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O curador Nicolas Bourriaud, em seu Altermodern Manifesto (2009), proclamado – não pouco sintomaticamente – a partir da Tate Britain (Londres), após linhas apologéticas à diversificação e negociação cultural global, deduz que o “artista se torna um ‘homo viator’, um protótipo do viajante contemporâneo cuja passagem por entre signos e formatos refere-se a uma experiência contemporânea de mobilidade, viagem e transpassagem” [1] .
Com seu Manifesto, na sequência dos pensamentos que exploram diversos horizontes conceituais para a condição plural das identidades culturais – como as ideias de mestiçagem, contaminação, crioulização, hibridismo, tradução, agenciamento e outros –, Bourriaud vai além da aposta numa “forma de arte” que se dá relacionalmente (como circunscreve sua Estética Relacional, 1998), para sugerir também um modo/método de produção da arte (“forma de trabalho”). Esse modelo produtivo, que o autor enxerga como uma “evolução”, se daria na “forma-viagem (…), materializando trajetórias mais do que destinações”; seria “um curso, um vaguear, em vez de um espaço-tempo fixo”, e estaria relacionado a “linhas de voo” e “programas de tradução”.
Buscando trazer à tona distinções entre “os trabalhos site-specific dos anos 1960”e aqueles atuais aos quais se refere, Bourriaud afirma serem estes últimos “time-specific” pois, “vagueando através da geografia bem como pela história”, “o artista traduz e transcodifica informação de um formato a outro”.Atribuindo a essa “forma de trabalho” um caráter de alteridade mais adequado do que as “identidades pós-modernas” ou a “linguagem abstrata e ocidentalizada do modernismo”, o autor parece colocar, sobre a informação e a comunicação, o protagonismo absoluto do processo de (re)conhecimento do outro a ponto de pensá-lo em termos de tempo (por onde “invisivelmente” circulariam os dados?), e não necessariamente de espaço (onde se daria, com mais ênfase, a experiência?).Seu destaque às questões temporais da “forma-viagem” de várias maneiras se associa à eficientização produtivaherdada da indústria, já há bastante tempo influente no campo da arte com seus muitos artistas de“studionotebooks” ou curadores que fazem “’studionotebooks’visits” por entre aviões, aeroportos e hotéis.
A questão é que – para ficar num exemplo, e deixando de lado a opção “cozinhe em sua própria exposição” de Rirkit Tiravanija –, ouvi já de alguns artistas que, quando em residência, na intenção de poupar tempo, trabalho, desconforto e paciência, preferem comer numa McDonald’s local a “exercitar a capacidade de negociação” com cardápios ou garçons ainda não tão poliglotas quanto os artistas em trânsito.
E o “problema” é que, a despeito das raríssimas vezes em que isso ocorreu no Brasil (e esse é um assunto que mereceria investigação), em diversos lugares do mundo as McDonalds’ adentraram o século XXI oferecendo também itens “site-specific” em seus cardápios – gorgonzola no McCheese parisiense, bacalhau no McFish de Portugal – além de promoverem festivais “globais” com ingredientes e receitas dos cinco continentes. Talvez mais do que gostaríamos, em épocas de “confraternização mundial” como se julga ser o caso das Olimpíadas, por exemplo, a pluralidade cultural é argumento igualmente posto para ampliar o lucro das multinacionais ou dos museus.
A pergunta que –genericamente– surge é, então, no que o método “forma-viagem”, encarado enquanto “forma de trabalho” na qual o artista opera uma “tradução de formatos”, se diferenciaria do método McDonald’s de tradução de seu formato original (americano) para as especificidades locais? Em que medida estamos diante de processos de invenção(espacial e temporalmente em diálogo com o local), e em que medida perpetramos mormente uma adaptação funcionalista de um modelo pré-existente?
Estética relacional como relações públicas?
