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Clarissa: No Brasil, assim como em outros países, as décadas recentes têm se caracterizado por um grande e coletivo esforço de constituição e reconhecimento de um campo para a arte. Tal processo se evidencia no adensamento institucional e de mercado, na profissionalização do artista, no surgimento da figura do curador, dentre outros aspectos. Muitos de nós, nesse contexto de legitimação de um campo para a arte, tendemos a tratá-la como disciplina. Para além do caráter de produção de conhecimento que atribuímos à mesma, a constituição desse campo poderia fazer assemelhar a produção artística a uma “disciplina genérica”, sobretudo diante da cristalização de suas metodologias – processo corroborado, acredito, pelas práticas de cunho licitatório (editais etc) das quais participam os artistas nas dinâmicas de exibição e validação e suas obras no Brasil. No seio desse momento, surgem, por exemplo, “cursinhos” para artistas, locais em que se “treina o artista” para encarar o sistema da arte, orientando sua produção dentro dos atuais parâmetros estéticos da dita “arte contemporânea”, orientação (ou fiscalização) essa que é feita, majoritariamente, por curadores. Nesse sentido, e levando em consideração a idéia de arte como disciplina, fico a indagar se o campo da arte brasileiro não parece estar constituindo a curadoria como uma espécie de “espistemologia da arte”, no que se refere a um caráter de metadisciplina normativa da produção artística. Dentro dessa lógica, o curador seria, por exemplo, aquele que apontaria as incongruências metodológicas do processo de criação dos artistas (como ocorre nesses “cursinhos”), cumprindo função fiscalizadora e se posicionando hierarquicamente no campo da arte. O que você acha dessa reflexão? Como se posiciona diante da idéia de arte como disciplina? O que lhe parecem uma metodologia e uma espitemologia da arte?
Ricardo: O cenário que você apresenta parece um tanto caricato, retratando uma espécie de ‘arte contemporânea aplicada’, considerada como campo fixo e estável de trabalho, cuja inserção e legitimação do artista dependeria do cumprimento de uma conduta normatizada e da realização com destreza e eficiência de certas tarefas programadas. Fico curioso de saber quem está apostando nesse cenário; mas somente o fato de você mencioná-lo, descrevê-lo com tanta veemência, parece ser sintoma concreto de algum estado de coisas curioso. Isto é, será que o campo da arte está se colocando para certo público de interessados como um espaço de trabalho com certos procedimentos e protocolos assim tão padronizados e previsíveis? Será que a recente e ainda incipiente aceleração do processo de institucionalização da arte brasileira está sendo praticado e vivenciado de forma tão mecânica e automatizada, percebido somente como um conjunto de regras a serem seguidas por artistas, curadores e críticos? Sua análise indica a necessidade de se deter com atenção para com o estado de coisas atual, para com o cenário em que estamos atuando, de modo a exercer também uma escuta para ali intervir, divergir. De modo algum me vejo habitando esse mesmo cenário ou sendo pressionado por tantos procedimentos pré-programados – acredito que através de etapas sucessivas de trabalho cada artista (ou crítico, curador, etc) vá construindo um espaço de ação e movimentação que impõe práticas e procedimentos diversos daqueles hegemônicos, estabelecendo outras redes coletivas; mas compreendo que aqueles que iniciaram sua atuação nos últimos dez ou quinze anos se sintam pressionados por um circuito de arte constituído e mantido principalmente a partir de investimento institucional privado de grandes empresas, via leis de renúncia fiscal (o setor público ainda não conseguiu elaborar políticas instigantes e contínuas na área das artes visuais). Nesse cenário, há interesse de apoio ao artista jovem (editais, programas de mapeamento, bolsas etc); mas nenhum interesse em subvencionar pesquisas reais, concretas e efetivas de artistas já em ‘meio de carreira’ (na falta de um termo melhor…); ou seja, depois de receber apoio no início de seu trabalho, o ‘jovem’ artista é abandonado pelo circuito, que se volta para os próximos ‘jovens’ artistas (a fila anda…). Além disso, não há investimento em pesquisas consistentes na área de história da arte, de modo que se continua sem saber, por exemplo, o que foi a produção brasileira dos anos 80 – produção que responde à abertura política e ao início da implantação do regime econômico neoliberal – cujo conhecimento é decisivo para se compreender como se reorganiza o circuito de arte brasileiro daí para frente (mesmo os mais renomados historiadores da arte brasileiros continuam repetindo mecanicamente o slogan ‘volta à pintura’, como se tivessem receio de revolver as questões-chave do período). Sem uma história da arte mais coerente e consistente, por exemplo, não há como se formar coleções representativas, e o colecionismo privado – predominante, uma vez que não há coleções públicas significativas – se faz basicamente a partir de redes sociais (com exceções, claro), sem outros referenciais de produção de valor. Não concordo com sua descrição da curadoria como disciplina normativa e de artistas como aprendizes de regras – há uma forte simplificação nesta sua descrição; estes padrões de ação seriam como que reflexos do que se teria como imagem-clichê ou senso-comum de uma cena que se burocratiza e se institucionaliza de modo veloz. Quanto ao aspecto ‘disciplinar’ da arte, este parece ser um traço da modernidade – ou seja, constituir um campo com limites definidos, que se volta pra si mesmo, e que produz valor nesta investigação. Penso ser mais interessante escapar para o “extra-disciplinar”, proposto da seguinte maneira por Brian Holmes: “um novo tropismo e um novo tipo de reflexividade, envolvendo artistas, teóricos e ativistas em uma passagem para além dos limites tradicionalmente consignados a suas práticas. (…) o desejo ou necessidade de se voltar em direção a algo mais, em direção a um campo ou disciplina exterior; (…) a noção de reflexividade agora indica um retorno crítico ao ponto de partida, uma tentativa de transformar a disciplina inicial, acabar com seu isolamento, abrir novas possibilidades de expressão, análise, cooperação e engajamento. Este movimento de ida-e-volta, ou melhor, esta espiral transformadora, é o princípio operacional do que chamo investigações extradisciplinares.” [Brian Holmes, “Extradisciplinary investigations: towards a new critique of institutions”, disponível em http://transform.eipcp.net/transversal/0106/holmes/en/print.] Assim, não se correria o risco do isolamento auto-referente, ao mesmo tempo que se resguarda certa autonomia de ações.
Clarissa: Sem dúvida alguma, meu pequeno cenário constituído é caricato por querer enfatizar certos traços que acredito que fiquem obscurecidos por vários dos discursos “politicamente corretos” acerca do campo da arte no Brasil que, como tal – e muito justamente, vale acrescentar –, buscam enxergá-lo de forma menos estruturalista, enxergando-o não como uma teia de posições de poder a serem ocupadas, mas como um território movediço que se adapta e se transforma à medida da ação de seus “atores” (“auto-eco-organização”). Teoricamente, concordo com tal visão, e entendo quando você não se reconhece no cenário que pintei inicialmente – eu também me vejo buscando fugir dele o tempo todo. Por outro lado, não deixo de reconhecer que tais discursos não dão conta de uma série de ações que tenho testemunhado nos últimos tempos, e que me parecem ter a ver com a configuração de um campo da arte que tende a hierarquizar a função do curador, transformando-o numa autoridade cujo argumento de “especialista em arte” justificaria uma atuação que carrega certo caráter “epistemológico”: um curador manda e-mails aos artistas de sua cidade dizendo estar disponível para fazer “leituras de portfólio” voluntárias; numa dessas leituras, além de dizer que uma determinada solução plástica está “fora de moda”, diz à artista “lida” que “jamais apostaria nela”. Este é apenas um exemplo dentre os muitos que tenho colecionado e que, como comentei, não me permitem ver o campo da arte no Brasil de forma tão flexível assim. Parece-me haver, sim, uma clara percepção de um conjunto de regras do qual gozam vários de nós, e diante do qual é preciso agir criticamente. No último seminário do Rumos Artes Visuais 2008/2009, um artista inquieto perguntou aos outros: “quem daqui não tem formação acadêmica?”. Todos tinham. Diante das respostas (e das obras) desses artistas, vejo agir ainda, e com muita força, o projeto moderno da arte como disciplina. É como se vivêssemos contraditoriamente sempre em duas instâncias: a fixidez do sistema da arte dentro do qual agimos e, de outro lado, a maleabilidade com a qual o imaginamos em nossos referenciais particulares (e, tantas vezes, “majoritariamente teóricos”). É assim que me sinto…
