em 1979) parece reduzir sua potência (de liberdade, sobretudo) na medida em que demandava do outro não um exercício de invenção, mas a participação na invenção alheia. Use-a. Mas “a serviço de que” está a delimitação da presença do público dos Encontros dentro de uma ideia de participação que, ademais, faz-nos pensar que a produção artística atual de fato não foi ainda além do paradigma de participação dos anos 1960/70?

O papel dos artistas convidados pelo evento, ao mediar a relação do público através da proposição de estruturas/práticas de mediação, remete à pergunta já lançada neste texto: estética relacional como relações públicas? Relações públicas para a construção de uma imagem de democratização, participação popular, acessibilidade e responsabilidade social das instituições envolvidas e seu patrocinador, a empresa de gestão de fundos de investimento Opportunity? A serviço de quem estão nossos serviços, sobretudo os de alteridade?

“A anarquia é a verdadeira ordem entre os homens, o resto é mero comércio”, dizia o avô de H.O., José Oiticica, citando o padre católico Jean Natal Groishman.

Cristianismo, Opportunity, McDonald’s, arte contemporânea: to serve, or not to be?

Na dúvida, viajar é certamente uma boa opção.

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[LADO B] Acumulação e Empreendimento

Entrevista com Afonso Luz

Revista Tatuí_O Ministério da Cultura, ao longo do Governo Lula e com seus dois ministros – Gilberto Gil e Juca Ferreira –, implantou o Programa Brasil Arte Contemporânea, “destinado ao fortalecimento das artes plásticas e visuais brasileiras no mercado internacional”. Para pensar políticas de internacionalização para a arte brasileira, foi instituído também o Comitê Brasileiro de Internacionalização e Economia da Arte Contemporânea (CBIEAC), que visa, em especial, criar estratégias para a “normatização do comércio internacional” de arte, além de apoiar galerias e instituições colecionadoras como forma de fomento ao lugar da produção brasileira no mercado internacional. Nessa perspectiva, o apoio à participação brasileira na Arco 2008, promovido pelo Ministério da Cultura em ação conjunta com a Fundação Athos Bulcão, foi dos esforços-chave, reposicionando as concepções de Estado e mercado, público e privado, fomento e lucro etc. O evento promoveu e estimulou a circulação internacional de artistas, curadores e outros profissionais, abrindo espaço para desdobramentos diversos. Em sua maioria, as ações perpetradas exploravam a ideia de uma “arte brasileira”, tantas vezes pretexto para a circulação e inserção “massiva” (a mais ampla possível) de artistas do Brasil nesse contexto internacional, através de exposições coletivas – algumas, de caráter panorâmico –, publicações, etc. Ainda que, sobretudo nacionalmente, tenhamos questionado a pertinência de uma “identidade da arte brasileira” (neste sentido, o 31º Panorama da Arte Brasileira foi importante palco de debates), parece que, sobretudo para fins econômicos, a ideia permanece como relevante pilar de sustentação e, sobretudo, de viabilização de políticas numa instância global. Assim, talvez haja ambiguidade entre a prática individual do deslocamento (viagens, residências de artistas/curadores, etc.) como forma de produção de subjetividade (e valor) que problematiza identidades de cunho geopolítico (como a “brasileira”) e, de outro lado, a mesma prática realizada numa esfera mais macropolítica – como a presença brasileira na Arco 2008 –,  que habitualmente se dá como “representação”, ou seja, numa exploração (e talvez afirmação) dessa identidade. Como lidar com essa ambivalência, para além das construções e discursos artísticos/curatoriais, também no âmbito das políticas públicas? Que contribuição a essa questão sua experiência como propositor de políticas, e agenciador das mesmas, poderia trazer à discussão?

 

Afonso Luz_Não resisto em falar do problema no seu geral, do campo da arte, antes de falar de políticas públicas, porque temos que situar o assunto no universo da cultura. Vamos lá, então: podemos dizer que a “arte brasileira” que interessa ao campo da arte contemporânea sempre questionou as formas de identificação cultural disponíveis, política e socialmente, no país e no mundo, propondo experimentos que levam ao limite as “identidades nacionais”. Cildo Meireles, Paulo Bruscky, Antonio Dias, Lygia Pape, Vera Chaves Barcelos, Nelson Leirner e tantos outros propuseram a confrontação da arte com a positividade cultural da nação e da política da identidade local. Malgrado isso, podemos pensar que o modo de questionarem esse lugar estético-ideológico os tenha posto em confronto com ambientes específicos. Há certo consenso quanto às particularidades da arte feita neste quadrante do globo. Volta e meia oscilamos para uma circunscrição “latino-americana” desta produção, mas no geral falamos do contexto brasileiro, mesmo quando estas obras são feitas na esfera global de circulação, algo que vem ocorrendo mais e mais desde os anos 1960. Eu diria que entre nós os criadores operam este posicionamento “contracultural”, para glosar um mote, sob o efeito do que chamaria “dialética rarefeita da arte brasileira”. Hélio Oiticica é tão carioca quanto londrino ou nova-iorquino. Mira Schendelnasce emZurique e se torna, em muitos sentidos, paulistana, mas sem deixar de ser italiana e alemã. Embora muitos artistas tenham mergulhado em solo simbólico da experiência que nos é comum, jamais seriam caracterizáveis como produtos típicos de uma determinada cultura e de um território; é isso que temos de melhor, é o que faz com que ganhemos uma importância mundial sem entrarmos nas cotas de tolerância do sistema da arte. É como hoje acontece com o Ernesto Neto, Mauro Restiffe, Rubens Mano, Rivane Neuenschwander, Renata Lucas, Cao Guimarães, Marcelo Cidade, Marepe, Adriana Varejão e muitos outros. Todos são e não são brasileiros.

Mas penso que a questão da “brasilidade” deva ser sempre examinada e re-examinada, ainda de outras maneiras, pois é uma questão fundamental para definirmos, segundo nossos próprios conceitos críticos, esta especificidade que nos caracteriza. Foi como os americanos fizeram quando estavam estabelecendo seu sistema da arte no século passado.Lembremos que Jackson Pollock foi questionado pelo lado excessivamente europeu de sua arte abstrata e Andy Warhol foi comemorado como uma verdade da América que ali se afigurava, só para termos em conta a importância desse debate cultural que por lá envolvia toda a sociedade, ou uma boa parte dela. A questão é o quanto nossa internacionalização recente – uma situação que poderíamos dizer estar alavancada pela nova economia de preços nalgumas praças do mercado mundial de arte – altera a dinâmica do debate do localismo e do internacionalismo, mudando inclusive nossos olhares sobre nós mesmos. Penso que Adriano Pedrosabuscou apontar isso no Museu de Arte Moderna de São Paulo [no 31º Panorama da Arte Brasileira], ele que é grande conhecedor desses mercados onde nos destacamos como latino-americanos e brasileiros. Quando estamos propondo políticas culturais para a economia da arte, creio que a questão deva ser tratada desta maneira. Temos que pensar que quando uma obra brasileira é negociada no ambiente mundial sob o selo “arte latino-americana”, ela tem um piso e um teto de preço abaixo de outro selo, que é “arte americana e europeia do pós-guerra”; já se um artista nascido no Brasil que negocia seu trabalho sob o selo “arte contemporânea mundial”, o piso e o teto da transação alteram-se para cima, numa livre flutuação, ele ganha outro patamar no mercado. Penso que o ótimo disso seria que a produção do Brasil fosse negociada sob o selo “arte brasileira” e pudéssemos estabelecer uma política de preços compatíveis com nossas qualidades, o que deve ocorrer em alguns anos, como já acontece com a “arte chinesa”. Hoje, “arte brasileira” é uma categoria econômica e geopolítica que nos permite induzir ou regular a nossa presença no ambiente global de transações, e dizer isso deste modo é fundamental para que não confundamos este assunto de política pública e de geopolítica cultural, com a questão conceitual própria da esfera de valor cultural e artístico que fazem críticos e curadores.

Mas antes de falarmos de economia, queria voltar ao ponto da nossa desconfortável brasilidade. Se a pergunta nos remete ao campo dos paradoxos tipicamente brasileiros, penso que ao falarmos de “arte brasileira”, de arte internacional contemporânea do Brasil ou de artistas brasileiros no sistema mundial da arte, ou ainda de artistas mundiais produzindo sobre o ambiente brasileiro, estamos necessariamente tratando de questões culturalmente relevantes, discordemos ou concordemos com as categorias usadas. Temos que olhar a historicidade de certas dimensões culturais deste assunto, o que muitas vezes também foge ao debate estrito do campo da arte e da história da arte, como acontece quando o assunto é economia, pois há um mau hábito nosso de fecharmos as conversas em teorias da arte, como se houvesse aí uma neutralidade indispensável à qualificação de nosso meio. Lembro que o crítico Paulo Emílio Salles Gomes observou que o país sempre esteve imerso num singular ambiente identitário, na medida em que nossa formação cultural se fez pela “dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”. Ele dizia, ao meu juízo, que ao inventarmos o Brasil desenvolvemos a consciência aguda, por vezes amargurada, de não sermos um povo com identidade positiva. A negatividade começa já na palavra que nos nomeia e guarda sentido depreciativo, bem observado, na atribuição da língua portuguesa ao povo de “eiros” (como sapateiros, açougueiros, brasileiros). Só para lembrar, aqui no território nacional muitas vezes preferimos definirmo-nos como pernambucanos, cariocas, mineiros, baianos, paulistas ou gaúchos. Penso que a rarefação a que se refere o crítico esteja na configuração de um ambiente problematicamente internacional entre nós, no qual corpos e mentes envolvidos na aculturação do espaço humano local são desejosos de reassumir identidades originárias perdidas, generalizando a vontade de ser o outro, de ser o que já não somos, ou o que nunca fomos. Sérgio Buarque de Holanda traduzia esta vontade de dissolvermo-nos em outras culturas, dizendo que somos uns “desterrados na nossa própria terra”.