No contexto do capitalismo corporativo, como analisa Chin-Tao Wu em Privatização da Cultura (São Paulo: Boitempo, 2006), a arte “funciona como moeda de valor simbólico e material para as corporações e, de uma forma diferente, para os altos executivos nas democracias capitalistas ocidentais do fim do século XX”:
“Atentas à sua posição simbólica na mente das pessoas (consumidores), as empresas usam as artes, carregadas de implicações sociais, como mais uma forma de estratégia de propaganda ou de relações públicas, ou ainda, para usar o jargão da cultura corporativa, encontrar um “nicho de marketing” (…). É nesse espaço de interesses que a busca do capital cultural como meio para se atingir fins econômicos, ou a conversão de capital cultural em econômico, assume sua forma mais transparente e às vezes mais politicamente perniciosa”. (2006, p. 32)
Econômica e corporativamente implicada, parte significativa das práticas artísticas contemporâneas (sobretudo aquelas identificadas como “relacionais” dentro da perspectiva de Nicolas Bourriaud) desenvolveu-se, como problematiza Claire Bishop em seu ensaio Antagonismo e Estética Relacional (October, volume 110, 2004), “como resposta direta à mudança da economia de bens a uma economia baseada em serviços”. Levando adiante o processo de desmaterialização da arte – perpetrado nos anos 1960/70já com intenções de crítica institucional –, tais práticas substituem o tradicional fetiche emais-valia sobre o objeto/bem de arte por outros, de caráter ligeiramente diverso, ainda que de estrutura semelhante dada à manutenção das lógicas fundantes do capitalismo.Propondo experiências, coletividades e processos de sociabilidade, os trabalhos “relacionais” desejam subverter a lógica do capital pelo suposto impedimento da apropriação individual do “lucro”, dada sua aparente não existência material (como capital social, teoricamente o “lucro” se dá somente na relação, no espaço do entre e não nas estruturas, enquanto os outros capitais (natural, humano, financeiro) podem ser facilmente apropriados individualmente).
Demandam, portanto, um mercado relativamente distinto, capaz de organizar-se sobre uma mais-valia simbólica, ainda que calcado sobre um sustento evidentemente usável (minério, petróleo, metalurgia, mercado financeiro, etc.). A economia que tais trabalhos talvez demandem coincide, assim, com o mercado transnacional das grandes empresas, corporativamente organizadas e sedentas por enriquecer suas imagens sociais.
Ao lidar diretamente com o público, “democratizando” a experiência estética que outrora teria sido “hierárquica e impassível”, as práticas relacionais cumprem inevitavelmente, e mais diretamente, um papel de relações públicas (o Ronald McDonald existe desde 1966, tendo sido criado antes do Big Mac). Identidade, imagem e opinião pública estão escancaradamente em jogo, e certa “estética relacional” parece caminhar na direção de conformar-se como uma espécie de “terceiro setor” da arte contemporânea (a Ronald McDonald House, braço filantrópico da McDonald’s, existe desde 1974).
Sinergia.You gotta serve.
Mas tudo isso pode ser positivamente compreendido dentro de uma perspectiva século XXI de responsabilidade social, adotada também por alguns artistas e teóricos que almejam, para continuar nas palavras de Bourriaud, “constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente”, “aprendendo a habitar melhor o mundo”.
Se, quarenta anos atrás, a crítica (institucional, ou não) instaurada pela arte agia, em sua maioria, numa “lógica” contracultural (a ideia de contracorrente, literalmente levada a cabo por Flávio de Carvalho em Experiência n. 2 (1931), quando o artista caminhou na contramão de um cortejo católico em São Paulo, foi continuamente explorada por artistas brasileiros, sobretudo nos anos de chumbo), agora a lógica é outra. Não só no nosso país, como no mundo, artistas deixam de lado uma cultura do “antagonismo” (que remonta ao duopólio Estado x sociedade civil) para apostar numa cultura sinérgica – Estado + sociedade civil. O cooperativismo que então vai se consolidando como política de responsabilidade social, esforço coletivo pela estruturação de uma sociedade mais justa, é também argumento para fusões de grandes empresas, instituições de arte, artistas, curadores etc. – entre si e uns com os outros. Não à toa, as três últimas edições da Bienal de São Paulo pressupunham, em seus projetos curatoriais, modelos sinérgicos (e microutópicos) de convivência entre arte, sociedade e política (entenda-se também: artistas, público e instituições), como evidenciado já nos títulos escolhidos: “Como viver junto” (27ª Bienal de São Paulo, 2006); “Em vivo contato” (28ª Bienal de São Paulo, 2008) e “Há sempre um copo de mar para um homem navegar” (29ª Bienal de São Paulo, 2010).
Nesse contexto de ansiedade pelo outro (consideremos igualmente o quanto tardou a chegar essa alteridade expandida), o indivíduo é visto não somente como ser interdependente mas, numa inclinação civile cristã, também como cidadão cujo dever é “servir ao próximo”. Vários são os artistas que, literalizando concepções tal qual Flávio de Carvalho o fizera com a ideia de contramão, se põem então a oferecer serviços (aulas, auxílios, entretenimento, etc.). O possível dilema entre “servir ou não servir” – já publicamente vivenciado entre o Bob Dylan da fase gospel com sua You Gotta Serve Somebody (1979) e John Lennon, que em resposta compôs a irônica Serve Yourself (1980) –, e que mantém a lógica dualista que ainda pauta cognição e cultura, parece ficar menos agudo quando “a serviço” da arte:o outro da sinergia econômica, visto como cliente, é na sinergia da artedemandado (e desejado) como participante. O modelo do servilismo enquanto clientelismo é pretensamente substituído pelo da participação – voluntária, sensível e cívica. (No Brasil, o McDia Feliz existe desde 1988). E o ‘homo viator’, na condição daquele que viaja para conhecer (e agir a partir de)contextos e outros, parece ter mesmo que participar.