Ricardo: Clarissa, compartilho com você uma visão do campo da arte (seja no Brasil, seja no mundo) como “tela de posições de poder” – meu trabalho não tem se dado em outra direção, há décadas: procurar compreender esse campo (cartografá-lo) para realizar ali deslocamentos e organizar intervenções, sempre reconhecendo que não há neutralidade em gesto algum. Há disputas, confrontos, conflitos, negociações, etc. Em tal cenário, não há ‘flexibilidade’ como valor de intervenção, mas – como você aponta – uma certa elasticidade que parece fazer as linhas voltarem sempre para o mesmo lugar (portanto, flexibilidade ilusória): certas propostas menos ‘formais’ não são assimiladas institucionalmente de modo agudo e os mecanismos de mercado e colecionismo são demasiadamente limitados, absorvendo pequena parte da produção. Seu relato me parece muito importante, por indicar como as novas gerações de artistas e críticos (no seu caso) estão enfrentando um circuito estratificado e superinstitucionalizado – percebo que quando iniciei meu trabalho (anos 80) o circuito portava um aspecto menos ‘formal’, permeado de brechas flácidas através das quais o trabalho que fazia naquele momento (sobretudo junto com Alexandre Dacosta, com quem formava a Dupla Especializada, e Dacosta e Barrão, com quem formava o Seis Mãos) procurava se insinuar. O que me interessa é demarcar essas diferenças e perceber como a produção de cada momento enfrenta condições diversas de inserção e confronto inicial com o circuito – pois esse enfrentamento deixa marcas nas obras, ou melhor, as obras já são produzidas para atuar em certas condições específicas de enfrentamento. As poéticas em ação vão se delineando frente a essas demarcações específicas – marcando, sendo marcadas. O enfrentamento de Lygia Clark e Hélio Oiticica com o circuito é bastante diferente daquele percorrido por Carlos Zilio e Waltércio Caldas, por exemplo. Do mesmo modo, o enfrentamento que você relata tem suas especificidades e deixa marcas próprias na produção artística e crítica – diferentes do que enfrentei nos anos 80/90 e que influiu em certos delineamentos de meu percurso. Você não acha interessante estabelecer e perceber essas diferenças? Ao mesmo tempo, é claro que enfrentamos um combate semelhante, frente ao mesmo cenário presente; mas talvez a partir de ‘ângulos de entrada’ particulares. Isso conduz a uma situação interessante: qual nosso ‘combate’ comum? Quais nossas diferenças?
Clarissa: Acho que você tocou num termo fundamental, ponto nevrálgico das mudanças que enxergo entre gerações/circunstâncias de arte no Brasil: combate. Não são muitos os que falam em combate – sintomaticamente, somos levados a substituir esse terminho por outro, tanto mais “pós-moderno e politicamente correto”: embate. A suavização da sugestão de confronto, de tática de guerrilha etc, destronada por um embate que talvez se queira mais dialógico e processual – provavelmente, mais flexível – parece personificar bem o que sinto quando penso em minha, digamos, “situação geracional”. Parece-me claro que, nas últimas décadas, grande parte do mundo ocidental percorreu o trajeto de um modelo de pensamento e ação mais filiado à idéia de contracultura para, mais recentemente, atuar de modo diverso – dialógico, relacional, micropolítico. Sendo bem generalizante, arrisco um exemplo: mesmo havendo Cildo Meireles queimado galinhas vivas em 1970 (Totem), num claro enfrentamento político-moral-etc, o artista logo opta por uma tática mais “subversiva” com suas Inserções em Circuitos Ideológicos e, agora, em sua mostra na Tate (entre 2008 e 2009), age de modo muito diverso: nem enfrenta, nem subverte – convida as pessoas a tomarem parte de sua obra (quarta versão de Malhas da Liberdade, inicialmente de 1977), que se torna, para repetir os termos que citei