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EDITORIAL

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Conteúdo

Índice
  1. Rock and Roll ou a Mecânica dos Solos - Escrito por Claudia Washington e Lúcio de Araújo
  2. e/ou - Escrito por Newton Goto
  3. Uma história aborrecida - Escrito por Rafael Campos Rocha
  4. Maio de 2009 - Escrito por Clarissa Diniz e Ricardo Basbaum
  5. A vida, às vezes, fica melhor assim - Escrito por Grupo Gia, Ludmila Britto e Pedro Marighella
  6. Arte como simpósio - Escrito por Gentil Porto Filho
  7. Nova Subjetividade: o esboço de uma possibilidade - Escrito por Ana Luisa Lima
  8. Pequeno Manual da Música Independente - Escrito por Zeca Viana
  9. MARIOLOGIA? - Escrito por Bruno Monteiro
  10. A voz do mergulho - Escrito por Ali Khodr, Camila Mello, Coletivo Mergulho, Jorge Soledar e Manuela Eichner

Rock and Roll ou a Mecânica dos Solos

Em passagem por uma das rotas alternativas de acesso entre os municípios paranaenses de Campo Magro e Ponta Grossa, nos deparamos com o recorte de um morro bem à margem da estrada. Tratava-se de uma considerável cratera, com paredão ao fundo, em cujo cume alguns pinus lutavam contra a gravidade. O tom ocre/pele contrastava com a hegemônica área de plantio comercial. Ali, havia ainda uma breve e abandonada estrada que imaginamos ter duplo propósito: o da extração e contenção de terra.

Trata-se de um lugar constituído pelo recorte e esvaziamento do espaço. As rochas, terra e argila dali retiradas são usadas para propiciar caminhos e gerar espaços de trânsito – processo implícito à construção de estradas. Ação negativa que dá origem a encontros. Transposição da paisagem como fluxo e constituição de laços, nós, redes.

O morro é potencialmente uma estrada, do mesmo modo que um poço de petróleo é potencialmente uma frota de carros e caminhões em movimento.

Experimentamos a dimensão de “estar” em deslocamento naquele espaço por meios diferentes: caminhando por e avistando a amplitude do lugar em relação ao outro. Tratamos da realidade material, dos símbolos e dos códigos das situações, imaginando que o encontro com o morro/estrada se dá:

1. Para aquele que caminha através do solo argiloso, considerando cheiros, umidade, temperatura, texturas, cores, esforço, equilíbrio, deslocamento, desvio…;

2. Para aquele que presencia – mas permanece à margem –, olha/fotografa e se detém no que caminha e por onde caminha, através de uma atitude especular;

3. Para aqueles que encontram índices da situação (você, agora, por exemplo);

4. Para o destruidor/criador do morro/estrada, que deixa sua obra.

Sobre aquele que caminha: está no recorte. Sua pele e roupa diluem-se na paisagem, são quase camuflagem. Corpo/imagem com movimento determinado.

Sobre aquele que especula à margem: respira e observa. Tranca a respiração e fotografa. Repete a operação. Às vezes, aquilo que é se confunde com aquele que observa.

Sobre você:
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Sobre aquele que destruiu/criou: imaginamos que ele não nos imagina agora. Mas por seus atos as pedras rolam…

Sobre o rock and roll: transitamos habitualmente por construções, caminhos estabelecidos, códigos confirmados. Por exemplo: uma estrada; a beira de um lago artificial; uma cratera. Rochas se deslocam de um lugar a outro pela força da gravidade, auxiliadas pela erosão. Quase sempre, não temos controle sobre o seu deslocamento e, nesse traço – percurso entre o lugar original e a próxima parada – encontramos potencial criativo, além da possibilidade de estarmos em outro espaço/tempo que não dominamos.

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e/ou

O e/ou surgiu da necessidade de trocas simbólicas e encontros presenciais entre artistas de Curitiba. Buscava-se a criação de um espaço/tempo vivencial e experimental para um certo grupo de pessoas, a fim de facilitar a conversa, a reflexão crítica, o compartilhamento de referências e oportunizar um campo aberto à realização de propostas e ações artísticas. Queríamos reforçar também o laço de amizade entre nós. Uma ação de base que desejava criar uma concepção de circuito de arte mais próxima aos nossos desejos e autônoma em relação ao circuito institucional local, desvinculada de seus parâmetros, valores, lógicas de acontecimento e relações de poder. Enfim, buscávamos criar e estabelecer nossas próprias bases relacionais e vivenciais. Afirmar nosso próprio campo de interesse e prática artísticos. Além disso, a partir da continuidade, do fortalecimento de nossos laços de experiência comum, procurávamos articular, quando oportunas, outras estratégias de diálogo com outros grupos – fossem locais, ou de outras cidades. Tenho comigo, nos pensamentos e no coração, que conseguimos trilhar esse mistério como um processo bastante revelador e gratificante. Ele contribuiu para um alargamento de nossas experiências humanas em variados sentidos: do aprimoramento do conhecimento, do amadurecimento das relações de amizade e também de uma inscrição criativa e crítica de diálogo social. Além da vital dinâmica interna do grupo ter sido reinventada satisfatoriamente entre os envolvidos, produzindo inclusive diversos rastros de produtos artísticos, nos jogamos também numa experiência na rua bastante rica, principalmente com a proposta Descartógrafos (dentro do projeto Galerias Subterrâneas – junho a agosto de 2008). Nela, vivenciamos um intenso diálogo com a população no sentido de repensarmos a cartografia da cidade a partir das memórias e experiências dos participantes – o público –, instaurando uma apropriação coletiva do nosso território, simbolicamente e na prática.

O grupo/fluxo e/ou teve diferentes configurações desde seu início, no final de 2005, quando chegou a ser composto por 8 membros: Ana González, Claudia Washington, Cristiane Bouger, Goto, Maria de Lourdes, Pedro Innocente & Lui Brenner, Tânia Bloomfield. Dentre os remanescentes daquele e/ou e os que se incorporaram durante o processo, ao final de 2008 o coletivo estava composto por Claudia Washington, Lúcio de Araújo e eu. No começo de 2009, os ritmos, as agendas e algumas outras relações espaço/temporais dos integrantes entraram num momento de desentrelaçamento, situação que levou o grupo a uma certa dissolução (não se sabe se definitiva ou temporária), com seus agentes articulando outras possibilidades práticas de atuação para si.

Claudia e Lúcio passaram a atuar mais como dupla, além de estarem também envolvidos em outras práticas coletivas, não só com o coletivo Orquestra Organismo (http://organismo.art.br/), do qual também fazem parte, como também em outras instâncias de interesse. Parte do que estão empreendendo tem seus registros publicados no site Trânsitos (http://transitos.org:99/ ).

E eu reorientei meu foco para os desdobramentos de algumas ações da epa! (entidade coletiva que coordeno desde 2001: http://newtongoto.wordpress.com/epa/), principalmente o projeto Circuitos Compartilhados (http://circuitoscompartilhados.org/wp/). Ainda que o Circuitos tenha também ele mesmo algumas dimensões de circuito artístico – conectando participantes e parceiros de diversas gerações e regiões do Brasil –, para mim essa ação acontece muito como um trabalho de pesquisa, produção e compartilhamento de acervo.  Além dessa prática, estou também envolvido numa outra instância artística coletiva – essa mais experimental –, vivenciando uma troca simbólica entre artistas de Curitiba e de Belo Horizonte, uma tentativa de reconhecimento e diálogo entre cidades, num processo que pode ser denominado de “trocasurpresa” e que está em curso desde o início deste ano.

Quanto à origem do coletivo e/ou, um detalhamento dos fatos pode ainda ser assim relatado: em 2005 formou-se um grupo de artistas para discutir política cultural em Curitiba, um grupo focado numa participação junto à Câmara Setorial de Artes Visuais. Após o encaminhamento de nossas propostas ao fórum Federal mediado pelo MinC e Funarte (ideias que na época foram também postadas no site do Canal Contemporâneo: http://www.canalcontemporaneo.art.br/forum/viewtopic.php?t=50), sugeri aos artistas integrantes desse grupo que déssemos continuidade à nossa dinâmica coletiva num processo que fosse mais experimental e artístico. Disponibilizei a casa onde morava para ser a base para esses encontros. Da minha parte, já tinha envolvimento com diferentes instâncias de ações coletivas em arte fazia anos e, por isso, alimentava o desejo de empreender algum acontecimento coletivo de circuito artístico mais experimental e vivencial. Como o nosso grupo de discussão teve uma ótima dinâmica de convívio e trabalho – e havia aquele interesse comum associado à política cultural –, isso pareceu ser uma boa base de valor e liga humana para nos jogarmos numa experiência de outra ordem. E assim pareceu também ao grupo. Naquele momento alguns outros artistas foram convidados para complementar nossa rede de pessoas. Ainda que a casa (Casa e/ou) sempre tenha sido compreendida como uma base provisória, na prática, do final de 2005 a meados de 2008, ela acabou sendo o lugar privilegiado para os acontecimentos realizados.

No início do e/ou havia uma situação de transição em relação à referida casa. Ela esteve alugada entre 2002 e 2004, quando morei no Rio de Janeiro para fazer mestrado, e o contrato estava por findar em dezembro de 2005, mas eu só retornaria a residir nela em 2007. Como havia esse hiato de 1 ano para realizar a ocupação planejada, ao invés de renovar o contrato de aluguel, o momento de transição foi percebido como oportunidade para direcionar o uso da infra como base do coletivo em formação. E o espaço físico comum foi um facilitador do desenvolvimento das relações internas do grupo. Isso explica também parte das articulações no âmbito econômico que a partir daí se desdobraram, no sentido do autofinanciamento do e/ou. Resumindo: a estratégia que prevaleceu em relação ao espaço foi rachar os custos e serviços. Os acontecimentos que fizemos também tinham custos extras divididos e cada participante buscava resolver a produção de suas propostas específicas, contando com a colaboração de trabalho dos demais. Até 2008 não efetivamos nenhuma estratégia para entrada de recursos que custeassem as produções do coletivo, ainda que algumas ideias tivessem sido testadas. Entretanto, em 2008 surgiram algumas fontes econômicas para o grupo, com as participações no projeto Corpomeiolíngua (do coletivo Couve-Flor);  a realização da proposta Descartógrafos, financiada pelo projeto Galerias Subterrâneas (coordenado pela epa!) – ambos projetos contemplados no Edital Conexão Artes Visuais/Funarte; e as participações nos projetos Arte em Circulação e Circuitos Compartilhados.

Em relação às programações desses 3 anos de atividade, em quase 2 anos e meio foram acontecimentos ocorridos principalmente na casa. Nos encontros que agregaram a maioria dos membros do grupo e que estiveram abertos ao público, quase sempre houve uma programação de vídeo, ações artísticas específicas propostas pelos integrantes do coletivo e também ações deflagradas por alguns convidados de cada acontecimento.  Fogueiras, experiências gastronômicas e rituais musicais foram complementos estruturantes do ambiente e das vivências. Isso tudo caracterizou os encontros como algo bastante situacional, fluido, informal, experimental, propostas com tendências performáticas, happenings, arte relacional. Para além desses encontros agregadores e de caráter mais público, outros muitos fluxos paralelos e cotidianos também se desdobraram em trocas pontuais entre participantes do coletivo e em conversas pela internet mediante a lista [e-ou]. Entre julho e dezembro de 2007 o coletivo Orquestra Organismo esteve como convidado na coocupação da casa enquanto espaço de trabalho, interagindo profundamente com as ações do e/ou. Após esse período migrou em direção a um espaço próprio, o 8/8. Em 2008 o e/ou apoiou as realizações dos projetos Galerias Subterrâneas e Circuitos Compartilhados.

Dentre alguns desses principais encontros aglutinadores e acontecimentos:

Descartógrafos (junho/julho/2008);

Corpomeiolíngua (projeto do Couve-flor e sua etapa junto ao e/ou) (27/02, 01 e 07/03/2008);

Exibição de vídeos (20/02/2008);

Carnaval no e/ou com os anadrilhos da Expedición Donde Miras (03 a 05/02/2008);

Inauguração da Sala de Reza e Mirações Mamelucovich (01 e 02/12/2007);

Dia dos pós-mortos e Convescote (03/11/2007);

Contramão no e/ou: acampamento…(29 e 30/09/2007);

Sábado desprogramático (11/08/2007);

Hospedagem do NBP (22/04/2007 a 22/11/2007) e NBP na Cachoeira dos Descartógrafos (22/11/2007);

Geada (Orquestra Organismo + Ystilingue) (julho/agosto 2007);

Abertura (26/08 e 02/09/2006);

Pré-abertura: ddn – cwbe/ou – 2006; Dia do nada (07/05/2006).

