Sobre

Surgida, em 2006, como iniciativa independente de estudantes do curso de Licenciatura em Ed. Artística/Artes Plásticas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a revista Tatuí foi, desde seu princípio, um dispositivo para a experimentação das possibilidades da crítica de arte, em razão do que, já em seu primeiro número (produzido ao longo do SPA das Artes ‘06), a revista apostava na ideia de uma “crítica de imersão”.

Interessada em esgarçar o legado moderno da crítica de arte em suas ideias de distanciamento e de imparcialidade, a Tatuí buscou, ao longo de seus 14 números, produzir debates e abordagens críticas avessas a quaisquer ideias de neutralidade. A crítica engendrada pela revista foi, assim, sempre da ordem da tomada de posição, do engajamento e da contaminação entre os diversos sujeitos – dentre eles, também as obras de arte – implicados no exercício de um pensamento crítico.

Suas estratégias editoriais foram plurais e, de modo geral, organizaram-se em dois eixos: de um lado, processos imersivos; de outro, recortes temáticos. Assim como ocorreu nas edições 1, 3, 00, 10 e 13, a ideia de uma crítica de imersão foi expandida e tensionada ao longo de residências editoriais que se deram em contextos variados, durante as quais os editores e editoras convidados/as conceberam coletivamente modos de se fazer crítica de arte, de textos a filmes. Por sua vez, as edições temáticas visaram provocar, a partir de questões contundentes, um debate crítico público, denso e diverso, em que posições estéticas, políticas e sociais fossem continuamente friccionadas e complexificadas.

Até 2015, quando concluiu sua trajetória, a Tatuí havia publicado quase 200 textos/intervenções críticas de dezenas de autoras e autores de todo o Brasil (e, em alguns casos, estrangeiros/as). Artistas, pesquisadoras/es, críticas/os, curadoras/es, educadoras/es, escritoras/es, jornalistas, filósofas/os, sociólogas/os e tantas outras e outros autoras/es colaboraram solidária, generosa e intensamente com seus projetos editoriais, os quais foram também constituídos por projetos gráficos singulares que fizeram, da relação entre imagem, espaço e texto, um profícuo território para a criação e a crítica.

Para viabilizar essa trajetória, além da contribuição espontânea que tornou possível a sua primeira edição (um fanzine produzido em fotocópia), a Tatuí contou com aportes da Prefeitura da Cidade do Recife, do Governo do Estado de Pernambuco e do Governo Federal. Contou, ainda, com a colaboração de dezenas de doadores que tornaram possível, por meio de uma campanha de crowdfunding, a sua edição número 12.

Este site reúne as muitas partes dessa trajetória de nove anos: revistas, textos, fotos, vídeos, reflexões críticas, depoimentos, registros das residências e dos laboratórios editorias ministrados em diferentes cidades. Trata-se, por isso, de um arquivo público, disponível a todas e todos que se interessam pelo exercício da crítica de arte e, em especial, pela trajetória da Tatuí.

Equipe

Ana Luísa Lima
Ana Luísa Lima Edição
Bebel Kastrup
Bebel Kastrup Produção Executiva
Clarissa Diniz
Clarissa Diniz Edição
Daniela Brilhante
Daniela Brilhante Design Gráfico
Virgínia Correia
Virgínia Correia Assistente de produção

Colaboradores

Reflexões

  • Ensaio Ana Luisa Lima
  • Ensaio Clarissa Diniz
  • Estudos Sobre a Tatuí

Como inaugurar um gesto;

ou, por uma política do dissenso

 

“Raramente se engana quando se liga o exagerado à vaidade, o medíocre ao costume, e o mesquinho ao medo.”

Nietzsche em Humano, demasiado humano

 

Entendi que a Revista Tatuí teve uma trajetória bem sucedida no-quando de seu suposto fracasso. Em 2015, ao decidirmos que já não havia contexto, mais interno do que externo, que nos permitisse seguir editando a revista, fiquei um tanto sem chão, porque até então era o projeto ao qual gastei mais tempo me debruçando e era a partir dele que costumava iniciar minhas investigações. No exercício de editar a Tatuí é que me tornei crítica de arte. Um lugar que, no Brasil, estava fadado à invisibilidade: de um lado, por uma ausência de veículos perenes em que juntos compusessem um corpo crítico; do outro, o excesso de textos sobre arte produzidos, por demanda de mercado, mais opinativos do que investigativos, mais elogiosos do que de fato analíticos.

Costumamos lembrar que a Revista Tatuí não pode ser conformada ao gesto de uma pessoa, ou mesmo duas, ou de um grupo. É um projeto que ganha um viés coletivo desde seus primeiros passos, com muitos pés, pernas, mãos, braços e desejos que não nos permitem delinear sua trajetória por um ponto de vista único.  Qualquer um/a que tenha se aproximado, sobretudo em afeto, traz em si um/a narrador/a em potencial criativo e criador. Para além de evitarmos “o perigo de uma história única” [1 -“O perigo de uma história única” foi uma palestra proferida na ocasião da Conferência Anual – TED Global 2009, entre os dias 21 a 24 de julho em Oxford, Reino Unido, que trazia como tema “A essência das coisas não visíveis”, pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie, reconhecida mundialmente por seu livro “Hibisco roxo” de 2003. Sua fala é um alerta sobre as narrativas totalizantes impostas por países hegemônicos aos países em subdesenvolvimento econômico em que focam suas tragédias e vulnerabilidades, deixando de lado suas riquezas sócio-culturais. Tais miradas, comumente degradantes, favorecem movimentações hierárquicas entre esses países sempre de forma assistencialista, de um para o outro, e nunca de cooperação mútua.], citando Chimamanda Adichie, nos afastamos categoricamente de sermos cooptadas por um historicismo, cafona em sua forma monocromática e linear em dispor dos acontecimentos que construíram a revista, que costuma criar certa fantasmagoria a partir de nossas histórias – que se querem, sim, sempre plurais. Tal fantasmagoria, de uma só vez, tende a privilegiar elaborações totalizantes, enquanto que em todo tempo nosso esforço foi dispor também dos vazios e das incertezas, procura forjar também áureas heróicas em torno de um fazer editorial, antes de tudo, vacilante: porque por natureza “demasiadamente humano” (Nietzsche).

É preciso contar que em 2006, quando surge o anelo de gestar o projeto Revista Tatuí, ainda estávamos na universidade (UFPE – Universidade Federal de Pernambuco), nos debatendo com toda sorte de escassez – resultado, ainda, de um desmonte promovido pelos anos aniquiladores e silenciadores perpetrados pela ditadura militar. Nossas formações tinham as limitações de ementas muito retrógradas, de um curso de licenciatura em Educação Artística – Artes Plásticas, a única graduação superior no campo das artes visuais disponível no estado de Pernambuco até então. Em meio à luta de tentar reconstruir representações estudantis – naquele momento não havia DCE [2-Diretório Central dos Estudantes.], nem DA’s [3-Diretório Acadêmico] atuando politicamente, quando não existiam de fato, desempenhavam apenas as funções de produzir as carteiras de identidade estudantil e as “calouradas” (festas de recepção aos novos/as alunos/as universitários/as, os/as “calouros/as”) –,  também tentávamos nos desdobrar para preencher lacunas que melhorassem nosso processo formativo como vencer burocracias para transformar o curso em bacharelado, tanto quanto, fundar oportunidades por onde acessar conteúdos e escorrer nossas produções prático-teóricas.  Professoras/es como Maria do Carmo Nino e Marcelo Coutinho, uns dos/das pouquíssimos/as que tinham pós-graduação naquele momento, doutorado e mestrado respectivamente, eram também os que se dispunham em coragem a curvar os conteúdos programáticos classicistas em experiências contemporâneas de grande bagagem experimental e filosófica. Há nenhuma dúvida de que as editoras, inspiradas em suas formas de dar aulas, puderam conceber a Tatuí com características de abertura e afeita à experimentação.