anteriormente, “dialógica, relacional, micropolítica”. Ainda que, obviamente, cada um dos trabalhos mencionados guarde especificidades de interesse e abordagem e ocorra em simultaneidade com outros (diferentes), acho que colocá-los lado a lado faz vislumbrar a drástica transformação percorrida por Cildo, pela arte, pela sociedade, em suas formas de existir e agir. E me sinto cercada por essa pretensa “outra sociedade” que quer agir junto – vide as últimas bienais de São Paulo. Nada contra esse sentimento – acredito de verdade na esfera pública e na potência do diálogo. Mas quanto ao sistema da arte, tantas vezes acho que testemunho esse desejo de viver junto confundir-se com uma espécie de cumplicidade acrítica entre pessoas, obras ou instituições. Não me refiro apenas à diminuição da “coragem crítica” ou a possíveis “acobertamentos”, mas a algo que acredito ser mais sistêmico, e que – como alguém que se inicia no campo da arte – sinto na pele, dia a dia. Trata-se de uma paulatina e discreta (mormente porque justificada) amortização de processos e estratégias de relativa autonomização/individuação no seio do sistema social da arte. Grosseiramente, é como se, diante da consciência de nos sabermos interdependentes e, por isso, necessariamente relacionados e implicados, colateralmente fôssemos abrindo mão de tentativas mais radicais de diferenciação (demarcação de dissonâncias), que acabam se conformando a sutis esperanças de “subverter o sistema a partir de seu interior”. A isso somado o processo de institucionalização da arte brasileira, me parece que estamos crescendo muito predispostos a agir preferencialmente (quando não somente) na instituição (leia-se: formalidade, oficialidade, etc). É como se sofrêssemos de um “efeito colateral” do processo de institucionalização e profissionalização da arte brasileira. Os tais combates ficam, então, muitas vezes reduzidos a estratégias unicamente retóricas, a insignificantes “críticas institucionais” que na maior parte das vezes condicionam mais a obra do que a instituição, dentre outras frustrações…
Cristiana Tejo, curadora, disse certa vez que somos uma geração “mimada” (Revista Continente Multicultural, n. 88, abril de 2008). Crescemos sendo bombardeados com falas, textos e obras que nos querem fazer ver o quanto gozamos de uma posição confortável (historicamente falando) para produzir e pensar arte, posição conquistada por combates de gerações anteriores, e que hoje nos traz a possibilidade de transitar por entre o que já foram os limites geográficos, de “agilmente amplificar” o alcance de nosso pensamento de um modo tal que outrora pareceria impossível e, em última instância, até mesmo de “viver de arte”. Somando-se a isso um cenário sócio-político-cultural mais amplo, de um mundo descentralizado mormente em sua economia, conflitos e arranjos sociais, me parece intensificar-se sobre nós, assim como já era sentido em gerações anteriores, uma espécie de semi-desrazão existencial: qual nossa razão de ser?, qual nosso “compromisso geracional”? Esse cenário, enfatizado por grande parte das falas de artistas e críticos que nos dizem que somos “privilegiados”, que “já nascemos divulgados” e outras coisas do tipo, faz paulatinamente enfatizar-se uma sensação gosmenta de que estamos pregados a um campo da arte pseudo-movediço que se move menos para promover alterações de ordem fundamental, mas mais, como você comentou, “para fazer as linhas voltarem sempre ao mesmo lugar”, conclusão a que chegam poucos desses “representantes de outras gerações” que aqui grosseiramente generalizo. De modo geral, tentam embutir um discurso de um sistema social da arte flexível, onde tudo é possível, e para o bem do qual devemos atuar sinergicamente, com base no argumento de que, diante de “uma instituição” ainda frágil no Brasil, o mais importante seria fortalecê-la. Implicitamente, a conclusão de que “não há vida possível fora das instituições” parece converter-se numa espécie de necessidade de “cumplicidade acrítica” para com elas, na direção de uma espécie de ilusório e frágil “bem geral de todos”. A pressão, então, é do gênero “diga ao povo que fico”: que fico nos editais, nos cursinhos de artistas, nas pós-graduações, no âmbito do discurso, na cumplicidade acrítica.