Conhecemos bem esta questão arrolada pelos ensaístas que interpretaram o “Brasil”, mas retomo esses lugares hoje descartados de nosso meio porque penso que há uma nova camada de terreno conceitual neste paradoxo: hoje o mundo quer ser brasileiro e a imagem mítica de um Brasil do século XXI rola solta como utopia para os cidadãos de muitos outros países do mundo, onde somos recebidos com simpatia desmedida por sermos, justamente, brasileiros. Muitos estrangeiros adoram viver entre nós por conta de um imaginário topológico, um sensualismo estético ou uma espacialidade mítica, seja lá como queiramos chamar isso que os mobiliza criativamente. Neste momento há grandes artistas do sistema mundial da arte que vivem boa parte de seu tempo no Brasil, ou passam regularmente por aqui. Podemos dizer que Inhotim é um paraíso para estes criadores globais da arte contemporânea. Muita gente quer ser brasileiro hoje em dia. Mesmo quando somos uma ameaça social nos outros países, a nossa presença simbólica é um fenômeno cultural contemporâneo pelo qual todos se interessam. Hoje a sandália “Havaianas” nos pés do nosso favelado é uma etiqueta pop da descolada moda internacional. Estamos valorizando o design de Sérgio Rodrigues porque hoje é de uma sofisticação mundial ter a Poltrona Mole na sala de casa. Ou seja, talvez estejamos sendo colonizados por uma nova imagem mundial do Brasil, o que nos aumenta o paradoxo existencial. Nossa consciência de in-essencialidade e nossa paixão pela alteridade está sendo convertida neste momento pelo desejo internacionalista de ser brasileiro. É algo que precisamos pensar, pois pode gerar outra circunstância que, mal compreendida, nos levaria a um ambiente problemático de um neonacionalismo de consumo global, ainda mais agora que teremos Copa do Mundo e Olimpíadas por aqui. Este é o ponto: qual é nossa capacidade de agenciarmos e gerirmos, com todo o estofo crítico e conceitual de nossa reflexão histórica, o momento positivo desta marca “Brasil” na economia mundial?

Mas só levantei esta bola, esse papo de cultura, porque acredito que em termos críticos ou conceituais não há arte brasileira num sentido forte, só consigo pensar que há “Arte”,ela é o que é em todo o canto em que surge com suas singularidades. Penso também que há outras necessidades conceituais de aprofundamento em nosso meio, pois no Brasil temos enorme dificuldade em separar os campos do debate estético e do debate econômico, mantendo nossa inteligência refletindo sobre eles de maneira simultânea, mas sem confusões teóricas ou adesões a doutrinas morais. O livro que Luciano Trigo publicou recentemente parece um sintoma dessa falta de cultura conceitual entre nós. Também não tenho dúvida de que precisamos ter uma estratégia institucional e geopolítica para posicionar de forma privilegiada a melhor arte feita aqui no Brasil, isto para que ela seja reconhecida em todo o seu espectro qualitativo nos contextos internacionais relevantes. Fui à feira Art Basel e vi como nossa presença ainda é insignificante no principal mercado de arte contemporânea do mundo. Temos muito o quê trabalhar e profissionalizar em nosso sistema para que sejamos um dia um país respeitado nesta praça decisiva da economia mundial da arte. Lá pouca gente usa Havaianas, não é como Londres ou Miami.Nossa penetração ainda é pequena, estamos lá como “latino-americanos” em geral. Os mexicanos estão mais organizados que nós em Basel, basta ver a diferença institucional da exposição de Gabriel Orozco que havia por lá. Temos que olhar para isso com outras lentes e ver o que está ocorrendo na economia. Falamos demais em mercado e compreendemos pouco de economia da arte. O Ministério da Cultura deu passos importantes neste sentido junto com os artistas, os curadores, as instituições, as galerias e demais agentes que operam nossa internacionalização com consistência. Mas creio que ainda estamos engatinhando em termos de uma política cultural ou uma política pública para a economia e a internacionalização da arte contemporânea feita no Brasil. O Programa Brasil Arte Contemporânea é um primeiro passo que nos dá horizonte, mas é uma nova estruturação do ambiente profissional e social do meio de arte que precisa surgir para que seus horizontes projetados se cumpram.

 

Revista Tatuí_Sua constatação de que “muita gente quer ser brasileiro hoje em dia” converge com o processo de legitimação que a obra de artistas como Hélio Oiticica ou Cildo Meireles tem percorrido internacionalmente. A aquisição, por parte de instituições estrangeiras, de importantes coleções de “arte brasileira”, confirma tal interesse – como também evidencia as redes de especulação (simbólicas, financeiras etc.) nele envolvidas. Todavia, nossa inserção numa “história internacional da arte” parece especialmente canhestra, como evidenciou debate ocorrido durante o Seminário Internacional Trocas da 27ª. Bienal de São Paulo, entre LisetteLagnado e Nicolas Bourriaud [1] http://forumpermanente.iv.org.br/portal/.event_pres/simp_sem/semin-bienal/bienal-trocas/trocas-doc/copy_of_conf1, acerca dos possíveis “antecedentes históricos de uma “estética relacional””, para o que a curadora brasileira advoga a consideração da obra de artistas brasileiros dos anos 1960, como Hélio Oiticica. Nos jogos de poder entre as forças envolvidas nesses processos legitimatórios em âmbito global, sabemos que as políticas culturais dos países podem ter intensa reverberação, ainda que pareçam pontuais. Nesse sentido, como você afirma, o Brasil deu seus “primeiros passos”. Então, no contexto desses esforços, como você avalia os lugares que essa “arte brasileira” tem ocupado no debate crítico internacional da arte, no que se refere à nossa produção artística como, também, à força do pensamento crítico produzido a partir do Brasil?

 

Afonso Luz_Creio que precisamos ser positivos na afirmação de horizontes estratégicos, também nesse particular da legitimação discursiva da arte pelas inteligências que compartilham com ela um meio cultural específico. Não é bom meter a colher na sopa dos outros quando se tem a sua própria, e a minha de políticas públicas já é bem apimentada, mas queria me posicionar como crítico nesta questão. Todavia, não acredito nesta possibilidade de pensar políticas culturais sem um lastro de reflexão crítica, ainda que as duas áreas tenham meios de efetivação diferentes. Vou falar então da minha geração, com quem convivi em alguns projetos, para não ser leviano.

Recentemente um grupo de artistas e curadores paulistanos publicou edição de um periódico chamado “Número”. Faziam uma espécie de balanço em revista ao chegar no seu décimo ciclo. Ali, quase anunciavam o fechamento das portas devido a melancólicos percalços no exercício da “vontade de ser crítico” e apenas ficarem na enunciação de sua inviabilidade contemporânea. Este é um problema congênito das revistas que surgem e com muito esforço conseguem chegar a mais de uma dezena de experiências, depois de viverem com grande irregularidade os seus ciclos de periódicos. No fim de contas, pela leitura que fiz dos artigos e intervenções artísticas nas poucas páginas, acreditei que estavam a problematizar certa indiferença atual entre crítico e artista, talvez até comemorando sua possível fusão na esfera da curadoria contemporânea, algo tantas vezes debatido sem mais proveito. Como é hipótese corrente, sabemos: o curador está cada vez mais a confundir instâncias de criação e de recepção, como na sociedade confundem-se momentos de produção e de consumo, para falar noutros termos contemporâneos não específicos da “Arte”. Se historicamente o “curador” surge como aquele especialista que cuida da “exposição pública da arte”, ao longo do século XX, com a afirmação da centralidade do espaço expositivo, ele também se torna o responsável oficial pela recepção alargada de valores e conceitos da arte, mas aqui entre nós ocorreu algo um tanto diferente. Se a figura do curador passou a ser indispensável na contemporaneidade do século passado, quando a arte foi apresentando-se com menos consenso e cada vez mais codificada desde os primeiros desdobramentos modernos, isto não seguiu uma mesma linha evolutiva entre nós.Aqui o curador não desempenhou esta tarefa de mostrar o que é “Arte” para uma complexa sociedade que recebe estímulos perceptivos contraditórios num espaço de exibição cada vez menos homogêneo, ele não é um agente que busca propor alternativas às medidas instituídas do museu e da galeria, por estes terem sido deslocados do centro de referência e certificação do que é aceito como arte. No Brasil, o curador teria surgido talvez com as Bienais, mas com sinais trocados, para bem e para mal, ocupando vários lugares sociais e profissionais ao mesmo tempo, sendo a forma dominante do intelectual que pensa livremente a arte, do teórico mais notório entre seus pares, ainda que não faça teoria à luz da universidade, funcionando para afirmar algumas perspectivas mais ou menos lineares sobre a formação brasileira. E essa situação tem lados muito positivos e lados muito negativos.

