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Querida amiga,
Nunca vislumbrei o desejo de voltar – considerando que fosse possível caminhar pela mesma estrada tal qual era quando a percorremos juntas naqueles dias. Meu olhar de volta, nostálgico, não é vontade de reconstrução daquelas situações, mas necessidade de (re)aconchegar aquelas lembranças num lugar seguro. Porque não há dúvidas que meu (novo) corpo – que hoje (re)habita o que parecia ser O meu lugar –, não dá conta de (re)viver as mesmas experiências cotidianas pré-Terra UNA. Meu corpo atual cansa diante da repetição das coisas que já não lhe interessam mais: os excessos de: característica perversa da vida urbana.
O que se deu lá, nos dias compartilhados naquela ecovila, não foi apenas um deslocamento espacial, ou espaço-emocional, como já mencionamos. As experiências estéticas proporcionadas na construção dos trabalhos, que você e Caroline desenvolveram, arrebataram-me dos lugares que tinha por certos nessa minha (ainda que curta) trajetória junto às artes (visuais?). Formas e conteúdos, dentro desse poroso campo da arte contemporânea, deixaram de ser apenas discursos – ao contrário do que comumente acontece nessa relação esquizofrênica que aprendemos a ter com as obras: sempre mediadas pela instituições, textos curatoriais (bulas), portfólios etc. –, para tornarem-se lugares próprios. E assim, fazer-nos capazes de inventar novo corpo para fruir destes lugares experienciais.
Novo corpo, nesse sentido, não se trata da dimensão meramente carnal (fisiológica), mas corpo-encarnado: emocional, intelectual, espiritual, material… Uma vez inventado esse corpo-experiencial, ele permanece em nós e permite-nos potencializar outras entradas para as vivências cotidianas. Assim, as experiências estéticas (e estésicas – porque também de afeto) como as que vivi com Sob(re) sereno [1] e Ninho de gente [2] me fizeram criar novos corpos que hoje se misturam em mim e já não me permitem sentir-pensar, nem pensar-sentir, como antes.
Como escrevi [3] certa vez, o mergulhar naquele seu trabalho, me requereu, no mínimo, a alma desnuda, despudorada, sem medo das ameaças do ridículo. Aquela experiência trazia consigo uma simetria com as portas de Hermann Hesse – “só para loucos” (Do livro o Lobo da Estepe). Ao me (re)inventar para me debruçar sobre as coisas ínfimas – como aquela busca (insana?) de experienciar o sereno – o quanto daquilo tinha de inteiro? Tratar das coisas inúteis com propriedade parece sempre arranjar um caminho inevitável para a reelaboração das grandes coisas.
Coisa parecida se deu ao me deixar abrigar no Ninho de gente de Caroline. Meu corpo anterior jamais havia imaginado permitir-se uma nudez explícita – porque inevitavelmente erotizada. Naquela ocasião teve que se inventar passarinho para descolar-se do corpo anterior, impregnado de elaborações, vivências e construções culturais que não me deixariam vivenciar com calma e delícia necessárias a relação da pele nua, que pedia abrigo não mais de roupas, mas palhas, cipós e matos em forma de ninho.
Não dá para mapear as desconstruções culturais que me ocorreram por ter vivido aquilo. Porém, posso lhe contar de uma experiência recente, de poucos dias atrás, que só me foi possível com esse novo corpo pós-Ninho de gente. Durante a minha estadia em Curitiba, viajei com amigos até uma cidadezinha próxima para comer um prato típico (barreado). No decorrer do dia, fomos parar numa cachoeira. Eu não havia levado roupa de banho e naquele momento estive certa de que, se não fosse esse meu novo corpo, jamais teria me permitido tamanha liberdade, alegria e entrega àquela experiência única que se desenhara.
Hoje eu trago em mim que a arte pulsante desperta a experiência nua (Foucault): porque de uma verdade só possível encarnada – percepção, vivência, apesar de única da pessoa é compartilhável. Diferente se fôssemos pensar a “experiência pura” como se pudéssemos atribuir uma única verdade, um algo ligado à essência, portanto distante do corpo. Na experiência estética, enquanto experiência nua, faz-se um lugar de construção da subjetividade através da troca simbólica capaz de acionar a (re)invenção do espaço, do tempo, do uso vulgar das coisas e situações cotidianas. Um lugar político por natureza, onde são possíveis as construções simbólicas coletivas: imaginário comum, não no sentido de igualdade, homogeneidade, mas de compartilhamento. Se pensarmos em experiência estética como acontecimento – e penso mesmo que a obra de arte é acontecência, deixa-se acontecer em cada (novo) encontro, potencializando as formas de (re)invenção a quem se dispõe –, é possível entendê-la como algo que reverbera e extrapola a experiência do corpo de um indivíduo apenas.
Espero que Sob(re) sereno, tanto quanto Ninho de gente, possam ser experienciados por outros tal como eu pude: sem mediação pelo discurso – até porque naquela ocasião ainda estava sendo construído. Aliás, é assim mesmo que se deve dar a elaboração de qualquer pensamento sistemático sobre uma obra de arte: a posteriori. Qualquer coisa diferente disto é especulação danosa e castradora de como a obra pode acontecer, e assim ferir sua condição de acontecência.
Grande beijo,
.a
[1] — Veja algumas imagens através do link: http://www.terrauna.org.br/InteracoesFlorestais2010/MayraMartins/Pages/observatorio_do_sereno.html
[2] — Veja algumas imagens através do link: http://www.terrauna.org.br/InteracoesFlorestais2010/CarolineValansi/Pages/escolhidas_100x75cm.html
[3] — Textos que fazem parte do catálogo IF 2010: http://www.terrauna.org.br/InteracoesFlorestais2010/AnaLuisaLima.html