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Querida,
Nesses dias estive às voltas com aspectos sobre deslocamento que me ocorreram agora há pouco, enquanto transito por tantos lugares ininterruptamente nesse último ano. Daqui, ainda vou ao Rio de Janeiro, passo brevemente em Olinda, depois Fortaleza, alguns dias em Recife e retorno a São Paulo; de lá vou a Belo Horizonte novamente, sigo para Vitória e talvez passe o dia de natal em Florianópolis.
Acabei por entender que os deslocamentos espaciais por si mesmos nos requerem deslocamentos “espaço-emocionais” e, quando associados às residências artísticas, nos disponibilizamos também a viver deslocamentos outros, da ordem da subjetividade, ativados pelas experiências estéticas (e estésicas).
A ideia de lugar me remete a uma circunstância muito relevante que mal nos damos conta. Lugar imediatamente me traz a presença de alguém, quase sempre, que se liga a nós por uma relação de afeto. Nesse sentido, daí pensando mesmo numa dimensão ética, cada lugar pede de nós posicionamentos. Não sem motivo também políticos.
Posicionar-se politicamente, ao que me concerne, tem a ver com envolvimento, entrega, engajamento. Com assumir responsabilidades (que sejam também pela alegria da convicção). Para mim, já não dá para não levar a vida, as pessoas, as situações, como se não fizessem parte de mim e como se também não se tratassem de construções minhas.
O político, já de tanto tempo atrás, vem da ideia de constituirmos seres sociais – da polis. Da possibilidade de nos colocarmos como vozes, também como lugares de acessibilidade tanto quanto de dispersão de ideias, pensamentos-gestos que se colocam no mundo e pedem também abrigo, resposta, diálogo.
Quando me vejo nesse deslocamento (em todas essas instâncias em que temos considerado), acredito que não posso deixar que as situações, pessoas e coisas passem por mim despercebidas, sem que eu tenha com elas uma responsabilidade de me debruçar acerca de. De considerá-las e absorver (e/ou repudiá-las) também como minhas.
Talvez tenha sido inimaginavelmente danosa a construção político-governamental que hoje ainda se dá por representatividade (partidos políticos e seus mandatários). Mais notadamente à nossa distância, ao que concerne à responsabilidade das ações desses partidos-mandatários, como se não fosse nossa a escolha, a delegação, a outorga das gestões. O que é público nos parece coisa distante. Frase de efeito apenas: dinheiro público = nosso dinheiro. Mas que se vivêssemos mesmo essa afirmação, não haveríamos de deixar correr tão soltas as rédeas do que acontece em nossos governos.
Estou divagando, eu sei. Talvez sejam esses dias que antecedem mais uma eleição presidencial. Estou inundada de tanta expectativa em certos aspectos, contudo, completamente impregnada de descrença em mudanças significativas. Ainda não me é possível voltar a acreditar em um nós, quanto mais num eles cada vez mais descolado do eu subjetivo, tanto quanto do eu objetivo (de novo o nós).
Fiquei lembrando daquela conversa que tivemos em Terra UNA sobre arte e política, na qual você dizia que sua posição política em relação à arte (e na vida) era de sinceridade. De vivenciar suas próprias propostas artísticas, sem usar os simulacros como muletas, tampouco se entregar às demandas do mercado. Penso que é esse o caminho. Também procuro ter com e através da Tatuí relações de sinceridade tanto no que diz respeito à minha escrita, pesquisa, quanto da convivência com artistas, críticos, curadores, público…
O projeto Tatuí – nossas atividades há muito já extrapolaram apenas a edição da revista impressa: hoje promovemos experiências imersivas de elaboração de textos em residências e laboratórios – sobrevive por sua autocrítica e transparência. Procuramos sempre rever nossos posicionamentos sem cinismo. Porque, ao que me parece, as atuais formas de crítica (também autocrítica), resumem-se ao apontamento da mera perversão – do mundo, cotidiano, mercado, arte –, das contradições. Não à toa surgem as falas do ressentimento. Trabalhos (e textos) que reproduzem as perversões e nos fazem re-sentir as situações negativas, criando um movimento circular, uma imobilidade. Ao contrário disto, a autocrítica (e crítica) que procuro imprimir passa pela vontade de reconstrução das situações. É movimento para fora, transmutação, entropia.
Talvez eu esteja inevitavelmente condenada à utopia e à pieguice. Mas quando me proponho viver os deslocamentos – fazer e promover residências, visitar tantas cidades à trabalho (e por muito prazer) –, penso que não posso apenas flanar, mas marcar e me deixar marcar pelas presenças de todos esses lugares (subjetivos-pessoas, objetivos-espaços).
Grande beijo,
.a
Porto Alegre, 08 de novembro de 2010
Ana amiga,
É bonito quando descobrimos as micro-políticas que criamos e que nos envolvem. Nos nossos trabalhos, nas nossas relações, nos nossos modos de viver. Penso que criar micro-políticas é necessariamente estar atento (sentindo-se responsável) ao que se constrói e ao que se destrói (sem esquecer do acaso agindo independente da gente tanto no que se constrói, quanto no que se destrói).