 

Outras ações e propostas relativas ao e/ou podem ser acessadas no site: http://e-ou.org/.

Ainda sobre o momento do surgimento do grupo, quanto à gênese do nome e/ou, a nomenclatura foi realocada de outra tentativa de ação coletiva da qual participei, ocorrida no início de 2005, que visava a elaboração de uma revista eletrônica chamada e/ou revista.net, de conteúdo artístico multiárea (artes visuais, literatura, música e teatro). Após algumas reuniões entre quatro amigos, um de cada área artística, e as respectivas sugestões de pauta, a revista acabou não acontecendo.

Já no portfolio do grupo, organizado no início de 2006, buscava-se uma reconceituação das práticas desejadas e nele estava escrito: “o nome e/ou é apropriado de expressão gramatical de língua portuguesa, misto de conjunção aditiva e alternativa. É o que o grupo quer para si mesmo enquanto coletivo que pensa e faz arte, ser algo que soma e agrega valor à vida (e); e/ou visualiza diferentes opções e perspectivas sobre o mundo (ou). e/ou.”

E assim tentava-se (tenta-se) definir o que foi e/ou é o e/ou: “e/ou é um fluxo coletivo de artistas focado na reflexão crítica sobre o circuito de arte e a sociedade contemporânea, contextos esses com os quais dialoga – ouvindo, propondo, fazendo derivas. e/ou uma estratégia crítica de autogestão cultural e de prática de circuito artístico e/ou uma conexão com outros coletivos de artistas, participantes e propositores. e/ou um espaço/tempo de trocas, intercâmbios culturais e encontro de pessoas”.

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Uma história aborrecida

Sou um tipo institucional. Para mim, todas as iniciativas coletivas artísticas deviam institucionalizar-se mais dia, menos dia. Assim, deixariam de ser uma conversa de amigos que, após esgotarem-se as congratulações mútuas pelas tiradas geniais, sentem-se moralmente obrigados a democratizar o próprio brilhantismo entre a patuleia boquiaberta. Sempre achei, além do mais, que fosse uma coisa meio sexy isso de underground. E como eu não sou sexy, blasé ou coisa que o valha, nunca fiz um grupo do qual os outros quisessem fazer parte para – quem sabe – conseguirem alguns dos favores possíveis de nossos corpos entupidos de nicotina, álcool e auto-complacência. Falo isso com rancor, é claro. Todo mundo quer ser sexy e desejado. A não ser, é claro, que seja casto ou esteja mentindo. Ou ambos, como é justamente o caso dos castos.

Enfim, como eu queria ser sexy, famoso e, quem sabe, conseguir um pouco de conforto material com isso, fundamos em 1999, mais ou menos, um grupo chamado Olho Seco. Tínhamos em nossas fileiras, por aquela época, Ana Paula Oliveira, Dália Rosenthal, Renata Lucas, Tatiana Ferraz, Vanderlei Lopes, Wagner Morales e Wagner Malta. Outros tiveram participação em uma ou outra exposição, como Felipe Cohen, mas as decisões eram tomadas entre esses artistas.

Como este humilíssimo escrevente era parte integrante do grupo desde os seus primórdios, me ocorre que as histórias devem escolher os narradores que vão contá-las. Com poucas exceções, nas quais me incluo, todos os artistas que compunham o grupo tiveram com suas respectivas obras o merecido reconhecimento comercial e institucional, por isso hoje podem se dedicar integralmente a elas. Afinal, era o nosso único objetivo de programa. Inclusive abertamente declarado. O que deve ter atrasado as coisas, no final da década do retorno ao Real e todas as cafetinagens de slogans de lutas sociais atravessando o seu ocaso mais brilhante

Em 2001, dois integrantes do grupo, Ana Paula Oliveira e Wagner Malta Tavares, abriram a galeria 10,20 x 3,60, que foi gerada, curada e divulgada por artistas que faziam parte de seu próprio staff. A galeria, além de expor todos os integrantes do Olho Seco, ainda chamou nomes de artistas mais tarimbados para legitimar suas atividades e, por que não, colher por osmose um pouco da fama alheia e distribuí-la entre os membros de um grupo que envelhecia rapidamente, sem que ninguém parecesse emergir das trevas do anonimato artístico. A galeria começou a mudar isto, principalmente no caso de Renata Lucas, que era, no final das contas, nossa melhor artista pela época. Entretanto, como Ana Paula Oliveira e Wagner Malta não poderiam passar todas as suas vidas de artistas lançando outros artistas, foram cuidar de suas carreiras e o bastão passou para este pobre cronista abrir a terceira iniciativa do grupo: o Ateliê 397.  Na verdade, um quintal de 10 metros de extensão com somente dois metros e meio de largura, cercado de um lado por minha casa e do outro por um espetacular muro de 8 metros de altura.

Fechada a galeria 10×20, poucos tinham exposições marcadas e começamos de novo, naquela nova iniciativa, a mesclar nossos nomes com o de outros artistas. Agora, em vez de chamarmos artistas reconhecidos como Rodrigo Andrade, tentaríamos parasitar o entusiasmo e o talento de jovens como Tatiana Blass e Bruno Dunley. Abrir um ateliê que faz exposições, entretanto, contribui mais para angariar antipatias e aborrecimentos do que dinheiro e diversão, embora tenhamos nos divertido enormemente em vários momentos naquele quintal exíguo, regado quase sempre à cerveja barata e espetinhos de carne vendidos a preços quase altruístas por nosso vizinho, o saudoso William. O Ateliê 397 era gerido por mim, Sílvia Jábali e Bruna Costa. Com a minha viagem de três anos às selvas europeias, Jabali e Marcelo Comparini herdaram a iniciativa com vigor, transformando-a numa referência midiática como eu mesmo não havia conseguido em três anos de tentativas.

Ao que parece, as histórias não somente escolhem seus narradores, mas também seus incansáveis diletantes. Em um balneário conhecido como Barcelona, em 2007, ajudei a transformar a iniciativa de autopromoção de um estúdio coletivo em uma galeria de arte conhecida como noó. A galeria se resumia a um corredor e hall de entrada de um apartamento no bairro de Eixample e foi – já na primeira exposição coletiva – um sucesso. Inesperado para nós, inclusive. Publicávamos, por ocasião de cada exposição, um fanzine feito em uma folha de sulfite A4 dobrada em várias partes. O resultado era pouco maior do que uma camisinha e tinha o tempo de usufruto mais ou menos semelhante. Pelo menos para os que têm compromisso com a verdade. O fanzine se chamava CÚ – revista pequeña para poner donde queiras. Os integrantes da galeria eram, além deste incansável procrastinador, Pedro Torres, Mariane Abakerli e Bruna Costa, mais uma vez colocada pelo destino caprichoso no meu caminho.

Depois de um ano de atividade e o pedido de devolução do imóvel por parte de seu proprietário, o grupo se dissolveu e me vi tendo que lidar comigo mesmo mais uma vez. Mas como disse antes, sou um procrastinador incansável e criei a iniciativa gabinete: uma exposição coletiva que se modifica de acordo com o lugar onde expõe, angariando os nomes artísticos da localidade e mesmo diletantes ou não artísticos. gabinete realizou sua terceira versão no museu Victor Meireles, em Florianópolis. As anteriores foram na galeria Virgílio e no museu Murilo la Greca, em Recife. Os integrantes iniciais foram este desgraçado datilógrafo, além de Fábio Tremonte, Diogo de Moraes e posteriormente Marcelo Comparini, que já havia estado comigo no Ateliê 397. Os convidados por nós, para participar com anotações e obras pouco significativas de suas produções (gabinete se espelha nos gabinetes de curiosidades dos filmes blockbusters, por mais que Diogo de Moraes insista na tese de uma retomada dos gabinetes históricos do século XIX), chegaram a mais de 20 em nossa última exposição.

Feitas as contas, foram 10 anos de trabalhos coletivos com poucas interrupções e, como a amizade dura enquanto dura a exposição, temo que gabinete não vá ter vida longa, pelo menos no que depende deste miserável narrador. O que me obrigará a ter de haver contas comigo mesmo e minha obra. Ou talvez eu abra um bar, vá saber.

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Maio de 2009

Clarissa: No Brasil, assim como em outros países, as décadas recentes têm se caracterizado por um grande e coletivo esforço de constituição e reconhecimento de um campo para a arte. Tal processo se evidencia no adensamento institucional e de mercado, na profissionalização do artista, no surgimento da figura do curador, dentre outros aspectos. Muitos de nós, nesse contexto de legitimação de um campo para a arte, tendemos a tratá-la como disciplina. Para além do caráter de produção de conhecimento que atribuímos à mesma, a constituição desse campo poderia fazer assemelhar a produção artística a uma “disciplina genérica”, sobretudo diante da cristalização de suas metodologias – processo corroborado, acredito, pelas práticas de cunho licitatório (editais etc) das quais participam os artistas nas dinâmicas de exibição e validação e suas obras no Brasil. No seio desse momento, surgem, por exemplo, “cursinhos” para artistas, locais em que se “treina o artista” para encarar o sistema da arte, orientando sua produção dentro dos atuais parâmetros estéticos da dita “arte contemporânea”, orientação (ou fiscalização) essa que é feita, majoritariamente, por curadores. Nesse sentido, e levando em consideração a idéia de arte como disciplina, fico a indagar se o campo da arte brasileiro não parece estar constituindo a curadoria como uma espécie de “espistemologia da arte”, no que se refere a um caráter de metadisciplina normativa da produção artística. Dentro dessa lógica, o curador seria, por exemplo, aquele que apontaria as incongruências metodológicas do processo de criação dos artistas (como ocorre nesses “cursinhos”), cumprindo função fiscalizadora e se posicionando hierarquicamente no campo da arte. O que você acha dessa reflexão? Como se posiciona diante da idéia de arte como disciplina? O que lhe parecem uma metodologia e uma espitemologia da arte?

Ricardo: O cenário que você apresenta parece um tanto caricato, retratando uma espécie de ‘arte contemporânea aplicada’, considerada como campo fixo e estável de trabalho, cuja inserção e legitimação do artista dependeria do cumprimento de uma conduta normatizada e da realização com destreza e eficiência de certas tarefas programadas. Fico curioso de saber quem está apostando nesse cenário; mas somente o fato de você mencioná-lo, descrevê-lo com tanta veemência, parece ser sintoma concreto de algum estado de coisas curioso. Isto é, será que o campo da arte está se colocando para certo público de interessados como um espaço de trabalho com certos procedimentos e protocolos assim tão padronizados e previsíveis? Será que a recente e ainda incipiente aceleração do processo de institucionalização da arte brasileira está sendo praticado e vivenciado de forma tão mecânica e automatizada, percebido somente como um conjunto de regras a serem seguidas por artistas, curadores e críticos? Sua análise indica a necessidade de se deter com atenção para com o estado de coisas atual, para com o cenário em que estamos atuando, de modo a exercer também uma escuta para ali intervir, divergir. De modo algum me vejo habitando esse mesmo cenário ou sendo pressionado por tantos procedimentos pré-programados – acredito que através de etapas sucessivas de trabalho cada artista (ou crítico, curador, etc) vá construindo um espaço de ação e movimentação que impõe práticas e procedimentos diversos daqueles hegemônicos, estabelecendo outras redes coletivas; mas compreendo que aqueles que iniciaram sua atuação nos últimos dez ou quinze anos se sintam pressionados por um circuito de arte constituído e mantido principalmente a partir de investimento institucional privado de grandes empresas, via leis de renúncia fiscal (o setor público ainda não conseguiu elaborar políticas instigantes e contínuas na área das artes visuais). Nesse cenário, há interesse de apoio ao artista jovem (editais, programas de mapeamento, bolsas etc); mas nenhum interesse em subvencionar pesquisas reais, concretas e efetivas de artistas já em ‘meio de carreira’ (na falta de um termo melhor…); ou seja, depois de receber apoio no início de seu trabalho, o ‘jovem’ artista é abandonado pelo circuito, que se volta para os próximos ‘jovens’ artistas (a fila anda…). Além disso, não há investimento em pesquisas consistentes na área de história da arte, de modo que se continua sem saber, por exemplo, o que foi a produção brasileira dos anos 80 – produção que responde à abertura política e ao início da implantação do regime econômico neoliberal – cujo conhecimento é decisivo para se compreender como se reorganiza o circuito de arte brasileiro daí para frente (mesmo os mais renomados historiadores da arte brasileiros continuam repetindo mecanicamente o slogan ‘volta à pintura’, como se tivessem receio de revolver as questões-chave do período). Sem uma história da arte mais coerente e consistente, por exemplo, não há como se formar coleções representativas, e o colecionismo privado – predominante, uma vez que não há coleções públicas significativas – se faz basicamente a partir de redes sociais (com exceções, claro), sem outros referenciais de produção de valor. Não concordo com sua descrição da curadoria como disciplina normativa e de artistas como aprendizes de regras – há uma forte simplificação nesta sua descrição; estes padrões de ação seriam como que reflexos do que se teria como imagem-clichê ou senso-comum de uma cena que se burocratiza e se institucionaliza de modo veloz. Quanto ao aspecto ‘disciplinar’ da arte, este parece ser um traço da modernidade – ou seja, constituir um campo com limites definidos, que se volta pra si mesmo, e que produz valor nesta investigação. Penso ser mais interessante escapar para o “extra-disciplinar”, proposto da seguinte maneira por Brian Holmes: “um novo tropismo e um novo tipo de reflexividade, envolvendo artistas, teóricos e ativistas em uma passagem para além dos limites tradicionalmente consignados a suas práticas. (…) o desejo ou necessidade de se voltar em direção a algo mais, em direção a um campo ou disciplina exterior; (…) a noção de reflexividade agora indica um retorno crítico ao ponto de partida, uma tentativa de transformar a disciplina inicial, acabar com seu isolamento, abrir novas possibilidades de expressão, análise, cooperação e engajamento. Este movimento de ida-e-volta, ou melhor, esta espiral transformadora, é o princípio operacional do que chamo investigações extradisciplinares.” [Brian Holmes, “Extradisciplinary investigations: towards a new critique of institutions”, disponível em http://transform.eipcp.net/transversal/0106/holmes/en/print.] Assim, não se correria o risco do isolamento auto-referente, ao mesmo tempo que se resguarda certa autonomia de ações.