E a “função curatorial” ocorre sem que o nome viesse acompanhado do exercício profissional – um Mário Pedrosa ou um Walter Zanini podem ser identificados como tal. Quando a designação aparece plenamente nos anos 1980, ela centraliza a tal ponto o sistema local que parece não haver outra possibilidade legítima de exercício do pensamento fora das academias, se não for assumindo o personagem público do curador. O mais paradoxal é que no Brasil este profissional está pouco preocupado, no geral das situações, em apresentar ao público o que ele propõe como conceito de arte, muitas vezes praticamente distanciando o público da experiência dos trabalhos, como se estes fossem impenetráveis. Ele é o negociador da aura daquilo que vai ser apresentado sob a velatura de um misterioso vocabulário de especialista. Pergunto-me, vez ou outra: e não foi por isso que no Brasil inventamos serviços educativos tão preponderantes nas exposições e que recrutam centenas de pessoas para ficarem mediando arte em eventos expositivos? As centúrias de jovens bem-intencionados e mal formados nos raros cursos universitários dedicados à arte são subcontratadas para repetir lugares comuns sobre arte e estética contemporâneas, como se fossem consciências artificiais dos espectadores ali presentes para marcar apenas a impossibilidade deste público, incluídos aí os próprios monitores, relacionar-se intensamente com a arte. É como Slavoj Zizek fala dos programas de televisão que, para garantirem o entretenimento, além das piadas que apresentam, trazem também consigo as risadas artificiais de espectadores, já gravadas com a banda sonora. Se isso é correto dizer, temos aí um sintoma complementar, uma marca do país que ainda precisa fazer da sua ótima arte contemporânea um fenômeno realmente público. Embora tenha cada vez mais e melhores curadores, escolas e arte-educadores, ainda não tem uma sistemática pública destes dispositivos. Sabemos que há alguns milhares de monitores atuando no mercado e pouquíssimos cursos qualificados de história da arte no Brasil para formar as gerações.

O problema maior de hoje é que a evolução deste profissional da intermediação da obra com seu público passou a conviver com espectadores, com indivíduos e com formações sociais que também querem criar ao consumir os produtos que chegam até si, pois já são carregados de suas próprias informações. Assim vai ficando cada vez mais distante um paradigma da formação comum de um meio, ou de uma gestão de uma qualidade sob o controle de instituições reconhecidas. Um agudo sociólogo italiano que aborda tendências de futuro no universo da moda e da indústria do luxo, Francesco Moracci, nos dá uma belíssima explicação sobre o sentido do “consumo autoral”, recuperando o projeto ready-made de Marcel Duchamp, situando seu “ato criativo” como a invenção visionária de uma sociedade de autores consumistas, ou a constatação precoce desta modalidade de prática estético-social que hoje se generalizou através da lógica criativa nas cidades globais. Ou seja, voltando a um ponto já comentado, podemos concluir que, se o artista e o crítico se confundem na figura do curador, é também porque toda a sociedade passou a fundir os processos de recepção/consumo com o de criação/produção. E isto deveria ser melhor pensado em termos econômicos por aqueles que estão envolvidos neste processo, até para fazerem deste negócio algo efetivo e não uma mera estilização da época. Recuperando o fio do raciocínio para o “caso brasileiro”, lembrando nosso ministro Celso Furtado, que nos ensinavaa falar mais do que ocorre entre nós,creio que podemos dizer: no ambiente local, este desdobramento histórico e urbano da desdiferenciação do espaço da arte e do espaço do consumo é uma miragem que se apresenta apenas com contornos ideais no horizonte do possível, pois nosso sistema cultural ainda é muito provinciano no que tange ao fenômeno de encontro da arte com seu público. Para piorar o quiproquó, tais desenvolvimentos estão aqui apresentados competentemente pela “obra de arte”, mais do que pelo contexto social de sua experiência.Acabamos assim por, ironicamente, obscurecer o limite entre a criação artística e a possibilidade de fala sobre ela, de uma forma tipicamente brasileira e retardatária.

Voltando ao periódico “Número”, é curioso como se faz ali uma tentativa suicida de defender a profissão de fé do crítico, lançando o texto programático na primeira página e, contraditoriamente, reiterando esta ruptura de limites no sistema da arte pelo resto da revista, o que parece desdizer o próprio manifesto. A certa altura, lemos nas suas páginas uma elíptica historiografia localista, recuperando a ocorrência brasileira de uma desmobilização da crítica profissional que perdera sentido público em meio à ditadura, reapresentando um fac-símile da revista “Malasartes”, no qual já surge o artista como crítico, sujeito mais gabaritado conceitualmente do que o analista profissional de obras. Contudo, se esquecem de fazer qualquer comentário crítico, para que ganhe reflexão a analogia pretendida e que mostre ao público o que isso quer dizer. Talvez devêssemos pensar que naquela altura a geração de Cildo Meireles entrava no debate crítico por uma porta fechada, ou melhor, fazia uma obra de arte no formato revista tomando como material a inexistência crítica de um espaço público de percepção da arte, o que acabaria situando o problema da enunciação e dos enunciados “arte” ao mesmo tempo do conceitualismo internacional, sem contudo descuidar de um ambiente que era deveras particular e que os concernia intensamente, principalmente com a paranoia militarista que inundava as cidades brasileiras. Basta ver como naquela revista dos anos 1970 se traduz de maneira polêmica um artigo de Joseph Kosuth. Estavam absorvendo o espaço moderno, com que tanto sonháramos, e todo propósito de então se espelhava na inviabilidade crítica daquilo que fizemos com nossa verve construtiva, daquilo que era a sua promessa democrática nas redes e códigos de comunicação urbanas. Agora a revista “Número” gera não mais que um brinde hermético aos seus leitores, apartando-os da reflexão crítica e dando a eles uma obra de arte travestida de múltiplo de artista sob o título de revista.

Penso que, para não nos desviarmos demais da questão, deveríamos propor outra. Será que a crítica de arte, ou ainda, sua irmã siamesa, a história da arte, ambas que são feitas em língua portuguesa e por pessoas que compartilham experiências atravessadas pelo ambiente brasileiro, já chegou ao grau de maturação que a própria arte atingiu neste perímetro do globo? Minha opinião: temos ótimos textos desde Mário Pedrosa, muitos deles sintonizados com o melhor do pensamento internacional, viabilizando uma prosa contemporânea bem informada teoricamente sobre arte. Contudo, creio que o discurso sobre arte, tal como vem afirmando-se entre nós, ainda não tenha a potência sistêmica para enfrentar um ambiente global bem estruturado há séculos. Daí que o curador vira uma tábua de salvação e parece que magicamente tudo resolve, pois basta colher ideias e palavras soltas no mundo e dar um verniz contemporâneo às vernissages. Desculpem-me se não respondi o que deveria e estou tentando ser crítico indevidamente nesta ocasião que me entrevistam sobre políticas culturais, mas o que entendi do que indagam é se isso seria responsabilidade também da falta de uma política pública que induza este desdobramento mais consistente. Acho que um pouco sim, talvez a maior parte do problema esteja em não termos instituições e uma formação social regular no meio de arte. A preocupação que afirmam é quanto a não termos um pensamento consistente neste meio retardatário, algo que vai ficando defasado em relação à nossa própria arte que hoje é reconhecida e apreciada no mundo, mas de cuja inventividade não sabemos tirar proveito discursivo e acabamos uns ressentidos dizendo que “nós inventamos tudo antes dos outros e ainda não somos reconhecidos”. Acho que vocês estão corretas em antever este problema. Recentemente, Clarissa Diniz conversava comigo no Facebook sobre a dificuldade de manter os ambientes experimentais de Recife, pois o meio urbano da arte pernambucana vai se profissionalizando e as pessoas começam a ser conectadas a dinâmicas de fluxos globais que as retiram fisicamente e mentalmente da cidade, algo que é bom numa direção, mas que pode comprometer os espaços de troca para as próximas gerações. Podemos pensar que em alguns anos, na escala que o desenvolvimento de 7% vem se dando ao ano, aquela cena criativa que está gravada nas superfícies poéticas de Paulo Bruscky se tornará apenas parte de seu próprio arquivo e reste como aura estética de uma Recife do passado boêmio, como ocorreu em tantas cidades através do mundo. Não é isso que ocorreu na música pós-manguebeat e que pode estar ocorrendo agora com a arte? E todo mundo de Recife vai ficar lamentando melancolicamente aquilo, outros vão falar dos tempos áureos, alguns poucos transformarão estes numa marca diferencial deles mesmos como profissionais que querem manter a exclusividade de uma suposta tradição morta. Mas na conversa falávamos da precariedade das instituições locais e de uma sociabilidade resistente para poderem planejar esta redução de impactos que podem gerar reais vulnerabilidades ao ambiente sociocultural da arte. É o que ocorre na cidade e o que ocorre no Brasil, na América Latina também, eu diria. A elasticidade desmedida de nossos ciclos de expansão e retração geram estados maníaco-depressivos, que dilaceram toda a pretensão de ambiente ou tradição crítica brasileira e não permite que ela evolua, senão em espasmos.

