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TATUÍ_Habitualmente, à ideia de mobilidade – e à consequente rede formada pelo deslocamento de profissionais do campo da arte Brasil afora – agregamos intencionalidades democratizadoras. À mobilidade soma-se a ideia de descentralização. Por outro lado, estando hoje, no Brasil, a mobilidade mais vinculada ao deslocamento de indivíduos (profissionais) e não necessariamente de ações (eventos, exposições, publicações etc.), até que ponto você acredita na potência de descentralização e democratização advinda com essa prática? Não estaríamos, paradoxalmente, correndo o risco de acumular sobre determinados indivíduos, sob o argumento da “experiência”, uma grande quantidade de informações, conhecimento etc, de um modo que dificilmente pode ser, de fato, apropriado coletivamente? O que sua experiência como curador e gestor o faz pensar a esse respeito?
No instante que lia a pergunta e tentava entender a sua complexidade, pensava no que efetivamente importava, ou para que serviria o deslocamento do artista físico ou apenas virtual. Na primeira metade do século XX, havia um deslocamento temporário com o claro objetivo de estudar, frequentar e receber orientação em um ateliê no exterior (casos de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, entre muitos outros que receberam o Prêmio Viagem ao Exterior do Salão Nacional). Iam com o propósito de se atualizar e se inserir em um ambiente de transvanguarda, em grandes centros da época, como Paris e Nova Iorque. Era fundamental para a formação do artista viver por um tempo ou pelo menos passar por estas cidades.
Mas, atualmente, são várias as cidades que permitem um ambiente favorável ao desenvolvimento de uma arte mais experimental ou de um mercado de arte com instituições museológicas fortes. No entanto, o artista vai não só para estas capitais ou centros como Berlim, Londres, Madrid, São Paulo, Rio de Janeiro. Vai também para cidades periféricas e menores, como Belo Horizonte, Cali, Cordoba, Valparaiso, Natal, Recife, Bogotá, entre muitas outras. E até mesmo para vivências nas florestas e regiões remotas do planeta, como um vilarejo na Jordânia ou nas zonas de conflito como a Palestina.
Na Bienal de Istambul de 2009, pude observar que a maioria dos artistas que dela participava tinha nascido em uma cidade, porém vivia e trabalhava em outra, muitas vezes outro país, ou continente. Mas entendo que o trabalho artístico, a materialização de uma ideia, a criação artística, a formalização de um conceito, são o resultado dessa contaminação ou espelhamento estético, político, conceitual, que se dão nestes deslocamentos. Na ideia de uma arte globalizada, isto acaba por se tornar condição ou exigência na arte contemporânea. Por outro lado, parece ser uma necessidade o convívio, o contato, a livre troca com outras pessoas e culturas. O acúmulo de conhecimento e experiências é consequência desta nova condição do artista globetrotter.
TATUÍ_Decerto, há um indivíduo dos dias de hoje que se desloca constantemente – talvez, não à toa, alguns dos projetos institucionais recentes de mapeamento e difusão da arte contemporânea, no Brasil, carreguem em seu seio, já através do nome, essa predisposição e intencionalidade para a mobilidade: Rumos (Instituto Itaú Cultural, SP), Trajetórias (Fundação Joaquim Nabuco, PE), Projéteis (Funarte), dentre outros. Todavia, nosso ímpeto “andarilho” parece mesmo individual, sendo ainda muito rarefeita a circulação nacional de ações, projetos, exposições etc. em sua inteireza, e que, porventura, poderiam “descentralizar” mais sistematicamente, para além da esfera do indivíduo, no campo da experiência (e, portanto, não através da “documentação ou registro dessas experiências”), o potencial do deslocar-se. Nesse sentido, retomando a pergunta inicial, gostaríamos de explorar melhor sua opinião acerca do risco de acumularmos “sobre determinados indivíduos (…) uma grande quantidade de informações, conhecimento etc., de um modo que dificilmente pode ser, de fato, apropriado coletivamente”.
Não vejo risco.
Acrescentaria no começo da formulação do questionamento o edital Rede da Funarte, que melhor exemplificaria as políticas institucionais para circulação do artista, do crítico de arte (curador), da obra e do pensamento.
O edital, criado em 2004, tem por pressuposto o deslocamento físico e de ideias. O proponente da ação deve obrigatoriamente levar ou trazer. Tem gerado experiências ricas na formação de artistas e da plateia. Aí sim, como formas de apropriação coletiva e disseminação de ideias e práticas.
