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Descobri um dia desses, ou tão somente, consegui, por fim, admitir a minha arrogância. Criatura falante que sou, sempre tive opinião sobre tudo, ainda que, esporadicamente, junto a essa houvesse uma ressalva explícita de que poderia mudar de opinião.
Talvez a salvação da minha alma esteja na arte. Nada mais me constrange tanto do que me deparar com uma obra/proposição/ambiente de arte. Eu, simplesmente, não consigo admitir que um artista plástico faça seu trabalho por fazer. Essa é uma verdade quase religiosa em mim.
É por acreditar nesse preceito que não consigo desdenhar aquilo que se chama arte. É preciso empreender a busca do seu entorno, o mundo em que esta foi criada, o mundo que esta estabeleceu. Acredito que toda obra tem uma chave que nos permite vasculhar seu interior, seu íntimo – que pode se revelar equivocado, frágil, pouco significativo.
Quando nos debruçamos a investigar arte, inevitavelmente, nosso olhar e pensamento críticos exigem-nos bem mais do que um simples: gosto ou não gosto. É menos provável ainda a afasia.
Nesse momento, ponho-me na atitude de réu confesso. Tem obras de arte que minha mente não assimila; minha alma não absorve e, por muitas vezes, por preguiça, deixo que esse estado de torpor permaneça. Então, a obra de arte diante de mim se torna nada. Não faz diferença.
Por muito tempo os trabalhos de Rodrigo Braga foram algumas dessas obras de arte que me eram impossíveis fruir. Eu não enxergava.
Para ver uma coisa é preciso compreendê-la. A poltrona pressupõe o corpo humano, suas articulações e partes; a tesoura, o ato de cortar. O que dizer de uma lâmpada ou de um veículo? O selvagem não pode perceber a bíblia de um missionário; (…) Se víssemos realmente o universo, talvez o entendêssemos. (There Are More Things – Jorge Luis Borges).
O que me faltava era a linguagem certa para compreendê-las. Eu pretendia ver essas obras justapostas às coisas corriqueiras – eu queria utilizar-me da linguagem usual. Queria colocá-las junto às coisas correlatas visíveis. Mas essas são obras que não se permitem encaixar. Elas são da linguagem do onírico. Só lá é que elas encontram pares.
Segundo Foucault, entre a ordem e a reflexão sobre a ordem existe um linguajar solto que se desprende dessa ordem: “entre o uso do que se poderia chamar os códigos ordenadores e as reflexões sobre a ordem, há a experiência nua da ordem e de seus modos de ser.” Acredito que o trabalho de Rodrigo Braga está nesse entremeio – e que justifica a existência de uma obra de arte.
Arte que se preze já não deve ser ordem. É bem verdade que existe a arte que cria reflexões sobre a ordem. Mas, vale ressaltar que arte não é filosofia nem é ciência exata, e, ainda que questione sua própria ordem, toda arte fica nessa região mediana entre o que é codificado e o que é a análise reflexiva desses códigos: a experiência nua.
Vejo na obra de Rodrigo Braga, claramente, essa experiência nua que se desprende dos códigos e cria novas possibilidades de. A fotografia já não revela o que chamaríamos (vulgarmente) de real, no entanto, é real. A fotografia captura uma existência. Pedaços de plantas e de bichos agregados a Rodrigo criam outra coisa que já não é a nossa conhecida planta, nem bicho, nem Rodrigo.
A chave para entender um trabalho como Da Alegoria Perecível é a linguagem do onírico. Percebam que quando sonhamos podemos respirar como plantas, ter patas e olhos de animais, e continuarmos humanos. A experiência do recém acordar – que nos traz à lembrança o resquício da imagem do sonho – faz-nos capazes de admitir que apesar daquela imagem com patas, e capaz de voar sem asas, somos nós: há uma certeza que não nos parece estranha.
A beleza do trabalho de Rodrigo é ver possibilidades de um infinito materializado. São imagens descodificadas. Ele dá vida a seres imprevisíveis. