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Existindo em Portugal, no século XV, as condições necessárias – a estrutura econômica e, consequentemente, o domínio da técnica e os recursos materiais – para o empreendimento que caracteriza, naquela fase, o surto mercantil, a expansão ultramarina vai ser principalmente impulsionada pelo reino que se antecipara na formação nacional. Ela corresponde, de modo exato, ao desenvolvimento econômico, social e político da Europa, e vai ser a empresa de rigoroso método, cuidadosamente planejada e meticulosamente desenvolvida, que atende às necessidades expansionistas da Revolução Comercial.
O que se deve ler para conhecer o Brasil,
Nelson Werneck Sodré
Minha experiência do financiamento à cultura em Nova York é que projetos experimentais raramente recebem apoio; ao mesmo tempo o patrocínio privado incentiva a auto-censura e o triunfo dos imperativos de mercado. Mas a deferência aos grandes negócios está sendo explicitamente incentivada no Reino Unido: um dos novos objetivos declarados pelo Arts Council é levar em conta o tratamento prioritário dos poderes emergentes pelo Ministério das Relações Exteriores (China, Índia, Brasil, países do Golfo Pérsico, Rússia, Japão). A mensagem parece ser que há financiamento para a arte chinesa (o que abre caminho para o comércio internacional), mas não para a história local. Esta última ficará aos cuidados da população local, não sendo mais valorizada como patrimônio nacional.
Con-Demmed [2] to the Bleakest of Futures: Report from the UK (‘Condenados ao mais sombrio dos futuros: um relatório do Reino Unido’), Claire Bishop
Como propõe a presente edição da Revista Tatuí, neste breve texto pretendo explorar a ideia de deslocamento como valor, articulada desde uma perspectiva pessoal:minha experiência profissional como curadora independente brasileira vivendo em Londres há dez anos e trabalhando em diferentes contextos. Parto do pressuposto de que, justamente nesta década, houve uma expansão dos fluxos, trocas e intercâmbios no contexto da arte contemporânea para regiões além do eixo Europa-Estados Unidos, bem como sua intensificação nos países onde já ocorriam, o que ocasionou uma maior inserção da arte brasileira no circuito internacional. Internamente, no Brasil este foi também um período de aceleração de um processo interno de expansão do campo da arte contemporânea, em que se observou não apenas o surgimento de novas galerias comerciais – representando principalmente artistas jovens –, como também a ampliação regional do circuito, que passa a incluir outros importantes centros urbanos além de Rio de Janeiro e São Paulo. Embora sejam o produto de diferentes conjunturas cuja análise demandaria um ensaio mais extenso, observamos nesses dois movimentos de intensificação de fluxos um processo de descentralização tanto no âmbito externo, quanto interno.
Dentro deste cenário, o que me interessa nesta reflexão é precisamente o impacto que esses processos de descentralização tiveram sobre como a arte contemporânea brasileira é apresentada, exposta e interpretada no contexto europeu – e particularmente o britânico – no mesmo período. Já no início de 2001, a arte contemporânea brasileira figura na exposição Century City, apresentada pela Tate Modern – braço internacional da antiga Tate Gallery (atual Tate Britain), inaugurada em 2000 – cujo objetivo era “explorar a relação entre criatividade cultural e a metrópole, com foco em nove cidades mundiais em momentos específicos dos últimos cem anos” [3] .
A exposição incluía, além do Rio de Janeiro [4] , Mumbai, Lagos, Londres, Moscou, Nova York, Paris, Tóquio e Viena [5] . Sem maiores surpresas, o período escolhido para representar a arte brasileira era de 1950-64, com o Neoconcretismo e a arquitetura de Niemeyer e Reidy, bem como o paisagismo de Burle Marx. Observa-se, portanto, desde a aurora da década, um certo interesse pela arte brasileira, mas que parece tratar-se, neste momento, de um interesse de caráter histórico, que vê a arte brasileira como produto de uma vanguarda de outrora [6] .
É a partir de meados dos anos 2000, quando o Brasil passa a se tornar cada vez mais o foco da mídia internacional, com uma economia estável e em expansão (tendo quitado a dívida com o FMI um ano antes do previsto, em 2005), que a arte contemporânea brasileira adquire uma representatividade sem precedentes em algumas das mais importantes instituições mainstream britânicas, definitivamente ocupando um lugar de destaque em relação a outros países com produções artísticas igualmente fecundas.
Em 2006, o Barbican recebe a mostra itinerante Tropicália [7] , com curadoria de Carlos Basualdo; a Tate Modern, por sua vez, apresenta individuais de Hélio Oiticica (2007) e Cildo Meireles (2008-09); em 2010 é a vez de Ernesto Neto na Hayward. Foi ainda neste mesmo período (2006-10) que o Arts Council (espécie de Ministério da Cultura), juntamente com o British Council, lançou a segunda edição do programa Artist Links, que promoveu residências artísticas entre o Brasil e o Reino Unido (o projeto piloto foi com a China, de 2002-06), com um investimento de 450.000 libras (aproximadamente 1.200.000 reais). Além disso, seria possível citar inúmeras participações de artistas brasileiros em projetos de exposição de menor escala, tanto em instituições públicas, quanto em galerias comerciais – geralmente com uma abordagem mais sofisticada do que os shows das grandes instituições –, bem como sua participação em residências artísticas independentes do Artist Links [8] .