Duas situações sintomáticas são fundamentais para verificarmos algo disto. A primeira: se observarmos, Hélio Oiticica e Cildo Meireles são criadores de discursos próprios sobre suas proposições artísticas e tais comentários são mais potentes do que tudo que se escreveu sobre eles. Os dois são lúcidos ao extremo quanto a este processo trágico que descrevemos até aqui e sabem que no fim das contas só contam consigo para tratar das suas próprias obras. Pergunto: será que tal modelo artista-crítico-curador, por mais importância que tenha sua emergência reflexiva, não faz apenas uma compensação delirante da falta de condições locais para a vigência de um ou mais sistemas da arte, correndo o risco dos artistas no Brasil serem eles mesmos as únicas “instituições” que sobrevivem ao longo do tempo? Isso chega a tal ponto que um amigo muito esclarecido e querido, alguém que escreve na imprensa há anos, me disse privadamente num jantar que achava o incêndio ocorrido na casa da família Oiticica (no qual não sabemos quantas obras foram destruídas, mas se chegou a cogitar mais de 70%) uma forma contemporânea de realização do conceito da imaterialidade e da liberação do suporte proposto conceitualmente por Hélio Oiticica em sua obra, o que poderia até mesmo vir a realizar tardiamente seus projetos com toda força simbólica e de forma mais adequada do que as tiragens não assinadas que a família vem promovendo de penetráveis e outros objetos. Essa é uma forma crítica radical, patológica e ironicamente trágica, uma maneira enviesada de pensar a própria complexidade de uma obra propor-se no seu desdobramento conceitual ao longo do tempo (relembro Thierry de Duve). Mesmo que haja casos de destruições que geraram oportunidades de brilhantes recriações, como a genial reconstrução que Edgar Degas faz dos fragmentos da segunda versão da polêmica tela A execução de Maximiliano, 1867–8de EdouardManet,tantas vezes censurada, e mesmo que eu ache que esta seja uma obra de arte elevada à segunda potência, malgrado seu esquartejamento, jamais poderia pensar que a falta de zelo das instituições e da sociedade para com Hélio Oiticica seria uma recuperação criativa de seu conceito. O mais trágico nisso tudo é que parece que apenas o discurso do artista pode alcançar a potência crítica, até mesmo como prefiguração destrutiva de todas as apropriações acríticas indevidas e futuras de sua criação. Será que estamos condenados a não ter um sistema da arte, ou teremos que esperar uma outra reviravolta da crise da civilização ocidental para sermos absorvidos naquilo que tanto desejamos como um mundo culturalmente digno para as nossas cidades brasileiras? Acredito que não podemos ficar a mercê de acasos e de fatalidades, não vejo como este processo se construa acidentalmente quando se trate de afirmar o modo de um sistema da arte que precisa preservar a memória e a materialidade de seus enormes acúmulos atingidos neste momento.

A segunda é que desde que o discurso do curador passou a dominar o campo da produção textual e o comentário público sobre os valores estéticos e culturais instaurados pela frequência de um trabalho de arte, as nossas instituições passaram a encontrar uma boa solução para sua própria falência eminente. Deram conta da necessidade de posicionamento na geopolítica, nacional e internacional, uma vez que era necessário reordenar as assimetrias entre centros e periferias, obras universais e idiossincrasias locais, sem fazer o dever de casa com seu estatuto de governança, sua missão pública e seu modelo de sustentabilidade financeira. Penso que há uma complementariedade perversa entre a emergência dos curadores e a desmontagem de um sistema padrão de equipamentos culturais e museus no campo da arte. Não que sonhe com a restauração da autoridade dos museus, muito pelo contrário. Estou dizendo que hoje nossa arte é muito valorizada pelo sistema internacional porque ela é o insumo perfeito para permitir inovações na economia de exposições de arte dos países que mantêm as instituições centralizadoras do desenvolvimento desse campo. Quando a Tate Modern monta uma mostra de Cildo Meireles e faz com que ela circule globalmente, ela pode ocupar um espaço deixado pelos museus brasileiros que estão sucateados ou obsoletos (feitas as raras exceções privadas) e fazer isso de forma que tenha a colaboração dos melhores agentes oriundos do que sobra deste precário sistema local. Ela tem em suas mãos um produto de primeiríssima qualidade, ainda não tão difundido pelo mundo, pode fazer isso com custos bem baixos, até mesmo sem patrocínios, uma vez que tem o melhor conteúdo com uma série de detalhamentos pré-formatados pelo inconcluso sistema de arte brasileiro, bastando a ela, através da gestão de sua rede curatorial, preparar a finalização do produto. Mutatis mutandis, é como os designers vêm discutindo o problema central da embalagem na criação dos produtos contemporâneos.Podemos dizer que os artistas globais, como as empresas globais, já produzem seus bens comercializáveis no ambiente internacional com a escala diferenciada de embalagens que cada mercado e circunstância de consumo requer nos múltiplos territórios do globo, caso contrário não podem competir. Se você tem um ótimo produto em suas mãos, refinadamente trabalhado em tecnologias e com altíssimo valor cultural agregado, com capacidade de inovação conceitual embutida em seus elementos, com grande potencial de incrementação dos contextos onde circula (assim poderíamos definir, em termos econômicos, uma obra de arte, ou uma boa cadeira de design, ou uma peça ou acessório de moda), mas não analisou as características finais deste produto através da embalagem que o disporá para o universo do consumo global, digamos que você disputará um espaço subalterno nas prateleiras de lojas-janelas de exposição operadas por terceiros.Ou fará um investimento quintuplicado para inserir este produto em menor escala e sem condições de garantir nenhum resultado positivo para as suas séries de criações nas próximas temporadas. Este é o ponto da nossa pouca institucionalização e profissionalização do sistema de arte e de outros sistemas na economia criativa mundializada. Por falta de condições de sustentar os custos altos que operações precárias requerem, acabamos sobrevalorizando a mobilidade dos curadores e editores de conteúdo como promessa de felicidade do sistema cultural.

Por fim, gostaria de dizer que uma política cultural, adequada e mínima, começaria por financiar um sistema de distribuição de revistas independentes de arte em museus e espaços de exposições de tal modo que a crítica e a conceituação da arte, também de seu sistema institucional e econômico, se tornassem um assunto público no país, e que ela pudesse encontrar um número suficiente de leitores interessados no debate que propõe. Penso que um gesto mínimo deste desencadearia uma enorme transformação, acabaria por mobilizar mais agentes sociais diversificados do que só a busca por atrair ricos colecionadores, o que fazem obsessivamente os museus, e os convidaria, a todos, para desenvolver, cada qual em seu papel complementar, a sustentabilidade deste meio comum que envolve todos. Quem sabe o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), no futuro, quando vier a ser realmente uma instituição contemporânea ao campo da criação artística, possa fazer isto de forma competente e séria. Para além de uma enorme contribuição à institucionalização de políticas culturais no país, teria a virtude de transformar esses espaços em um lugar de reflexão para a sociedade que se simboliza e se percebe através da arte, onde pudéssemos confrontar o pensamento da arte com o pensamento sobre a cultura no Brasil, além de outras questões universais e atuais. Este é um problema que nos concerne, por mais que no mundo todo aconteça de a escrita sobre arte ter contornos muito especializados.Como falei aqui, no Brasil ela sofre deveras o isolamento de um sistema reduzido e fechado de comunicação, de sorte que fica até difícil falar em crítica uma vez que nunca sabemos se os textos de arte dirigem-se a algum público, mais do que o imaginário leitor não especializado. Além de fazermos muito a crítica da crítica, fazemos a crítica para a crítica. Pior: sem a pretensão de um crítico dissuadir ou ser convencido pelo outro, uma vez que eles pouco se leem. Diria, por fim, que também falta uma visão econômica para a crítica de arte e para a própria curadoria desenharem seus papéis dentro do meio de arte e do meio editorial no país e fora dele. Ainda somos muito reféns de um sistema da vaidade e do prestígio barato no que tange a publicação de um comentário autoral sobre outra criação autoral. É chegada a hora de transformar essa acumulação conceitual primitiva num verdadeiro empreendimento contemporâneo.

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[LADO B] cartas. do deslocamento político-espacial

Belo Horizonte, quinze de outubro de 2010.

Querida,

Nesses dias estive às voltas com aspectos sobre deslocamento que me ocorreram agora há pouco, enquanto transito por tantos lugares ininterruptamente nesse último ano. Daqui, ainda vou ao Rio de Janeiro, passo brevemente em Olinda, depois Fortaleza, alguns dias em Recife e retorno a São Paulo; de lá vou a Belo Horizonte novamente, sigo para Vitória e talvez passe o dia de natal em Florianópolis.

Acabei por entender que os deslocamentos espaciais por si mesmos nos requerem deslocamentos “espaço-emocionais” e, quando associados às residências artísticas, nos disponibilizamos também a viver deslocamentos outros, da ordem da subjetividade, ativados pelas experiências estéticas (e estésicas).

A ideia de lugar me remete a uma circunstância muito relevante que mal nos damos conta. Lugar imediatamente me traz a presença de alguém, quase sempre, que se liga a nós por uma relação de afeto. Nesse sentido, daí pensando mesmo numa dimensão ética, cada lugar pede de nós posicionamentos. Não sem motivo também políticos.

Posicionar-se politicamente, ao que me concerne, tem a ver com envolvimento, entrega, engajamento. Com assumir responsabilidades (que sejam também pela alegria da convicção). Para mim, já não dá para não levar a vida, as pessoas, as situações, como se não fizessem parte de mim e como se também não se tratassem de construções minhas.

O político, já de tanto tempo atrás, vem da ideia de constituirmos seres sociais – da polis. Da possibilidade de nos colocarmos como vozes, também como lugares de acessibilidade tanto quanto de dispersão de ideias, pensamentos-gestos que se colocam no mundo e pedem também abrigo, resposta, diálogo.

Quando me vejo nesse deslocamento (em todas essas instâncias em que temos considerado), acredito que não posso deixar que as situações, pessoas e coisas passem por mim despercebidas, sem que eu tenha com elas uma responsabilidade de me debruçar acerca de. De considerá-las e absorver (e/ou repudiá-las) também como minhas.

Talvez tenha sido inimaginavelmente danosa a construção político-governamental que hoje ainda se dá por representatividade (partidos políticos e seus mandatários). Mais notadamente à nossa distância, ao que concerne à responsabilidade das ações desses partidos-mandatários, como se não fosse nossa a escolha, a delegação, a outorga das gestões. O que é público nos parece coisa distante. Frase de efeito apenas: dinheiro público = nosso dinheiro. Mas que se vivêssemos mesmo essa afirmação, não haveríamos de deixar correr tão soltas as rédeas do que acontece em nossos governos.

