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Sou um tipo institucional. Para mim, todas as iniciativas coletivas artísticas deviam institucionalizar-se mais dia, menos dia. Assim, deixariam de ser uma conversa de amigos que, após esgotarem-se as congratulações mútuas pelas tiradas geniais, sentem-se moralmente obrigados a democratizar o próprio brilhantismo entre a patuleia boquiaberta. Sempre achei, além do mais, que fosse uma coisa meio sexy isso de underground. E como eu não sou sexy, blasé ou coisa que o valha, nunca fiz um grupo do qual os outros quisessem fazer parte para – quem sabe – conseguirem alguns dos favores possíveis de nossos corpos entupidos de nicotina, álcool e auto-complacência. Falo isso com rancor, é claro. Todo mundo quer ser sexy e desejado. A não ser, é claro, que seja casto ou esteja mentindo. Ou ambos, como é justamente o caso dos castos.
Enfim, como eu queria ser sexy, famoso e, quem sabe, conseguir um pouco de conforto material com isso, fundamos em 1999, mais ou menos, um grupo chamado Olho Seco. Tínhamos em nossas fileiras, por aquela época, Ana Paula Oliveira, Dália Rosenthal, Renata Lucas, Tatiana Ferraz, Vanderlei Lopes, Wagner Morales e Wagner Malta. Outros tiveram participação em uma ou outra exposição, como Felipe Cohen, mas as decisões eram tomadas entre esses artistas.
Como este humilíssimo escrevente era parte integrante do grupo desde os seus primórdios, me ocorre que as histórias devem escolher os narradores que vão contá-las. Com poucas exceções, nas quais me incluo, todos os artistas que compunham o grupo tiveram com suas respectivas obras o merecido reconhecimento comercial e institucional, por isso hoje podem se dedicar integralmente a elas. Afinal, era o nosso único objetivo de programa. Inclusive abertamente declarado. O que deve ter atrasado as coisas, no final da década do retorno ao Real e todas as cafetinagens de slogans de lutas sociais atravessando o seu ocaso mais brilhante
Em 2001, dois integrantes do grupo, Ana Paula Oliveira e Wagner Malta Tavares, abriram a galeria 10,20 x 3,60, que foi gerada, curada e divulgada por artistas que faziam parte de seu próprio staff. A galeria, além de expor todos os integrantes do Olho Seco, ainda chamou nomes de artistas mais tarimbados para legitimar suas atividades e, por que não, colher por osmose um pouco da fama alheia e distribuí-la entre os membros de um grupo que envelhecia rapidamente, sem que ninguém parecesse emergir das trevas do anonimato artístico. A galeria começou a mudar isto, principalmente no caso de Renata Lucas, que era, no final das contas, nossa melhor artista pela época. Entretanto, como Ana Paula Oliveira e Wagner Malta não poderiam passar todas as suas vidas de artistas lançando outros artistas, foram cuidar de suas carreiras e o bastão passou para este pobre cronista abrir a terceira iniciativa do grupo: o Ateliê 397. Na verdade, um quintal de 10 metros de extensão com somente dois metros e meio de largura, cercado de um lado por minha casa e do outro por um espetacular muro de 8 metros de altura.
Fechada a galeria 10×20, poucos tinham exposições marcadas e começamos de novo, naquela nova iniciativa, a mesclar nossos nomes com o de outros artistas. Agora, em vez de chamarmos artistas reconhecidos como Rodrigo Andrade, tentaríamos parasitar o entusiasmo e o talento de jovens como Tatiana Blass e Bruno Dunley. Abrir um ateliê que faz exposições, entretanto, contribui mais para angariar antipatias e aborrecimentos do que dinheiro e diversão, embora tenhamos nos divertido enormemente em vários momentos naquele quintal exíguo, regado quase sempre à cerveja barata e espetinhos de carne vendidos a preços quase altruístas por nosso vizinho, o saudoso William. O Ateliê 397 era gerido por mim, Sílvia Jábali e Bruna Costa. Com a minha viagem de três anos às selvas europeias, Jabali e Marcelo Comparini herdaram a iniciativa com vigor, transformando-a numa referência midiática como eu mesmo não havia conseguido em três anos de tentativas.
Ao que parece, as histórias não somente escolhem seus narradores, mas também seus incansáveis diletantes. Em um balneário conhecido como Barcelona, em 2007, ajudei a transformar a iniciativa de autopromoção de um estúdio coletivo em uma galeria de arte conhecida como noó. A galeria se resumia a um corredor e hall de entrada de um apartamento no bairro de Eixample e foi – já na primeira exposição coletiva – um sucesso. Inesperado para nós, inclusive. Publicávamos, por ocasião de cada exposição, um fanzine feito em uma folha de sulfite A4 dobrada em várias partes. O resultado era pouco maior do que uma camisinha e tinha o tempo de usufruto mais ou menos semelhante. Pelo menos para os que têm compromisso com a verdade. O fanzine se chamava CÚ – revista pequeña para poner donde queiras. Os integrantes da galeria eram, além deste incansável procrastinador, Pedro Torres, Mariane Abakerli e Bruna Costa, mais uma vez colocada pelo destino caprichoso no meu caminho.
Depois de um ano de atividade e o pedido de devolução do imóvel por parte de seu proprietário, o grupo se dissolveu e me vi tendo que lidar comigo mesmo mais uma vez. Mas como disse antes, sou um procrastinador incansável e criei a iniciativa gabinete: uma exposição coletiva que se modifica de acordo com o lugar onde expõe, angariando os nomes artísticos da localidade e mesmo diletantes ou não artísticos. gabinete realizou sua terceira versão no museu Victor Meireles, em Florianópolis. As anteriores foram na galeria Virgílio e no museu Murilo la Greca, em Recife. Os integrantes iniciais foram este desgraçado datilógrafo, além de Fábio Tremonte, Diogo de Moraes e posteriormente Marcelo Comparini, que já havia estado comigo no Ateliê 397. Os convidados por nós, para participar com anotações e obras pouco significativas de suas produções (gabinete se espelha nos gabinetes de curiosidades dos filmes blockbusters, por mais que Diogo de Moraes insista na tese de uma retomada dos gabinetes históricos do século XIX), chegaram a mais de 20 em nossa última exposição.
Feitas as contas, foram 10 anos de trabalhos coletivos com poucas interrupções e, como a amizade dura enquanto dura a exposição, temo que gabinete não vá ter vida longa, pelo menos no que depende deste miserável narrador. O que me obrigará a ter de haver contas comigo mesmo e minha obra. Ou talvez eu abra um bar, vá saber.