A nós, interessava que não só os conteúdos trouxessem um exercício sincero do pensar crítico, mas que a forma também pudesse ganhar traços de desenhos experimentais. Assumimos o convívio com as/os artistas e “contaminação” própria desse contato, como o estado de efervescência ideal para que um modo de crítica de arte pudesse surgir longe do pretensioso (con)texto eurocêntrico que pedia ‘distanciamento’ e ‘imparcialidade’. Foi assim que a necessidade de encarnar nossas escritas – no sentido mesmo de tornar carne, matéria – que a Tatuí inaugura uma “crítica de imersão”. Modo ao qual a performatividade é assimilada como parte constitutiva de um escrever que permite acessar todos os canais de percepção do corpo para uma produção textual sobre arte que também descende de uma fazer artístico.

Muito mais como gesto, menos como conteúdo, penso que a Revista Tatuí se moveu com uma verve instauradora. Afinada com os desejos transformadores do seu tempo, os fazeres editoriais acabaram se tornando dispositivos para construir espaços de troca e fruição.  Não à toa, somados à produção material de cada número surgiram residências editoriais, laboratórios de escrita, participações em feiras de impressos, feiras de arte, palestras etc. Dentro disso, a revista foi fundamental não só na construção de debates essenciais naquele momento histórico de reconstrução político-cultural, como também protagonizou ações afirmativas criando demandas para novos editais no desejo de que também pudessem ser pensadas outras formas de políticas públicas.

Penso que a Tatuí cumpriu um papel de agenciamento em torno da crítica de arte, naquele momento, um tanto invisibilizada, ao transformar-se em corpo crítico junto à revista Número (SP) [4-A Revista Número foi uma publicação independente de arte e crítica editada pelo antigo grupo de ‘jovens críticos’ do Centro Mariantonia/USP, entre 2003-2010, e teve edição de 10 Números. No site do Fórum Permanente é possível revisitar a revista e ler textos iniciais de seus editores, entre eles Cauê Alves, Guy Amado, Carla Zaccagnini, Fernando Oliva, Juliana Monachesi, José Augusto Ribeiro, Afonso Luz, Tatiana Ferraz, Thaís Rivitti e Thaísa Palhares, além de vários convidados/as.] e às outras que surgiriam logo após como Dazibao (SP) [5- A revista Dazibao publicou seu primeiro número impresso em 2011, e teve apoio da revista Tatuí para sua distribuição nacional. Entre o corpo de editores estão o historiador Gustavo Motta, o arte educador Guilherme Leite Cunha e os artistas Roberto Winter e Deyson Gilbert.], Elástica (RJ) [6-Proposta por um grupo de editores – a curadora Beatriz Lemos, o artista e fotógrafo Rafael Adorján e a artista e tradutora Thais de Medeiros, Elástica vem se somar às novas propostas em artes que visam expandir o espaço da crítica, ação e pensamento. Contaram com a colaboração de artistas, críticos e pensadores que participavam ativamente da cena artística brasileira e internacional. Com periodicidade trimestral, Elástica trouxe edições temáticas, tendo sempre em conta o conceito essencial da revista que vem a ser o alargamento das fronteiras.], Lab (PR) [7-O lab. foi uma iniciativa da pesquisadora e curadora Ana Rocha e da artista e arte educadora Lailana Krinski de dar sequência à experiência que tiveram com um laboratório realizado na EMBAP com as editoras da revista Tatuí, em 2010. A ideia é um grupo de pessoas discutindo temas e exposições que estão acontecendo no momento das reuniões. Geralmente o lab. acontecia em uma sequência de dias seguidos, como processo de imersão em que todos os/as participantes são convidados/as a escrever e discutir seus textos coletivamente.] e muitas outras.  No início de nossa caminhada, ainda não eram claras as linhas editoriais que pretendíamos seguir, no entanto, já se demonstrava muito clara a necessidade da revista se tornar um observatório dos contextos sócio-políticos e de como o sistema de arte se comportava. Nesse desejo de observar, eram também necessárias que fossem diversas as miradas, plurais e equidistantes as vozes que falariam daquele lugar que estávamos construindo.

Graças a isso foi possível reunir conjuntos de textos sobre alguns temas que comumente questionavam a mão, nem tão invisível, do mercado. Esses textos traduziam pontos de vistas muito diversos, alguns dos quais necessariamente não representavam os posicionamentos de sua equipe (que também divergia entre si), ainda assim, como gesto político, absorvidos completamente como parte desse mirante que tentava vislumbrar aquela paisagem histórica que estava por se construir também ali conosco. Com as ferramentas que tínhamos, quase sempre precárias, porque comumente nos faltava estrutura por viabilizar, foi possível, contudo, antecipar debates que iriam se aprofundar anos depois. Discussões como apropriação cultural, processos decoloniais, importância de democratização da linguagem, o afeto como política são alguns dos debates fundamentais hoje que já estavam sendo pensados antes mesmo da produção desses conceitos [9-Os textos “Como a arte global transforma a arte étnica” de Laymert Garcia dos Santos e “Modos de aproximação” de Ligia Nobre na Tatuí 12 acentuam pontos de uma mirada decolonial. “Num trem pras estrelas” de Ana Luisa Lima na Tatuí 14, um texto de 2011, sinaliza a necessidade de expansão da linguagem para que caibam todos os gêneros, toda pluralidade, adianta também discussões sobre apropriação cultural. Sobre a necessidade de uma mirada decolonial versa o texto “Você é Macunaíma Colorau? Um debate ético-estético” também de Ana Luisa Lima na Tatuí 8, também da autora o texto “Script para um conto contemporâneo” que aponta a afetividade como posicionamento e modo de fazer política, está na Tatuí 12.].

Havia naquele momento histórico dos anos 2000 uma produção artística de mãos dadas a produções teóricas ainda interessadas em criar lugares de discussões, sobretudo, lugares de experimentações que permitiam destituir e reconstruir algumas fronteiras. Um contexto sob o qual fazia sentido seguir produzindo crítica. No entanto, já nos meados dos anos 2010, cada vez mais, passei a questionar a capacidade das artes visuais produzirem experiências transformadoras.  Porque me parece que as produções artísticas, desde ali, nascidas de certo conforto político-social promovido pelos últimos governos petistas, animadas pelas demandas de mercado, tornaram-se cada vez mais longes de serem fabuladas/construídas a partir de experiências de fato. Trata-se de um efeito colateral promovido pelo excesso de eventos de arte engendrados, sem lastros de investigação e pesquisa, para suprir sedes mercadológicas. Criou-se para tal demanda um dispositivo esvaziador dentro das artes visuais no simples fato de que fenômenos históricos, geopolíticos, sociológicos são reduzidos a “temas” de exposições como um “assunto” sobre o qual o/a artista é convidado/a pensar. Daí é que surgem as artes-comentários com abordagens simplistas, superficiais, sem nenhuma capacidade de gerar reflexões transgressoras, mas sim, meras constatações.

Depois de um pouco mais de uma década de certa primavera cultural e intelectual no país, com a construção de dezenas de universidades e investimento nas mais diversas linguagens artísticas, a experiência das artes, a ideia de imaginário simbólico coletivo, enquanto pesquisa aprofundada de um vocabulário estético, passa a reformular um lugar de “seguridade” e abre caminho para produções que só reafirmam as artes visuais ainda eurocentradas, incapazes de respeitar ancestralidades, historicidades, cosmogonias plurais. Ora, nem tudo é passível de ser “reproduzido”. Lugar de fala é mais profundo do que o combate ao desejo brancóide de ser porta voz de todas as experiências do mundo.  Para além disso, vale ressaltar que existem formas de atuação política, algumas anarquistas, algumas alicerçadas nos movimentos sociais, que têm suas próprias formas estéticas e performativas, por isso, sobretudo no nosso atual contexto, mais potentes e revolucionárias – vide o inspirador levante dos estudantes secundaristas. Enquanto grupos hegemônicos, mesmo na esquerda, se “ofendem” com posicionamentos de enfrentamentos, há outras realidades cujo enfrentamento é modo de existir. É nesse momento que me começo a me juntar a ideia de fim da Revista Tatuí.

Em 2015, a Tatuí decide não mais seguir produzindo conteúdos.  Coincidentemente, é o mesmo momento histórico em que o país sucumbe a uma crise ética e começa a andar em direção a um golpe político-jurídico-midiático. Tal crise ética é antes de tudo rearticulações de condutas hegemônicas que negam os modos plurais de ser e estar no mundo e reivindicam soluções simplistas para demandas complexas e posicionamentos uníssonos e polarizados no lugar do dissenso. Ao contrário disso, a Revista Tatuí resolve manter como forma potente o dissenso [9-Sobre isso há uma curta mas contundente fala do escritor israelense Amós Oz sobre como a cultura industrial afetou a democracia ao substituir a política por entretenimento. Deixo um link sobre uma reportagem com ele a esse respeito https://www.fronteiras.com/artigos/crise-democratica-e-fruto-da-industria-cultural-diz-escritor-amos-oz] e apostar que ao seu fim surjam outros agenciamentos possíveis dos encontros promovidos em sua rica trajetória.

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Sobre isso, vale reafirmar a necessidade do dissenso para assegurar a possibilidade dos modos plurais de ser e estar no mundo, razão primeira de ser o Estado Democrático de Direito – e não ser tutelado apenas pela maioria homogênica e hegemônica, como equivocadamente se costuma defender. Mas, se o dissenso garante diversidade, pluralidade, é na convergência que é possível aprofundar camadas, expandir subjetividades. É na relação de troca entre pares, sobretudo, afetivo-intelectuais que memórias ancestrais se reacendem e conhecimentos ganham novos contornos. Nesse sentido, gostaria de dedicar esse momento para celebrar os encontros que a Tatuí promoveu e que foram/são significativos para minha formação e seguem sendo bússolas nas minhas práticas atuais como editora e escritora – já não mais, crítica de arte. A designer Daniela Brilhante é um dos pares que mais estimo e por causa dela é que a Cigarra Editora [10-Cigarra Editora foi criada em junho de 2015 pela crítica de arte e editora Ana Luisa Lima. Criada em São Paulo e, atualmente, baseada em Recife, essa pequena editora independente dedica-se a tornar reais projetos experimentais e multidisciplinares. Tanto quanto tornar acessíveis livros de arte e literatura através de parcerias com iniciativas privadas ou programas e incentivos públicos.] se tornou possível. Responsável pela identidade visual do projeto, essa é uma parceria que me permite seguir experimentando o limiar da forma-conteúdo nos projetos autorais e editoriais que assinamos juntas.  A escritora Daniela Castro tem uma relação direta em como minha escrita resolveu transgredir a fronteira entre a crítica de arte e a literatura. Foi no exercício de nosso afeto que aprendi a fazer política com contundência sem perder de vista a generosidade. Os textos e projetos curatoriais de Ligia Nobre são um norte de como a ética e a estética devem seguir irmãs. E, finalmente, a historiadora de arte italiana Roberta Garieri é a coragem e o fôlego de uma verve feminista, antieurocêntrica, política e libertária na escrita e nos projetos que ressignificam a função curatorial. Tenho o coração aquecido em gratidão pelas oportunidades que a Revista Tatuí trouxe de conhecer e/ou criar laços de amizades com essas pessoas deslumbrantes.

A primeira Tatuí, que sequer se imaginava como uma revista – senão como um projeto pontual realizado ao longo da 3a Semana de Artes Visuais, SPA das Artes, em Recife –, já “almejava”, todavia, “dar uma sacudida em nossa ainda afoita e imatura pulsão crítica”. Antes de ser um projeto editorial, seu caráter (auto)perturbador declarava-se enquanto dimensão metodológica e, mais especificamente, performativa: “(..) fazemos este fanzine apelando para o nosso corpo para ver se, esgotando-o, chegamos perto de esgotar também nossas prévias formatações de pensamentos (…). A ideia é simples: passar o dia inteiro correndo de um lado ao outro em busca dos trabalhos e depoimentos de artistas (…) e, em meio a essa correria, refletir” [1 -Trechos de glub, glub, glub, editorial da Tatuí 1].

Convocado para o epicentro da prática crítica, naquela primeira Tatuí o corpo era também forçado a uma situação de exaustão que – por ser necessariamente física (noites sem dormir, longas caminhadas pela cidade, cansaço pelos dias sob o sol e assim por diante) – sustentava a esperança de conduzir-nos ao ansiado horizonte do esgotamento epistemológico das tradições da crítica de arte. Desconfortáveis diante de binarismos como “racionalismo ou empiria” que persistiam em nosso ambiente de aprendizado e de trocas, confiávamos ao corpo a responsabilidade de esvaziá-los de sentido, esgotando as hipóteses que nos haviam sido legadas para, noutra direção, apontar para outras perspectivas da crítica.

Curiosamente, a despeito da intenção anunciada naquele já distante setembro de 2006, os textos que integram a Tatuí 1 são marcadamente conservadores se revistos desde a perspectiva do que veio a ser publicado nas edições que se seguiram. A não ser por um aspecto que, mesmo que seja inextricável ao exercício crítico, nem sempre tem sua evidência salvaguardada – o sujeito que se enuncia junto com sua crítica. Ou melhor: uma forma de fazer crítica que força seu sujeito a se enunciar enquanto posição.

Esse sujeito – inclusive corporalmente – consciente de seu lugar de fala e, portanto, das especificidades de sua posição crítica, foi experimentado na Tatuí 1 e nas outras versões da prática imersiva que vieram depois dela. Ele foi também multiplicado quando, nos números 00, 10 e 13, outras pessoas foram convidadas a participar das “residências editoriais” que, a partir de então, programaticamente esgarçaram “a linguagem da crítica”, tensionando-a como poema, ficção, imagem, carta, confissão, ensaio, espaço, cartaz, filme, coisas sem nome, dentre outros. Ao longo de quase nove anos de atuação, a Tatuí dedicou-se a flexionar aspectos diversos da crítica canônica. Nesse processo, foi questionada se ainda estava produzindo crítica: encruzilhada epistemológica da maior relevância posto que o esgotamento era, efetivamente, sua pedra fundamental.

Esses sujeitos críticos estavam também geopoliticamente posicionados. Nordestinas, editando uma revista independente e de caráter experimental em Pernambuco, convocávamos e nos remetíamos ao Brasil. Em seus projetos editoriais, a Tatuí nunca falou em nome do Nordeste, nem esquivou-se de propor debates que lhe parecessem pertencentes a múltiplos sotaques. Ao contrário, colocou, como questões “gerais” ou “nacionais”, perguntas e outras inquietações que experimentávamos desde nosso lugar de fala, inflexionando os vetores que direcionam, sempre do centro às margens, as dinâmicas isomórficas do debate crítico.

Como conta Ana Luisa Lima na reflexão aqui publicada, tratava-se de um momento em que, dadas as políticas afirmativas do governo petista, o Brasil tentava criar condições menos – econômica e socialmente – desfavoráveis para a produção cultural posicionada fora do famigerado “eixo hegemônico”. É contra esse pano de fundo que, portanto, dava-se a atuação da Tatuí [ 2 – Além de investimentos de pessoas físicas via caixinha, compras e crowdfunding, a revista contou com patrocínios municipais, estaduais e federais.], em cujas páginas fez-se, muitas vezes, críticas contundentes ao modus operandi do assim chamado establishment.

