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Capa da revista

EDITORIAL

Concebida in vitro durante o SPA 2006, a Tatuí está de volta. Esta segunda edição conta com o apoio da Fundação de Cultura da Cidade do Recife, o que possibilitou construir uma revista mais robusta e colorida.

A principal novidade é a presença de colaboradores (artistas, críticos e curadores) que ajudaram a compor uma Tatuí plural. Ao agregar outros – pessoas, idéias, textos – a Tatuí se aproxima do que temos vislumbrado: que esta seja um espaço de interlocução e reflexão sobre arte e subjetividades.

Agradecemos, portanto, a solicitude de todos aqueles que participaram da Tatuí, bem como a disposição da Prefeitura do Recife em acreditar no nosso trabalho. É desejo nosso que esta revista seja tão prazerosa de se ler quanto é de se fazer!

Colaboradores

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Imagens/Vídeos

Conteúdo

Índice
  1. Arte e Sociedade - Escrito por Lourival Batista, Márcio Almeida, Maurício Silva e Silvia Paes Barreto
  2. Rodrigo Braga - Escrito por Ana Luisa Lima
  3. Expedição Paulista - Escrito por Clarissa Diniz
  4. Rapidinhas - Escrito por Aslan Cabral, Bianca Tomaselli, Cristiana Tejo e Lisette Lagnado
  5. Transparências e incandescências num Pátio de São Pedro - Escrito por Clarissa Diniz
  6. Bruno Vilela - Escrito por Ana Luisa Lima
  7. Procurando pela complexidade na obviedade - Escrito por Barbara Rodrigues
  8. Por uma poética da resistência: sobre a série Inimigos de Gil Vicente - Escrito por Maria do Carmo Nino
  9. É disso que eu gosto! - Escrito por Simone Cruz
  10. Desejo eremita - Escrito por Rodrigo Braga
  11. Certifique-se - Escrito por Ana Luisa Lima
  12. Arme os malucos, depois discuta que filmes influenciaram suas decisões. - Escrito por Carlos Heitor Barros

Arte e Sociedade

Se alguém estiver esperando alguma coluna do Alex na Tatuí, que se apresente para fazer a cobertura jornalística das exposições freqüentadas pela Alta. E não fiquem tão felizes com os espumantes servidos no terraço do remodelado centro cultural mantido pelo banco cheio da grana, pois provavelmente foram comprados com o nosso suado dinheirinho através de mecanismos de renúncia fiscal. Mas, o que fazer se precisamos de espaços expositivos de qualidade onde desaguar a produção artística local, e ainda mais de glamour, de espumantes e caviar nestas exposições?

 

1 – De quando proposições artísticas nos põem diante de dilemas éticos.

O que pensar quando à frente de um barraco de invasão, deslocado para ser exposto em uma sala de museu, aspirar ao úmido olor da matéria de que era feito e sentir o cheiro avesso de gente entranhado nas tábuas, nos móveis, vindo do interior?

Ante o impacto da presença, aos poucos tentei ordenar os pensamentos a fim de deslindar o meu embaraço. A princípio a repulsa. Indignou-me a feiúra da miséria. Considerei se aquela sensação de choque, ativada na proximidade física a algo normalmente distante, seria algo parecido com um êxtase estético e me culpei pela anuência à estetização do barraco. Em seguida questionei se o deslocamento do barraco era arte. Reincidente e dita irrelevante por uns, a questão há de ser considerada, pois, sabendo-se que a motivação de Márcio Almeida não era a de reverenciar Duchamp, haveria necessidade em exibir o que servira de moradia? Pois, se uma família habitara ali de fato, haveria impedimentos éticos a expô-la daquela maneira?

A presença do barraco não era exatamente necessária, mas não imagino como a experiência que proporciona poderia acontecer de outra maneira.

Culpo-me por pensar nele como a feia cara da cidade. O barraco transportado para o museu indicia os deslocamentos na urbe. Deslocamentos forçados das famílias, motivados por políticas públicas ou por especulação imobiliária. Fez-me pensar também na porosidade entre arte e sociedade na proposta do artista. Logo percebo que seria um erro ingênuo pensar que o dado social no trabalho de Márcio estaria no fato dele ter transferido todo o dinheiro da bolsa para a compra de uma moradia mais adequada à dignidade de uma família. Louvável, contudo, tendo a pensar que a força do seu ato artístico está no que tem de político.

A meu ver, Entre o novo e o nada toca em questões de visibilidade e inserção, contra a desqualificação de pessoas moradoras de áreas de invasão. Condenamos à invisibilidade aqueles que moram em barracos como se a insalubridade das moradias precárias fosse o reflexo do caráter de quem nelas habita. Entre o novo e o nada traz à cena pública aqueles que não ascendem à categoria de vizinhos, mesmo quando estão morando bem à nossa frente.

Um vídeo que acompanhava a instalação exibia o processo de negociação para a troca do barraco por uma casa escolhida pelo artista. Permanecem os questionamentos. O artista faltou com a ética ao tirar proveito de uma situação de poder para negociar uma troca com aquela família? Em outras palavras, ele se beneficiou da vulnerabilidade daquela família?

Fosse outro artista talvez, mas Márcio Almeida tem um longo trabalho de investigação em torno dos deslocamentos e em torno de afetos, apegos aos lugares e seus nomes. Ao mostrar que mesmo nessas famílias vulneráveis há apego às coisas e ao lugar de moradia, Márcio desencavou uma série de significados acerca das questões citadinas. Ao nos franquear a negociação dessa troca, cobra-nos uma resposta diferente da mera desconsideração do problema das populações que habitam esses enclaves de pobreza.

A seguir algumas palavras de Márcio Almeida sobre estas e outras questões de Entre o novo e o nada:

Tatuí: Como se deu a negociação para a troca?

Márcio Almeida: Eu dizia o tempo todo nas negociações que eu não estava sendo um cara bonzinho. Eu dizia que estava trocando um trabalho por outro. Não chegava falando “ah, você ganhou o caminhão do Faustão”, sabe? Busquei alertar de que a troca envolvia perdas, e que estas talvez fossem mais violentas do que meramente perder um guarda-roupa, um fogão, perder qualquer coisa dessas.

Tatuí: Quanto tempo demorou a negociação?

Márcio Almeida: Eu recebi vários “nãos”, e teve casos de pessoas que não me receberam. Eu fiz uma matéria no jornal antes, pra poder ir com um jornal na mão dizer que realmente eu era um artista plástico que tinha esse projeto, meio que para me documentar. Inclusive no vídeo tem um cara que só aparece em fotografia, de costas, pois ele não permitiu que eu filmasse. Ele ficava de costas o tempo todo, mal falou comigo.

Tatuí: Qual a importância dessa negociação para o trabalho?

Márcio Almeida: Esse trabalho tem uma abertura de reflexões que eu mesmo não tenho controle a respeito. O que eu já conversei e falei a respeito desse trabalho, vejo que cada vez que converso novas reflexões surgem. E uma coisa muito bacana é que, por exemplo, somente aos poucos eu fui me dando conta de que a importância desse trabalho para mim era a ação e que eu não tinha o mínimo interesse em montar esse barraco em outro lugar depois.

Tatuí: Você se deu conta depois que o importante era a negociação?

Márcio Almeida: A negociação e a ação, assim, por exemplo, o trabalho era essa mudança da família. Na verdade se me chamassem para expor esse barraco hoje, eu não estaria afim. Faria muito mais sentido pegar a grana do transporte e fazer outra ação. Eu acho muito mais interessante porque é uma coisa que é do momento, que é a ação, que é performance. É como antes com o GPS quando eu rodava pela cidade, sozinho, sem que ninguém soubesse, criava umas rotas, e isso era o trabalho…

Tatuí: E você não registrava?

Márcio Almeida: Eu acho que meu trabalho não precisa de registro… ele é a ação.

Tatuí: Quais seriam as implicações éticas de Entre o novo e o nada, como foi que ele repercutiu?

Márcio Almeida: Esse trabalho mexe em coisas, por exemplo, do poder do artista de ter a moeda para negociar, então isso te coloca numa situação de poder. Eu tinha a casa que era melhor do que a que o cara morava, e de certa forma isso me colocava numa situação de poder. E eu o tempo todo queria mostrar que a relação não era essa, que a relação era a de troca de trabalho, grosso modo, era como se eu estivesse trocando uma casa em troca de uma escultura para o meu trabalho. Eu explicava para eles que não estavam me dando um barraco, uma situação de miséria dele.

Tatuí: Você explicitava para a família de que o barraco seria valorizado de outra maneira, como um objeto artístico?

Márcio Almeida: Fiz com que eles participassem de todas as etapas inclusive na mostra a família estava lá. Eu queria que eles fossem para entender o que estava pretendendo.

 

2 – De quando pequenos e grandes delitos têm que ser alçados à categoria de artísticos para salvar a pele de seus proponentes. E do tipo de delinqüente cuja habilidade principal é romper a resistência dos limites apenas com a cadência de sua respiração.