Estes questionamentos têm muito a ver com o discurso do francês Nicolas Bourriaud, a Estética Relacional, embasada na necessidade que tem o artista contemporâneo de interatividade e convívio – ambiente de trocas, experiências e sociabilidade.
Essa vertente convivial – sociológica – da arte (e não é que ela não existiu antes) gera um acúmulo de conhecimento e o resultado dessas experiências estéticas e relacionais é natural, pertence a todo indivíduo. Viver é acumular experiências e a arte em tempos de arte relacional torna-se mais e mais experiências sociais. No entanto, desse conhecimento nem tudo é compartilhável.
Qual conhecimento deve ser compartilhado pelo artista em uma época em que as palavras-chaves têm sido o multiculturalismo, a desterritorialização e a globalização?
Investe-se no indivíduo. Investe-se na formação do artista. Investe-se no seu deslocamento. Investe-se no acúmulo de informações. É da contemporaneidade este acúmulo de conhecimento, que necessariamente não tem que ser compartilhado. O compartilhamento se dá no trabalho de arte, nas práticas artísticas. De alguma maneira, o conhecimento acumulado se transformará em conhecimento coletivo quando o artista leva o seu trabalho para o espaço expositivo e divide-o com o público.
TATUÍ_Diante desse panorama de incentivo à mobilidade, percebemos que hoje há uma tendência a tratar o deslocamento em si como valor agregado à produção de arte e pensamento. Nesse sentido, muitas vezes artistas e outros profissionais do campo da arte são legitimados menos por aspectos inerentes à sua produção, e mais pela quantidade e caráter dos deslocamentos que suas obras ou eles próprios realizam. O que você pensa a esse respeito?
O preenchimento dos vazios vai sempre ocorrer. As pessoas que necessitam ficar de um lado para o outro apenas para superar uma falta de artisticidade, de conhecimento, o tal vazio de ideias e criação,vão sempre existir. Muitos desses artistas ou intelectuais se deslocam apenas para preencher o vazio que existe em suas obras.
Para os artistas artistas, as viagens, as residências ou mesmo esta mobilidade toda que vemos no meio artístico, tende a ajudar no amadurecimento da obra. Você conhece, troca experências artísticas, melhora o vocabulário e atualiza o discurso. Permite o conhecimento do mundo. No entanto, com ou sem deslocamento, sempre vai existir o mau artista ou o mau crítico, o bom artista e o bom crítico. São os tais globe trotters que chegam atrasados aos encontros nos ateliês dos artistas ou nas residências artísticas. Chegam de salto quinze e olhando para o relógio para a próxima visita ou viagem.
Estamos nos tempos de exposições e teorias com títulos bastantes sugestivos sobre o que se discute aqui:Como viver junto; Em vivo Contato; Como construir mundos; Arte Relacional; Sociedade Líquida; Amor Líquido; Há sempre um um copo de mar para o homem navegar; A Contemplação do Mundo…
Também sintomaticamente, Marc Augé, que ficou conhecido pelo livro O Não-Lugar, lançou este ano uma publicação que promete se tornar um best-seller no meio artístico, Por uma antropologia da mobilidade (coedição Edufal e Unesp, 2010), que trata da transculturalidade.
No entanto, a transculturalidade já era entendida muito antes deste fenômeno, como evidencia entrevista (O Estado de São Paulo, 18/12/10) do pianista e compositor de jazz norte-americano Dave Brubeck, que revolucionou o gênero há 51 anos com o disco Time Out, mencionando o que lhe ensinara seu professor, Darius Milhaud: “Milhaud falava com frequência da época em que viveu no Brasil e como o país influenciou sua linguagem musical. Ele me relatou suas viagens pelo interior do país para ouvir canções folclóricas que o inspiraram a escrever algumas de suas mais populares e encantadoras peças. O conselho que me deu, então, foi viajar e manter os ouvidos abertos. Ele acreditava firmemente na importância de ouvir música folclórica de diferentes culturas, citando particularmente o caso de Stravinski e Bartók, cujos trabalhos foram marcados por essa aproximação. De algum modo, a introdução de ferramentas clássicas no jazz é semelhante à adoção de métodos de composição clássica de Milhaud para incorporar a música folclórica brasileira”.
O entrevistado fala de algo como 50 anos atrás.