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Conversa entre os viajantes Marcio Harum, Marcio Shimabukuro, Micheline Torres e Tatuí, realizada por e-mail entre setembro de 2010 e janeiro de 2011, a partir de cidades do Brasil, da França e da África.
TATUÍ _Como sabemos – e como a prática artística/curatorial de vocês tem demonstrado –, o lugar da mobilidade, dos deslocamentos, tem sido, cada vez mais, o de protagonista da arte contemporânea – em seu campo e para sua criação. Que sentidos tem, para vocês, a ideia de mobilidade? Como a percebem encarnada na arte e no pensamento que têm desenvolvido?
HARUM _ Mobilidade? Creio que são várias as circunstâncias da vida profissional nos dias de hoje que envolvem o que viemos chamar aqui de ‘mobilidade’. Pensando o sistema de arte em primeiro plano, se há as condições favoráveis, devemos ir aonde o trabalho nos chama – não importa tanto assim se é um convite de participação em algum seminário, júri de seleção de editais, comissão de premiação de algum salão interiorano, palestra, orientação de workshop, banca de mestrado ou até mesmo uma bolsa-residência para pesquisa ou realização de projeto. Claro que este desprendimento tem a ver com o estilo de vida pessoal, sobretudo são reações que surgem da junção de desejos: a rapidez de adaptação e a atitude de saber sobre um novo entorno, de olhar o mundo com curiosidade, de produzir diferentes coisas reais ou imaginárias. Qualquer corporação internacional, seja lá de que ordem, está mais do que atenta aos seus talentos de bastidor quando o assunto é levar para fora alguma marca conceitual ou matéria-prima. É divertido perceber aquilo que consideramos talvez como um comportamento bastante natural entre os agentes do meio – ser/estar inquieto – sendo nomeado por “mobilidade”. Mas nem todo o padrão segue regras comuns de realidade, a ver: numa experiência de trabalho recente, tive a constatação de um artista que tem enorme dificuldade de subir em avião e tampouco relaxa fora de casa, sequer em bons hotéis. Mas raro mesmo é o caso de uma curadora que conheço que sustenta uma pesada agenda internacional, mas detesta viajar. Agora vamos combinar que por aqui MO-BI-LI-DA-DE mesmo tem o Shima, que a cada 3-4 dias se move em alguma nova direção, e a Tatuí, que é lançada a cada número em diversas capitais.
SHIMA _ Fatos relevantes na minha história me fazem refletir sobre a ideia de mobilidade e não tenho dúvidas no quanto isto é importante para o pensamento que tenho desenvolvido no meu fazer artístico: sou filho de imigrantes japoneses – tanto do lado paterno quanto materno – que vieram para o Brasil em 1958. Instalados na cidade de São Paulo, desenvolveram um sistema de vida que os fixou nos locais onde habitam, criando inclusive esquemas de agrupamento e convívio social e político, com a criação de associações culturais e esportivas e a manutenção de um calendário de eventos que sustentam atividades semelhantes à vida que tinham no Japão, mas completamente influenciados pela cultura brasileira.
Meu avô paterno trabalhou em uma companhia naval no sudeste asiático por 12 anos (quando solteiro), meu pai teve que trabalhar por 17 anos no Japão por consequência do Plano Collor (de 1992 a 2009). Penso se um tanto dessa necessidade de deslocar-me não tem certa responsabilidade genética. Contudo, isso me induz a pensar também que conheço muitas pessoas – artistas ou não – que investem parte do seu tempo refletindo e investigando sobre sua própria presença. Estamos exatamente no meio e por conta de outras trajetórias encontramo-nos onde estamos. Para onde apontaremos nossa seta e estaremos direcionados no futuro? Não podemos nos esquecer que somos um país de mestiços.