Clarissa: Sem dúvida alguma, meu pequeno cenário constituído é caricato por querer enfatizar certos traços que acredito que fiquem obscurecidos por vários dos discursos “politicamente corretos” acerca do campo da arte no Brasil que, como tal – e muito justamente, vale acrescentar –, buscam enxergá-lo de forma menos estruturalista, enxergando-o não como uma teia de posições de poder a serem ocupadas, mas como um território movediço que se adapta e se transforma à medida da ação de seus “atores” (“auto-eco-organização”). Teoricamente, concordo com tal visão, e entendo quando você não se reconhece no cenário que pintei inicialmente – eu também me vejo buscando fugir dele o tempo todo. Por outro lado, não deixo de reconhecer que tais discursos não dão conta de uma série de ações que tenho testemunhado nos últimos tempos, e que me parecem ter a ver com a configuração de um campo da arte que tende a hierarquizar a função do curador, transformando-o numa autoridade cujo argumento de “especialista em arte” justificaria uma atuação que carrega certo caráter “epistemológico”: um curador manda e-mails aos artistas de sua cidade dizendo estar disponível para fazer “leituras de portfólio” voluntárias; numa dessas leituras, além de dizer que uma determinada solução plástica está “fora de moda”, diz à artista “lida” que “jamais apostaria nela”. Este é apenas um exemplo dentre os muitos que tenho colecionado e que, como comentei, não me permitem ver o campo da arte no Brasil de forma tão flexível assim. Parece-me haver, sim, uma clara percepção de um conjunto de regras do qual gozam vários de nós, e diante do qual é preciso agir criticamente. No último seminário do Rumos Artes Visuais 2008/2009, um artista inquieto perguntou aos outros: “quem daqui não tem formação acadêmica?”. Todos tinham. Diante das respostas (e das obras) desses artistas, vejo agir ainda, e com muita força, o projeto moderno da arte como disciplina. É como se vivêssemos contraditoriamente sempre em duas instâncias: a fixidez do sistema da arte dentro do qual agimos e, de outro lado, a maleabilidade com a qual o imaginamos em nossos referenciais particulares (e, tantas vezes, “majoritariamente teóricos”). É assim que me sinto…

Ricardo: Clarissa, compartilho com você uma visão do campo da arte (seja no Brasil, seja no mundo) como “tela de posições de poder” – meu trabalho não tem se dado em outra direção, há décadas: procurar compreender esse campo (cartografá-lo) para realizar ali deslocamentos e organizar intervenções, sempre reconhecendo que não há neutralidade em gesto algum. Há disputas, confrontos, conflitos, negociações, etc. Em tal cenário, não há ‘flexibilidade’ como valor de intervenção, mas – como você aponta – uma certa elasticidade que parece fazer as linhas voltarem sempre para o mesmo lugar (portanto, flexibilidade ilusória): certas propostas menos ‘formais’ não são assimiladas institucionalmente de modo agudo e os mecanismos de mercado e colecionismo são demasiadamente limitados, absorvendo pequena parte da produção. Seu relato me parece muito importante, por indicar como as novas gerações de artistas e críticos (no seu caso) estão enfrentando um circuito estratificado e superinstitucionalizado – percebo que quando iniciei meu trabalho (anos 80) o circuito portava um aspecto menos ‘formal’, permeado de brechas flácidas através das quais o trabalho que fazia naquele momento (sobretudo junto com Alexandre Dacosta, com quem formava a Dupla Especializada, e Dacosta e Barrão, com quem formava o Seis Mãos) procurava se insinuar. O que me interessa é demarcar essas diferenças e perceber como a produção de cada momento enfrenta condições diversas de inserção e confronto inicial com o circuito – pois esse enfrentamento deixa marcas nas obras, ou melhor, as obras já são produzidas para atuar em certas condições específicas de enfrentamento. As poéticas em ação vão se delineando frente a essas demarcações específicas – marcando, sendo marcadas. O enfrentamento de Lygia Clark e Hélio Oiticica com o circuito é bastante diferente daquele percorrido por Carlos Zilio e Waltércio Caldas, por exemplo. Do mesmo modo, o enfrentamento que você relata tem suas especificidades e deixa marcas próprias na produção artística e crítica – diferentes do que enfrentei nos anos 80/90 e que influiu em certos delineamentos de meu percurso. Você não acha interessante estabelecer e perceber essas diferenças? Ao mesmo tempo, é claro que enfrentamos um combate semelhante, frente ao mesmo cenário presente; mas talvez a partir de ‘ângulos de entrada’ particulares. Isso conduz a uma situação interessante: qual nosso ‘combate’ comum? Quais nossas diferenças?

Clarissa: Acho que você tocou num termo fundamental, ponto nevrálgico das mudanças que enxergo entre gerações/circunstâncias de arte no Brasil: combate. Não são muitos os que falam em combate – sintomaticamente, somos levados a substituir esse terminho por outro, tanto mais “pós-moderno e politicamente correto”: embate. A suavização da sugestão de confronto, de tática de guerrilha etc, destronada por um embate que talvez se queira mais dialógico e processual – provavelmente, mais flexível – parece personificar bem o que sinto quando penso em minha, digamos, “situação geracional”. Parece-me claro que, nas últimas décadas, grande parte do mundo ocidental percorreu o trajeto de um modelo de pensamento e ação mais filiado à idéia de contracultura para, mais recentemente, atuar de modo diverso – dialógico, relacional, micropolítico. Sendo bem generalizante, arrisco um exemplo: mesmo havendo Cildo Meireles queimado galinhas vivas em 1970 (Totem), num claro enfrentamento político-moral-etc, o artista logo opta por uma tática mais “subversiva” com suas Inserções em Circuitos Ideológicos e, agora, em sua mostra na Tate (entre 2008 e 2009), age de modo muito diverso: nem enfrenta, nem subverte – convida as pessoas a tomarem parte de sua obra (quarta versão de Malhas da Liberdade, inicialmente de 1977), que se torna, para repetir os termos que citei anteriormente, “dialógica, relacional, micropolítica”. Ainda que, obviamente, cada um dos trabalhos mencionados guarde especificidades de interesse e abordagem e ocorra em simultaneidade com outros (diferentes), acho que colocá-los lado a lado faz vislumbrar a drástica transformação percorrida por Cildo, pela arte, pela sociedade, em suas formas de existir e agir. E me sinto cercada por essa pretensa “outra sociedade” que quer agir junto – vide as últimas bienais de São Paulo. Nada contra esse sentimento – acredito de verdade na esfera pública e na potência do diálogo. Mas quanto ao sistema da arte, tantas vezes acho que testemunho esse desejo de viver junto confundir-se com uma espécie de cumplicidade acrítica entre pessoas, obras ou instituições. Não me refiro apenas à diminuição da “coragem crítica” ou a possíveis “acobertamentos”, mas a algo que acredito ser mais sistêmico, e que – como alguém que se inicia no campo da arte – sinto na pele, dia a dia. Trata-se de uma paulatina e discreta (mormente porque justificada) amortização de processos e estratégias de relativa autonomização/individuação no seio do sistema social da arte. Grosseiramente, é como se, diante da consciência de nos sabermos interdependentes e, por isso, necessariamente relacionados e implicados, colateralmente fôssemos abrindo mão de tentativas mais radicais de diferenciação (demarcação de dissonâncias), que acabam se conformando a sutis esperanças de “subverter o sistema a partir de seu interior”. A isso somado o processo de institucionalização da arte brasileira, me parece que estamos crescendo muito predispostos a agir preferencialmente (quando não somente) na instituição (leia-se: formalidade, oficialidade, etc). É como se sofrêssemos de um “efeito colateral” do processo de institucionalização e profissionalização da arte brasileira. Os tais combates ficam, então, muitas vezes reduzidos a estratégias unicamente retóricas, a insignificantes “críticas institucionais” que na maior parte das vezes condicionam mais a obra do que a instituição, dentre outras frustrações…

Cristiana Tejo, curadora, disse certa vez que somos uma geração “mimada” (Revista Continente Multicultural, n. 88, abril de 2008). Crescemos sendo bombardeados com falas, textos e obras que nos querem fazer ver o quanto gozamos de uma posição confortável (historicamente falando) para produzir e pensar arte, posição conquistada por combates de gerações anteriores, e que hoje nos traz a possibilidade de transitar por entre o que já foram os limites geográficos, de “agilmente amplificar” o alcance de nosso pensamento de um modo tal que outrora pareceria impossível e, em última instância, até mesmo de “viver de arte”. Somando-se a isso um cenário sócio-político-cultural mais amplo, de um mundo descentralizado mormente em sua economia, conflitos e arranjos sociais, me parece intensificar-se sobre nós, assim como já era sentido em gerações anteriores, uma espécie de semi-desrazão existencial: qual nossa razão de ser?, qual nosso “compromisso geracional”? Esse cenário, enfatizado por grande parte das falas de artistas e críticos que nos dizem que somos “privilegiados”, que “já nascemos divulgados” e outras coisas do tipo, faz paulatinamente enfatizar-se uma sensação gosmenta de que estamos pregados a um campo da arte pseudo-movediço que se move menos para promover alterações de ordem fundamental, mas mais, como você comentou, “para fazer as linhas voltarem sempre ao mesmo lugar”, conclusão a que chegam poucos desses “representantes de outras gerações” que aqui grosseiramente generalizo. De modo geral, tentam embutir um discurso de um sistema social da arte flexível, onde tudo é possível, e para o bem do qual devemos atuar sinergicamente, com base no argumento de que, diante de “uma instituição” ainda frágil no Brasil, o mais importante seria fortalecê-la. Implicitamente, a conclusão de que “não há vida possível fora das instituições” parece converter-se numa espécie de necessidade de “cumplicidade acrítica” para com elas, na direção de uma espécie de ilusório e frágil “bem geral de todos”. A pressão, então, é do gênero “diga ao povo que fico”: que fico nos editais, nos cursinhos de artistas, nas pós-graduações, no âmbito do discurso, na cumplicidade acrítica.

E, portanto, o “combate” no qual me vejo hoje é menos um combate contra um possível “outro” e mais, muito mais, um enfrentamento de mim mesma: como manter-me crítica diante de tudo isso? Como não confundir interdependência com cumplicidade? Como redefinir a idéia de autonomia? Como existir nesse espaço localizado entre um modelo de contracultura e outro, mais micropolítico, de forma tal que mantenha acesa e real a possibilidade da constituição de ações entrópicas?

