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Querida Ma,
Ultimamente, não tenho dado conta do excesso de cansaço que tem me tomado. Não são raros os momentos que me pego pensando em Terra UNA [1] . E em como vários aspectos daquela vivência nos colocaram num ritmo de prazer imenso de estar vivo.
Lembro bem que quando aceitei o convite para participar daquela experiência, imediatamente fui inundada de certo pânico quando percebi a quantidade de deslocamentos que haveria de enfrentar para estar dedicada a um trabalho ali por um mês. Outro estado, outra cidade, outros obstáculos a serem vencidos no dia a dia – que aqui em Olinda já não eram mais possíveis imaginar: escuridão, mosquitos, lama, alimentação ovo-láctea-vegetariana, vida intimamente compartilhada…
Mas bastou vencer a subida da serra, talvez o maior dos medos que tive que lidar. A vida, muito rapidamente, a despeito de minhas próprias dificuldades de adaptação, criou sua rotina pacífica. Apesar dos muitos quilômetros que percorríamos em nossas pequenas expedições pelos arredores da nossa Tartaruga [2] , não chegava no fim do dia com essa sensação (atualmente costumeira) de completa exaustão.
Sinto falta da hora de dormir, abrigada pelo silêncio e escuridão seguros.
Ali, bastava dar conta do diariamente – por vezes cutucado por um turbilhão de saudades do(s) que havíamos deixado –, porque era certo que, quando a noite caísse, haveria o conforto de estar em casa. Penso que em Terra UNA vivemos numa espécie de ilha espaço-emocional. Uma suspensão do tempo, um deslocamento do corpo e da alma para um lugar seguro de entrega e liberdade.
A vida aqui de volta é bem diferente. Não há ilha. Em meu cotidiano preciso empreender dezenas de deslocamentos, ainda que não precise dar, sequer, um passo. Em frente da tela, habito territórios diversos ao mesmo tempo. Convivo com tantas pessoas que não dou conta de abrigá-las, nem desabrigá-las, aqui, em (de) mim.
Pela janela luminosa, tenho que dar conta de um diariamente – por sua natureza, sempre (in)comum. Não sei com quem vou estar. Nem onde irei chegar. Ainda assim, sempre latentes as vivências das perdas e das construções de novas possibilidades. Nessa terra, de ninguém e de todos simultaneamente, preciso dar conta de passados, de futuros, de presentes expandidos. A jornada nunca acaba, tampouco é possível, ainda que a noite caia, voltar para casa.
Beijos saudosos,
.a
Porto Alegre, 7 de setembro de 2010
Ana, querida…
“Não há ilha”.
A ilha de que você fala talvez seja este espaço para um novo corpo. Um novo corpo é um novo jeito de sentir. Como se faz para sentir diferente de sempre?
É esta pergunta que me faço quando percebo que estou, como você, simbiotizada pela cidade, pela rotina, pelo cotidiano, pelas pessoas que amo, pelas tarefas que escolhi realizar, pelas escolhas que nem sei que fiz.
É aí que entra a ilha.
Como construir ilhas mesmo sem se deslocar geograficamente?
Penso que a experiência de Terra UNA possibilitou um deslocamento geográfico ao mesmo tempo em que “espaço-emocional”, como você disse. Ou melhor, deslocamentos geográficos (que envolvem mudanças de terras abaixo dos nossos pés, mas também mudanças de jeitos de pensar a vida, de viver, de conviver, mudanças de rotinas, de paisagens horizontais e céus, mudanças nas manhãs e nas idas do sol, etc.) provocam deslocamentos nas nossas vivências “espaço-emocional”.
A experiência de residência artística, no caso de Terra UNA, é a experiência de habitar uma nova casa por um tempo determinado. Acho que o tempo preestabelecido torna a vivência mais intensa. Dentro deste tempo de um mês, convivendo com a proximidade (e aqui diria que convivemos com a convivência, o que em nossas grandes cidades se torna menos constante), convivendo com o ar puro e as águas de cachoeira, e também com os mosquitos e bichos desconhecidos, acabamos convivendo com nós mesmos: nós outros de nós mesmos.
Mudar de casa é mudar de corpo. Nem que seja provisório. Mesmo sabendo que a provisoriedade não garante o retorno ao mesmo anterior. Talvez somente por isso, Ana, você tenha se perguntado o porquê do seu cansaço. Somente porque não voltou para a mesma casa de que saiu. E nem se voltássemos a Terra UNA, encontraríamos a nossa Tartaruga. Talvez não se trate de retornos, de buscas mesmas, e sim de um ir adiante. A estrada nunca termina e é entediante voltar pelo mesmo caminho. Mas independente deste tédio, mesmo que quiséssemos a estrada de volta, a mesma não seria a mesma. Fato é que não decidimos quase nada.
Pensando nisso, me lembrei da mais forte sensação que vivi em Terra UNA. É como se até então eu não tivesse noção (percepção talvez) da grandiosidade do universo e da infimidade do homem na terra. A sensação de estar abaixo e acima ao mesmo tempo (mudando o eixo, a referência e as escalas do visível, do tátil). Na verdade, a sensação de não saber onde se está. De perder o sentido de lugar/espaço/proporção. Não ter a capacidade de perceber estas relações, tanto do grandioso, quanto do mínimo. Claro, a gente sente isso frente a outras situações que nos acometem também dentro das cidades, mas em Terra UNA isso tudo se tornou cotidiano. E foi a partir desta sensação que passei a me relacionar com o entorno.
Eu queria simplesmente ver passar. Ver como é que passam e voltam (sempre outros?): o sereno, as águas da cachoeira, a noite, os dias. Isso que independente da gente, passa. Talvez o sereno, a chuva, a cachoeira seja o que se vê de todo o processo que não se vê. Em Terra UNA, compreendi que estamos entre.
E estar entre é o que desloca.
Saudade
Mayra
[1] — Ecovila localizada na Serra da Mantiqueira – MG que promoveu o Prêmio Interações Florestais 2010 de residência artística com o patrocínio da FUNARTE/MINC. De 08/03 a 04/04/2010 acompanhei, como crítica de arte convidada, os trabalhos de quatro artistas, entre esses Caroline Valansi e Mayra Redin, que se tornou grande amiga. Na ecovila os acessos à internet e ao uso do telefone celular eram limitadíssimos, por isso decidi acessá-los apenas uma vez por semana quando íamos à cidade de Liberdade-MG. Nessa edição do prêmio, além dos espaços da Ecovila, os artistas interagiram com o Ponto de Cultura e Sustentabilidade gerido por Terra UNA nesta cidade. http://www.terrauna.org.br
[2] — Nome da casa que moramos durante a residência.