Enquanto, por exemplo, edições como a 4, a 7, a 11 ou a 14 – respectivamente, em torno a ideia de coerência, de organização social, de mobilidade ou de forma – abordavam assuntos comuns desde perspectivas nem sempre tão confortáveis, a Tatuí chegou inclusive a elaborar sua número 12 como uma dinâmica de diálogo crítico na qual curadores, artistas, pesquisadores, etc, foram convidados a analisar criticamente um texto recente de outro autor, à sua escolha. A despeito da programática orientação para o antagonismo que a Tatuí buscou fomentar, a desconstrução da convi-conivência (Hélio Oiticica) da crítica brasileira – ainda hoje monopolizada por convivências coniventes – parecia uma dificuldade que operava política, estética e epistemologicamente.

Pois, quando que a Tatuí produziu críticas desconcertantes – desde a perspectiva da linguagem, e além –, não foram poucos os que rapidamente responderam classificando como “artística” aquela vocação disruptiva. Como se a reconhecida diversidade da criação à qual filiavam a revista corroborasse, por seu “avesso”, para conservar a crítica num território publicamente menos antagônico: um movimento de retorno à ordem política e epistêmica da crítica quando, advertidamente, buscávamos seu esgotamento e contínua recriação.

Cinco anos depois do encerramento da revista, ainda considero que, diante do conservadorismo da arte brasileira, sustentar a afirmação de que a Tatuí foi uma revista de crítica mesmo quando podem nos faltar palavras para, por exemplo, circunscrever Cruza [ 3 -Disponível em: https://vimeo.com/46550424] – o filme que, peça-chave da Tatuí 13, foi produzido ao longo de uma residência editorial no festival Cine Esquema Novo (Porto Alegre, 2011) –, é radicalmente produtivo. Refletindo e, como tal, devolvendo as normatividades que sancionam o que pode (ou não) ser arte ou ser crítica, a trajetória da Tatuí parece ter perseguido as intenções anunciadas quando ainda era um fanzine – “é na ânsia de revolver a nós mesmos que aqui nos colocamos”.

Se, ocupando os vazios onto-epistêmicos que criou para si, seus colaboradores e interlocutores, a revista zerou o que seria sua nona edição por saber – como revela o editorial daquele número – que o “zero está grávido”, mais adiante, em sua décima quarta edição, a Tatuí tomou a si mesma como corpo e, exaurida, esgotou sua trajetória por saber-se prenhe.

Compartilhamos algumas pesquisas e reflexões sobre a Tatuí e o contexto da produção de crítica de arte independente no começo do século XXI, no Brasil.

Intenções editoriais: quem lê e quem escreve, para que 
17o Festival Videobrasil | Panoramas do Sul. Mesa de debates com Fernando Oliva, Miguel López, Clarissa Diniz, Luisa Ungar & Nadia Moreno e Suely Rolnik (Sesc Belenzinho, 2011)

A crítica especulativa
por Leonardo Araújo. Revista Concinnitas (UERJ, 2013)

Depende da hora da glória de embora: a prática da crítica nas revistas Tatuí e Número nos anos 2000
Dissertação de mestrado de Carolina Sinhorelli de Oliveira (UFRGS, 2016)

Crítica de arte, processos imersivos de criação e intervenção urbana em publicações independentes
IV Encontro art research journal & I Fórum nacional de editores de periódicos da área de artes
Mesa de debates com Brigida Campbell, Clarissa Diniz e Ricardo Basbaum (Museu de Arte do Rio, 2016)

Revistas Concinnitas e Tatuí
Entrevista com Clarissa Diniz, Fernanda Pequeno, Jorge Cruz, Sheila Cabo e Inês Araújo. Revista Concinnitas (UERJ, 2017)

“O encerramento da Revista Tatuí e a crise da crítica de arte”.
Trabalho de conclusão de curso de Fernanda Carvalho de Almeida. (UFPR, 2018) DOWNLOAD

 

Depoimentos

  • Revista Propágulo
  • Rafael Campos Rocha
  • Newton Goto
  • Dilma Gabiru
  • Daniela Brilhante
  • Cristhiano Aguiar
  • Bruno Vilela