O relato a seguir se refere aos “seis atos criminosos que talvez possam ser chamados arte”. Nesses somente a conceitualização redime o artista e o livra da punição. Nas palavras de Lourival Cuquinha, sua poética apresenta uma verve essencialmente questionadora da autoridade instituída e dos dogmas da sociedade em que vive. Valendo-se do palco pretensamente neutro da arte contemporânea, o artista traz à luz a relatividade dos parâmetros de criminalização de certos atos registrados em vídeo, e promove o diálogo entre contextos sócio-culturais diferentes.

 

“Os seis crimes”, por Lourival Batista

1 – Parangolé

Os Parangolés são trabalhos que só se completam quando usados pelas pessoas. Porém, depois da morte de Hélio Oiticica, suas obras quando são expostas, ou são réplicas ou não se pode tocá-las. Certo dia nos idos de 2001, roubei uma peça, passei mais ou menos 24 horas com ela e filmei tudo. O museu ameaçou chamar a polícia e então devolvi no dia seguinte. O vídeo se tornou uma instalação, mas nunca a montei. Eu lembro que no dia do roubo estava com o ego suficientemente inflado, pois havíamos ganho, eu e Daniela Brilhante, um prêmio na 1° Mostra Rio de Arte Contemporânea.

2 – Noninoninono

Neste vídeo detonamos com tinta branca vários cartazes e outdoors de políticos durante a eleição para presidente, em 2002.

3 – Performance do Mongus no posto 9 da praia de Ipanema

Mongus vai ao fundo do mar e por um aviso da produção do filme, os salva-vidas acham que ele está se afogando. Eles vão salvá-lo e chamam o “Águia”, um helicóptero que naquele dia já salvara várias pessoas de afogamentos reais. A cena é linda. Oscar de melhor produção do cinema nacional para Telephone Colorido.  Mongus volta à praia num vôo espetacular sobre Ipanema. Ainda tem uma entrevista com o salva-vidas e uma trilha de Fausto Fawcet de quebra.

4 – Passar o filme proibido “Di”, de Glauber Rocha, feito no enterro de Di Cavalcanti (grande pintor modernista brasileiro) cuja família proibiu na justiça a exibição. Ava, filha de Glauber, pode me conseguir o filme.

5 – Los Erramos

No Festival de Inverno de Garanhuns, em 2003, eu e Dani Brilhante demos uma oficina de animação. Ficamos no mesmo hotel das bandas do festival. Uma, em especial, tem todos os integrantes barbados e se chama Los Hermanos. Minha barba estava enorme na época. Um entrevistador de rádio, que não devia conhecer direito a banda, viu o editor da nossa oficina também barbado junto comigo no saguão do hotel. Com muita segurança ele nos questionou: “Los Hermanos?”. Eu prontamente disse que sim e, apesar do editor ter saído de fininho, o bem intencionado rapaz acreditou. Grilo, que estava por perto, com seu feeling genial, percebeu a importância do que aconteceria e registrou tudo. Seguiu-se uma entrevista absurda na qual a falsidade ideológica imperou. Quando a banda chegou no hotel após o show mostrei o vídeo a eles e dei-lhes uma cópia para que me processassem. Eles colocaram no site e o “Sopa Diário” exibiu na outra semana.

6 – Artraffic

É o seguinte. Quando cheguei na França comecei a fumar haxixe com tabaco, como todo mundo lá. Não me adaptei, não conseguia nadar no porto de Marseille. Pensei num jeito diferente de fumar, como eu fumava no interior de Pernambuco, quando morava lá em São José do Egito. Enfiei a pedra de haxixe numa agulha, queimei, soprei e ela ficou em brasa soltando uma fumacinha. Depois foi só aspirar a tal fumacinha. Para ter sempre à mão, passei uma linha no buraco da agulha e amarrei-a no pescoço. Foi então que percebi que se tratava de uma linda peça plástica, e como era o dia da independência de Moçambique, intitulei-a “Collier du Mozambique”. Fiz um manual de instruções desenhado em PB e xerocável, e uma sequência de fotos que explicavam como usar.

Comecei a vender cada colar pelo valor de cinco Euros, junto com o manual de instruções ARTRAFFIC. Fiz uma exposição em Paris em novembro passado, no Palais de Port Doré, e vendi bastante. Empolguei-me, pois esta foi a peça que mais vendi. Só tinha vendido dois quadros em 1996 por preços irrisórios e agora sou um artista comercial. O engraçado é que varias pessoas compraram para fumar no mesmo momento e outras até emolduraram junto com a xérox do manual de instruções. Daí o projeto tomou corpo. Fiz uma performance na École Supérieure d’art d’Avignon, que consistia em fumar um “Colier du Mozambique” e tentei expor na École Supérieure d’Art d’Aix-en-Provence onde eu fazia uma residência. Mas o diretor me disse: “j’adore le travail, mais désolé, ici c’est une école publique”. Então eu expus outros sete trabalhos, inclusive um vídeo que se chama “désolé” e escrevi um texto sobre esta situação na parede da galeria:

Eu tenho também outro trabalho que se chama, “Le Collier du Mozambique” para expor. Talvez o trabalho mais forte que produzi aqui na França, mas é impossível mostrá-lo, pois aqui é uma escola pública, mesmo que todo mundo fume muitas coisas aqui na França. Bem, é assim mesmo, vou guardar este trabalho para minha exposição no Pompidou.

Depois, continuei as aventuras. Eu e minha amada Marion fomos parados na fronteira da Suíça com a França e os policiais encontraram metade do haxixe. Talvez eu fosse deportado e pagasse uma multa, mas tudo se esclareceu quando mostrei o manual de instruções e revelei a arte embutida na atitude (gostei desta expressão). Eles apreenderam o que acharam, disseram que iam expor o panfleto numa vitrine do bureau da polícia da fronteira e nos liberaram. Pela atenção de um dos policiais em relação a minha explicação acho até que ele fumava, pois quase todo mundo fuma haxixe na França. Uma coisa é certa, ele aprendeu direitinho. Eles realmente só engrossaram quando pedi para registrar aquele momento. Mas tudo deu certo no final.

A última etapa do projeto em andamento foi trazer o haxixe para cá, quando voltei da França. Embalei, coloquei na mala e fotografei. Fotografei minha paranóia no avião Marseille-Paris-Rio-Recife, e a mala chegando aqui. Nenhum problema, exceto o laptop que não declarei e tive que pagar mil reais de impostos na alfândega. Bem no começo desta seqüência de fotos, que chamo de ARTRAFFIC INTERNACIONAL, dou um beijo em Marion e, no fim, minha filha Ingà Maria me dá um beijo. É lindo.

Tenho vendido bem aqui no Brasil, por 10 Euros. O aumento do preço é proporcional à nóia durante a viagem. Fiz uma exposição no Rio de Janeiro, na galeria Gentil Carioca e acabei vendendo todo o meu estoque de haxixe. Comuniquei-me com alguns amigos na França que me mandaram mais e registraram todo o processo. Estou com um pouco de medo de levar o material de trabalho. Agora acabo de ser convidado para a exposição em Weimar, Alemanha, e preciso arranjar um jeito de conseguir este trabalho, e levar mais haxixe.

Queria falar uma coisa mais a respeito. Esta discussão sobre se as coisas são arte ou não está um pouco defasada. Uma pintura hoje ninguém questiona se é ou não arte. Pode-se dizer que é ruim, mas é arte.

Nos trabalhos do Artraffic somente o conceito pode justificar uma não punição. Nestes casos é obrigatória a performance do convencimento, de si mesmo até. Se você não tiver certeza, não convence a ninguém, como no caso da fronteira Suíça/França.

3 – E do crédito a ser conferido aos líquidos com alta gradação alcoólica como vetor para a criação coletiva por grupos de artistas na cidade: arte, vício e sociabilidade.

Na apresentação dos resultados de sua pesquisa, levada a cabo com o apoio da bolsa do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, Clarissa Diniz explanou como funcionavam os mecanismos de legitimação em questão, pois funcionava como uma alavanca às outras estratégias. De fato os vínculos que estimulam a cooperação e a colaboração para fins coletivos, num agrupamento ou numa rede de relações, funcionam de modo a que todos possam se comunicar e partilhar do requinhão artístico no nosso Estado. Dentre os tipos explicativos um deles chamou-lhe mais a atenção por perpassar os demais: o capital social ou, simplesmente, o amor. A ligação entre as pessoas, através da relação de amizade em vínculos afetivos perenes, segundo Diniz, favorecia a que se alcançasse reconhecimento mútuo como artista.

Dado o recado de Clarissa, chegamos ao que é da natureza de boa parte dos relacionamentos de amizade: os vínculos necessitam ser continuamente reafirmados, via de regra em longos encontros, bate-papos, reuniões boêmias regadas a muito álcool. A seguir, um relato exemplar dessa conexão entre grupos de artistas e suas criações coletivas em meio à vivência da noite da cidade, nos bares populares, na boemia.