Estou divagando, eu sei. Talvez sejam esses dias que antecedem mais uma eleição presidencial. Estou inundada de tanta expectativa em certos aspectos, contudo, completamente impregnada de descrença em mudanças significativas. Ainda não me é possível voltar a acreditar em um nós, quanto mais num eles cada vez mais descolado do eu subjetivo, tanto quanto do eu objetivo (de novo o nós).

Fiquei lembrando daquela conversa que tivemos em Terra UNA sobre arte e política, na qual você dizia que sua posição política em relação à arte (e na vida) era de sinceridade. De vivenciar suas próprias propostas artísticas, sem usar os simulacros como muletas, tampouco se entregar às demandas do mercado. Penso que é esse o caminho. Também procuro ter com e através da Tatuí relações de sinceridade tanto no que diz respeito à minha escrita, pesquisa, quanto da convivência com artistas, críticos, curadores, público…

O projeto Tatuí – nossas atividades há muito já extrapolaram apenas a edição da revista impressa: hoje promovemos experiências imersivas de elaboração de textos em residências e laboratórios – sobrevive por sua autocrítica e transparência. Procuramos sempre rever nossos posicionamentos sem cinismo. Porque, ao que me parece, as atuais formas de crítica (também autocrítica), resumem-se ao apontamento da mera perversão – do mundo, cotidiano, mercado, arte –, das contradições. Não à toa surgem as falas do ressentimento. Trabalhos (e textos) que reproduzem as perversões e nos fazem re-sentir as situações negativas, criando um movimento circular, uma imobilidade. Ao contrário disto, a autocrítica (e crítica) que procuro imprimir passa pela vontade de reconstrução das situações. É movimento para fora, transmutação, entropia.

Talvez eu esteja inevitavelmente condenada à utopia e à pieguice. Mas quando me proponho viver os deslocamentos – fazer e promover residências, visitar tantas cidades à trabalho (e por muito prazer) –, penso que não posso apenas flanar, mas marcar e me deixar marcar pelas presenças de todos esses lugares (subjetivos-pessoas, objetivos-espaços).

Grande beijo,

.a

 

 

Porto Alegre, 08 de novembro de 2010

Ana amiga,

É bonito quando descobrimos as micro-políticas que criamos e que nos envolvem. Nos nossos trabalhos, nas nossas relações, nos nossos modos de viver. Penso que criar micro-políticas é necessariamente estar atento (sentindo-se responsável) ao que se constrói e ao que se destrói (sem esquecer do acaso agindo independente da gente tanto no que se constrói, quanto no que se destrói).

O sentir-se responsável talvez aponte para um modo de viver indispensável nas nossas vidas hoje. Justamente por nos darmos conta de que não existem essências e verdades prontas, é que a estratégia de atenção e de “movimento para fora” torna-se fundamental para que possamos construir o que quer que seja. Penso na Tatuí (no que você conta, nas páginas que leio), penso nos pequenos movimentos de alguns artistas através de seus trabalhos, penso em “La Borde”[1] Clínica Psiquiátrica na França criada por Jean Oury em 1953. Tem por princípio a psicoterapia institucional que busca meios para que o paciente tenha acesso à singularidade. e penso em Terra UNA. Penso em tudo isso existindo. Fazendo-se existir dia após dia concretamente. Mas aqui neste texto, escrevendo através das lembranças de contato, tudo isso me vem como construção que envolve trabalho, mas também sonho, desejo, imaginação…

Estive por alguns dias em La Borde no ano de 2009. Não fui capaz de fotografar, filmar, escrever. Qualquer que fosse a tentativa de registro me pareceu incapturável e talvez medíocre no caso daquela experiência.

Os pacientes habitam um antigo castelo. Existe muito verde ao redor e caminhando um pouco você logo se depara com esculturas e vestígios de tinta que colorem entradas. Ao adentrar o salão principal do castelo, eu encontro cachorros, gatos, pessoas, mesas, um lindo lustre, fumaça de cigarro que sobe, de diversos cigarros, fumaça que se torna uma só e grande nuvem. A luz do sol de final de tarde alaranjeia tudo ao redor. Eu não sei quem são os médicos, quem são os pacientes, os enfermeiros, os visitantes. Todos se misturam e usam suas roupas de cada dia, assim como as pessoas nas ruas. Todos que querem fumar fumam. Não há jaleco, nem plaquinha na lapela que assegure os ofícios. Ao iniciar a assembleia (que acontece cotidianamente), alguém pede que eu me apresente. Com meu francês ruim, me ocorre que a partir daquele momento eu também passaria a fazer parte das incógnitas daquele lugar. Uma incógnita, neste caso, não é nada que deva ser desvendado, pelo contrário, uma incógnita é o que faz de cada um singular. Apesar disto, há sempre aqueles que desejam desvendar e é assim que estendo minha mão para uma mulher de cabelos brancos e olhos profundamente azuis, que imediatamente resolve me lamber.

A discussão da assembleia trata de resolver um pequeno problema: dentro de alguns dias La Borde receberia uma visita com o intuito de fiscalizar a higiene do hospital. Gato pode dentro do castelo, cachorro não, segundo as normas. A discussão se desenvolvia desde dias e o ponto daquele momento era: como fazer com que os cães entendam que é só por uns dias?

Há sempre a possibilidade de que a encenação não cole. Neste caso há a chance do hospital fechar. Sempre foi assim e sempre é assim: tudo que existe de uma maneira está sujeito a ter que se modificar. Mas em La Borde (e eu diria que também na Tatuí e em Terra UNA), é o movimento e a invenção que compõem a maneira de existir, por princípio. Ou seja, ao se autogerir, ao confundir papéis, ao colocar em questão assuntos que talvez fossem mais fáceis de resolver usando de uma norma, a instituição toma o “estar atento”, o se “sentir responsável” como motor próprio da sua possibilidade de continuação. É justamente a possibilidade constante de se chegar a um fim que move a construção de soluções, estas sempre calcadas nos desejos que se constroem coletivamente já que todos têm o mesmo direito de voz.

Isso explica a serenidade de Jean Oury, com seus oitenta e poucos, caminhando por entre a gente, com poucas palavras interventivas acerca da tal visita fiscalizadora. São os meios. O quanto de vida se produz quando estão em jogo decisões que envolvem fins. O fim não interessa, nem a origem, o que interessa são os desejos que se criam quando nos colocamos em situações onde devemos tomar decisões coletivas.

La Borde estendeu-se por estas linhas… E inscrevendo esta experiência através de palavras (“favorecendo a circulação da palavra” como está escrito no site[2] http://www.cliniquedelaborde.com/ da instituição) penso nas aproximações com a proposta da Tatuí (descrita em sua carta) e de Terra UNA.

Em Terra UNA o consenso é um dos motes de funcionamento. Conversando com alguns moradores, ficou claro o quanto o exercício de se chegar a um consenso faz com que cada vez mais eles conheçam os próprios desejos e os desejos uns dos outros. Uma abertura aos movimentos, já que ao entrar em contato com o que quero e com o que o outro quer, passo a experimentar o desejo deste outro para medir até que ponto posso abrir mão do meu. Isso não quer dizer que seja simples, e nem se quer simples. Na complexidade se afinam singularidades, se experimentam novos modos de vida e assim o movimento põe em funcionamento a invenção do dia a dia, invenção de desejo coletivo.

Bem, passando pelas experiências de La Borde, da Tatuí e de Terra UNA, o que me bate é a importância do que a gente chamou de “atenção” e “responsabilidade” para que estas maneiras de existir não se cristalizem e acomodem. Cada uma, à sua maneira, inventa formas de se colocar questões e assim se recriar. É essa mescla da diferença, é essa abertura que treme a pele, sem querer igualar, concordar, nomear, que faz destes lugares espaços micro-políticos.

Também me sinto condenada à utopia e à pieguice e penso que me basta sonhar o desejo. É este o lugar político do sonho: sentir-se entusiasmado com alguma novidade ou algo a ser feito, sentir um doce incômodo ao encontrar (com) um corpo – outro – diferente.

Saudades,

Mayra

 

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[LADO B] NÃO SEJA MARGINAL, NÃO SEJA HERÓI [1] Título emprestado de uma obra de Alexandre da Cunha apresentada na Trienal Poligráfica de San Juan, em 2009, em que recria a célebre bandeira de Oiticica modificando o slogan original. : a arte brasileira no exterior em tempos de mobilidade acelerada

Existindo em Portugal, no século XV, as condições necessárias – a estrutura econômica e, consequentemente, o domínio da técnica e os recursos materiais – para o empreendimento que caracteriza, naquela fase, o surto mercantil, a expansão ultramarina vai ser principalmente impulsionada pelo reino que se antecipara na formação nacional. Ela corresponde, de modo exato, ao desenvolvimento econômico, social e político da Europa, e vai ser a empresa de rigoroso método, cuidadosamente planejada e meticulosamente desenvolvida, que atende às necessidades expansionistas da Revolução Comercial.

O que se deve ler para conhecer o Brasil,

Nelson Werneck Sodré

Minha experiência do financiamento à cultura em Nova York é que projetos experimentais raramente recebem apoio; ao mesmo tempo o patrocínio privado incentiva a auto-censura e o triunfo dos imperativos de mercado. Mas a deferência aos grandes negócios está sendo explicitamente incentivada no Reino Unido: um dos novos objetivos declarados pelo Arts Council é levar em conta o tratamento prioritário dos poderes emergentes pelo Ministério das Relações Exteriores (China, Índia, Brasil, países do Golfo Pérsico, Rússia, Japão). A mensagem parece ser que há financiamento para a arte chinesa (o que abre caminho para o comércio internacional), mas não para a história local. Esta última ficará aos cuidados da população local, não sendo mais valorizada como patrimônio nacional.