O sentir-se responsável talvez aponte para um modo de viver indispensável nas nossas vidas hoje. Justamente por nos darmos conta de que não existem essências e verdades prontas, é que a estratégia de atenção e de “movimento para fora” torna-se fundamental para que possamos construir o que quer que seja. Penso na Tatuí (no que você conta, nas páginas que leio), penso nos pequenos movimentos de alguns artistas através de seus trabalhos, penso em “La Borde” [1] e penso em Terra UNA. Penso em tudo isso existindo. Fazendo-se existir dia após dia concretamente. Mas aqui neste texto, escrevendo através das lembranças de contato, tudo isso me vem como construção que envolve trabalho, mas também sonho, desejo, imaginação…
Estive por alguns dias em La Borde no ano de 2009. Não fui capaz de fotografar, filmar, escrever. Qualquer que fosse a tentativa de registro me pareceu incapturável e talvez medíocre no caso daquela experiência.
Os pacientes habitam um antigo castelo. Existe muito verde ao redor e caminhando um pouco você logo se depara com esculturas e vestígios de tinta que colorem entradas. Ao adentrar o salão principal do castelo, eu encontro cachorros, gatos, pessoas, mesas, um lindo lustre, fumaça de cigarro que sobe, de diversos cigarros, fumaça que se torna uma só e grande nuvem. A luz do sol de final de tarde alaranjeia tudo ao redor. Eu não sei quem são os médicos, quem são os pacientes, os enfermeiros, os visitantes. Todos se misturam e usam suas roupas de cada dia, assim como as pessoas nas ruas. Todos que querem fumar fumam. Não há jaleco, nem plaquinha na lapela que assegure os ofícios. Ao iniciar a assembleia (que acontece cotidianamente), alguém pede que eu me apresente. Com meu francês ruim, me ocorre que a partir daquele momento eu também passaria a fazer parte das incógnitas daquele lugar. Uma incógnita, neste caso, não é nada que deva ser desvendado, pelo contrário, uma incógnita é o que faz de cada um singular. Apesar disto, há sempre aqueles que desejam desvendar e é assim que estendo minha mão para uma mulher de cabelos brancos e olhos profundamente azuis, que imediatamente resolve me lamber.
A discussão da assembleia trata de resolver um pequeno problema: dentro de alguns dias La Borde receberia uma visita com o intuito de fiscalizar a higiene do hospital. Gato pode dentro do castelo, cachorro não, segundo as normas. A discussão se desenvolvia desde dias e o ponto daquele momento era: como fazer com que os cães entendam que é só por uns dias?
Há sempre a possibilidade de que a encenação não cole. Neste caso há a chance do hospital fechar. Sempre foi assim e sempre é assim: tudo que existe de uma maneira está sujeito a ter que se modificar. Mas em La Borde (e eu diria que também na Tatuí e em Terra UNA), é o movimento e a invenção que compõem a maneira de existir, por princípio. Ou seja, ao se autogerir, ao confundir papéis, ao colocar em questão assuntos que talvez fossem mais fáceis de resolver usando de uma norma, a instituição toma o “estar atento”, o se “sentir responsável” como motor próprio da sua possibilidade de continuação. É justamente a possibilidade constante de se chegar a um fim que move a construção de soluções, estas sempre calcadas nos desejos que se constroem coletivamente já que todos têm o mesmo direito de voz.
Isso explica a serenidade de Jean Oury, com seus oitenta e poucos, caminhando por entre a gente, com poucas palavras interventivas acerca da tal visita fiscalizadora. São os meios. O quanto de vida se produz quando estão em jogo decisões que envolvem fins. O fim não interessa, nem a origem, o que interessa são os desejos que se criam quando nos colocamos em situações onde devemos tomar decisões coletivas.
La Borde estendeu-se por estas linhas… E inscrevendo esta experiência através de palavras (“favorecendo a circulação da palavra” como está escrito no site [2] da instituição) penso nas aproximações com a proposta da Tatuí (descrita em sua carta) e de Terra UNA.
Em Terra UNA o consenso é um dos motes de funcionamento. Conversando com alguns moradores, ficou claro o quanto o exercício de se chegar a um consenso faz com que cada vez mais eles conheçam os próprios desejos e os desejos uns dos outros. Uma abertura aos movimentos, já que ao entrar em contato com o que quero e com o que o outro quer, passo a experimentar o desejo deste outro para medir até que ponto posso abrir mão do meu. Isso não quer dizer que seja simples, e nem se quer simples. Na complexidade se afinam singularidades, se experimentam novos modos de vida e assim o movimento põe em funcionamento a invenção do dia a dia, invenção de desejo coletivo.
Bem, passando pelas experiências de La Borde, da Tatuí e de Terra UNA, o que me bate é a importância do que a gente chamou de “atenção” e “responsabilidade” para que estas maneiras de existir não se cristalizem e acomodem. Cada uma, à sua maneira, inventa formas de se colocar questões e assim se recriar. É essa mescla da diferença, é essa abertura que treme a pele, sem querer igualar, concordar, nomear, que faz destes lugares espaços micro-políticos.
Também me sinto condenada à utopia e à pieguice e penso que me basta sonhar o desejo. É este o lugar político do sonho: sentir-se entusiasmado com alguma novidade ou algo a ser feito, sentir um doce incômodo ao encontrar (com) um corpo – outro – diferente.
Saudades,
Mayra
[1] — Clínica Psiquiátrica na França criada por Jean Oury em 1953. Tem por princípio a psicoterapia institucional que busca meios para que o paciente tenha acesso à singularidade.
[2] — http://www.cliniquedelaborde.com/