“Invenção: modos de usar”.
Na arte brasileira, todavia, muitas vezes a ideia de participação parece vir junto à de nostalgia, dadas as experiências neoconcretas e outras, menos devedoras daquele desenho específico de subjetividade, mas igualmente propiciadoras de espaços-tempos de criação e relação, como as que se desenvolveram no contexto dos Domingos da Criação, em 1971, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Esse momento da produção de arte do País, muito referenciado (e por vezes fetichizado), mas pouco conhecido e analisado – sobretudo pelas gerações mais recentes –, ressoa em parte da “jovem arte contemporânea brasileira” de maneiras variadas, sendo inclusive por vezes lido homologamente à estética relacional bourriaudeana. Dentre as várias compreensões possíveis, talvez haja o desejo de aproximação (simbólica e experimental) a esse momento numa necessidade de contaminação por suas premissas libertárias, como também por seu caráter genealogicamente legitimador.
O fato é que, em 2010, realizou-se, no mesmo MAM do Rio de Janeiro, o conjunto de atividades Encontros com os Domingos da Criação, proposto pelas empresas de produção cultural Matizar e Automática, em parceria com o Museu e o Instituto Moreira Salles. Composto por uma exposição, mostra de filmes, três mesas de debate e três encontros entre artistas, suas proposições e o público, o evento, ciente da impossibilidade de reproduzir, “na atualidade, o impacto e a importância da reunião da população ao redor da arte em um espaço público e em plena ditadura militar”, rejeitava “qualquer re-tomada ou re-visão, afastando o ranço nostálgico de uma visita ao passado e aceitando a impossibilidade de re-fazer os Domingos da Criação” [2] . Propunha, então, “articular a memória dos eventos de 1971 com as novas possibilidades de reunir artistas e população ao redor de um impulso criativo. Se as formas de lazer mudaram, se a relação da cidade com o espaço público e com o Museu (…) mudou, devemos partir dessa mudança para sugerirmos um novo formato”.Curioso mesmo perceber a diferença entre as concepções dos Domingos de 1971 e dos Encontros com os Domingos, em 2010.
Em especial, intriga a preponderância da ideia de participação face à de criação nos Encontros. Ou, noutra leitura, o acoplamento da preocupação e “exercício” de alteridade à criação, a ponto de um dos domingos de atividade – do qual participaram os coletivos GIA e Opavivará! – chamar-se Invenção: modos de usar.
Para além dos trabalhos que demandavam participação ocorridos em outros dias do evento, naquele domingo em especial os coletivos propuseram práticas/estruturas com caráter de “serviço” e “entretenimento”, como redes, churrasco, samba, bingo. Dessa forma, em sua versão “modos de usar”, o “estado de invenção” preconizado por Hélio Oiticica (“o que resta é apenas a proposição da grande invenção, algo que mobilize o participador, o ex-espectador (…) a um estado de invenção”, dizia em 1979) parece reduzir sua potência (de liberdade, sobretudo) na medida em que demandava do outro não um exercício de invenção, mas a participação na invenção alheia. Use-a. Mas “a serviço de que” está a delimitação da presença do público dos Encontros dentro de uma ideia de participação que, ademais, faz-nos pensar que a produção artística atual de fato não foi ainda além do paradigma de participação dos anos 1960/70?
O papel dos artistas convidados pelo evento, ao mediar a relação do público através da proposição de estruturas/práticas de mediação, remete à pergunta já lançada neste texto: estética relacional como relações públicas? Relações públicas para a construção de uma imagem de democratização, participação popular, acessibilidade e responsabilidade social das instituições envolvidas e seu patrocinador, a empresa de gestão de fundos de investimento Opportunity? A serviço de quem estão nossos serviços, sobretudo os de alteridade?
“A anarquia é a verdadeira ordem entre os homens, o resto é mero comércio”, dizia o avô de H.O., José Oiticica, citando o padre católico Jean Natal Groishman.
Cristianismo, Opportunity, McDonald’s, arte contemporânea: to serve, or not to be?
Na dúvida, viajar é certamente uma boa opção.
[1] — Disponível em http://www.tate.org.uk/britain/exhibitions/altermodern/manifesto.shtm.
[2] — http://encontros.art.br/domingos-no-mam.