Con-Demmed[2] Texto em inglês disponível em http://www.e-flux.com/journal/view/209. NT: A expressão ‘Con-Dem’ é um neologismo que designa o atual governo do Reino Unido, formado pela coalização entre os partidos Conservador e Liberal Democrata. É também um trocadilho com a palavra ‘condemn’ (condenar), que se refere aos grandes cortes orçamentários a serviços públicos básicos (educação, cultura, saúde) efetuados pela coalizão desde sua tomada de poder em maio de 2010. to the Bleakest of Futures: Report from the UK (‘Condenados ao mais sombrio dos futuros: um relatório do Reino Unido’), Claire Bishop

Como propõe a presente edição da Revista Tatuí, neste breve texto pretendo explorar a ideia de deslocamento como valor, articulada desde uma perspectiva pessoal:minha experiência profissional como curadora independente brasileira vivendo em Londres há dez anos e trabalhando em diferentes contextos. Parto do pressuposto de que, justamente nesta década, houve uma expansão dos fluxos, trocas e intercâmbios no contexto da arte contemporânea para regiões além do eixo Europa-Estados Unidos, bem como sua intensificação nos países onde já ocorriam, o que ocasionou uma maior inserção da arte brasileira no circuito internacional. Internamente, no Brasil este foi também um período de aceleração de um processo interno de expansão do campo da arte contemporânea, em que se observou não apenas o surgimento de novas galerias comerciais – representando principalmente artistas jovens –, como também a ampliação regional do circuito, que passa a incluir outros importantes centros urbanos além de Rio de Janeiro e São Paulo. Embora sejam o produto de diferentes conjunturas cuja análise demandaria um ensaio mais extenso, observamos nesses dois movimentos de intensificação de fluxos um processo de descentralização tanto no âmbito externo, quanto interno.

Dentro deste cenário, o que me interessa nesta reflexão é precisamente o impacto que esses processos de descentralização tiveram sobre como a arte contemporânea brasileira é apresentada, exposta e interpretada no contexto europeu – e particularmente o britânico – no mesmo período. Já no início de 2001, a arte contemporânea brasileira figura na exposição Century City, apresentada pela Tate Modern – braço internacional da antiga Tate Gallery (atual Tate Britain), inaugurada em 2000 – cujo objetivo era “explorar a relação entre criatividade cultural e a metrópole, com foco em nove cidades mundiais em momentos específicos dos últimos cem anos”[3] Texto de apresentação da exposição no site da Tate Modern, em inglês: http://www.tate.org.uk/modern/exhibitions/centurycity/, acesso em 15 de dezembro de 2010..

A exposição incluía, além do Rio de Janeiro [4] A curadoria do módulo Rio de Janeiro ficou a cargo de Paulo Venâncio Filho., Mumbai, Lagos, Londres, Moscou, Nova York, Paris, Tóquio e Viena [5] Curiosamente, a mostra incluía outras duas cidades do grupo dos países BRIC, acrônimo forjado também em 2001 (30/11/2001) por Jim O’Neil em um paper publicado pela Goldman Sachs intitulado “Building Better Economic BRICs”, cuja apresentação inclui os seguintes pontos: 1) Em 2001 e 2002, o crescimento real do PIB nas grandes economias emergentes excederá o dos G7. 2)No final de 200, o PIB em dólares com base na PPC no Brasil, Rússia, Índia e China (BRIC) foi aproximadamente 23%do PIB mundial. De acordo com a atual base do PIB, os países BRIC detém 8% do PIB mundial. 3) De acordo com o PIB atual, o PIB da China é maior que o da Itália. 4) Nos próximos 10 anos, os países BRIC, especialmente da China, terão maior peso sobre o PIB mundial, levantando importantes questões sobre o impacto econômico global das políticas fiscais e monetárias dos BRICs. 5) De acordo com estas previsões, os fóruns mundiais de elaboração políticas deverão ser reorganizados e o G7, em particular, deverá ser ajustado para incorporar representantes dos países BRIC.. Sem maiores surpresas, o período escolhido para representar a arte brasileira era de 1950-64, com o Neoconcretismo e a arquitetura de Niemeyer e Reidy, bem como o paisagismo de Burle Marx. Observa-se, portanto, desde a aurora da década, um certo interesse pela arte brasileira, mas que parece tratar-se, neste momento, de um interesse de caráter histórico, que vê a arte brasileira como produto de uma vanguarda de outrora [6] Vale lembrar que no final da década de 90 a arte brasileira já possuía uma certa projeção internacional, e que a XXIV Bienal de São Paulo, em 1998, teve uma enorme repercussão internacional..

É a partir de meados dos anos 2000, quando o Brasil passa a se tornar cada vez mais o foco da mídia internacional, com uma economia estável e em expansão (tendo quitado a dívida com o FMI um ano antes do previsto, em 2005), que a arte contemporânea brasileira adquire uma representatividade sem precedentes em algumas das mais importantes instituições mainstream britânicas, definitivamente ocupando um lugar de destaque em relação a outros países com produções artísticas igualmente fecundas.

Em 2006, o Barbican recebe a mostra itinerante Tropicália [7] ‘Tropicália: A Revolution in Brazilian Culture’ foi apresentada também em Chicago, Lisboa e Nova York., com curadoria de Carlos Basualdo; a Tate Modern, por sua vez, apresenta individuais de Hélio Oiticica (2007) e Cildo Meireles (2008-09); em 2010 é a vez de Ernesto Neto na Hayward. Foi ainda neste mesmo período (2006-10) que o Arts Council (espécie de Ministério da Cultura), juntamente com o British Council, lançou a segunda edição do programa Artist Links, que promoveu residências artísticas entre o Brasil e o Reino Unido (o projeto piloto foi com a China, de 2002-06), com um investimento de 450.000 libras (aproximadamente 1.200.000 reais). Além disso, seria possível citar inúmeras participações de artistas brasileiros em projetos de exposição de menor escala, tanto em instituições públicas, quanto em galerias comerciais – geralmente com uma abordagem mais sofisticada do que os shows das grandes instituições –, bem como sua participação em residências artísticas independentes do Artist Links [8] Exemplos incluem a individual de Rivane Neuenschwander na South London Gallery (2008), do artista brasileiro baseado em Londres, Alexandre da Cunha, no Camden Arts Centre (2009) e de Erika Verzutti no espaço comercial Swallow Street (2009)..

Hoje, essa diversidade de manifestações começa a criar espaços para além da mera reprodução de clichês e da formatação de projetos mais palatáveis para o público estrangeiro, que reiteram um discurso que promove uma única matriz neoconcreta para tudo o que é arte contemporânea brasileira. Ainda assim, o clichê prevalece: vide o “Festival Brazil” (2010) promovido pelo South Bank Centre (que incluiu a exposição de Neto na Hayward) ou o festival “Brazil Contemporary”, promovido pelo Museum Boijmans Van Beuningen, em Amsterdã (2009)[9] http://www.brazilcontemporary.nl/en/#contemporary-kunst. Em ambos os casos, as respectivas curadorias optaram, mais uma vez, por trilhar o caminho neoconcretista para discutir arte brasileira, seja selecionando um artista já reconhecido e que bebe diretamente nessa fonte (Neto na Hayward) ou explicitamente tomando Oiticica como a maior influência contemporânea (e mostrando, além dele, os trabalhos de Ricardo Basbaum, Cão Guimarães, Rivane Neuenschwander e, claro, Ernesto Neto).

É importante ressaltar aqui que não se trata de denunciar os trabalhos desses artistas como clichês. O que me incomoda são os mecanismos de cooptação dos trabalhos destes artistas por estas grandes instituições estrangeiras, que acabam por restringir suas potencialidades ao esvaziá-los de suas peculiaridades e colocá-los numa mesma e única categoria básica – a do atavismo neoconcreto –, que qualquer consumidor de arte no mundo hoje consegue absorver com relativa facilidade. Assim, de uma representação relativamente incipiente no começo da década, o Brasil passa a ganhar um maior espaço no circuito internacional, sem que isso tenha proporcionado oportunidades significativas de reflexão e produção de conhecimento sobre a arte brasileira.

Retorno então às citações que precedem este relato, não para chegar a uma conclusão, mas para levantar alguns questionamentos em relação ao panorama atual e suas possibilidades para o futuro. Estas não servem apenas para dizer o óbvio (que, em grande parte, o interesse pela arte brasileira é o reflexo de um interesse comercial e de condições econômicas favoráveis, assim como o trabalho dos pintores viajantes foi possível graças ao sucesso da empresa ultramarina), mas também para sugerir uma reflexão sobre que tipo de conhecimento as exposições blockbuster estão produzindo a respeito da arte brasileira. Eventos como “Festival Brazil” ou “Brazil Contemporary” não representam nenhuma contribuição para o entendimento de seu objeto, simplificando ao máximo uma produção extremamente complexa e apresentando sempre o trabalho dos mesmos artistas.

Enquanto isso, no Brasil, temos um mercado interno superaquecido, com galerias comerciais e feiras de arte em clara expansão. Paradoxalmente, a maioria das instituições públicas ainda se encontra em condições precárias, muitas vezes sem condições de cuidar dos próprios acervos, muito menos de desenvolver um programa coerente. Aí reside o risco: como resguardar o papel das instituições públicas – que deveriam ser movidas por interesses de ordem pública – num panorama cada vez mais dominado por interesses privados? Como produzir conhecimento sobre a arte brasileira para além do estereótipo vendável? Para quem estão sendo produzidas estas grandes exposições internacionais e com que propósito?