 

Templos do Prazer

por Maurício Silva

Como quase disse Friedrich Nietzsche: sem o Bar a vida seria um erro. O Bar é o melhor lugar, esta idéia de extensão do lar, o aconchegante endereço para se encontrar os amigos, e como sempre, falar do que se gosta e de tudo que acontece e etc. e tal. No Recife não poderia ser diferente. Construímos vários ambientes onde nos encontrávamos e além de criar e elaborar muitos projetos bebia-se, o que era o melhor. Muitos destes lugares ainda sobrevivem em nossa Cidade. Vamos nos concentrar em dois aos quais estive mais próximo e que freqüentava quase que diariamente: o Bar Royal e o Bar do Seu Vital, dois lugares distintos, mais com peculiaridades afins. O Royal foi fundado por Seu Ribeiro que tinha um pequeno fiteiro junto ao Bar Gambrinus e que conseguiu abrir seu estabelecimento próprio na Rua Tomasina. Sua clientela sempre esteve ligada ao movimento do porto e aos comerciantes do lugar. Durante mais de sessenta anos o Bar Royal esteve presente na vida dos recifenses. O Atelier Quarta-Zona de Arte instalou-se no Bairro do Recife Antigo e depois o Atelier do Cais, e alguns artistas isoladamente começaram a freqüentar e trabalhar também no bairro. Eram os idos anos oitenta, frequentamos vários bares da região, o Bar do Fogão, o OK, o Francks, o Seu Rainha, o São Francisco, o Bar dos Gatos, o Bar da Charque, e outros que fogem da minha memória. Era neste ambiente que eu era casado só até às 18h. E muitas produções foram compartilhadas pelos amigos e pelas personalidades que flutuavam por ali. Noutros bairros da cidade outros pontos existiam, o Cantinho das Graças, o Panquecas, a Soparia, mas estávamos tão presentes no Bairro do Recife Antigo que elegemos o Bar Royal como QG de nosso grupo. Nesta época conhecemos o Fernando, filho do Seu Ribeiro, que começava a administrar o estabelecimento. Como ele vinha da Faculdade de Design da UFPE, conhecia alguns artistas e tinha um melhor atendimento. Desistimos do Bar Gambrinus, mesmo com toda a simpatia de das Neves, o garçom que tão bem nos atendia. O Royal tornou-se habitual e funcionava de 9h às 20h. Depois de um tempo começamos a freqüentar o Bar a portas fechadas, chegando mesmo às primeiras horas da madrugada, onde éramos convidados a sair e tínhamos que ir ao Extremo Oriente ou mesmo ao Grego, sempre dependia do nosso estado de sobriedade. Descobrimos também o cardápio do Bar: a Dobradinha na sexta-feira, o pé de porco no sábado. Instituímos o nome Cristina para a simpática garçonete, e muitos projetos foram realizados: O Temporal PE, o vídeo Sacrossantos Eróticos, o Royal Academia de Artes __ este último foi uma extensão do Arte na Barbearia que também começou na mesa de um bar __ as pinturas nos muros das fachadas com o grupo Carga e Descarga e muitas e muitas garrafas de cerveja, cigarros, de todo tipo, homens e mulheres, de todo tipo, e muitos amores. No outro lado da cidade, num bairro bem mais bucólico e não menos alcoólico, criou-se uma outra confraria. No Bar do seu Vital, no Poço da Panela, muitos poetas, filósofos, jogadores de dominós, artistas, críticos e dançarinos de gafieira, se juntavam e ainda se juntam. Sambam, contam estórias e o melhor: bebem bastante. O atendimento impecável e a cerveja super-gelada são a razão do nosso interesse pelo lugar, sem falar na calma e na boa energia que esta esquina do mundo nos proporciona. Soube recentemente que uma Mini-Galeria de arte se instalou no Bar e que um grupo de artistas está com um atelier bem próximo. E é isto, somem o tempo que ficamos nestas mesas, escritórios etílicos onde tantos projetos são mirabolantemente criados e vamos constatar que talvez nossos dias fiquem bem mais presentes nestes templos do prazer e da volúpia, que em nossos próprios lares. Resolvi escrever este texto no melhor endereço que encontrei por aqui, o La Coupole, em Montparnasse. Neste lugar muitas idéias sobrevoaram o ambiente e nada melhor que captar estas ondas que ainda permanecem por aqui.

Paris, janeiro de 2007.

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Rodrigo Braga

Descobri um dia desses, ou tão somente, consegui, por fim, admitir a minha arrogância. Criatura falante que sou, sempre tive opinião sobre tudo, ainda que, esporadicamente, junto a essa houvesse uma ressalva explícita de que poderia mudar de opinião.

Talvez a salvação da minha alma esteja na arte. Nada mais me constrange tanto do que me deparar com uma obra/proposição/ambiente de arte. Eu, simplesmente, não consigo admitir que um artista plástico faça seu trabalho por fazer. Essa é uma verdade quase religiosa em mim.

É por acreditar nesse preceito que não consigo desdenhar aquilo que se chama arte. É preciso empreender a busca do seu entorno, o mundo em que esta foi criada, o mundo que esta estabeleceu. Acredito que toda obra tem uma chave que nos permite vasculhar seu interior, seu íntimo – que pode se revelar equivocado, frágil, pouco significativo.

Quando nos debruçamos a investigar arte, inevitavelmente, nosso olhar e pensamento críticos exigem-nos bem mais do que um simples: gosto ou não gosto. É menos provável ainda a afasia.

Nesse momento, ponho-me na atitude de réu confesso. Tem obras de arte que minha mente não assimila; minha alma não absorve e, por muitas vezes, por preguiça, deixo que esse estado de torpor permaneça. Então, a obra de arte diante de mim se torna nada. Não faz diferença.

Por muito tempo os trabalhos de Rodrigo Braga foram algumas dessas obras de arte que me eram impossíveis fruir. Eu não enxergava.

Para ver uma coisa é preciso compreendê-la. A poltrona pressupõe o corpo humano, suas articulações e partes; a tesoura, o ato de cortar. O que dizer de uma lâmpada ou de um veículo? O selvagem não pode perceber a bíblia de um missionário; (…) Se víssemos realmente o universo, talvez o entendêssemos. (There Are More Things – Jorge Luis Borges).

O que me faltava era a linguagem certa para compreendê-las. Eu pretendia ver essas obras justapostas às coisas corriqueiras – eu queria utilizar-me da linguagem usual. Queria colocá-las junto às coisas correlatas visíveis. Mas essas são obras que não se permitem encaixar. Elas são da linguagem do onírico. Só lá é que elas encontram pares.

Segundo Foucault, entre a ordem e a reflexão sobre a ordem existe um linguajar solto que se desprende dessa ordem: “entre o uso do que se poderia chamar os códigos ordenadores e as reflexões sobre a ordem, há a experiência nua da ordem e de seus modos de ser.” Acredito que o trabalho de Rodrigo Braga está nesse entremeio – e que justifica a existência de uma obra de arte.

Arte que se preze já não deve ser ordem. É bem verdade que existe a arte que cria reflexões sobre a ordem. Mas, vale ressaltar que arte não é filosofia nem é ciência exata, e, ainda que questione sua própria ordem, toda arte fica nessa região mediana entre o que é codificado e o que é a análise reflexiva desses códigos: a experiência nua.

Vejo na obra de Rodrigo Braga, claramente, essa experiência nua que se desprende dos códigos e cria novas possibilidades de. A fotografia já não revela o que chamaríamos (vulgarmente) de real, no entanto, é real. A fotografia captura uma existência. Pedaços de plantas e de bichos agregados a Rodrigo criam outra coisa que já não é a nossa conhecida planta, nem bicho, nem Rodrigo.

A chave para entender um trabalho como Da Alegoria Perecível é a linguagem do onírico. Percebam que quando sonhamos podemos respirar como plantas, ter patas e olhos de animais, e continuarmos humanos. A experiência do recém acordar – que nos traz à lembrança o resquício da imagem do sonho – faz-nos capazes de admitir que apesar daquela imagem com patas, e capaz de voar sem asas, somos nós: há uma certeza que não nos parece estranha.

A beleza do trabalho de Rodrigo é ver possibilidades de um infinito materializado. São imagens descodificadas. Ele dá vida a seres imprevisíveis. Cada imagem que cria é capaz de potencializar nossa percepção e incitar-nos a uma perseguição de significados – que às vezes nos escapam e vão para além. Rodrigo torna a possibilidade de viver o onírico diante da câmera. Depois de Da Alegoria Perecível fica estabelecida uma nova possibilidade de leitura. Encerra-se um ciclo.

Por isso que não é bom desdenhar aquilo que se chama arte. Vale à pena empreender a busca do seu entorno, o mundo em que esta foi criada, o mundo que esta estabeleceu. Como disse: toda obra tem uma chave que nos permite vasculhar seu interior, seu íntimo – que pode se revelar equivocado, frágil, pouco significativo. O que, definitivamente, não é o caso das obras de Rodrigo Braga. Nele: a alegoria do inimaginável encontra abrigo e o que é perecível ganha tamanho significado que vira código à espera de análises reflexivas.

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Expedição Paulista

Primeiro dia de 27ª Bienal de São Paulo, muita reserva de energia para ser gasta no árduo processo de “ver” uma bienal, curiosidade à flor da pele e…  de repente: “olha, uma “ponte” atravessando os vidros do prédio!”. Trabalho do Atelier Bow-Wow que, segundo informava a entrevista concedida a Ana Elena Mallet para o catálogo da exposição, era um “projeto de interação com as árvores existentes nos arredores do Pavilhão”. Lá fui eu. Parecia ser, ao menos, uma boa oportunidade para respirar “ar puro”.

Caminho em direção ao trabalho, ensaio subir na estrutura de madeira (“ponte”) que me levaria para uma “voltinha” além das vidraças quando, mais do que repentinamente, surge um forte e indelicado bombeiro à minha frente. “Você pretende entrar aqui, senhora?”. “Sim”, respondi. Prontamente, ele me explicou, com um automatismo robótico, que, para que eu me aventurasse a passear na obra do Bow-Wow, seria preciso antes assinar uma espécie de atestado de responsabilidade sobre minha própria vida, o que me obrigou a ter que desembolsar documento de identidade e CPF…

Passado o susto do bombeiro-parede e a chatice de preencher um formulário assegurando que, caso eu resolvesse me jogar da estrutura, a culpa seria minha e não de Lisette Lagnado, ensaio outra vez subir a “ponte” quando, novamente, mais do que repentinamente, surge uma monitora-bombeira que diz “olhe, você não pode sentar naqueles banquinhos, tem que andar reto e não pode se demorar mais de 10 segundos em seu trajeto!”. À beira da desistência, engulo seco, faço sinal de concordância e, finalmente!, penetro a tal estrutura-ponte.

O que lá se passou não lembro bem, devido à tensão que me atormentava pela responsabilidade de manter minha vida bem viva e, de quebra, “apreciar” a obra nos míseros dez segundos que me haviam sido dados. De fato, minha relação com “as árvores existentes nos arredores do Pavilhão” foi nula. Mal foi possível perceber sua existência. Não me recordo de sua altura, espessura, textura, cheiro ou qualquer coisa do tipo. Ao fim da travessia, a única interação que me foi possível estabelecer foi com o bombeiro-parede e com a monitora-bombeira.

Passou. Nos dias seguintes, como de infeliz costume, algumas outras situações desconfortáveis como essa aconteceram. Não era permitido encostar no parapeito, não era possível chegar perto e decentemente enxergar desenhos – já devidamente protegidos por vidros – por conta das listras amarelas que limitavam meu percurso na exposição, não era autorizado sentar num sofá-obra (mesmo sendo a obra o ato de sentar!) porque “simplesmente não é permitido”, não se podia sentar à beira do dique para contemplar o Marulho, etc., etc., etc. Vários foram os “nãos” ouvidos; e a cada um aumentava a ironia da idéia de que arte e liberdade caminham de mãos dadas.

De “não” em “não” cheguei ao Museu da Língua Portuguesa, já em meus últimos suspiros de paciência e já com alguma saliva gasta em discussões inúteis com monitores que, em última instância, justificavam suas proibições com um simples “é a regra”. Eis que lá, num museu de língua – onde, teoricamente, tudo é imaterial –, me era permitido e, inclusive, incentivado, tocar em tudo! Descobri, ao lado da regrada Pinacoteca (onde levei alguns injustos esporros monitorais), um paraíso da liberdade! Ali, tão pertinho, o exato oposto: a idéia de que arte sugere – e, por conseguinte, deve criar formas de suportar – movimento, indagação, participação e, só para enfatizar, liberdade.

Como se já não me bastasse a alegria de poder interagir, no último andar daquele museu, durante um “espetáculo audiovisual” acerca da nossa língua, foi possível também me emocionar ao ver como, ao final do “espetáculo”, dezenas de crianças se jogaram – em total liberdade – sobre frases iluminadas que surgiam do chão. Aquela cena instantaneamente arrancou de mim lágrimas que senti reprimidas durante toda a minha expedição de artes visuais pela paulicéia. Se na Bienal e similares a atmosfera de vigília imperava sobre a do prazer, no Museu da Língua Portuguesa a relação era inversa. O último despertava desejo; os primeiros, receios. Para freqüentar a Bienal é preciso noções de etiqueta, mas para se sentir à vontade no Museu da Língua basta o interesse.

Deixei São Paulo com raiva da moral das artes visuais. Revoltada com a museografia, com a museologia, a curadoria e todos os que definem as regras do que é e do que não é permitido numa exposição de arte. Indignada por ver tantas obras eletrizantes engessadas por instituições incapazes de manter vivas as intenções artísticas. Essas sim – as instituições brochantes –, e não eu e as criancinhas, é que deveriam ser obrigadas a assinar atestados de responsabilidade sobre a vida das obras que vão matando aos poucos. Atestados bem grandes e complexos, aplicados por trezentos e cinqüenta bombeiros fortes e bravos, que é para que elas nunca se esqueçam do quão é desagradável a sensação de ter seus instintos reprimidos em nome de uma etiqueta displicente e preguiçosa.

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Rapidinhas

Cristiana Tejo

TATUÍ Quais os seus pintores preferidos?

CRISTIANA Gostaria de falar de meu percurso afetivo de descoberta da arte e não necessariamente de julgamentos estéticos com relação à pintura. Gosto de olhar para trás e ver os pintores que me seduziram e me trouxeram para o universo da arte e para o entendimento que tenho deste campo. Acho que Turner tem um papel muito importante em minha formação. Seus mares e céus ameaçadores ainda me tocam quando os vejo pessoalmente. Rembrandt me emocionou de primeira e ainda continua sendo um de meus favoritos. Rothko e Matisse foram dois artistas que me marcaram muito no início de meus estudos de história da arte. Atrai-me muitíssimo suas experimentações cromáticas e pictóricas. Admiro ainda Malevich e Yves Klein pelos questionamentos e novos dimensionamentos dados à pintura do século XX e Vicente do Rego Monteiro pela densidade e envergadura de sua proposta artística. Muitos outros nomes de minhas predileções afetivas ficaram de fora de serem publicizados desta vez. Mantém-se, entretanto, vivamente guardados em mim.

 

Aslan Cabral

TATUÍ Aslan, comente sobre o pop na sua produção…

ASLAN O ou A pop, assim como da arte conceitual e de todos os ismos dos quais estudei e estudo já escorreram pelos diferentes experimentos, suporte e mídias que com os quais trabalho. Impossível na mesma medida que desnecessário é pontuar o que é somente pop ou não. Em agrupamentos tão líquidos, como artista posso escorregar de uma categoria à outra.  Não faço arte para seguir em 2006 me sentindo futurista, expressionista, pop ou somente realista – ou artista que faz arte contemporânea. Faço arte atual. A minha produção existe na [e não da] colisão de todos os estilos, ismos, e vertentes que antecedem o momento que inicio, realizo ou finalizo cada trabalho. “Hoje nada impera porque tudo impera. Todos os estilos pertencem a todos. As coisas já não são tão mono”.

 

Lisette Lagnado

TATUÍ Certa vez, você declarou que acreditava que uma das grandes “funções” de um crítico de arte seria a de contribuir com o desenvolvimento estético e poético de sua própria geração – aqueles artistas com os quais o crítico de fato convive e divide experiências cotidianas. A que geração você se sente filiada e de que modo você entende que pode ter contribuído com ela?

LISETTE Eu me sinto filiada ao momento presente e portanto aos artistas que estão com gana para negar valores retrógrados, com gana de construir uma nova percepção estética. Mas, para isto, eu preciso sentir que este movimento do artista é interno, é essencial e verdadeiro. Não é pegar uma onda para surfar no discurso dominante. Eu me sinto solidária a criadores extemporâneos que eu tento trazer para o presente, tento dar visibilidade para aquilo que os outros não olham, que parece esquisito de início. É isto que mais me atrai. Minha vivência da arte não tem a distância que a crítica requer. Ela tem sido muito apaixonada, deixando minha biblioteca à disposição para quem quer saber mais, abrindo vinho e alimentando longas conversas na minha casa, que giram também em torno de questões éticas. Isto propicia uma escrita mais livre, menos engessada. No meu caso, não posso citar uma geração. Trabalho no meio artístico desde 1980. Já escrevi sobre artistas dos 70, dos 80, dos 90, do agora. Mas minhas relações são todas com indivíduos, um a um, não se fazem em “blocos”. Eu não sou de grupo nenhum.

 

Bianca Tomaselli

TATUÍ Você enxerga (e o que seria) academicismo na arte contemporânea?

BIANCA Sabemos do artista acadêmico, como aquele que se situa na mão oposta ao artista moderno, seguindo normas de desenho, pintura e escultura dadas nos tradicionais Liceus, Escolas e Academias de Arte. Hoje, associamos “Academia” à Universidade, porém sua produção não deve mais ser confundida com o que falávamos acima. Primeiro, pois não nos faz mais sentido o embate entre acadêmicos e modernos. Segundo, porque qualquer Universidade qualificada oferece ferramentas importantes para o processo poético do artista. O problema está na distância que o acadêmico pode vir a ter da prática artística, ao tratar dela. Mas, ainda que haja questões que dizem respeito apenas à academia e outras que se referem à prática artística, tanto melhor se ambas forem capazes de dialogar, entrecruzando-se. Neste atravessamento, uma possibilidade de olhar para o termo, sem indisposições, nos é dada.

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Transparências e incandescências num Pátio de São Pedro

Agradeço a Moacir dos Anjos pela generosidade e contribuição na elaboração deste texto.

 

delongadamente

Temos, no trabalho A vida [somente no Pátio] modo de usar, de Elida Tessler, uma urgência pelo contexto que, desde a arte moderna, tem se tornado necessário como fonte de sentido para vários trabalhos de arte. Assim, falar desse trabalho de Elida sem referir-me ao contexto no qual ele foi criado (e exibido) me parece difícil, e por isso não me privarei de contextualizar o quanto me for conveniente para que minhas idéias se façam mais claras.

 

transparentemente

A transparência da/na obra de Tessler é ambígua e, por isso, curiosa.

No A vida [somente no Pátio] modo de usar não temos a transparência somente nas placas que compõem o trabalho, mas especialmente no discurso da artista, que pode ser lido no texto que o acompanha, o Espécie de Manual, que, ao esclarecer o seu processo de construção, passa a funcionar como uma fonte de sentido para a obra. Ainda assim, a transparência das placas pode ser uma interessante metáfora sobre a relação da obra com as paredes que a “suportam”, deixando que se mostrem, através do trabalho, os preceitos da instituição que o abarca – no caso, o MAMAM no Pátio.

Assim, como característica que nos permite ver através e enxergar o que, em princípio, estaria ocultado pelo que está em primeiro plano, a transparência é, inclusive fisicamente, um aspecto naturalmente contextualizante.

Contextualizar, aqui, o trabalho da artista, talvez fosse dizer que ele foi criado numa residência de artistas na Itália, quando ela, com sua peculiar compulsão literária, selecionou e imprimiu todos os 1184 advérbios de modo presentes no livro A vida modo de usar, de Georges Perec, colando-os, depois, na parede de seu atelier, à qual acrescentou objetos (ou restos de objetos) do uso cotidiano dos outros artistas que participavam da residência, denominando sua instalação de A vida somente.

Continuar contextualizando deve ser explicar que, meses depois, Elida recebeu um convite do MAMAM no Pátio, uma espécie de anexo do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, para participar de uma residência de artistas que tal instituição, que acabara de ser criada, estava inaugurando. Aceito o convite, três meses depois Elida chega a Recife, e, num período de duas semanas, ela desenvolve e instala, na casa do MAMAM no Pátio, o trabalho fruto de sua residência, o A vida [somente no Pátio] modo de usar, no qual ela imprimiu (antes mesmo de chegar), em placas de acrílico, todos os mesmos 1184 advérbios, afixando-os com pregos nas paredes da casa, mas, dessa vez, dispensando os objetos que fizeram parte da instalação na Itália, pois, diz a artista, os objetos já estavam lá, ao redor da casa (uma referência ao Pátio de São Pedro, endereço do local de exposição). Vale ressaltar que, durante essas duas semanas, Elida também ministrou um workshop e realizou alguns encontros-palestras com públicos diversos.

Toda a narração do processo de instauração da obra, ainda que monótono, é relevante para seu entendimento e para minha “análise” da residência em questão, pois é justamente o processo – aspecto cada dia mais querido por artistas e estudiosos – que o MAMAM no Pátio pretende estimular, uma vez que, nas palavras de seu diretor, Moacir dos Anjos, ele pretende “ser um espaço institucional de experimentação nas artes visuais e de reflexão crítica sobre os seus desenvolvimentos contemporâneos”.

Experimentação, tal como informou a gerente do espaço, Luciana Padilha, seria um termo usado não apenas no sentido do experimentalismo em arte (promover trabalhos experimentais), mas também no sentido da experiência museológica, que vem sendo constantemente exercitada desde que os trabalhos de arte têm se dado através de meios que vão além do habitual poder museológico de conservá-los ou categorizá-los. O MAMAM no Pátio é, portanto, de acordo com seu discurso, uma instituição que pretende colocar-se em risco o tempo todo, ao colocar em risco, por exemplo, o artista que nele reside.

Mas que risco é esse? Quais foram os riscos que permearam a recente criação da instituição e sua primeira realização, a residência de artista cuja convidada foi Elida Tessler?

 

incandescentemente

Há algumas diferenças de valor entre uma residência de artista e, por exemplo, uma exposição comum, e que, acredito eu, devem ser consideradas, por mais que o resultado de uma residência possa ser uma exposição comum.

Uma residência de artista é uma “exaltação” do próprio artista, uma atitude um tanto romântica em relação a ele, uma vez que, ao se convidar um artista para uma residência, não se está creditando valor a uma obra de arte, mas apostando na produção de um artista como um todo, e principalmente acreditando na sua suposta “genialidade criadora”, já que, quando se dá uma residência, expõe-se um indivíduo a certas circunstâncias, observando-se suas atitudes e esperando dele uma reação que seja minimamente interessante a uma audiência. Nesse caso, uma obra de arte.

Contudo, diferentemente do romantismo, a crença na “genialidade criadora” desse artista não se explica por razões dogmáticas, mas pelo que convencionamos chamar de reputação, bem como através da relação de confiança – recíproca – que se estabelece entre o convidado e o diretor/curador da instituição que o convida.

A reputação nada mais é do que uma sucessão de experiências cooperativas dadas entre partes que se confiam mutuamente, e que possuem legitimidade social, levadas a conhecimento público.

Assim, no caso de Elida, por exemplo, o que acontece é que Moacir conhecia bem a reputação da artista e nela confiava (isso ocorre porque ambos fazem parte do mesmo abrangente círculo social artístico), o que o deu os precedentes necessários para convidá-la a trabalhar na instituição por ele dirigida. Nas palavras de Moacir: “por gerir, há vários anos, um espaço com um espírito semelhante (Torreão) e ter atividade docente consolidada, Elida Tessler possui um perfil capaz de não somente entender e responder positivamente à proposta do MAMAM no Pátio como também de nos ajudar, através de uma relação franca e crítica, a ajustar o seu modo de funcionamento (…)”.

O que seria “responder positivamente”? Que espécies de pré-julgamentos se fazem antes de uma residência de artista que se entende como experimental? Como qualificar (de “positiva”, no caso) uma resposta antes de conhecê-la?

Segundo o próprio Moacir, “responder positivamente” seria “apenas partilhar o desejo de implementar um espaço que se quer flexível (…) e não significa, em absoluto, (…), fazer um projeto que, digamos, não constrangesse a instituição”, bem como não significa “temer uma atitude “não-convencional” do artista, mas, inversamente, também não esperar e cobrar a todo custo que o artista assuma tal atitude”.

 

insistentemente

Volto ao risco. E volto à transparência.

Vendo através do trabalho de Elida, e percebendo que o seu trabalho não me parece experimental, nem quanto à linguagem nem quanto ao procedimento (voltado às referências duchampianas sem, no entanto, a meu ver, ir além do procedimento artístico por ele já instaurado), procuro entender porque ele está abrigado por uma instituição que se entende como tal. Lembrando-me, inclusive, de já ter visto um trabalho (Palavras-chaves) da artista exposto no MAMAM, numa coletiva “não-experimental” de obras doadas a seu acervo, me esforço por perceber que diferenças há entre esse museu e seu anexo.

Por mais que devamos fazer as devidas ressalvas quanto às diferenças entre os trabalhos expostos no MAMAM e no MAMAM no Pátio, a minha intenção é questionar de que experimentação se está falando.

Sabemos que há diversos graus de experimentação. Há artistas que passam toda a vida e obra indo de encontro e criando novas convenções, mas há, também, aqueles que são “experimentais” somente em trabalhos pontuais e, às vezes, o sendo somente em relação a sua própria poética.

Acredito, contudo, que a experimentação seja uma atitude de não-conformação e de inventividade diante dos padrões da arte, e é essa a noção de experimentalismo/experimentação que tomo como parâmetro para afirmar que a obra de Elida não me parece experimental.

Ainda que eu não ouse chamar o MAMAM de tradicional – longe disso, aliás –, sei também que ele não se propõe a ser um reduto da mais “arriscada” arte que se vem fazendo (entendendo como “arriscada” uma arte que supostamente não encontrasse uma abrangente genealogia à qual se filiar, configurando, assim, seu caráter entrópico), mas local para uma reflexão mais tranqüila (e talvez aprofundada) acerca de questões de uma arte contemporânea já relativamente estabelecida, mas que, claro, não perdeu sua vitalidade. O seu anexo, contudo, aposta, de bom tom, na aventura artística. Por que seriam os dois, então, dirigidos e, sobretudo, curados, pela mesma pessoa? Isso não acabaria por, ainda que inconscientemente, assemelhar as linhas curatoriais de ambos?

Talvez na intenção de não permitir que essas linhas curatoriais se confundam, o MAMAM no Pátio instituiu um edital que será o responsável pela seleção de quatro dos cinco projetos financiados pela instituição no ano de 2006.

A seleção, que será feita por uma comissão formada por três profissionais em arte – um deles o próprio diretor do MAMAM –, basear-se-á, majoritariamente, na trajetória do artista, uma vez que, por ser uma residência, tal seleção não poderia ser feita com base em projetos para o local. Mas eis que as trajetórias nos levam de volta à questão das reputações….

Sabemos, no entanto, que a reputação de alguém só se dá em um círculo social de proximidades, pois é necessário que as pessoas que se legitimam mutuamente se conheçam para que essa legitimação se dê. Sabemos, também, que, se eles já se conhecem, é muito provável que façam parte do mesmo sistema. E, se fazem parte do mesmo sistema, é porque estão de algum modo harmonizados (adaptam-se uns aos outros), sendo essa harmonia uma forma natural e inconsciente de convivência humana, não devendo ser interpretada como um discurso em apologia às “panelinhas” ou qualquer outro tipo de conclusão imediata nesse sentido.

No entanto, se estamos buscando a experimentação, algo que ainda não conhecemos, não seria o caso, talvez, de propiciarmos que isso venha de fora do nosso sistema? Não que a experimentação não possa vir de dentro do próprio sistema, mas selecionar artistas via trajetória é, normalmente, selecionar artistas já experientes e, habitualmente, cujas experimentações já foram incorporadas pelo sistema em questão, de forma que eles perdem, de algum modo, sua força entrópica (geralmente, porém não obrigatoriamente, juvenil). Força entrópica essa desprivilegiada quando seu tempo de gestação é de uma ou duas semanas (o tempo da residência oferecida, pelos impedimentos financeiros do sistema político-cultural brasileiro, pelo MAMAM no Pátio)…

Essas ambigüidades entre o discurso e as ações da instituição se sintetizam, para mim, no resultado da residência de Elida Tessler.

Seu trabalho, que se supõe/supunha experimental, revelou-se “conservador” por não exigir transformações substanciais no trabalho ou nos procedimentos da instituição ou da artista. Se a idéia era que a artista criasse um trabalho a partir do lugar (daí ser uma residência), isso não ocorreu. O que de fato vejo é que um trabalho já realizado e conhecido da artista foi adaptado à residência. Não podemos dizer, então, que é um trabalho inédito, ainda que ele possua algumas diferenças em relação à montagem anterior, realizada na Itália, e eu não ousaria, além disso, dizer que foi feito a partir da residência no Pátio.

Algumas das questões acima abordadas são “justificadas” mediante “explicação” no Espécie de Manual da exposição de Elida, texto que, apesar de poder ser considerado como parte da instalação (como um “meta-trabalho”), é, sobretudo, um texto que contextualiza a obra, legitimando-a e a ela agregando valor, o que, em certa medida, seria assumir o papel do curador da mostra que, estranhamente (ou, talvez, experimentalmente), permaneceu em silêncio ao ceder seu habitual espaço de voz à artista.

Temos, acredito, uma série de pequenas questões que me fazem duvidar do caráter experimental da exposição de Tessler e do projeto que lhe deu origem. Sinto incoerência entre discurso e atitude no que se refere aos propósitos do MAMAM no Pátio que, tal como o trabalho de Elida, não me parece uma outra instituição, com outros preceitos, mas somente uma adaptação do próprio MAMAM, ou como deixa bem claro o seu nome, um deslocamento do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães para o Pátio de São Pedro: MAMAM no Pátio.

Não estaríamos lidando, então, com mesmo MAMAM, só que no Pátio?

 

Moacir dos Anjos, depois de ler este texto, me disse que o MAMAM no Pátio nunca quis ser outra instituição, que nunca quis deixar de ser o MAMAM. Contudo, o deslocamento por ele realizado (da Rua da Aurora para o Pátio de São Pedro) não pretende ser apenas físico, havendo, sim, o “desejo genuíno de instalar um vírus na instituição, que a fragilize e a faça, gradualmente (…), adotar estratégias mais adaptativas em relação à produção contemporânea”.

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Bruno Vilela

(…) o sentido de uma imagem não está somente e nem primordialmente na própria imagem. Nenhuma imagem carrega sentido em si mesma. O que dá sentido a qualquer imagem é a sua relação com o espectador que a olha e não obrigatoriamente o que ela retrata ou mostra.

Paulo Menezes – USP em A constituição de um discurso visual crítico sobre as imagens: possibilidades e perspectivas.

O silêncio pareceu saltar daquelas imagens como um grito desesperado. Não foi preciso ir fundo, nem vasculhar um repertório tão vasto de sensações de solidão para que me fosse possível perceber o existencialismo estampado em Quando Dez Mil Vozes Se Calam, um trabalho de Bruno Vilela.

Quase se pode ouvir o eco – um “si mesmo” refletido ali (se não um “si mesmo” atual, um “si mesmo” que já existiu). É como se perceber imerso numa sensação de ausência. Engolido pelo vazio. Uma sensação de morte ainda que vivo. Ou a angústia de não saber calar tantos uivos na mente que se preferia estar morto, ou ressurreto num bicho.

O corpo lânguido envolto por uma natureza que extrapola vida faz surgir o morto-vivo. E quando a ausência — deletada pela flacidez dos gestos — ao comer um Big Mac põe à mostra vivo-morto. São gritos de silêncio. Eterno estado de desconforto — seja no agito da cidade, ou na quietude de uma floresta.

Seria reducionista falar em arte pop em razão das marcas registradas como Adidas e McDonald’s. Acredito que pelo tema o trabalho tem um quê muito mais expressionista e as marcas reconhecidas ficariam como uma necessidade de se determinar o tempo — permanece a indefinição de lugar.

Como disse, não me foi tão difícil perceber o estado de espírito da obra. Mas, pergunto-me se ela é assim tão óbvia. Ou se essa solidão latente que há em mim fez agregar ao que vi esse significado. Talvez um coração menos aflito consiga perceber um outro sentimento que não me é possível.

Passei a mão nas poesias em braille de cujas palavras não pude desfrutar. Vi-me encantadamente entristecida pelo acesso negado. Se fosse deficiente visual, talvez pudesse deleitar-me com as poesias, mas, perderia a possibilidade de fruir do conteúdo simbólico na leitura das imagens. E se surda, o trabalho talvez não passasse de uma grande redundância — provavelmente porque farta de silêncio demais.

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Procurando pela complexidade na obviedade

Buscando perceber de fato o trabalho de Carlos Mélo, me dei conta que minha busca percorria o caminho do óbvio, e que eu insistentemente me detinha a buscar o complexo. Ora, eu queria complicar o que de fato se apresentava de forma, talvez, bem simples.

É simples, por exemplo, perceber que em cada trabalho de Carlos existe um ritual particular e performático, uma atitude intimista do artista com suas próprias tradições e relacionamentos com o outro e com o mundo, que por várias vezes ao apresentá-las, consegue torná-las minhas, suas, nossas. Em seus desenhos, objetos, fotos, ações… é possível perceber a presença (ou mesmo a ausência-presença) do corpo. Carlos usa o corpo, o seu ou o de terceiros, coloca-os no espaço como matéria territorializante, concedendo-os características específicas sobre sua localização. Corpo e espaço se fundem deixando-se perceber um fluxo de relações entre estes e os que os observam.

Em suas últimas performances, ao invés do próprio artista, o corpo presente é o de atores contratados para realizar as ações em espaços previamente demarcados. Não me parece mais pertinente a discussão sobre a verdadeira autoria da ação – acho que Yves Klein já elucidou essa pergunta – ou se continua sendo performance porque há atores “interpretando”. Apesar desse tipo de trabalho tornar a linha que separa performance e teatro ainda mais tênue, devemos lembrar que na encenação há criação de personagens, enquanto que na performance há um sujeito que apresenta a si mesmo – uma auto-referência. No trabalho de Carlos há um motivo para o uso de atores, o que eles têm a seu favor é a não timidez em ficar diante do público, é sua técnica vocal e imposição corporal, e se nem eu, nem você, nem o artista as possuímos, que usemos profissionais. Afinal, se reclamamos quando vemos qualquer coisa mal feita, por que não iríamos reclamar de uma performance mal “interpretada”?

Parece-me simples perceber no trabalho de Carlos um tripé que lhe sustenta: corpo, religião e política; todos estes dependentes do espaço, que na verdade é um quadrado amoroso onde todos estão cientes da presença do outro. Talvez seja essa “orgia” entre os temas que torne o trabalho de Carlos de início confuso. É que ao menos pra mim (não sei se pra você também), essa relação parece ir de encontro com nossos princípios viciados.

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Por uma poética da resistência: sobre a série Inimigos de Gil Vicente

Quando os amigos se entendem bem entre si, quando as famílias se entendem bem entre si, então acreditamos estar em harmonia. Engano puro, espelho para cotovias. Às vezes sinto que entre dois seres que se quebram a cara com bofetões há muito mais entendimento do que entre os que estão olhando de fora.

Julio Cortazar, Rayuela.

 

Os artistas são os benfeitores da humanidade.

Fellini, em Ginger e Fred

A natureza do êxtase estético propiciado pela obra de arte é sobremaneira complexa: trata-se de uma forma de conhecimento que opera inicialmente pelos sentidos para depois atingir a razão. Nossos sentidos se abrem por completo e encontramo-nos perdidos em uma plena floresta de um mundo que nos toma por inteiro, sem que saibamos exatamente porque somos levados pelo sentimento que vivenciamos e, apenas em um momento posterior, tentamos conciliar o que confusamente experimentamos com alguma razão que possa ter despertado em nós este sentimento. E isto se faz por partes, na proporção em que observamos detalhes, em que procuramos o sentido da obra, aquilo que Francis Ponge chamava de <<olhar-na-medida-em-que-falamos-dele>>.