Ricardo: São pulsantes suas inquietações – sobretudo o entusiasmo em cartografar-se, tarefa constante para aqueles que desejam manter em aberto os canais de fluência do poema e intervenção no ambiente. Cada um destes dois momentos não é nada simples: intervenção crítica; intervenção poética – como é difícil a convergência destes dois momentos-modalidades em instantes-chave de ação. Mas esta – a articulação conjunta dos campos poético + crítico – seria a possiblidade mais interessante, decisiva, produtiva. Uma ressalva: o termo ‘crítico’ deve ser redimensionado, para que não corresponda a um distanciamento neutro e incorpore contaminação&contato. Cada um de nós articula diversas tentativas e procura a continuidade de esforços conjuntos, em rede. Hoje se enfrenta uma complicação particular, quando o jogo da arte se compõe com o mundo financeiro informatizado, nas tramas do capitalismo atual: tal “nó” é nossa complicação, pois toda a energia de ‘oposição’ ou ‘resistência’ parece apenas alimentar e reforçar a situação de captura, sem área de escape ou sombra. Há uma dificuldade concreta em se reinventar espaços e áreas de contato; um cuidado redobrado em relação aos protocolos de tais gestos; como produzir valor ali? As estratégias devem ser pontuais, em avanço cauteloso para que sejam recuperadas algumas áreas de movimentação mais livre, constituição de fala. Mas não está fácil: a tarefa é ‘micro’, de articulação conceitual/sensorial, de um cuidadoso sentir/fazer/pensar de um só golpe (como recuperar um tempo mais distendido?). Recentemente estive em um seminário, como parte do Projeto Pedagógico da 7ª Bienal do Mercosul, do qual participo como artista. Cada um dos 12 artistas convidados para o projeto Pedagógico terá um período de residência em alguma região do Rio Grande do Sul. A conversa entre os artistas participantes e intelectuais convidados foi extremamente interessante, pois ali se configurou uma possibilidade de atuação fora dos limites expositivos da própria Bienal, em que o Projeto Pedagógico se afastou de qualquer didatismo simplificador e alinhou-se com a intervenção poética: a proposta curatorial se posiciona no sentido de extrair metodologias das práticas artísticas, que contenham “capital pedagógico” (expressão da curadora e artista Marina de Caro). Ficou claro que esse espaço se colocava, frente ao evento, como área de atuação mais aberta, sem pressões tão diretas do circuito institucional da arte, possibilitando tempos mais generosos de contato com o outro e expectativas de efeitos diversos que não a inclusão imediata em coleções ou deslocamentos pelo mercado. A impressão que se teve é de que a Bienal toda deveria submeter-se ao mesmo processo, trabalhar em tais espaços de contato mais amplo. Elaborou-se ali algum gesto pontual de resistência, incorporando-se outros caminhos ao processo da arte; sem, entretanto, qualquer ilusão de que as estratégias institucionais principais, hegemônicas, sejam significativamente desviadas. As curvas são locais, desvios quietos para obtenção de um processo mais rico – toda a dificuldade se daria em relação ao armazenamento de processos, sempre mais ricos que a coleção objetual. Esta constrói valor quando mobiliza e atualiza processos, produz contatos – e não apenas conserva a coleção. Convém lembrar que há um momento em que o “compromisso geracional” se esgota e outras tarefas se impõem; a economia do consumo da poética proposta pelo artista gera complicações suficientes para mobilizar atenção significativa. Entretanto, uma ação em rede coletiva é insubstituível: trabalhar com seus pares em regime de cumplicidade produtiva é gesto portador de força sensacional e insubstituível.

 

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A vida, às vezes, fica melhor assim

Como integrante do GIA – Grupo de Interferência Ambiental – devo confessar que não é fácil escrever sobre o grupo, suas ações e objetivos. Estou tão submersa no “mundo do GIA” que talvez fosse mais fácil escrever a seu respeito com um certo distanciamento, como fazem nossos colegas pesquisadores, artistas visuais, críticos, etc. Talvez, dessa forma, eu perceberia certas sutilezas e peculiaridades que passam despercebidas por nós, integrantes do grupo. Minha visão será sempre demasiado parcial e apaixonada… Por outro lado, após seis anos atuando junto ao GIA, acho que já possuo alguma bagagem que me permite fazer relatos sobre nosso modus operandi, nossas alegrias e frustrações provenientes de nossa busca em questionar a arte e suas dimensões públicas.

Em nosso dia-a-dia, nossas ações são discutidas e lapidadas por longas conversas. Não foi diferente com as ideias presentes neste texto. A ação coletiva se faz presente em todas as atividades do grupo e, de fato, essa é uma tarefa árdua na maioria das vezes, já que os seis integrantes [1] Atualmente, o GIA é composto por: Everton Marco Santos, Ludmila Britto, Mark Dayves, Pedro Marighella, Cristiano Píton e Tiago Ribeiro. do GIA possuem repertórios e opiniões divergentes. Nosso maior desafio, atualmente, é encontrar o denominador comum de nossas ideias e vontades. Há um ponto, porém, com o qual todo o GIA concorda: é preciso repensar o espaço público e a forma como a arte dialoga com seus habitantes. Quando digo “espaço público”, não me refiro apenas às praças, ruas, becos etc, mas também às relações subjetivas que nele se estabelecem, algo que remete à psicogeografia situacionista [2] Abdelhafid Khatib define a“psicogeografia como um estudo das leis e efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos”. (KHATIB, Abdelhafid. Esboço de Descrição Psicogeográfica do Les Halles de Paris. In JACQUES, Paola Berestein. Org. Apologia da Deriva: Escritos Situacionistas sobre a Cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. p.80), com suas devidas adaptações.

Nesse texto, pretendo esboçar alguns relatos sobre o Flutuador, uma das últimas ações realizadas pelo GIA. Esse trabalho foi escolhido por colocar em evidência algumas reflexões a respeito do uso do bem público e suas implicações, além das relações sociais estabelecidas a partir de movimentações artísticas na cidade. Além disso, a intervenção ilustra as diferentes formas possíveis de contato entre o GIA, as instituições artísticas “oficiais” e o público.

Ao lado do Museu de Arte Moderna da Bahia existe uma comunidade carente, entre tantos outros aspectos – saneamento básico, por exemplo –, de lazer e atenção: a comunidade do Unhão. Por ironia do destino, ela se localiza não apenas do lado de uma das instituições artísticas mais prestigiadas de Salvador – o MAM –, como também em frente a um empreendimento imobiliário milionário da cidade: a Morada dos Cardeais, prédio luxuoso e local de morada de conhecidos artistas da cena nacional. Ironicamente, tanto a comunidade do Unhão, quanto os moradores da Morada dos Cardeais, podem usufruir de uma das vistas mais belas da cidade, a Baía de Todos os Santos.

Em ocasião do QG do GIA realizado no Museu de Arte Moderna da Bahia em maio de 2008 (www.qgdogia.blogspot.com), o grupo desenvolveu com os moradores da comunidade do Unhão a montagem do Flutuador, uma plataforma flutuante (cuja estrutura é feita de garrafas pet reutilizadas) que fica ancorada em determinada praia, à disposição do público. É um espaço de convivência em pleno mar. Em sua primeira versão, portanto, o Flutuador ficou ancorado na Baía de Todos os Santos, sendo prontamente aproveitado pelos moradores da redondeza. Os momentos de lazer e festa que essa “intervenção” proporcionou aos seus fruidores ultrapassaram as implicações conceituais que o GIA tinha formulado: esses momentos eram, sem dúvida, mais importantes do que a função inicial que o grupo tinha planejado para o Flutuador.

 

Comunidade do Unhão e GIA usufruindo do Flutuador, ancorado na Baía de Todos os Santos, em frente ao Museu de Arte Moderna da Bahia e à comunidade adjacente.

(Foto: Mark Dayves)

Cidadão pratica Ioga no Flutuador (Foto: Solange Farkas)

Uma “zona liberta” se apresenta em pleno mar como uma Zona Autônoma Temporária, conceito desenvolvido por Hakim Bay. O autor aponta:

Devemos perceber que todos esses eventos são, de certa forma, “zonas libertas”, ou pelo menos TAZs em potencial. Seja ela apenas para poucos amigos, como é o caso de um jantar, ou para milhares de pessoas, como um carnaval de rua, a festa é sempre “aberta” porque não é “ordenada”. Ela pode até ser planejada, mas se ela não acontece é um fracasso. A espontaneidade é crucial.[3] [3] BAY, Hakim. TAZ: Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2001. p.26.

Essa anarquia foi levada às últimas conseqüências em uma segunda experiência com o Flutuador em janeiro de 2009. A plataforma flutuante foi deslocada para o Porto da Barra, um dos pontos turísticos de Salvador: bela paisagem, bela praia, muitos turistas, muitas drogas e prostituição. No mês de janeiro, alta estação, o local fica repleto de pessoas a qualquer hora do dia. O Flutuador foi muito bem recebido pelos frequentadores do local, principalmente pelas crianças. É um costume de crianças e adolescentes que frequentam a praia ficar pulando de um píer que se prolonga do Forte de Santa Maria para o mar: pulam o dia inteiro… O Flutuador foi recebido como uma fonte de lazer gratuita e prazerosa, sendo cada centímetro da plataforma disputado ininterruptamente. Infelizmente, em poucos dias, sua âncora foi roubada (ou desatada) e o Flutuador completamente destruído. Um mergulhador, “rato de praia” do Porto, em uma conversa com alguns integrantes do GIA, falou que um dos problemas do fim da plataforma foi o mau uso que ele atribuiu às crianças do subúrbio, que não sabem cuidar das coisas e vêm aqui pro nosso bairro bagunçar. Isso fez o grupo refletir… Afinal, o povo não tem muita vocação para o bem público, não é mesmo? O que aconteceria se essa ação tivesse ocorrido em alguma praia do subúrbio? Uma demonstração de selvageria e barbarismos? Não seria o momento de responder a essa questão, deslocando as ações do GIA dos bairros centrais para as zonas periféricas de Salvador? Estaria o problema, realmente, nas “crianças do subúrbio”?

Certo dia, Pedro Marighella, integrante do GIA, foi visitar a praia de São Tomé de Paripe, ao lado da Base Naval de Aratu, subúrbio soteropolitano.

Por conta de depoimentos como aquele do rapaz do porto, Pedro esperava encontrar em Paripe o tal “bando de selvagens”, mas o que encontrou foi um lugar lindo e pessoas tão simpáticas quanto poderiam ser em qualquer outro bairro… E uma enseada perfeita pra um flutuador! Tudo isso incutiu no GIA uma enorme vontade de construir novos Flutuadores e vivenciar as diferentes reações do público, oriundas das suas necessidades e anseios. Essas reações, por conseguinte, se configuram em diferentes modos de lidar com bens coletivos e, numa esfera mais ampla, com a cidade. Não poderia ser a arte uma mediadora dessas possibilidades? O GIA acredita que sim.

A escolha dos lugares para ancorar o Flutuador, portanto, levanta questões bem definidas a respeito das necessidades e do uso do bem público:

O Porto da Barra representa o centro e a classe média, sendo foco de iniciativas ligadas ao lazer e ao turismo – verão, música, boates, calçadas bem cuidadas, carnaval oficial. (Apesar de ser foco das ações governamentais e de ser supostamente “bem frequentado”, foi justamente nessa região que o Flutuador foi destruído);

A região do Unhão é uma comunidade carente, espremida e dependurada num paredão prestes a cair no mar. Existe, nesta localidade, uma carência de espaços de lazer, devido a um intenso processo de gentrificação e resistência da especulação imobiliária (apesar desses problemas, a comunidade cuidou e usufruiu do Flutuador de forma democrática e espontânea, sem destruir ou danificar sua estrutura);

O subúrbio, por sua vez, representa a classe baixa, a “última fronteira”: local espaçado, de pouca atração imobiliária e distanciada das iniciativas mais audaciosas do Estado.

(Pedro entra na fala de Ludmila)

Certamente, a manutenção ou destruição deste, ou de outro elemento, está além da questão das condições financeiras e da atenção das entidades oficiais, mas passa pela capacidade de reconhecimento do que deveríamos conceituar como “patrimônio”. Pelo que conheço, a relação de patrimônio se constrói em oposição a históricos de exploração e imposições.

As condições de construção e aplicação do Flutuador na comunidade do Unhão, por parte do GIA, foram naturais e atendiam a uma expectativa afetiva das pessoas, agregando e repassando informação… Gentil, carinhosa, atenciosa (já que as próprias pessoas da comunidade ajudaram na construção do Flutuador).

No Porto da Barra, o flutuador era um elemento tão estrangeiro e efêmero quanto os gringos dilapidados e dilapidadores, atores do turismo irresponsável, da prostituição escrota e alvos da criatividade e lucro da malandragem. Acho que o GIA foi pego no vai e vem intenso desses ambientes, onde o bem-estar foi relegado ao “Estado” e não às “pessoas”, estas sim detentoras da sensibilidade que constrói coisas como o carnaval ou a confiança.

Às vezes, tenho uma fantasia de que toda irresponsabilidade do povo, na verdade, é uma espécie de “pirraça” a todo comportamento de dominação e a ações mantenedoras do poder constituído. Parece uma espécie de continuação das relações coloniais: “Pô, devem tá de sacanagem com a gente!” –, pensam assim vândalos que conheci.

Concluindo, meu querido amigo artista/interventor, esse depoimento é pra te alertar: não caia nessas armadilhas. Dispense a pressa, dê um tempo pra timidez… Só tome cuidado com a malandragem e os chatos. Quer dar uma ideia segura? Deixe de onda, não faça o trabalho por fazer. Crie relações com as pessoas, mexa com elementos significativos e afeição. Deixe essa história de arte pra lá por enquanto. Veja se a vida, às vezes, não fica melhor assim.

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Arte como simpósio

Lazer

A vida precede a arte. E há quem viva muito bem sem ela. Embora os letrados discordem, nada prova que uma boa vida dependa da apreciação artística. Mondrian sugeria justamente o contrário. Para ele, a arte seria o próprio sintoma de uma existência desarmoniosa, ou, na melhor das hipóteses, de um estágio civilizacional transitório. A arte, neste caso, seria tanto um consolo como um estímulo para a sua própria superação.

Toda realização artística deveria estar, portanto, submetida a uma concepção existencial, e não o inverso. Antes de uma estética, valeria pensar – sempre e mais do que nunca – numa ética, que mesmo concebida em termos estéticos não implica na presença da arte.

Apesar de não ser mais tão simples prescrever modos de comportamento à humanidade, o único modelo existencial que talvez ainda apresente um potencial universalista tem, entretanto, na arte a sua mais acabada materialização: a vida dos “ricos e ociosos”.

A história mostra que só eles, sobretudo eles – os ricos e ociosos –, desfrutaram do tempo livre. Só mesmo essa pequena elite pôde viver um pouco mais próxima do que se desejava, porque livre da luta pela subsistência. Fundada no cultivo de si mesmo e no lazer, a ética desses senhores acabava colocando a arte no centro das suas atenções (o que não é, evidentemente, o caso das esdrúxulas elites contemporâneas, que nos dão o péssimo exemplo de viverem apenas para o trabalho desenfreado – mostrando-se, assim, incapacitadas para qualquer elaboração estética ou moral).

As manifestações de um tal ideal elitista são bem conhecidas – basta imaginar as principais ocupações aristocráticas: jogos, banquetes, guerras, orgias, passeios e, como se sabe, arte. A arte, em particular, satisfazia não só vocações estéticas e gnosiológicas, como também a própria necessidade de assegurar esse “paraíso na terra”. Não se tratava apenas de uma experiência subjetiva individual, mas o modo por excelência de celebrar e eternizar, coletivamente, valores indiscutivelmente superiores. Se a vida livre era o conteúdo da arte, a arte era o signo dessa vida livre.

 

Signos

Escalar montanhas, caçar javalis e admirar afrescos eram indícios de uma existência independente do trabalho forçado. Qualquer ação ou artefato construído e/ou utilizado por quem comandava o seu próprio destino inevitavelmente correspondia, em termos semiológicos, a “índices” desse estilo de vida. Ora, assim como a fumaça é um índice do fogo, a arte é um índice de uma vida liberta. Onde há artistas, há promessas de liberdade e abundância – eis o eterno e imutável “significado” da arte.

A apreensão deste significado primordial, bem como as diversas interpretações que qualquer tipo de signo pode engendrar, estão, todavia, submetidas ao contexto no qual a arte se insere. Deleuze chega a afirmar que a significação dos próprios enunciados ocorre por redundância, ou seja, “em paralelo” a uma situação específica que já estabelece os seus significados através dos não ditos: o tipo de relação entre os interlocutores, os comportamentos em cena, os discursos indiretos, as lembranças.

Uma tela de Mondrian, enquanto signo, pode até expressar a “harmonia universal” se estiver exposta numa galeria; mas dificilmente expressará o mesmo conteúdo se estiver pendurada no lobby de um hotel. Junto de vasos, anúncios e cardápios, qualquer pintura tende a se tornar mera decoração, ou distração visual, simplesmente porque o lobby de hotel, assim como a sala de espera do dentista e o escritório do advogado, “significa”, sempre, negócios (ou muitas vezes aflição).

Se o “uso” dos signos num determinado contexto é o que acaba por definir o campo dos conteúdos, o artista, caso se preocupe com a recepção do seu trabalho, deveria deixar de conceber objetos ou ações isolados para dedicar-se à concepção de situações inteiras. Não é por acaso que as condições de inserção da obra de arte venham nas últimas décadas não só recebendo grande atenção por parte de artistas, público e estudiosos, mas constituindo o próprio material de criação estética.

 

Estratégias

Embora a importância do contexto tenha sido exaustivamente discutida desde Duchamp por teóricos como Brian O´Doherty, George Dickie e Arthur Danto, o artista ainda hoje costuma lidar com esta questão sobretudo de dois modos: o primeiro é permanecer utilizando o espaço tradicional da galeria; o segundo é produzir obras específicas para lugares específicos. De acordo com o primeiro modo, o espaço expositivo deveria ser capaz de garantir a plena autonomia e transparência do significado da obra, na medida em que afastaria interferências semânticas externas. Já o segundo procedimento, ao considerar o contexto como um dado intrínseco da obra, almeja suprimir a própria noção de exterioridade.

A primeira estratégia costuma, contudo, desconsiderar que qualquer espaço de exposição encontra-se ele mesmo saturado de conteúdos outros que inevitavelmente contaminam o trabalho artístico. A galeria “atua”, antes de tudo, sobre a própria ontologia do que nela é exposto: no interior do “cubo branco” a arte é, ou deveria ser, algo separado da realidade cotidiana, cujo único propósito é ser contemplado “desinteressadamente”. Persuadir os desavisados sobre a sua ingênua neutralidade é apenas a mais sorrateira das pretensões desse tipo de espaço.

A galeria pode ser um lugar de negócios, com toda aquela extravagante eloquência de lobby de hotel, ou uma instituição de interesse público representando discreta e elegantemente interesses privados – ela nunca é neutra. Nos museus e centros culturais, os conteúdos institucionais, econômicos e políticos veiculados “paralelamente” às obras expostas são verdadeiramente inumeráveis. Os próprios projetos curatoriais, que tendem a converter as obras selecionadas em readymades a serviço do discurso do curador, são um notório exemplo do papel do contexto na fabricação dos significados da arte.

Usualmente chamada de site specific, a segunda estratégia – seja quando aplicada no ambiente urbano, natural, virtual, ou mesmo na galeria – visa superar as conhecidas limitações e dicotomias que envolvem o artifício do “cubo branco”. Ao considerar as preexistências ambientais, o artista joga com as circunstâncias, produzindo, em vez de artefatos, uma relação entre artefatos e o entorno. Mas como a própria concretização dos significados artísticos está, neste caso, abertamente atrelada aos caprichos de um lugar em transformação, o trabalho “específico” passa curiosamente a ser configurado pela edição e publicação de um evento desde já completamente desterritorializado.

Concluir que a arte é de fato dependente da sua interação com um complexo contexto físico-cultural não é pouco, especialmente para artistas que costumam confiar demasiadamente em hipotéticas propriedades comunicacionais e estéticas da própria obra. Mas aceitar a precariedade semântica da arte não é o mesmo que se conformar com a pura manipulação e casualidade dos seus significados. A velha utopia da criação coletiva de ambiências completas, em detrimento de obras autônomas individuais, talvez continue sendo o caminho mais promissor, não exatamente para o controle de conteúdos a serem assimilados, mas à realização de uma arte como “índice” de uma vida aristocraticamente interessante.

 

Symposion

Bons momentos vividos podem dispensar a arte, sobretudo as festas. Atitudes contemplativas em meio à dança e bebidas são até inadequadas. Mas a vida boa também exige silêncio, introspecção e inatividade (isso é o que todas as vanguardas sempre ignoraram). Em todo caso, se a vida for variada e completa a ponto de desejarmos repeti-la infinitamente, seremos sempre tentados, mais cedo ou mais tarde, a convencer os nossos semelhantes a compartilhar conosco esse privilégio.

Entre a grande variedade de eventos sociais na antiga Grécia, um tinha especial importância para os mestres da boa vida: os simpósios. Oriunda etimologicamente de sympinein, que significava “beber juntos” (syn + pinein), a palavra grega symposion designava, entretanto, bem mais do que uma simples reunião em torno de uma mesa de bar. Tratava-se de uma festa depois do banquete, na qual os participantes não só bebiam, mas dançavam, tocavam, jogavam e participavam de rituais religiosos e longas conversas. Ao invés de uma experiência “visual”, a “arte” lá era existencial, uma vez que a situação integral, vivenciada diretamente, constituía a razão de ser de toda a participação coletiva.

A ideia do simpósio grego atravessou os séculos adaptando-se às vicissitudes geográficas e culturais. Hoje, como sabemos, a versão moderna é um evento de cunho científico voltado à discussão de temas específicos por especialistas, que eventualmente pode incluir o desenvolvimento e a apresentação de trabalhos práticos. Descartou-se a bebida, a dança, os jogos e todo o legado de Dioniso (pelo menos durante as conferências) e aprimorou-se a organização das longas “conversas”, fortalecendo, assim, os princípios apolíneos.

Certamente o simpósio atual perdeu em embriaguez, estética e abrangência, mas ganhou em aprofundamento e sistematização de experiências altamente especializadas. Se o antigo simpósio grego era a exaltação momentânea da vida total, o simpósio moderno é o coroamento de uma produção de conhecimentos agora científicos. Se na Grécia a ênfase recaía sobre a multiplicidade de ações – reduzindo, assim, as próprias possibilidades de contemplação e de transcendência do tempo vivido –, o simpósio hoje privilegia uma theoría tão pura que tende a se evadir da práxis.

Cada sociedade tem o simpósio e a arte que merece: enquanto a vida culturalmente integrada dos gregos tornava impensável a autonomia da “arte” – subordinada sempre a noções como a de kalocagatia, que misturava o belo com a moral –, os artistas modernos se emanciparam da sujeição utilitarista ao preço da própria integração com a vida cotidiana. Mas essa suposta separação entre vida e arte não deveria suscitar nostalgias de civilizações pré-modernas (como parece ser, paradoxalmente, o caso de todas as vanguardas), muito menos apologias da pós-modernidade.

Realizar hoje um simpósio “grego” num auditório de convenções, ou um simpósio científico numa galeria de arte, consiste em lidar com potencialidades poéticas ainda por serem experimentadas. Implica, primeiramente, em tomar distância da nossa atarefada contemporaneidade para, assim, consumar uma ética que não prescinda de uma estética. Nós, do i! Laboratório de Inteligência Artística, sabemos como fazer.

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Nova Subjetividade: o esboço de uma possibilidade

Antes de mais nada gostaria de distinguir qual tipo de discussão estou participando. Embora me anime pensar sobre o caráter ontológico da arte, acredito que em termos práticos aqui não cabe discutir a distinção: arte e não-arte; sobretudo diante da possibilidade da arte enquanto antiarte como coisa assentada. Minhas reclamações acerca da arte contemporânea têm a ver com um posicionamento ideológico. Isso quer dizer que meus questionamentos do que a arte deve ou não ser não põem em dúvida a natureza daquelas obras que não se aproximam dos parâmetros que, mais adiante, proponho. Uma coisa é o que a arte pode ser, outra, é o que esta deveria ser (segundo esse ou aquele ponto de vista). Nesse sentido, é que começo minha discussão.

Há algum tempo tenho usado alguns aspectos da modernidade (russa e européia), tanto quanto a Nova Objetividade brasileira, como baliza para alguns dos meus pensamentos sobre arte, porque diante da relação que passei a ter com esta, não me é possível pretendê-la distante dos problemas político-sociais. Ainda que me comovam algumas poéticas intimistas – viés da maioria dos trabalhos contemporâneos –, eu insisto em requerer uma arte que se envolva também com as questões de nossa (des)ventura enquanto sociedade civil.

Posso estar enganada, mas a partir dos anos 1980 dá-me a impressão do início de uma espécie de ressaca que fez a arte se tornar cada vez mais amoral. Embora entenda os rancores trazidos, de um lado, por um cristianismo mal sucedido, do outro, por um socialismo equivocado, não me permito perceber a moral como desvalor. Parece que o ideal compartilhado quando se transforma em “ismo” se estagna em si e a arte (assim como a vida), que é para ser movimento, esbarra nos limites daquilo que em princípio era ideário, para existir apenas como formato. Por isso mesmo é que Caetano Veloso se opõe ao Tropicalismo, porque, para ele, o genuíno era a Tropicália.

Seria muito tolo de minha parte vociferar em favor da moral enquanto forma/conteúdo (da obra) e me deixar domar por um moralismo. A moral que reclamo é a de um posicionamento (ideológico) claro dos artistas, bem como dos demais agentes culturais (curador, crítico, jornalista, arte-educador…); de um programa estético que seja também político. Quando falo de política, não me refiro, absolutamente, a um discurso partidário, mas a uma voz que se manifesta não só como possibilidade, mas também existência na vida pública. Ora, por que isso? Porque aquilo que é público pode ser compartilhado, analisado, discutido.

Tento entender de onde veio o discurso do “medo” da arte contemporânea. E cada vez mais tendo a acreditar  que se trata muito mais de uma estratégia de reserva de mercado para certos modelos de críticos, curadores, arte-educadores e instituições diversas, que nessa lógica tornam-se imprescindíveis na mediação entre a obra e o público. Embalada por essa falácia, não raramente, eu deixava as exposições com o constrangimento de ter entendido nada! E como seria isso possível? Minha inteligência (ainda que com muito esforço) se dava ao conhecimento filosófico, mas pelo jeito, não era suficiente para conhecer arte. Parece-me que o mito do gênio ficou pelas avessas: já não é mais requerido genialidade para conceber a obra de arte, contudo, o é para entendê-la.

Levou muito tempo para eu perceber que a dificuldade de acesso àquelas obras de arte não estava no meu despreparo intelecto-sensível, mas na inabilidade daquelas em comunicar. Ali, obra e discurso eram tão subjetivos que simplesmente cansava (tampouco interessava) empreender árduo caminho que terminava num umbiguismo elementar. Ora, quão confortável é voltar-se ao umbigo, sem ser esse um posicionamento político, porque nesse círculo (de uma arte que flui de si para si) ficam de fora as discussões que poderiam pôr em xeque sua própria existência, bem como das atuais formas de atuação dos agentes culturais.

Para mim, o grande equívoco dessas duas últimas décadas da arte contemporânea foi ter transformado a subjetividade em “ismo”. Vale dizer que a subjetividade foi uma das maiores conquistas da cultura contemporânea, que significa, entre tantas outras dimensões, a arte e o artista livres de uma submissão aos discursos partidários: sejam esses de cunho político-formal, religioso, ou de classe social… Mas parece que os conceitos foram confundidos ou os artistas resolveram deliberadamente se abster das questões político-sociais e fazer de suas subjetividades um subjetivismo.

Não à toa, o público para arte contemporânea se tornou cada vez mais escasso. Ora, o problema não recai mais numa questão de arte de “elite” VER ESPAÇO, pois mesmo as “cabeças mais favorecidas” já não se interessam em ir nas exposições. O problema está nessa subjetividade exacerbada, do artista na obra, incapaz de criar uma empatia que promova um diálogo que por sua vez gere um debate, uma comoção coletiva. E sem essa dimensão coletiva, me pergunto, arte: para quê? Mero objeto de mercado?

A notícia de instituições preocupadas em “formação” de público me é constrangedora. Além de desconfiar da boa vontade dessas em “criar” um público para arte contemporânea por gratuidade, me vem imediatamente a realidade de que um empreendimento desses é inviável. Em menor ou maior escala, nem o promover sessões de entretenimento das pessoas com elementos daquela determinada obra vai gerar um público, tampouco aulas (cansativas)  que oferecem não mais do que justificativas estéticas do atual fazer artístico através da história da arte. A criação de um público, ao meu ver, só é possível quando sua relação com a obra se dá espontaneamente, movida por uma empatia acolhedora.

Nesse sentido, quero deixar claro que não estou requerendo uma arte que não contemple as questões próprias do indivíduo e passe a se referir somente às situações sociais. Me animo apenas em querer uma arte que não se volte tanto para si, mas crie comigo um diálogo que ultrapasse tanto as minhas questões quanto as desta. Penso que, se podemos esperar uma reviravolta estética na contemporaneidade, é porque esta virá amanhecida por uma reviravolta também política e social na arte.

Tenho creditado largas esperanças nas movimentações sociais, porque também políticas, surgidas a partir dos coletivos e das ações propositivas de trocas simbólicas feitas em rede. Coletivos diversos têm sido formados: por artistas, por críticos, por produtores, ou de uma mistura destes, com posicionamentos bastante claros de seus programas estéticos. Alguns coletivos de artistas surgiram pelo interesse meramente econômico que os ajudassem a promover seus projetos pessoais a exemplo do Branco do Olho (PE) e Bola de Fogo (SP); outros, para se tornarem uma unidade proponente de diálogos e experiências estéticas como o fora o coletivo e/ou (PR) e os hoje ainda atuantes Mergulho (RS) e GIA (BA) – esses últimos me interessam mais.

Não só de artistas, mas os coletivos híbridos formados também por designers, pesquisadores sociais, críticos de arte, a exemplo do Laboratório de Inteligência Artística – i! (PE), do qual faço parte, atualmente representam uma variável interessante na possibilidade de uma produção estética porque, embora fundamentados em bases acadêmicas, as ações propositivas se pretendem voltar para uma agitação das diversas formas de perceber e lidar com a vida – assim como eram as que compuseram o que hoje podemos identificar como Nova Objetividade. Me aventuro em acreditar que essa possibilidade de um programa estético proposto não só por artistas, e que consiga articular diversas redes de discussões e trocas simbólicas, há de declarar de fato um fim da arte como a temos conhecido (já o pré-disseram Hans Belting e Arthur Danto).

Se bem sucedidas essas atuais formas da arte desenvolvidas por programas estéticos (e, por suas naturezas, também políticos), a questão de “formação” de público já não será uma questão, mas coisa resolvida. Nesse modus de arte, o público é também autor e matéria compositiva da obra – que em momento oportuno até deixe de se chamar assim e passe a ser experiência estética. Eis os caminhos que nos levarão a uma Nova Subjetividade.

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Pequeno Manual da Música Independente

Zeca Viana cursa a graduação de Bacharelado em Filosofia pela UFPE com área de interesse e pesquisas em estética e Filosofia da Arte, é músico integrante da Volver e também possui um trabalho solo com destaque em sites especializados em música independente.

 

Era uma vez uma fábrica de discos chamada Rozenblit. Nela, tudo parecia perfeito. Seus donos, os irmãos Rozenblit, tocavam o negócio com muito carinho, colocando o amor pela música em primeiro lugar. Lá eles tinham um grande estúdio de gravação, um moderno parque gráfico e ainda conseguiam distribuir seus discos para quase todo país chegando a comandar 22% do mercado nacional – concorrendo com a RCA-Victor – com filiais no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Lá eles gravaram de tudo: do frevo ao rock psicodélico. A maior preocupação não era com as contas no fim do mês e sim com a qualidade dos produtos que lançavam. A lógica era a de que, se lançassem um produto de qualidade, o lucro viria. Isso não aconteceu numa cidade encantada. Foi em Recife, entre os anos 50 e 70, por ali pelo bairro de Afogados. E foi justamente assim que a Rozenblit acabou, afogada pelas enchentes e encharcada pela pressão internacional que começava a criar a lógica do famoso jabá (jabaculê, molha-a-mão, troca-troca).

Foi assim que o Recife, desde essa época, se tornou uma cidade referência na resistência contra uma lógica de mercado que visava apenas o lucro. Durante anos, essas grandes gravadoras, as majors, lançaram bizarrices mercadológicas goela abaixo no público brasileiro e ditaram a lógica de mercado. Criavam artistas da noite para o dia e sugavam tudo que podiam. Porém, a base que serviu para erguer o império dessas grandes gravadoras não era forte o suficiente e elas tombaram: primeiro se ajoelharam com os golpes da tecnologia – que trouxe a pirataria – e depois ruíram quando os novos artistas se negaram a assinar os seus contratos. Mas restou uma coisa muito importante, adorada pelos irmãos Rozenblit: a música. E de novo procuramos novos caminhos para ela.

Não é preciso dizer que hoje a internet e a tecnologia de fácil acesso são importantes para a criação e distribuição da produção musical. Por exemplo, hoje você pode gravar seu disco em casa, filmar e editar videoclipes, elaborar sua arte gráfica, fazer camisas, gravar tudo em CD-R ou distribuir on line através de sites como MySpace e Trama Virtual, ou ainda ganhar dinheiro através de downloads pagos, como fez o Radiohead. Tudo isso faz parte de um esquema relativamente novo onde as possibilidades de trabalho são muitas e o próprio artista tem um papel determinante em todas elas.

Acompanhando o crescimento desse novo cenário estão os selos independentes que lançam artistas em parceria – ou não – com distribuidoras como a Tratore, por exemplo, além de algumas vezes serem responsáveis pela própria gravação e produção do disco. Selos como Midsummer Madness, Senhor F Discos, Monstro Discos, Trama Virtual entre vários outros. E não só novos artistas estão preocupados em criar essas novas soluções. Em uma breve conversa com o consagrado músico Guilherme Arantes, fiquei sabendo do seu mais novo projeto, um selo independente chamado Coaxo do Sapo, com estúdio próprio na Bahia onde ele já está começando a gravar e produzir novos artistas e, segundo ele, sem intenções financeiras. Apesar de hoje em dia o disco ser encarado cada vez mais como um cartão de visitas, imagino que ainda tem um caráter de álbum, um caráter artístico onde cada música faz parte de uma única obra, de um conceito.

Articulando ainda mais as relações entre bandas, artistas, produtores e selos estão também os coletivos, sites, fanzines, blogs, produtoras e os festivais independentes. Uma das melhores formas de conhecer algumas dessas produtoras e coletivos é visitando o site do Circuito Fora do Eixo (www.foradoeixo.org.br), que agrega idéias, sendo ainda selo e também coletivo. Tudo junto. Festivais como o MIMO – Mostra Internacional de Musica (Olinda/PE), Festival Casarão (Porto Velho/RO), Feira da Música (Fortaleza/CE), Festival Mundo (João Pessoa/PB), Demo Sul (Londrina/PR) são apenas alguns dos mais de trinta festivais de todo Brasil associados à ABRAFIN – Associação Brasileira de Festivais Independentes.

Tudo funciona como uma teia de informações; está tudo interligado. Nesse sentido, é difícil definir com precisão científica o que vem a ser um coletivo, por exemplo, até porque eles trabalham de formas diferentes, às vezes são mutantes em seus membros e nas suas ações, atuam em diferentes áreas e parecem estar sempre abertos para novas ideias. Espalhados pelo Brasil estão nomes como o Coletivo Palafita (Macapá/AP), Massa Coletiva (São Carlos/SP), GOMA (Uberlândia/MG), entre vários outros responsáveis por interligar várias regiões.

Voltando a Recife, vemos que a lógica trazida pelos irmãos Rozenblit parece ter de alguma forma fincado raízes na cidade, e que nos anos 2000 o mesmo amor pela música e a determinação de fazer as coisas acontecerem renasce em coletivos como o Lumo e o Coquetel Molotov, hoje um dos mais importantes e respeitados do país. Além de programa de rádio, selo, revista e articulador, o Coquetel Molotov também é festival. Eles conseguiram algo que os irmãos Rozenblit sonhavam: criar um público que consumisse a música pela sua qualidade acima de tudo. Hoje somos testemunhas de como ele nasceu e se estabeleceu. Vemos o teatro lotado para assistir atrações praticamente desconhecidas, num ato de confiança. Naqueles dias de festival, todos os fatores se somam para experimentar a música independente na sua forma mais pura, se deixando surpreender.

Nesse exato momento, existem bandas rodando o país e o mundo de forma sustentável, se articulando em cada cidade, em cada novo ponto dessa rede, que ao mesmo tempo é independente e socializável.

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MARIOLOGIA?

Este texto é mais um brainstorming do que um manual de boa convivência humana, por isso sua ordem e cadência não obedecem a uma escola. De outro modo, é um primeiro instante de ideias que são, em muitos dos casos, revisitadas, porque reencontrá-las foi inevitável, estimuladas pela participação no Fórum Social Mundial deste ano em Belém do Pará. É por isso conclusivo apenas até certo ponto.

Sou eu me identificando: recortes de minha visão e condição como ator e autor social. Dessa forma, espera-se que o leitor esteja precavido quanto ao que poderia ser considerado “erro” de gramática, mas esteja inquieto e desconfortável para que ao final reaja, mesmo que seja mudando o canal da TV, ou a pessoa que fala o texto.

Por fim, não subdividirei a cadência deste texto. Isto deverá ser uma provocação dolosa e velada ao envolvimento com a colcha de retalhos de ideias e vivências, que até aqui resultam em indícios não necessariamente coisificam alternativas efetivas, mas matizam caminhos.

Tudo no IX Fórum Social Mundial (FSM) me impressionou muito. Primeiro, porque foi em Belém e eu não a conhecia. Meus paradigmas de natureza também não eram compatíveis com as dimensões amazônicas de fauna e flora, mesmo que a literatura seja exaustiva e insistente sobre o gigantismo ecológico equatorial. Era de se esperar numa megalópole como Belém algo mais simbólico a esse respeito, porque, nas cidades, de maneira geral, a natureza é sempre amestrada, ou tolhida e maltratada pelo nosso sistema industrial oitocentista e Belém não domou a natureza como São Paulo. Mesmo autóctone é megalópole.

Não conhecia a transição geográfica do Nordeste para o Norte do Brasil – exceto pela literatura, também superada pelos fatos. Fui de ônibus para lá, porque não havia voos disponíveis de Recife até Belém durante o período do FSM. Isso, para falar do quanto a cidade foi invadida durante o evento. De vez em quando é bom que as cidades sejam invadidas. Lembro-me que um dos compromissos do FSM é com a ecologia e, em um planeta com mais de 6.000.000.000 de pessoas, um movimento mais bem-sucedido que esse numa cidade menor poderia ser uma hecatombe. Seria curioso ver esse evento numa cidade com menos de cem mil habitantes como Vaduz.

Não foi diferente com o fórum, nem com a farofa humana de sensações e trocas. Eu me senti pequeno e preocupado porque estava ali e, apesar de toda a abundância e de todo o excesso, sabia que havia um ritmo e uma música que tocavam ao meu redor, dos quais não escutava um piquitinho sequer. Era visual esta ausculta – de gente e seus temperos sensoriais por todo lado e de todas as formas: “rápido”, “devagar” e “mais ou menos”.

Não sabia que pupunha era cozida, nem salgada, antes de comer. Tem gosto semelhante ao de milho cozido, mas é suavemente amarga – isso porque pupunha é um coquinho e cocos são doces, ou eram até ali. Do clima, insuportavelmente quente e úmido, até a lógica do FSM, não soube como lidar com tanta informação relacionada ao encontro e ao ambiente.

Foi preciso parar.

Li o guia do evento que recebi quando confirmei a minha inscrição, depois de minha primeira maniçoba e durante a minha primeira chuva das 17h (que veio às 13h, porque a destruição da natureza está mesmo acabando com o relógio pluviométrico da Amazônia e da Terra); tudo isto ao som de um protesto contra o consumo de carne de qualquer tipo. Maniçoba leva carne vermelha e branca.

Quando terminei essa análise, me senti mais seguro para escolher e para participar, com a certeza de que eu, nem ninguém mais, participaria de tudo o que gostaria, nem que fosse apenas da metade da programação. Sendo mais exato: achei que só seria possível dar conta de um, ou no máximo dois eventos por turno, por dia. E foi assim.

É de se ressaltar que as distâncias podiam chegar a mais de oito quilômetros de uma mesa-redonda à outra, porque o evento aconteceu entre a Universidade Federal e Federal Rural do Pará que, além de distantes, possuem campi enormes.

Esta experiência se traduziu em contatos, trocas de ideias, vontades que vão – que já estavam indo – mudar o mundo e aquelas que se perderão ou amadurecerão com o tempo, deixando de ser erráticas e utópicas.

Uma vez ouvi o grande jornalista Washington Novaes citar o Cacique Raoni (Caiapó, Mentuktire) para dizer que “uma cultura que precisa ser protegida é uma cultura morta”.

Depois desses quatros dias especiais, o fórum terminou e voltei ao Recife com a esperança de botar para funcionar alguns engenhos pensados no Pará. Simplesmente pô-los em prática, sem a pretensão de proteger nada, nem alguma cultura.

Fiz uma pretensa anamnese sobre a história bélica do Ocidente e o arquétipo dicotômico entre atacar e defender, obstáculo para pensar a autonomia de uma cultura independente do dipolo proteger-dominar. Mas escolhi tentar, mais uma vez.

Acredito que os padrões culturais são o grande vilão dessa história. Ou a decorrência-chave a se trabalhar, no sentido de uma atuação mais efetiva quanto a aplicar vontades de assistir a uma condição mais humana do homem.

Pensei, lá no FSM, que tinha pouco a dizer como artista, por causa da sincronicidade da informação que a interface digital protagoniza, fragilizando a ideia de novo e de original. Pensei na fala profética de Andy Warhol sobre os “quinze minutos ou menos”. Esse retorno me levou a rever a minha potência como ator social. Num primeiro momento, que vem até agora, penso que é preciso fazer e executar, porque leis, normas e instrumentos há de sobra.

Acho que o arranjo pelo qual nos conduzimos como coletivo (social) nos põe em xeque, ou nos torna miúdos demais para sermos pretensiosos, mas não o bastante para entendermos que não reagir é digno. Essa postura pode ser, por outro lado, a ignição que identificará ruídos alheios – os lamentos do vizinho, por exemplo – como seus.

Quando recebo uma conta de telefone contendo alguns números que não identifico como ligações minhas e me digo: “não adianta fazer nada, por que despenderei mais energia indo aos órgãos competentes, reclamando e vendo os resultados dessa antiestase?”, estou colaborando com a dilaceração de direitos.

É um ponto a mais ganhado por esta coisa sem cabeça e sem aparente vontade de controle que chamamos corporações e, às vezes, gangues. Elas nada mais são do que nós: metáfora do nosso superego coletivo e sem consciência.

Reagir a isso é construir esta consciência coletiva cidadã mundial. Para isso é preciso paz e não pólvora.

Achei que os dados estavam lançados, que tudo estava feito e que o “demais” seriam apenas variantes. É como se o que faltasse fosse um mergulho profundo em cada objeto, sujeito e brecha entre os dois.

O que é tudo isso quando eu sou artista visual e esses valores praticamente exigem uma espécie de autodesconstrução minha e do meu redor, sobretudo de padrões culturais? O universo plástico-visual pode ser tudo o que se desejar.

Como profissional e cidadão do mundo, o que significava todo aquele choque de impressões? O que eu poderia, ou posso, tirar do papel para a realidade, mesmo que seja minha mente reciclada?

Pode ser simples responder a estas perguntas e a resposta não é nova. É agir, somar, mesmo sendo diferente, portanto enriquecendo a ideia de diversidade.

Não acredito nos velhos moldes de engajamento, embora os respeite com veemência – até para negá-los quando for oportuno. Penso num ritmo íntimo aos não “ismos”, aos pós, trans, meta, hypes, ou sei lá mais o quê. Acredito na “carne pública” de Pierre Lévy e, portanto, na soberania como um produto desta diversidade experimentada.

Se o paradoxo é regra, a coerência precisa ser a de uma política cujo sentido de realidade se dê muito mais no orgânico, do que na fixidez de um ideário de letras frias e determinações “ísmicas” positivas.

Mais do que qualquer coisa, isto parece apontar na direção da esfera pública: nós outros desligando chaves e reduzindo excessos individualmente. Reapropriando-nos de nossos atos para um fluxo de gestos e atitudes, como artistas dos advérbios − de experimentá-los, na forma de modos e condutas −, ou de apontá-los como metáforas de nossas potências e expectativas.

Em suma:

“Em alguns lugares,

Algumas pessoas estão fazendo

Algumas coisas que vão mudar o mundo”.

(Autor Anônimo)

Na bagagem, voltei também com essa frase citada por Célio Turino e colhida quando da destruição do Muro de Berlin. Ela veio como um patuá e como uma síntese do evento, ou dessa certeza adverbial de metáfora e atributos – um paradigma mais ético que estético.

Voltei também com algumas perguntas que não fechavam, talvez nunca fechem e fiquem sem resposta – como sempre foram. Talvez sejam a tradução de movimentos cujo motivo resida em mantermo-nos ativos e em policiar a vida; porque toda mudança exige seu tempo, sua temperatura própria: pede sua necessidade. Essas possíveis respostas, mesmo sendo provocações, por enquanto eu as elaboro através da minha angústia. Isso não é descrédito no futuro, mas talvez incompetência em mudar, ou apontar caminhos – mesmo que errados.

Os FSMs, numa medida coletiva, são mais um índice da revolução tão aguardada e em andamento, por isso deixam poucas certezas. A primeira e mais óbvia: o modelo político-econômico atual não serve mais. Ele é morto. Depois, o fato de que pouco se pode afirmar sobre seu ápice – seu ponto de inflexão. Em especial no nosso País onde, feliz ou infelizmente, ela ocorre sob um tamponamento de natureza pouco precisa.

Acho piegas apostar no mito fantástico do artista que muda o mundo – somos, como toda a sociedade, protagonistas. Acho que mais que responder o importante é ser miaêutico, para perguntar melhor, fazer e refinar a diferença, apostando na ingenuidade de ser humano e, sempre que possível, no lúdico. Sempre acreditando. Inclinarmo-nos, acima de tudo, nas tentativas a favor do coletivo: pelo aquecimento de um ciclo virtuoso que só se percebe e do qual só participa ao se desejar e agir.

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A voz do mergulho

O mergulho é uma EXPERIÊNCIA coletiva de

quatro artistas que desenvolvem e

compartilham a pesquisa em imagem como

interface entre corpo perceptivo e mundo.

Realizamos ações que lidam com a virtualidade

espaço_temporal do acontecimento enquanto

lugar no mundo para o encontro.

 

O projeto ESTADOS TEMPORÁRIOS é nossa

estratégia propositiva e envolve um estado

corporal de busca por espaços e contextos

específicos, possíveis de serem habitados

temporariamente, em que são realizadas

imagens durante a experiência relacional, a

partir de processos de trabalho individual e coletivo.

 

Os desencadeamentos imagéticos destas

temporalidades são compartilhados e

elaborados em conjunto, gerando documentos

que trazem a realidade do mergulho em

qualquer ação, mesmo quando adensados

no espaço virtual, lugar comum que ocupamos

como “navegadores à deriva”, já que

atualmente lidamos com a distância tempo-

espacial entre nós.

 

19:49

Na paisagem, vendo e desenhando em camadas sobre, sinto como se respirasse atrás da câmera que acompanha uma captura temporal. Nem sei quanto daquilo realmente aconteceu. As pequenas surpresas do cotidiano. Estados temporários por um mergulho coletivo sustentável, ou abordagem sustentável de um mergulho coletivo?

Um tópos, lugar + gráphein, eliminando o espaço entre o pagus e o horizonte. Deletar o contemplatio da paisagem ENTRE – verbalizar – ENTRAR no entre – acionar a substância da contingência, um dado assíduo no mergulho. CONSTRUIR O OLHO por meio de camadas visíveis – circunstancializar e circular – MARCAR O INSTANTE, o acesso para habitar o tempo, e então, começar outra viagem em busca do sentido de lugar ativado como se uma flecha de marte, na altura da cintura, apontasse em luz vermelha. Seguir.

 

16:07

O ENCONTRO É O LUGAR e estamos na continuidade da duração infinita, até onde os momentos podem ser segmentados ou costurados. O pensamento não dorme mesmo se o sono fecha os olhos. O desejo é comum, a ação é a base do movimento e o tempo é individual. Mas é preciso SINCRONIZAR PARA AGIR.

O que escolhemos ver não está fora dos olhos. Quando nos afastamos para observar por instantes o que fazemos, arte, ou isto que fazemos, não estamos vendo coisas fora, estamos dentro dos olhos como camadas sobrepostas que deixam vazar o antes no depois. Tudo nos olhos. Na verdade estamos à escuta da SIMPLIFICAÇÃO PROFUNDA.

As medidas subjetivas do encontro não são nada mais do que uma ação possível. Assim escolhemos seguir fazendo um espaço para trabalhar, para viver junto. A distância é sempre relativa se a AÇÃO REAL ESTÁ ANTES NA SUA POSSIBILIDADE e depois na paixão, na imagem, no tato, na mudança do estado potencial para o movimento dos olhos, ou dos ouvidos. Todo o corpo na CONSTRUÇÃO DO INEVITÁVEL, na imagem antes de percebê-la, está na ação e seu movimento está em nosso movimento. Ela em si é o fim. A IMAGEM É O FIM E A FINALIDADE DO MOVIMENTO, por isso prefiro não acreditar na morte. Não quero acreditar, pois a continuidade está dentro. Não acredito nas imagens, acredito na sua mentira.

 

16:31

Nisto que fazemos, colocamos uma questão que se autorresponde em forma de questão. Do fundo do que fazemos, ao fazer, expelimos: por que fazemos? Por que somos levados a isto, assim? Esse dinamismo-meta, em sua forma de se colocar para nós o porque somos levados a isto e assim, brota de um chão relacional entre o indivíduo e o coletivo (genérico), o mundo e o social. Brota de um CHÃO RELACIONAL no tempo do agora, que é antes e depois ao mesmo tempo: a conTEMPORALIDADE, justo para diferenciar da contemporaneidade.

Porque as coisas são assim para nós, no tempo em que vivemos. A noção de que somos inseridos num contexto que é assim e que nos leva a fazer em contrapartida, ou em conivência ao que fazemos. Conformismo é participar desse tempo convencionado do tic-tac. Submeter o pensamento ao tic-tac não é o que desejamos fazer. Por agora, seguir perguntando por que fazemos.

Corpos-em-sequência-através-de-pequenas-formas-objetos-energias.

 

16:26

Depois de assistir aos vídeos e às fotos que fizemos, fiquei muito feliz, porque gostei do clima-ambiente. As nuvens e o barco passando em velocidade alterada, nossos movimentos formando linhas no espaço-dentro. Têm coisas ali, como sequências que ficam mais expostas, formando talvez uma ficção que porventura tenha uma massa, porque não precisamos matar o olho que tudo vê, basta gravar outras coisas além dele, tirando o seu ar onipresente.

*

*         *

 

02:23

Por onde reentrar nA ZONA? Escritos da experiência? Desde que cheguei, estou concentrado, reorganizando a experiência. Contudo, sigo acompanhando, lendo e pensando atentamente sobre nosso trabalho a fim de costurar melhor as condições para alterações do espaço e dos objetos de A ZONA. Tudo está ao revés outra vez, mas o tempo não corre para trás.

*

Ando nas ruas e de vez em quando dou saltos no meio dos passos, não porque deseje desviar de nada, mas para o corpo ter noção de tudo o que está acontecendo, com o cuidado de não perder nada daquilo que vivemos. Os altos e baixos, os saltos. Então recebo uma gravação! Amaria que fôssemos sempre registrados enquanto estamos juntos, com o intuito de nos revisitar e de analisar nossas mudanças no percurso.

 

19:23

A experiência dA ZONA foi um rolo compressor e por isso sofro ao constatar que não me identifico com talvez a parte mais significativa do trabalho, isto é, a prática com o/a partir do vídeo. A relação de trabalho foi dura para todos e experimentei corpo: não me vi na edição, desapareci, porque me esvaneci na brincadeira, no brinquedo sem graça do vídeo. Não resisti à criança. Em especial, nossa relação de trabalho foi e continua sendo irascível, porque, ironicamente, talvez sejamos pólos tão iguais e diferentes. Esteticamente, quando trabalhamos juntos, tenho certeza de que é condição de construção que um de nós não atue. Novamente palavras duras, mas estou falando como/para artista cuja integridade é jóia tão preciosa quanto o colar, o elo da intimidade que compartilhamos, colar de fogo, de realidade e verdade, motivos pelos quais se anular seja mais do que um sofrimento, uma corrupção. Sem me ver no trabalho, não me vejo quente, real e sincero. Vejo-me fora dos elos. Vejo apenas, a cada encontro, o quão séria minha face se revela ao expressar a vontade dolorida de brincar.

*

Durante a construção dos ESTADOS TEMPORÁRIOS: A ZONA, voltei no tempo, ou fui além dele. Para frente, para trás, tudo ao mesmo tempo, e ainda estou gerando essa memória da EXPERIÊNCIA COLETIVA, tentando IMAGINAR A IMAGEM COLETIVA DO MERGULHO.

Criamos um habitat e alguma coisa abrupta nos afastou enquanto as palavras surgiam aos poucos. O impacto dA Zona foi imenso e gostaria ainda de pensar os istos e algos desta experiência compartilhada enquanto seres, trabalhadores, artistas, já que o mergulho como escolha de trabalho é um lugar no qual seremos sempre encontro. E tudo parte dessa base: O ENCONTRO NO MUNDO COMO OPÇÃO PARA TRABALHAR A EXPERIÊNCIA EM CONJUNTO. Nossa escolha pela imagem e pelo tempo. Mas o caminho não é o vídeo e sim algo porvir, em construção.

 

18:29

Algumas palavras sobre o grupo mergulho como “organismo social”.

A possibilidade de existência de qualquer organismo está ligada às possibilidades de haver habitat, ou meio ao desenvolvimento da corporalidade que, no caso social, necessitaria ser favorável às razões humanitárias, ambiente de manifestação democrática às propostas de bem-estar e às suas estratégias de ação. Estendendo este pensamento ao Mergulho, quais seriam as manifestações de bem-estar social expressas pelo trabalho do grupo? Que meios sociais seriam usados para seus debates estéticos e quais seriam seus resultados?

Eis um problema de grupos: encontrar pontos claros de interseção e de consenso na política interna estabelecida – jogos de decisão – que se tornam ainda menos claros pela confusão do relativismo e do citacionismo que presenciamos. Sigo compartilhando dúvidas sobre as possibilidades reais de manifestações orgânicas e humanitárias que não se abriguem em clichês do relativismo de toda ordem. Francamente, não identifico no caso do grupo Mergulho pontos claros de convergência entre nossas estéticas, a partir das quais poderíamos construir bases comuns à construção de um órgão estético de cunho social. Nossos debates sobre este ponto são ainda incipientes: fóruns pela internet que sugerem, a meu ver, encontros para criações entrópicas que são paradoxais ao desejo de uma construção orgânica.

O lado positivo destas dúvidas consiste no constante movimento de agitação das nossas partículas: estamos vivos enquanto tentamos encontrar pontos de consenso para construção de nossas proposições artísticas, implicando assim numa reflexão sobre o uso do meio digital como espaço de comunicação voltado ao planejamento de algum corpo efetivamente coletivo. Entretanto, o distanciamento físico dos integrantes do grupo e a estratégia de uso constante do espaço da internet tendem a obscurecer, a meu ver, o contexto social no qual se sustentam, em parte, as realidades dos desejos de cada um. Desse modo, as conformações do grupo estão determinadas pelas conformações da própria lógica relativista do meio virtual, imprimindo rapidez na resposta de debates complexos. Ora, se as bases estéticas e sociais do mergulho ainda não estão claras, pois que se relativizam a todo instante, até que ponto o habitat digital não “virtualiza”? Não teríamos assim que repensar a nossa comunicação como meio de bem-estar social?

 

01:53

IMPULSIONAR O HUMANO. Somos um corpo. E realmente me sinto só. E se não fosse o sol morreria. O movimento vertical tomou conta da alma. Sim, precisamos de um novo estado de consciência. As almas precisam ser modeladas. Precisamos impulsionar o humano e preparar nosso planeta à nova era que já está aqui. No agora. Exatamente agora. E se tudo isso for utopia, não me importo mais. Nada mais faz sentido se não for profundamente sentido. Preciso me sentir conectada. À natureza. Às pessoas. E quando não foi assim? Porque mentimos não ser nossa necessidade. Preciso gritar? E-U-PRE-CI-SO ME SEN-TI-R CON-EC-TA-DA!

 

21:42

Em 11 vídeo_experiências de um corpocoletivo, desentranhamos a imagem_sensação do presente imprevisível em busca dos desdobramentos do real e do temporal. Qual a sensação mais potente? As oposições refletidas no espelho? Exercício de pulsão e escuta para lidarmos com impossibilidades, intervalos e decisões operacionais na edição coletiva. Agressividade e delicadeza. Meio técnico único. Trabalhamos em fragmentos, aprendendo juntos. Montagem das linhas em movimento para um produto instalativo, ou proposta de experiência em relação ao outro? O que tem luz e o que silencia, o espaço de um, a voz do outro. Uma projeção basta para criar a língua do catalisador imaginado junto?

 

09:46

O ENCONTRO no EXATO em função da construção de algo em comum para reentrar na troca, colocando o corpo no mergulho, como uma adaptação/transformação a ser explorada nesses tempos de virtualidade. No mundano de fato, o trabalho existe para o outro, e A NECESSIDADE DE COMPARTILHAR É CADA VEZ MAIOR. Tanto pela necessidade íntima, como pela necessidade de percebermos o trabalho como potência de algo que queremos e ansiamos ATRAVÉS DA ARTE. A ideia é sempre retornar ao íntimo no sentido de fortalecer o coletivo, que precisa de todas as partes. Os meios para nos aproximar existem atualmente e podemos dar um uso fortalecedor a eles.

*

Nos encontramos e sentamos no banco de madeira nas bordas da redenção, que faz algum tempo chamamos de atelier transcendental do Mergulho. É lá que muitas conversas se deram, como na mesa da cozinha onde enchíamos a mente de ideias e o coração de cafeína.  O limite foi sempre tentarmos nos sentir bem, mesmo sem entender nada. Abrir-se ao instante, porque se quiséssemos ter uma consciência clara no momento em que não sabíamos aonde cair, já sairíamos deste instante. Queríamos fazer imagens e viver, procurar lugares que nos interessassem no desenvolvimento de alguma ação, correr no espaço, olhar o horizonte, deitar na grama, suar, sentar, cair: as imagens vindas disso seriam A MEMÓRIA DESSA EXPERIÊNCIA.  A instabilidade é algo que mexe muito com a gente. Não sabíamos aonde íamos, tínhamos desejos, mas por onde eles se cruzavam? Criar a nossa dinâmica, misturando subjetividades e querendo DESENVOLVER UM IMAGINÁRIO COLETIVO me perturbava muito. Hoje, após a experiência, temos um imaginário coletivo. Temos A ZONA. Por que então estamos no limite dos nossos desejos? Por que estávamos no limite de nos perder inteiramente? Porque nos perdemos. E desse tempo e mistura de nossas vidas e dos nossos desejos, temos memória de um mesmo tempo vivido.

Imagens, vídeos de experiências da nossa busca pelo contato com o mundo, com nós mesmos, com a realidade presente em cada lugar. Fomos atrás de paisagens. Será isso mesmo? Nossos vídeos muitas vezes são abstratos. Vamos a lugares, queremos a força que vemos ali. Colocamos, muitas vezes, justamente o que falta para ter a dimensão do tempo e do trabalho em conjunto.

INSISTIR NO PROCESSO SEMPRE. Apostando na descoberta de onde nos formamos mais como ser, do que como produtores de algo. O produto é a própria experiência vivenciada pelos sentidos, corpos e imaginários, enquanto saboreamos desta mesma magnitude e fascínio pela imagem.

 

01:09

Primeiro as paredes caíram. Hoje as horas caíram. Não há mais distinção entre noite e dia. Os pólos se encontraram. O corpo continua seco. Beber o possível. Sugar o seio da impossibilidade. Hoje foi mais um dia que vibramos juntos. Que a chama invada todas as partes do corpo. Que esse sangue queime as veias até tornar-se faíscas flamejantes no espaço. Lançar-se no espaço. HUMANO-COMETA. Vamos? Ser mutantes lutando por espaço? Porque afinal de contas acho que tudo é uma luta por como queremos viver o tempo. Esse espaço é o presente. Não deixar os sonhos secarem. Arte modifica toda a percepção da vida e pela importância que tem na minha vida, não me acostumo com a demanda expositiva que dizem existir. Eu me coloco cada vez mais longe. Olhos para o infinito. QUERO VIVER INTENSAMENTE A NECESSIDADE QUE DEIXAMOS FLORESCER. Como agora, depois de termos mergulhado juntos nesse verão, tantas lembranças. A cada vez que vejo nossos vídeos, tenho vontade de chorar de agradecimento. Profundo e simples de sentir. Entregar-se com toda a fé, coragem, ao processo que escolhemos viver. Cara nua e pele à mostra. Fazer como num sonho. O caminho que vejo é só esse. Criar, fazer, viver e mostrar. Sem esperar mais nada além do que brota e se articula a partir de nós. Fazer brotar. Fazer chover. Soltar rojão. Até que brote o sangue. Até que surja a alma.

 

16:26

Os estados temporários não são uma coisa só. Esse pequeno suspiro de agora é devido à nossa vontade (paradoxal) de eliminar as distâncias mantendo as diferenças. Essa abertura está claro-cristalina nos estados temporários, que em si são ESTADOS QUE não SÃO DELIMITADOS em formas, mas sim EM FORÇAS.

É essa permeabilidade que os novos estados temporários propõem entre nós. É um LUGAR AO QUAL TODOS PERTENCEMOS. Talvez seja isso que busco ver no fundo e opto pela dissolução com presença, revendo na memória todas nossas conversas críticas sobre o processo. Onde o todo (o junto) é maior que a soma das partes adjuntas. Me sinto muito contente como luz no desenho: sempre fomos muito mais desenho que outrem e fazer atenção às coisas que, de tão assimiladas, passam inconscientes no ato, mas estão na imagem. Essas experiências existem e nós com elas. NÃO VEJO OUTRA FORMA DE EXISTIR AQUÉM DO TRABALHO-MERGULHO que se amplia cada vez mais na maior elegância-luz.

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