MICHELINE _ Faz mais de 12 anos que percorro muitos países e cidades no mundo, apresentando trabalhos de arte. Sempre pensei que, para a maioria desses lugares, nunca teria dinheiro para ir se não estivesse apresentando esses trabalhos. É através do meu fazer artístico que posso percorrer territórios: geográficos, subjetivos, políticos, culturais, oceanos, passaportes e Juazeiro do Norte. Todos esses diferentes territórios compreendem tudo que vai por cima deles: suas pessoas e relações, as casas, seus contextos econômicos, culturais e políticos, suas crenças e contradições, além, é claro, das inúmeras situações não discursivas ou fotografáveis que experienciamos, experiências estas que, só estando no lugar e “gastando” o tempo em estar lá, ganhamos. Algo como pequenas preciosidades locais, souvenirs que ficam impressos no meu corpo e na minha produção tão cravadamente quanto o ferro de marcar touro reprodutor que vi em Goiânia semana passada.
Olhando para isso, me pergunto:
O fato de me mover fartamente, por diferentes contextos, é que me faz atentar para essas diferenças de lugares e como elas têm um impacto em mim? Mas e o fato de que, já antes desses fluxos afluentes de viagens, eu sempre me interessei por “outros lugares que não aqui”, entendendo esses outros lugares não só geograficamente, mas também esteticamente, economicamente, existencialmente ou “como isso se dá no campo da fotografia?”, ou “como aquele músico lida com diferentes dinâmicas e faz disso uma fuga para piano?”.
Olho para a minha produção e entendo que essa pergunta axiomática apresenta um falso problema se procura uma resposta. E, ao mesmo tempo, oferece um fértil território se entende que é no matraquear mesmo de seu questionamento que está sua preciosidade permanente.
E isso me faz escrever esta frase assim: vivo de comer e ser comida por territórios e pessoas e contextos e diferenças. E esse tipo de ingestão, ruminação, vômito, passeia do slow ao fastfood, cheio de contradições e caroços.
TATUÍ_ Considerando as residências artísticas/curatoriais como um dos principais modos de deslocamento de artistas/curadores hoje, gostaríamos de saber como se dá, com vocês, a experiência de vivenciar outros contextos, cidades e indivíduos no processo dessas residências. É possível entender o residente, ainda, na ideia de flâneur? Que outro “lugar” o residente poderia estar ao se relacionar com a cidade?
MICHELINE _ Cada residência ou cada paragem num lugar se dá de uma maneira diferente, ainda que por vezes pareçam oferecer as mesmas condições de estada. Como também, a cada estada, se pode experienciar uma maneira diversa de estar no lugar e olhá-lo e sugá-lo ou ser por ele sugado. Ok, essas minhas palavras soam óbvias, não? “Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio”(Heráclito de Éfeso). Sim, sim, então vou começar de uma outra maneira, mais pontual.
Meu último trabalho, que se chama Eu Prometo, isto é Político, foi feito em/a partir de um contexto de residências artísticas em diferentes países, com condições econômicas, espaciais e participativas muito diversas. Essa característica se tornou o como o trabalho foi feito e se tornou sobre o quê o trabalho trata, também. Nesse processo de construção, que levou 2 anos, passei por Rio de Janeiro, São Paulo, França, Portugal, Noruega e México, experimentando maneiras de construir juntos, apontar diferenças e funcionar sobre distintas localidades, nacionalidades e condições materiais. Durante o processo artístico, estiveram inevitavelmente em jogo os assuntos de colaboração, da continuidade e as condições econômicas do entorno.
Sou resistente, insatisfeita, fico mesmo muito contrariada com a atitude de flâneur que porventura eu mesma possa desempenhar enquanto artista. Sim, esta contrariedade vem também de um entendimento (limitado?) meu de que “flâneur” é pouco, é pouco diante do envolvimento que sinto necessidade ao estar em um lugar. Ou, mais especificamente, quando flâneur é um adesivo de desterritorializado avagabundado e o adesivo vem com super bonder na página do meio do meu passaporte artístico. Não aceito mesmo esse adesivo.