Mas o que esperamos de uma obra de arte? Independente da sua natureza literária, pictórica, teatral, cinematográfica ou mesmo musical, guardamos em nosso interior mais recôndito a esperança que ela faça revelar em nós emoções incontidas, alegres ou não, desconfortáveis ou reconfortantes, apaziguadoras, inquietantes, ou mesmo que ela nos propicie uma revelação sobre nossa própria natureza humana que não conhecêssemos ainda, algo que está além dos sentimentos que cotidianamente classificamos como felizes, tristes ou simplesmente melancólicos.

Quando me deparei com as obras da série intitulada Inimigos do pintor Gil Vicente, este sentimento tão definitivamente radical e sem apelo foi de rejeição, porém ao refletir sobre o porquê desta minha reação, percebi com uma certa surpresa que não conseguia encontrar uma razão suficientemente convincente para mim. Afinal conhecendo e admirando há tempos a trajetória do pintor, a sua persistência em permanecer fiel aos preceitos de uma arte com recursos simples, imune aos efêmeros modismos, a maestria do desenho que só se confirma com o tempo, tudo aparentemente e coerentemente estava lá, então por que esta sensação de não convencimento?

Tampouco o conteúdo agressivo do tema da série me assegurava uma razão suficiente, afinal uma das maiores e importantes características da arte é a possibilidade de abordar esteticamente sentimentos que na nossa vida cotidiana rejeitaríamos, ou, para falar simplesmente, dizer belamente o feio. Para prová-lo basta imaginar o quanto dos grandes e magníficos momentos de legado artístico da nossa história cultural devemos às grandes tragédias. Crimes, massacres, injustiça social, assim como o sentimento de impotência causando desesperança, angústia e terrores infindáveis, não são estranhos a nenhum de nós nem na vida, nem na arte. Eu mesma me observo algumas vezes (não tantas vezes quanto gostaria, é verdade) tomada pela emoção diante de filmes, fotografias, histórias, cujos conteúdos estão longe de serem reconfortantes e ainda assim o sentimento paradoxalmente (ou catarticamente) é de uma euforia, é um sentimento que lhe leva para cima. Então, por quê?

Por que a patente desorientação do artista diante das agruras da vida culminando com a radicalidade do seu ato não me comove, nem me convence? Por que até mesmo o que poderíamos chamar de coragem ao colocar-se tão claramente em cena na representação desta série de atos insanos, não permite a minha identificação ou meu abraço? Pode ser que, finalmente, eu tenha compreendido o que em mim faz resistência: Gil, eu acredito, não tem como inimigos este papa específico, ou mesmo a atual rainha da Inglaterra, ou ainda o presidente vigente. Penso que a sua rejeição se dá contra as instituições e as convenções do poder no nosso mundo, do qual estas figuras são emblemáticas. E a esse sentimento de não–aceitação ele se entrega e sucumbe. Dá-se por vencido. O seu ato não é heróico, não é nem mesmo um ato de sacrifício, é um ato de desistência.

Ao escrever estas palavras, me lembrei do pai-fundador do anarquismo: Henry David Thoreau, que em seu fulgurante e brilhante ensaio prega a desobediência civil: O melhor governo é o que governa menos, ou absolutamente não governa, disse. Que, como o autor, sejamos ou não esperançosos de um dia prescindir de governo, eis algo sobre o qual cada um de nós pode refletir à vontade, mas, independente de onde nos situemos, é preciso resistir e continuar a luta. É preciso procurar contribuir para a formação da consciência histórica do indivíduo ou da nação, de modo que ela possa se dar positivamente. Nas mãos de Ghandi, que se recusou a responder à violência do imperialismo britânico com uma violência oponente e simétrica, longe da resignação, do conformismo ou da passividade que esta ação poderia deixar supor, o texto de Thoreau serviu como libelo para ajudar a manter o equilíbrio sobre o gume da espada, em um profundo trabalho da violência sobre si mesma que foi capaz de conduzir à uma transfiguração do próprio homem [1] Dadoun, Roger, A Violência, tr. Pilar F.Carvalho, Carmen C. Ferreira,  RJ, Difel, (1993) 1998, p.103. e levar à vitória, embora a luta ainda tenha que continuar, sempre.

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É disso que eu gosto!

Peraí, deixem-me pensar. Hum… tem aquele trabalho de… não. Definitivamente, não. Ah, mas, aquele outro trabalho dele eu gostei, sim! Pois é. A proposta é falar de uma obra da qual eu goste. E é claro que gosto de muitas. Mas, a questão é: do que eu gosto?

Poderia fazer uma lista com os títulos de vários trabalhos artísticos que aprecio — e matar, assim, a curiosidade de muita gente — mas, prefiro deixar claro (de maneira resumida e respeitando o espaço que me é oferecido) o que de fato gosto e o que não gosto.

 

NÃO GOSTO:

– de artistas que pensam que podem fazer qualquer coisa, de qualquer jeito, e ainda por cima, de última hora.

– de artistas que, ao receberem prêmios para desenvolverem projetos artísticos,  acreditam terem finalmente tirado o pé da lama e usam o dinheiro para viajar (ou qualquer outra coisa) em detrimento do desenvolvimento do projeto.

– de artistas que não cumprem prazos por não terem uma postura responsável, profissional e respeitadora.

– de obras ruins que são conseqüências das atitudes citadas acima.

– da postura politicamente correta adotada – quase que unanimamente – por artistas, amigos de artistas, curadores, críticos e público em geral que se negam a levantar questionamentos sobre obras visivelmente ruins e pior: ainda insistem em defender artistas que adotam as atitudes citadas acima.

 

GOSTO:

– de trabalhos que demonstrem que o artista se debruçou (aprofundando-se) sobre as questões que deram origem às obras.

– de obras que falem por elas mesmas, através de sua plasticidade, e que independam de um discurso pirotécnico feito por curadores ansiosos por justificarem mais seus empregos do que suas escolhas curatoriais.

– de todos aqueles que têm coragem e ousadia de assumirem seus posicionamentos críticos, mesmo sabendo que irão desagradar a muitos (incluindo aí: amigos, pessoas que podem lhe favorecer em alguma coisa, políticos, etc.).

– de artistas que vêem na crítica negativa (quando bem fundamentada) um motivo para reflexão sobre suas atitudes e escolhas artísticas.

– de críticos que se preocupam em levantar questionamentos, contribuindo assim para o fomento do debate sobre o mundo da arte e que não receiam, com isso, perderem os tão almejados convites para escreverem textos que, de tão apologéticos, cuidam apenas de legitimar o artista sem questioná-lo.

Pois é. Como acredito que já tem gente demais fazendo o papel politicamente correto de justificar trabalhos e artistas, buscando sentidos em obras muitas vezes naturalmente sem sentido, prefiro agarrar com toda a força e coragem o papel de ser o limãozinho nessa salada de frutas que é o mundo da arte contemporânea. Vou ficar devendo a lista…