E, portanto, o “combate” no qual me vejo hoje é menos um combate contra um possível “outro” e mais, muito mais, um enfrentamento de mim mesma: como manter-me crítica diante de tudo isso? Como não confundir interdependência com cumplicidade? Como redefinir a idéia de autonomia? Como existir nesse espaço localizado entre um modelo de contracultura e outro, mais micropolítico, de forma tal que mantenha acesa e real a possibilidade da constituição de ações entrópicas?
Ricardo: São pulsantes suas inquietações – sobretudo o entusiasmo em cartografar-se, tarefa constante para aqueles que desejam manter em aberto os canais de fluência do poema e intervenção no ambiente. Cada um destes dois momentos não é nada simples: intervenção crítica; intervenção poética – como é difícil a convergência destes dois momentos-modalidades em instantes-chave de ação. Mas esta – a articulação conjunta dos campos poético + crítico – seria a possiblidade mais interessante, decisiva, produtiva. Uma ressalva: o termo ‘crítico’ deve ser redimensionado, para que não corresponda a um distanciamento neutro e incorpore contaminação&contato. Cada um de nós articula diversas tentativas e procura a continuidade de esforços conjuntos, em rede. Hoje se enfrenta uma complicação particular, quando o jogo da arte se compõe com o mundo financeiro informatizado, nas tramas do capitalismo atual: tal “nó” é nossa complicação, pois toda a energia de ‘oposição’ ou ‘resistência’ parece apenas alimentar e reforçar a situação de captura, sem área de escape ou sombra. Há uma dificuldade concreta em se reinventar espaços e áreas de contato; um cuidado redobrado em relação aos protocolos de tais gestos; como produzir valor ali? As estratégias devem ser pontuais, em avanço cauteloso para que sejam recuperadas algumas áreas de movimentação mais livre, constituição de fala. Mas não está fácil: a tarefa é ‘micro’, de articulação conceitual/sensorial, de um cuidadoso sentir/fazer/pensar de um só golpe (como recuperar um tempo mais distendido?). Recentemente estive em um seminário, como parte do Projeto Pedagógico da 7ª Bienal do Mercosul, do qual participo como artista. Cada um dos 12 artistas convidados para o projeto Pedagógico terá um período de residência em alguma região do Rio Grande do Sul. A conversa entre os artistas participantes e intelectuais convidados foi extremamente interessante, pois ali se configurou uma possibilidade de atuação fora dos limites expositivos da própria Bienal, em que o Projeto Pedagógico se afastou de qualquer didatismo simplificador e alinhou-se com a intervenção poética: a proposta curatorial se posiciona no sentido de extrair metodologias das práticas artísticas, que contenham “capital pedagógico” (expressão da curadora e artista Marina de Caro). Ficou claro que esse espaço se colocava, frente ao evento, como área de atuação mais aberta, sem pressões tão diretas do circuito institucional da arte, possibilitando tempos mais generosos de contato com o outro e expectativas de efeitos diversos que não a inclusão imediata em coleções ou deslocamentos pelo mercado. A impressão que se teve é de que a Bienal toda deveria submeter-se ao mesmo processo, trabalhar em tais espaços de contato mais amplo. Elaborou-se ali algum gesto pontual de resistência, incorporando-se outros caminhos ao processo da arte; sem, entretanto, qualquer ilusão de que as estratégias institucionais principais, hegemônicas, sejam significativamente desviadas. As curvas são locais, desvios quietos para obtenção de um processo mais rico – toda a dificuldade se daria em relação ao armazenamento de processos, sempre mais ricos que a coleção objetual. Esta constrói valor quando mobiliza e atualiza processos, produz contatos – e não apenas conserva a coleção. Convém lembrar que há um momento em que o “compromisso geracional” se esgota e outras tarefas se impõem; a economia do consumo da poética proposta pelo artista gera complicações suficientes para mobilizar atenção significativa. Entretanto, uma ação em rede coletiva é insubstituível: trabalhar com seus pares em regime de cumplicidade produtiva é gesto portador de força sensacional e insubstituível.