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Amiga querida!
Lendo sua carta fiquei me lembrando do corpo-passarinho que criamos para habitar o ninho de Caroline. Então me passou pela cabeça o tanto de deslocamentos geográficos (e não só geográficos) realizados por nossas cartas desde que começamos a nos escrever. De Olinda para Porto Alegre, de Porto Alegre para São Paulo, de São Paulo para Olinda e imagino que agora a carta vá para Belo Horizonte… Uma carta-pombo-correio fazendo par com nossos corpos-passarinhos.
Eu gosto desta ideia do corpo-passarinho. Primeiramente, por isso que você narrou, relacionado diretamente ao “passarinho – ser vivo” que o trabalho de Caroline nos suscita através da experiência do ninho. Mas também gosto do corpo-passarinho pela sutileza que ele estabelece. Uma existência tímida e sutil: que voa porque sim, que come porque sim, que faz o ninho porque sim. Porque vida. E que nem por isso deixa de ser complexa, a vida.
A complexidade é justamente este “corpo-encarnado”, como você disse. Corpo que é: emocional, intelectual, espiritual, material… E por ser tudo isso ao mesmo tempo é político, e mais do que isso (ou seria menos?), é corpo micro-político. Aqui volto à sutileza do corpo do passarinho: voar pelas brechas; construir o ninho com o que está ao seu redor; partir da vida mesma lá onde ela é necessidade, para construir um entorno de desejo.
Estamos falando de arte? Creio que as proposições de experiência (tanto no trabalho de Caroline quanto no meu) fazem perguntar se a experiência é arte. Ou onde está a arte na experiência. São perguntas que sempre me remetem a uma outra pergunta: como funciona este movimento de propor e de fazer (se) experimentar?
Você contou da sua vivência junto aos nossos trabalhos. Falou da sua experiência nua, na qual não há verdade ou essência percebida por todos de igual forma. Para mim, a proposição de Sob (re) sereno funcionou assim: partiu de uma ideia tímida de observar a formação do sereno. Realizar é algo forte, é existir, fazer existir. Eu preciso do outro para ver e fazer existir qualquer coisa que seja. Há a necessidade do outro para compartilhar a experiência do inútil. Contar deste desejo é também fazê-lo existir. A partir do momento em que as pessoas ao meu redor passam a participar (de alguma forma – e aqui incluo imaginar, inventar, fazer, discutir, etc.) disto que é apenas um desejo, aí o trabalho surge. Surge de uma incapacidade de apreender, já que o sereno é algo tão efêmero e translúcido. Desta inapreensão visual surge a proposição de criar estruturas que permitam a observação de uma passagem.
Vejo que o “Ninho de Gente” de Caroline Valansi parte também de um desejo de construir. Construir e habitar a construção. Assim como a construção do observatório de sereno, o Ninho de Gente torna experimentável algo que sim, faz parte do nosso cotidiano (a vida ínfima dos passarinhos e o ciclo rotineiro do sereno), mas que não percebemos. Acho que se trata de uma “re-invenção” (“do espaço, do tempo, do uso vulgar das coisas e situações cotidianas”, como você escreveu): reinvenção proporcionada pela proposição do artista (e aqui inclui-se todo o processo de construção de uma proposta) e a reinvenção vivida pelas pessoas que se propõem a construir e experimentar tais proposições por vezes estranhas e deslocadas.
Ainda: penso que estes são trabalhos que não existem sem a experimentação do outro. E penso que é preciso propor-se para tal, assim como você se propôs. Há um incômodo nisto. O incômodo de deslocar-se (em todos os sentidos que já falamos)…
Aqui lembro de Paul Valèry em sua frase célebre “o mais profundo é a pele” e de Suely Rolnik em suas leituras de Deleuze e Guattari.É pela pele que o corpo se des-forma e passa a abrigar o corpo-passarinho, o corpo-coletor, o corpo-passagem. É por esta pele agitada e porosa que as novas experiências alojam-se (nunca para sempre e nunca de forma estável).
É uma espécie de alergia que toma conta. Estado alérgico que deve ser necessariamente desejado e provocado (e por vezes contagiado), no qual a pele arde, coça, comicha e deseja sempre coçar mais. Ao mesmo tempo, quer que acabe, que pare; ao mesmo tempo, deseja estabilizar, inerte, para a respiração voltar à sua constância – um descanso, um tempo para acomodar a pele novamente… Pronta para novas alergias. Acho que há também, junto com o incômodo, um grande entusiasmo…
uma letra que muda de lugar
elle se déplace
deixando
alergia e alegria
Penso que é esse o desejo do meu trabalho e do de Caroline: provocar a pele. As nossas, as dos outros. Provocar não com a arrogância da autoria ou com as pretensões de grandes mudanças. Não. Penso que aqui a aposta é mesmo no mínimo. E para criar este universo mínimo é preciso pensar/viver mínimos detalhes. É toda uma construção de entorno, de encontros, de formas de propor. É toda uma desconstrução de concepções e vícios que o artista traz na sua bagagem.
Beijo,
Carinho
Mayra