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Desejo eremita

Sim! Eu vim agora mesmo do centro da cidade e posso afirmar que o apocalipse já começou! Sinto cheiro de loucura no ar. Tá todo mundo se afogando de angústia, tá todo mundo correndo sem saber onde vai dar. Raiva e vontade de ter motivo pra qualquer coisa acontecer de fato. Essa é a capital do carnaval mais violento a cada ano. Tem o maior galo do mundo. O artista também pôs ereto o maior “peru” do mundo, bem abaixo do umbigo do universo. Orgulho de ser; somente “ser”. Só aqui a tipografia Armorial ainda escreve “cultura”. Não temos horário de verão porque já somos o verão, não é?! Mas levamos em nossos pulsos moles o fuso-anti-horário de tempos arcaicos. Minha cidade é ícone do que tem de maior em linha reta e do que tem de pior também, eu aprendi isso na escola que também me ensinou o maracatu… O homem do nordeste é macho; estupidamente macho! E o governador já avisou que os soldados do inferno estarão nas ruas aos milhares nessa folia para fazer os adolescentes “delinquentes” beberem seus lolós até dissolverem o esôfago, para fraturar muitas canelas subnutridas com seus cacetes duros, para fazer neguinho pular para a morte no maior esgoto a céu aberto do mundo. Nada, menino! Nada que eu quero ver! O Cão Sem Plumas e sarnento agoniza como nunca. Já vou. Sinto uma vontade enorme de me isolar covardemente num paraíso qualquer, enquanto o paraíso existe. A floresta, a caverna: isso é solução pra mim. Vou me mandar para um lugar bem alto e verdinho. Vou trepar na árvore, vou trepar com a terra. Você sabe tanto quanto eu que a humanidade vai aquecer o planeta até que aqueles lindos vegetais cozinhem todos e virem léguas de deserto. Lá é alto, só pode virar deserto. Enquanto isso minha cidade em poucas décadas vai ser tomada por tubarões gigantes e peixinhos desequilibrados da cadeia alimentar. Nenhum prefeito da Veneza de cá vai ter que se preocupar mais com a eterna falta de saneamento, toda a merda já vai estar boiando. Nossa elite com suas bagagens pesadas e vazias de consciência vai lotar os aviões, mas nem todos caberão na Disneylândia. Já a famigerada classe média vai ter que subir o morro e pedir pinico. Mas eu não. Vou estar curtindo o ar fresco. Lá eu vou andar, andar e andar para gastar o suor acumulado por todo esse tempo nas minhas glândulas sebosas! Um dia vou juntar muita grana para comprar aquele quadragésimo quinto andar da Moura Dubeux. Aí serei imperador do meu domínio, e, do alto da minha contradição, poderei avistar as duas faces do Alto do Mandú e, de quebra, ainda escapar do dilúvio. Mas agora não. Agora sou só um cagão! Quero fugir dessa realidade que virtuo todos os dias, desse cheiro de caranguejo morto misturado com cocô que sai das valas do nosso Recife Antigo e nauseia os parcos turistas. Minha cidade, além de gente despejada nas calçadas, também tem o povo mais mal educado da face da terra, que suja, cospe e ejacula a imoralidade de tirar vantagem até nos mínimos detalhes. É uma inteligência empírica e perspicaz, uma incrível capacidade de ser o melhor. E dizem: “eu pago meu IPTU e quero ver aquele lindo batalhão alaranjado varrer a Guararapes nove vezes por dia! Eu jogo fora, sim. Não fui eu que comprei?”. João Grilo quer mais, ainda mais. Ele leva bomba mas também ri da sua cara, Mané! Eu? Eu quero estar bem longe dos toques dos clarins do Momo gorduroso! Isso mesmo, minha gente! Desejo caminhar por sobre as pedras do lindo riachinho enquanto esse povo todo veleja no mar de lama! Vou ficar bem longe dos ruídos dessa cidade. Buzinem. Agora buzinem à vontade, seus bostas!! Sintam-se motoristas felizes ao encherem seus tanques quando o cartel der uma trégua e fizer uma promoção relâmpago. Depois tranquem os cruzamentos, esculachem qualquer regra, pois a CTTU só pega o otário – esse sujeito cada vez mais raro. Qualquer iniciante já aprendeu a regra do jogo: “molhe minha mão aqui e agora, quero meus dez contos do guaraná, aqui sentou pagou, é três paus antecipados, viu??!! Colabore com sua segurança. Co-la-bo-re, entendeu?? Isso agora aqui é meu. Isso aqui não é de mais ninguém.” Sim, a bronca é pesada! Uma mulher degolada a cada semana, a menininha foi deflorada pelo papai. Já naquela outra cidade, o filhinho da mamãe foi esfolado pelas ruas pendurado na charrete dos demônios… Meu Deus, eu bem que sei que também sou culpado! Minha mãe muito politizada me ensinou que eles também são vítimas… os bárbaros também são vítimas apenas por serem dejeto social! Mas meu bem, não tem como escapar se ficar na urbe. A saída é o mato, o mato! Cardinot não explica, mas Alex quer explicar. Esse calor úmido não me deixa mais pensar. Esse mormaço salobro enferruja até meus miolos! A cachoeira vai me fazer bem.  Amanhã voltarei de alma lavada e desbotada.

14 de fevereiro de 2007.

 

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Certifique-se

Vejo que a dificuldade de muitos em fruir uma obra de arte é a ansiedade por total compreensão. Já vi quem chamasse algumas obras de arte pouco inteligentes porque lhes foram vedado o caminho imediato. Ora, pouco inteligente não seria preferir a exatidão, o caminho finito? Quanto a mim, prefiro o percurso continuado e em espiral de um nunca chegar.

Acredito que Marco Amador – Cursos de Paulo Meira é uma criação inteligente, mas, pouco inteligível (do Aurélio “que se compreende bem; inserido em um sistema de significações ou relações lógicas já conhecidas”). Um trabalho que requer muitas voltas ao seu redor. A impressão é de que sempre se chega ao mesmo lugar, mas não. Andiamo.

A obra transita entre o melancólico e o patético e fica assim: indefinido. Marco Amador é uma fábula de um homem submisso a um contexto que ele mesmo criou. Deixou-se cegar. E, de olhos vendados, fez-se regra de um jogo sem escopo e não se dá saber o porquê. Eis a armadilha. Stupido (?).

Parece-me que Marco Amador é uma das melhores metáforas da vida contemporânea. Um ser sem ser (sem identidade), um refém do seu próprio embaraço: pôs sua vida em confiança de um palhaço pavoroso, e o jeito é seguir; concluir os cursos programados. Ao andar cego e desengonçado, para ele: uma pequena queda d’água vira cachoeira; bosque logo se transforma em floresta; ruína de uma pequena edificação torna-se castelo; e um simples terreno rochoso, abismo. Soa como alguns dos filmes do Tim Burton: temas para adultos com imaginário infantil.

Sei que muitos quando se deparam com um texto crítico esperam o “sim” ou o “não”. O que a obra quer dizer? Ela é boa ou ruim? E, no entanto, a obra só tem a dizer àqueles que têm ouvidos para. E se ela lhes fala, então, terão condições de responder a si mesmos se é boa ou ruim. Se querem minha opinião: obra boa é aquela que me faz querer calar para ouvi-la. Existem trabalhos que acabam nos desagradando ou pelo conteúdo ou pela forma, ou por ambos. Mas se forem capazes de gerar pensamentos reflexivos… Conseguimos apaziguar pelo menos uma questão.

Intriga-me a imagem de Paulo Meira destruindo réplicas de sua cabeça — que também estão de olhos vendados. As tentativas, as repetições levam-nos a acreditar que não haverá um fim. E que a sua sina é continuar nessa esquizofrenia de destruir-se a si mesmo. É o ter que – ainda que haja a possibilidade do chegar a lugar nenhum. Vontade de destruir a situação presente e perene. Destruir sua própria cegueira. Destruir a cabeça-feita e libertar pássaros-pensamentos. Pássaros têm melhor senso de direção…

O que a obra quer dizer? Bom, essa é uma questão que não posso lhes dar por resolvida. Confesso que em Marco Amador – Cursos ainda existem muitas imagens que não consigo absorver – como o olho na mão do narrador, ou o garçom albino. Eu ainda tenho muito a percorrer. Fazer-me dar tantas voltas quanto eu achar necessárias. Perceber possibilidades ao caminhar naquele emaranhado de estradas-significados, e por fim, ganhar o certificado: participou do curso “crítico de arte não sabe nada, mas finge que”.

Recomendo que façam seus próprios cursos. Certifiquem-se.

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Arme os malucos, depois discuta que filmes influenciaram suas decisões.

Às vezes eu olho para as canetas como um masoquista olha para uma gilete, como que precisando de dor para aliviar. Desejo e repulsa. Penso em outra coisa, tento outro objeto, mas os olhos insistem em esbarrar onde não devem. Mas caem numa armadilha espiralada onde o centro está cada vez mais próximo, até que não possa ser negado. O ponto fixo, mesmo que um ponto cego, no meu caso, uma caneta cortante.

Já a usei em outras épocas para perfurar-me, até deixar escapar uma líquida e densa poesia. Quente, pulsante, nada mais fazia do que sujar o papel abundantemente, mas me aliviava da pressão. Eu que não podia chorar, deixava meu corpo expurgar suas dores discretamente, ainda que uivando. Solitário quando secreto, amparado quando necessário.

Já cortei minha pele com ela finamente, de forma a criar um tipo de tatuagem por escarificação. Achava que isso podia ser arte. Achava que isso podia ser interessante. Achava que eu poderia ser interessante. Ou ao menos tentava. Pergunte-me agora e eu posso ter certeza de que eu não fazia idéia do que procurava. Desconfiava disso então, mas não tinha certeza. Não sei se isso ajudaria, no entanto: certeza de não saber o que se quer não ajuda a querer, nem a caminhar. Talvez as absurdas paisagens de sonhos em desenhos confusamente multi-estilísticos nas minhas costas sejam testemunhas dessa tese.

Já matei dezenas também, com essa mesma lâmina de tinta, em confronto próximo e pessoal. Brandindo golpes cheios de raiva de mim mesmo procurando ferir profusa e profundamente quem quer que dividisse o ambiente, debatesse a tragédia, fosse platéia. Brigar com qualquer outro era o suficiente para me manter longe desse incansável inimigo, desse constante eu-nêmesis. Caneta em punho cerrado, o papel quase rasgando sob os signos tão pesados. Alvos não precisam de sentido, eu precisava deles: alvos, sentidos…

Vi-me num mundo de semideuses de beleza e estilo. Num mundo que se identifica por relógios de pulso. Num mundo que sugeria tanto, mas me fazia tão pouco. Senti-me compelido a fazer o que esse mundo fazia. Me maquiei, escolhi os melhores ângulos, as roupas, palavras e atitudes certas. Fiz-me personagem como ponte entre o que eu era e o que o mundo desejava. E quando o mundo me desejava eu sabia que tinha vencido um pouco. Mesmo tendo me perdido um pouco.

Meu problema talvez só fosse gostar de mim. Sem matar ninguém, sem ferir a ninguém. Sem machucados ou dores. Sem machucados ou dores não feriria ninguém, não mataria nem moscas.

Uma vez li que as palavras separam, enquanto as ações unem. Achei que eram palavras de um mestre de yoga, mas descobri que a frase era creditada a um grupo terrorista basco.

Só interessa por onde começar se você não tiver começado ainda.

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