Hoje, essa diversidade de manifestações começa a criar espaços para além da mera reprodução de clichês e da formatação de projetos mais palatáveis para o público estrangeiro, que reiteram um discurso que promove uma única matriz neoconcreta para tudo o que é arte contemporânea brasileira. Ainda assim, o clichê prevalece: vide o “Festival Brazil” (2010) promovido pelo South Bank Centre (que incluiu a exposição de Neto na Hayward) ou o festival “Brazil Contemporary”, promovido pelo Museum Boijmans Van Beuningen, em Amsterdã (2009) [9] . Em ambos os casos, as respectivas curadorias optaram, mais uma vez, por trilhar o caminho neoconcretista para discutir arte brasileira, seja selecionando um artista já reconhecido e que bebe diretamente nessa fonte (Neto na Hayward) ou explicitamente tomando Oiticica como a maior influência contemporânea (e mostrando, além dele, os trabalhos de Ricardo Basbaum, Cão Guimarães, Rivane Neuenschwander e, claro, Ernesto Neto).
É importante ressaltar aqui que não se trata de denunciar os trabalhos desses artistas como clichês. O que me incomoda são os mecanismos de cooptação dos trabalhos destes artistas por estas grandes instituições estrangeiras, que acabam por restringir suas potencialidades ao esvaziá-los de suas peculiaridades e colocá-los numa mesma e única categoria básica – a do atavismo neoconcreto –, que qualquer consumidor de arte no mundo hoje consegue absorver com relativa facilidade. Assim, de uma representação relativamente incipiente no começo da década, o Brasil passa a ganhar um maior espaço no circuito internacional, sem que isso tenha proporcionado oportunidades significativas de reflexão e produção de conhecimento sobre a arte brasileira.
Retorno então às citações que precedem este relato, não para chegar a uma conclusão, mas para levantar alguns questionamentos em relação ao panorama atual e suas possibilidades para o futuro. Estas não servem apenas para dizer o óbvio (que, em grande parte, o interesse pela arte brasileira é o reflexo de um interesse comercial e de condições econômicas favoráveis, assim como o trabalho dos pintores viajantes foi possível graças ao sucesso da empresa ultramarina), mas também para sugerir uma reflexão sobre que tipo de conhecimento as exposições blockbuster estão produzindo a respeito da arte brasileira. Eventos como “Festival Brazil” ou “Brazil Contemporary” não representam nenhuma contribuição para o entendimento de seu objeto, simplificando ao máximo uma produção extremamente complexa e apresentando sempre o trabalho dos mesmos artistas.
Enquanto isso, no Brasil, temos um mercado interno superaquecido, com galerias comerciais e feiras de arte em clara expansão. Paradoxalmente, a maioria das instituições públicas ainda se encontra em condições precárias, muitas vezes sem condições de cuidar dos próprios acervos, muito menos de desenvolver um programa coerente. Aí reside o risco: como resguardar o papel das instituições públicas – que deveriam ser movidas por interesses de ordem pública – num panorama cada vez mais dominado por interesses privados? Como produzir conhecimento sobre a arte brasileira para além do estereótipo vendável? Para quem estão sendo produzidas estas grandes exposições internacionais e com que propósito?
[1] — #8211; Título emprestado de uma obra de Alexandre da Cunha apresentada na Trienal Poligráfica de San Juan, em 2009, em que recria a célebre bandeira de Oiticica modificando o slogan original.
[2] — Texto em inglês disponível em http://www.e-flux.com/journal/view/209. NT: A expressão ‘Con-Dem’ é um neologismo que designa o atual governo do Reino Unido, formado pela coalização entre os partidos Conservador e Liberal Democrata. É também um trocadilho com a palavra ‘condemn’ (condenar), que se refere aos grandes cortes orçamentários a serviços públicos básicos (educação, cultura, saúde) efetuados pela coalizão desde sua tomada de poder em maio de 2010.
[3] — Texto de apresentação da exposição no site da Tate Modern, em inglês: http://www.tate.org.uk/modern/exhibitions/centurycity/, acesso em 15 de dezembro de 2010.
[4] — A curadoria do módulo Rio de Janeiro ficou a cargo de Paulo Venâncio Filho.
[5] — Curiosamente, a mostra incluía outras duas cidades do grupo dos países BRIC, acrônimo forjado também em 2001 (30/11/2001) por Jim O’Neil em um paper publicado pela Goldman Sachs intitulado “Building Better Economic BRICs”, cuja apresentação inclui os seguintes pontos: 1) Em 2001 e 2002, o crescimento real do PIB nas grandes economias emergentes excederá o dos G7. 2)No final de 200, o PIB em dólares com base na PPC no Brasil, Rússia, Índia e China (BRIC) foi aproximadamente 23%do PIB mundial. De acordo com a atual base do PIB, os países BRIC detém 8% do PIB mundial. 3) De acordo com o PIB atual, o PIB da China é maior que o da Itália. 4) Nos próximos 10 anos, os países BRIC, especialmente da China, terão maior peso sobre o PIB mundial, levantando importantes questões sobre o impacto econômico global das políticas fiscais e monetárias dos BRICs. 5) De acordo com estas previsões, os fóruns mundiais de elaboração políticas deverão ser reorganizados e o G7, em particular, deverá ser ajustado para incorporar representantes dos países BRIC.
[6] — Vale lembrar que no final da década de 90 a arte brasileira já possuía uma certa projeção internacional, e que a XXIV Bienal de São Paulo, em 1998, teve uma enorme repercussão internacional.
[7] — ‘Tropicália: A Revolution in Brazilian Culture’ foi apresentada também em Chicago, Lisboa e Nova York.
[8] — Exemplos incluem a individual de Rivane Neuenschwander na South London Gallery (2008), do artista brasileiro baseado em Londres, Alexandre da Cunha, no Camden Arts Centre (2009) e de Erika Verzutti no espaço comercial Swallow Street (2009).
[9] — http://www.brazilcontemporary.nl/en/#contemporary-kunst