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[LADO B] SansPapiers

Conversa entre os viajantes Marcio Harum, Marcio Shimabukuro, Micheline Torres e Tatuí, realizada por e-mail entre setembro de 2010 e janeiro de 2011, a partir de cidades do Brasil, da França e da África.

TATUÍ_ Está claro que os deslocamentos de agentes do campo da arte ocupam parte relevante na economia da cultura e em suas estratégias de sociabilidade. Até que ponto, contudo, a (mera) mobilidade não seria, também, uma forma de especulação de valor dentro desse campo?

HARUM _ Se vamos mencionar o capital cultural, tento problematizar o tema com uma visão bastante particular à maneira da especulação do que concordamos nomear aqui nesta conversação como “mobilidade no mundo das artes”. Há um aspecto negativo, a meu ver, que se abate diretamente sobre a discussão da arte, do qual lanço uma pergunta, enfim: vocês saem satisfeitos aos ver tantas salas de artistas em megaexposições (muitos dos quais estiveram em residência ao longo do processo curatorial; como por exemplo a Bienal de São Paulo, só para citar a 29a como a última delas) que tratam sempre daqueles clichês locais para gringo ver? Sim, aqueles inúmeros trabalhos que mais caberiam talvez num colóquio de aborrecidas apresentações, no formato de painéis investigativos e com base em laboratórios sociológicos pessoais, óbvio que com tudo devidamente bem documentado. Vocês conhecem muito bem qual é o sentimento desapontado de replay ao se deparar com mais um trabalho igual a esses por aí.

MICHELINE _ Sentada no quarto-escritório do meu apartamento alugado no Rio de Janeiro, tenho dificuldade em me concentrar com este barulho do prédio em construção que sobe quase em frente à minha janela, tapando minha já saudosa vista do parque florestal do outro lado da rua. Sob essas condições e com o fato de que o aluguel certamente aumentará na proxima virada de contrato, afinal de contas Olimpíadas e Copa do Mundo vêm aí na Cidade Maravilhosa e o coco em Ipanema já custa R$ 4,00; diante deste quadro não consigo avançar mais nesta questão além de querer escrever aqui o termo “especulação (i)mobiliária em amplos sentidos”.

Porque me pego a pensar em territórios e em um avanço furioso e voraz sobre eles, como também no fato de que cada vez mais e mais o vocabulário econômico-capitalista-especulativo-acumulativo avança em todo e qualquer aspecto de nossa vida. Vocabulário não são apenas palavras, são modos de lidar com pessoas, fatos e processos. Isso, no plano da arte, significa também impossibilitar uma infinidade de “outros possíveis” (expressão do geógrafo Milton Santos).

Claro que não se trata de “fugir do mundo capitalista porque ele é mau e explorador”, ou de fazer “do mundo da arte” algo separado, claro, puro, ideal e mágico. Nada disso, somos adultos, pagamos nossas contas e aluguéis, produzimos arte e demandas de consumo várias, todos sabemos que as esferas se influenciam e moldam. Tá tudo no mesmo mundo, tudo juntoemisturado, como na música de funk. Trata-se sim de refletir (e experimentar) sobre maneiras de estar, transitar, absorver e ser absorvido (inevitavelmente) pelas mobilidades, as nossas e as que nos arrematam.

Como engendrar maneiras outras de colaborar, afetar e ser afetado, compartilhar e, dentro da conversa que travamos aqui, não apenas acumular carimbos em passaporte ou milhas no cartão ou territórios “explorados” em maior ou menor grau de profundidade?

É como se a questão “mobilidade na arte contemporânea” fosse apenas mais um terreno a se tomar de assalto e construir em cima, simplesmente um afã especulativo (i)mobiliário: construído, ocupado, vendido, passemos a outro território a conquistar. Também poderia ser “arte e política” ou “o impacto das práticas econômicas na produção de arte contemporânea”. Sim, ocupar, encher de conceitos armados de concreto e por aí se esvair…

Mas ok, nada de niilismo aqui e batida de cabeça na parede sobre as construções conceituais especulativas, mas quero ainda colocar a pergunta: como engendrar outros caminhos, outros modos de produzir, outros olhares sobre o que se faz? Caminhos menos esganados e afoitos por resoluções e mais interessados em respostas-trabalhos ou, melhor, trabalhos-perguntas.

E termino aqui sentindo que essa incitante e excitante conversa entre nós me coçou como o diretor de teatro Cacá Carvalho definiu o impacto nele dos escritos do diretor polonês Jerzy Grotowski: “palavras que servem mais para trabalhar do que para definir”.

SHIMA _ A mera mobilidade já é uma forma de especulação de valor.É estranho ver que uma passagem por qualquer lugar enverniza o artista com uma falsa aura de alguém que teve uma experiência construtiva, conscientemente ou não. Obviamente isso varia de artista para artista, existem outros que começam a desenvolver ideias e leituras já no guichê de embarque, outros desenvolvem projetos a partir do que foi coletado durante a viagem, mas nem todos obrigatoriamente produzem alguma coisa. O tempo vai revelando quem está trabalhando e quem não está. Esse tipo de verniz não dura muito tempo, cai por terra como a roupa invisível do rei. Cabe a cada um cumprir com o compromisso estabelecido e isso tem a ver com uma ética que não está na literatura, mas com uma conduta na vida.

Considero que a conduta de uma produção, ou de uma poética de trabalho, não seja necessariamente linear, mas radial, explodindo para todos os lados e nos possíveis espaços vazios. Nesse sentido, também, concluo que existam outras mobilidades não espaciais, outros movimentos que não são físicos, outras práticas que não necessitam de um deslocamento literal.

Recentemente, fui convidado para realizar performances em dois locais distintos, nos quais não poderia estar presente fisicamente. Propuseram a realização do trabalho em ‘telepresença’. De certa forma, eu estaria presente em Salvador e, dois dias depois, em Paris ou Londres, sem sair de casa. Só que eu não compactuo com a telepresença, por isso tive que declinar o convite. Ficou firmado para que quando eu passasse pela cidade, apresentaria algo presencial, e não ‘virtualmente’. Existe uma urgência em relação ao imediato, que muitas vezes faz com que a gente passe por cima do que a gente acredita para “estar lá”. Ultimamente tenho tido muito cuidado com esse tipo de procedimento. Tenho que lembrar-me de fazer uma coisa de cada vez, cada coisa ao seu tempo.

HARUM _ Pude conhecer de perto em 2010 um programa internacional de residências sediado na Ilha de Itaparica na Bahia, o Sacatar (www.sacatar.org). A característica mais marcante de lá é o simples fato de o grupo de residentes ter que aprender a conviver com a ‘imobilidade’. Ou seja: é uma lonjura de lugar, mas uma vez que se escolhe estar temporariamente como residente, não há alternativas, a não ser ter que trabalhar muitíssimo isolado numa ilha tropical distante dos apelos urbanos. E isso faz surgir todo o tempo do mundo para sua própria conduta laboral e/ou então sobra energia para aventurar-se através dos manguezais, morros e expedições praianas a cavalo, bicicleta e embarcações. Pode ocorrer ou não, com o afastamento absoluto de seu local de procedência, uma fértil temporada num endereço que funcione como gerador de ideias. É inegável que há muitas pessoas que frequentemente precisam ir para bem longe de seus lugares de origem a fim de alcançar nova mentalidade. Que eu saiba, Sacatar tem a precedência de tal mérito no país. O contraponto é o modelo de residência hype, situado em grandes centros por excelência, cidades específicas onde bombam os acontecimentos, quase todas as noites abre uma exposição interessante, a vida social é intensa e cansativa demais e, claro, faz o trabalho render pouco. É a típica situação onde tudo acaba parecendo que o dia a dia resume-se a somente quem vai querer te visitar e/ou te apresentar a quem e/ou a quem você vai querer ser apresentado o tempo todo. De outro lado, um relato que me chamou bastante a atenção recentemente, foi o de uma curadora de São Paulo que alugou anonimamente um microstudio em outro continente, como o possível ponto de partida para a sua mais nova pesquisa.

MICHELINE _ Espera aí.

Experienciamos muitas mobilidades: informacionais, imagéticas, narrativas, sonoras, sensórias… Tanto daqui pra lá, tomando ‘aqui’ como onde quer que eu esteja – o que me permite conhecer (limitadamente) outros locais e o que acontece nesses locais –, quanto de lá pra cá: as coisas que chegam em mim, dos lugares, das pessoas, das imagens, das informações. É claro que as mobilidades não aparecem assim, puras e claras, em seus sentidos. São mão dupla e cheias de ruídos pelo meio do caminho (mesmo que um caminho virtual). São como o trânsito no Peru: não existe sinal, existe buzina. A buzina serve pra sinalizar algum movimento feito, ou o que não fazer ou o que já está sendo feito, tudo assim do meio e ao mesmo tempo, vindo de muitas direções. A frase que me veio, uma vez estando lá, enquanto via doleiros vendendo dólar em pleno asfalto, era: “Venha para o mundo de Marlboro”.

Espera aqui.