HARUM _ Para além do modelo literário do flâneur baudelaireano, o artista e/ou curador em residência às vezes ainda é estigmatizado como desfixado e vagabundo por parte de uma camada conservadora de profissionais do mundo da arte. Há críticos e curadores que são capazes de comentar a miúdo que não confiam na práxis de artistas que vivem de residência em residência, por não terem a certeza de uma produção estável. Sem dúvida, este discurso caberia muito mais ao rol das preocupações comerciais de um galerista do que a sensibilidade/ lógica de um crítico. Dá no mesmo falar que um artista que não saiba falar inglês, então, não pode ser artista, concordam? E a respeito de residência curatorial, o Brasil enfrenta uma escassez generalizada de programas e de candidatos, o que gera um alto grau de desconhecimento sobre o tema. Não é raro um curador que parta com destino a um programa internacional de residência ser visto como um bon vivant pela ala ressentida institucionalmente. Afinal, não estamos defendendo a profissionalização das tarefas do curador o tempo inteiro? O que há de mais profissional do que receber e poder aceitar um convite oficial que inclua passagens aéreas, lugar para morar e uma bolsa de pesquisa? Não deveria representar mais novidade alguma perceber, já que tudo é mercado, que além do reconhecido papel de curador de instituição, do curador de bienal ou docente, existe também o curador que estrutura o circuito internacional de bolsas-pesquisa e residências. É justo esse que é visto ora como desempregado, freelancer, independente ou ora conquistador de sustento momentâneo mundo afora. Mas com médico em residência, ninguém mexe, não é?
MICHELINE _ Me senti péssima quando me vi, dentro de um grupo de europeus, visitando Monte Alban, um importante sítio arqueológico localizado a cerca de 10km de Oaxaca, no México, uma das mais antigas cidades pré-hispânicas, tendo sido capital dos Zapotecas entre os anos 500 a.C. e 800. O flâneur literário pode vir de Baudelaire e passear por muitas conotações e contextos, mas eu estava no México, eu não era dali, minhas roupas, meu grupo, minha nacionalidade não eram dali e assim mesmo, sendo o outro que compra o cartão postal, eu estava ali, vivendo aquele desconforto. Fiquei pensando que eu posso mergulhar mais fundo do que isto, estando em outros territórios. Sei que isso será meu exercício de todas as vezes e não tem um fim, apenas uma prática renovada.
SHIMA _ Quando não encontro familiaridade ou semelhança ao meu modo de vida, sinto-me estranho, deslocado, desencaixado. Os sentidos tornam-se aguçados para compreender este novo habitat, para entender este novo ‘estar no mundo’. Percebo padrões de comportamento, cronogramas distintos, hábitos peculiares, (diferentes) etiquetas, preconceitos e pensamentos. Não há como manter a individualidade em outro lugar, do contrário anulamos nossa presença em detrimento de uma integridade, uma unidade. O residente é obrigado a relacionar-se até para compreender o seu papel neste novo ambiente. Um indivíduo pode também estar onde sempre esteve, imerso em seu cotidiano, e tornar-se residente de seu próprio lugar.
Penso que, do contrário, para manter-se enclausurado em um ateliê, é melhor mesmo não sair de casa. O alienado não interage com o mundo. O convite para deslocar-se não é meramente geográfico, existem outras influências que acabam por afetar todo um pensamento e uma conduta de trabalho. Estar no inverno no interior da Holanda, onde o sol nasce de lado às 10h e se põe antes das 15h afeta profundamente os estados de um artista. É completamente chocante se comparado a um inverno do litoral pernambucano, por exemplo. Há ainda outros fatores que alteram a trajetória: alimentação, idioma e até a qualidade da água (da torneira ou do chuveiro, ou mesmo da chuva). Contextos sóciopolíticos, influências ambientais e econômicas, é preciso que um indivíduo tenha uma mínima consciência de onde se está para dar o próximo passo.
MICHELINE _ Gosto muito da frase do Antoni Muntadas: “ATENÇÃO, PERCEPÇÃO REQUER ENVOLVIMENTO”, e essa frase nós compreendemos quando um cientista se dá conta (e demorou para se dar conta!) de que ele não observa o evento com neutralidade e distanciamento, mas como um reativo em química, que atrapalha o meio.
Acredito mesmo que esse desconforto em ser um turista, ainda que momentaneamente, pode ser elucidativo, um veneno mesmo, que intrinca os pontos de vista e a relação com o lugar que se ocupa.