Sempre penso sobre os que não podem viajar, não podem se deslocar. E sobre os lugares que não se deslocam, mesmo que sejam “carregados” virtualmente, imageticamente, narrativamente. Não subestimar a importância do local, no sentido mesmo do chão e do que vem em cima dele: as pessoas e suas relações, as casas, os passos que separam um espaço/contexto do outro e o tempo que levamos para percorrê-lo, somado ao que encontramos inesperadamente no meio do trajeto, os espaços físicos e suas divisões de poder e funções. Fazer, de uma escola, um ponto de cultura no meio da Paraíba, já muda o entorno em ondas propagadoras, mesmo que seja no tamanho de uma pedrinha jogada no açude. E não subestimar também o trabalho do tempo no lugar, estar lá e só. Percebendo a temperatura, velocidades, pontos de concentração. E o quanto você altera esse local, quer queira, quer não. Quer perceba, quer não.

TATUÍ _ E a ideia de deriva proposta por Guy Debord?

MICHELINE _ Percebo e me encosto à citação do Debord em seu trecho sobre “…rejeitar os motivos de se deslocar e agir… para entregar-se às solicitações do terreno e das pessoas que venham a encontrar”.

Procuro cavar tempo e espaço vazio em minhas deambulações lugares afora. Espaços e tempo para nada, só para estar lá. Mas sei que “derivar sai mais caro”. Porque demanda mais tempo, demandando mais dinheiro para estar, para parar, para “nada fazer de produtivo”. Também “sai mais caro” porque atenção,percepção requer envolvimento, algo que, algumas vezes, estamos desacostumados a empenhar. Ou, pior ainda, quando nos vemos fisgados por um regime de mobilidade-visibilidade-produtividade. Leia-se: programa de residência de uma semana com a EXIGÊNCIA de um produto final, qualquer que seja ele, apresenta um produto aí! Pra mim esse esquema fastartisticfood é embrulhaestômago e cilada vista do espaço, tal o tamanho dessa armadilha.

Lembrei do Francis Alÿs em seu livro Numa dada situação:

Lições da Deriva –

Primeira: sem barro não há texto

Segunda: sem paisagem não há conto

Terceira: sem solo não há sonho

SHIMA _ Partindo do princípio de que sou contemporâneo a um universo de valores e de situações, é impossível ignorar a ideia de deriva na construção do meu trabalho. Lido com o ambiente no qual estou inserido o tempo todo: o fluxo das pessoas, os engarrafamentos do rush, os ônibus lotados na hora da chuva e os trens vazios rumando para o interior. Tenho novas ideias a cada instante, não consigo perseguir um ideal apenas, o que me faz recorrer a blogs, diários e diversos cadernos de anotações que alimento constantemente e simultaneamente. O medo de perder alguma ideia me faz documentar praticamente tudo, em fotografias, vídeos, rabiscos, anotações e registros aparentemente sem sentido. Guardo uma infinidade de papéis em casa, que são folhetos, folders, catálogos, guardanapos e prospectos, coletados na trajetória do cotidiano. Frequentemente olho tudo o que está mais próximo e separo algumas coisas para jogar no lixo, mas estas ainda ficam reservadas para uma possível repescagem. Às vezes me arrependo de alguma coisa que eliminei. Evito caminhar sempre pelas mesmas ruas, apesar de fazer questão de passar por determinados lugares, dependendo do dia e da hora. Um trabalho pensado para ser uma instalação pode transformar-se em vídeo, ou uma fotografia pode tornar-se base para performance. Os objetos do cotidiano podem migrar para o campo das artes, assim como índices de literatura fantástica ou um trauma de infância. As escolhas não são necessariamente conscientes. De repente uma experiência cotidiana pode transformar-se em um trabalho de arte, provocando determinadas sensações e sentimentos das quais o artista já está consciente, mas o público não. (acho que a deriva pode ser encontrada em algum lugar deste parágrafo).

TATUÍ_ Como vocês concebem a ideia de nomadismo na atualidade? Acreditam vivenciá-la?

SHIMA _ Sim! No meu caso, trabalhando mais com performance, acredito na presença do criador no ato do trabalho. Tenho necessidade de ser autor e protagonista das minhas performances, por ter controle da situação, e poder realizar pequenas alterações no decorrer do trabalho, em função aos fatores internos e/ou externos. Penso que só quem conhece a obra no seu íntimo pode realizá-la, ou mesmo alterá-la. Logo, estive em pelo menos 100 cidades ao longo destes três anos de jornada artística, de Priotrkow Trybunalski, na Polônia, a Rio Branco, no Acre, passando por Okinawa, no Japão, e em Lisboa, Portugal. A cada ano que passa, depois que deixei o Recife (onde morei de 2004 a 2007), fico menos tempo na minha casa, em São Paulo (a casa dos meus pais). Não sei se penso que sou nômade: eu ‘estou’ nômade. Ao mesmo tempo, não sei se voltarei a São Paulo. É um ciclo: desloco-me para alimentar-me, todavia, preciso de um lugar para ficar, e digerir.

HARUM _ Me atreveria a pensar que o nomadismo na atualidade é o exercício consciente como resultado de movimentações e manobras que o indivíduo tem que fazer para sobreviver entre idiomas e culturas, entre estados e religiões, entre a geografia e a história – munido talvez de dupla cidadania ou vítima miserável de perseguições à clandestinidade, como a que vemos ocorrer nos últimos tempos na França de Sarkozy com os ciganos, na Colômbia com os refugiados internos e os sequestrados pela FARC, os ‘balseros’ cubanos lançados à própria sorte no Mar do Caribe ou nos EUA contra os imigrantes latino-americanos que tentam entrar ilegalmente pela fronteira mexicana.

MICHELINE _ “Os cidadãos europeus são aqueles que vivem ou trabalham na Europa. E se alguém vive ou trabalha na Europa apenas por um certo período de tempo, que tenha uma cidadania temporária. A nacionalidade não como uma questão de espaço – ligada ao território em que nascemos – mas uma questão de tempo – ligada ao lugar no qual, neste momento, produzimos, trocamos e estabelecemos relações AFETIVAS. Esta proposta teria o interessante efeito colateral de reconhecer que as “relações afetivas” como amizade, sexo, companheirismo, cooperação, são tão importantes quanto o casamento e podem ter o mesmo valor social. Substituir clichês mortos por necessidades vivas.” (Citação do Toni Negri que eu recolhi não lembro mais de onde).

SHIMA _ Como lidar com a situação de ser nômade? Como viver no nomadismo?

MICHELINE _ Sobre nomadismo, penso sempre sempre em imigração, emigração, clandestinidade, passaportes, visas, direitos, filas de aeroportos ou polícias, “sans papiers”, idas e vindas, o quanto isso custa, bolivianos, as perguntas que me fizeram na salinha para entrar no México, malas e sacolas rasgadas, as pessoas incríveis que conheci e seus lugares.

Aqui, e sobre nomadismo, eu queria montar uma fotosequência de uma passeata que “filmei” fotografando quadro a quadro em Paris, verão de 2010. É uma passeata dos “sans papiers”, os “sem papéis”, trabalhadores imigrantes que trabalham na França, pagam impostos, mas ainda aguardam a aceitação e regularização de sua condição de não francês, eles esperam seus papéis.

Aqui outra imagem do que penso sobre nomadismo (ou sobre a impossibilidade dele?). Vi numa exposição sobre artistas do Leste Europeu. É do artista Mladen Stilinović, de Belgrado.

 

 

TATUÍ _ Não são poucos os mitos e utopias ocidentais de entendimento pela língua, de Babel ao projeto falido do esperanto. Nesses, a homogeneidade de linguagem é vista como igualdade entre os homens, como aspectos fraternais de caráter evidentemente cristão… A “homogeneidade” atual, do inglês que serve de língua mediadora para o mundo globalizado, parece ter assumido toda a instrumentalidade do que outrora se colocou de modo utópico – igualdade estratégica e comercial (livre mercado). Até que ponto criticamos, até que ponto alimentamos tudo isso? Podemos ainda esperar da arte outras formas de linguagem face à tanto condicionamento a uma língua? Arte virou, mesmo, diálogo e mediação?

MICHELINE _ Se podemos ainda esperar da arte outras formas de linguagem face a tanto condicionamento a uma língua… Eu só posso dizer que isso é praticamente TUDO que eu espero da arte: outras formas de linguagem ou outras dobras de uma mesma linguagem… E digo isso mesmo que minha frase me cubra de um desespero salvacionista, mas não é isso, é crença na linguagem artística mesmo, com todas as suas contradições, atrelamentos, vontades de identificação e inevitáveis detonações de diferenciação.

SHIMA_ Eu não sei se estabeleço uma crítica ou alimento essa hegemonia linguística: o trabalho que desenvolvo necessita do contexto para se desenvolver. Logo, é impossível escapar desta estrutura, mas deixar-se pertencer a esta estrutura não é a única solução. No trabalho com a linguagem oral e escrita que muitas vezes acesso para escrever / transcrever / revelar, tento adaptá-los à realidade na qual ele se encontra: trabalhos em nederlands na Holanda, em nihongô no Japão, em português no Brasil, em vlaams e francês na Bélgica (Bruxelas), e, ironicamente, traduzindo tudo em inglês para meu portfólio na internet. O mesmo acontece com os títulos das obras, a maioria está em português, uma boa parte na língua nativa do local onde desenvolvi o projeto e tudo ‘traduzido’ para uma compreensão mais global. Não sei se adianta fugir desta estrutura, vejo como um mal necessário, e como um desafio também, desenvolver outras formas de linguagem que não estejam necessariamente associadas à língua, nem do idioma, nem da arte.

SHIMA _ Voltamos à época das coletas?

MICHELINE _ Sobre “voltar à época das coletas”, penso que já espalhei tudo por aí, como também não sei mais de onde peguei, roubei, emprestei, ganhei coisas. Autoria compartilhada, quer queira, quer não.

HARUM_ Let’s go PortuñolorMandarinnext time!?

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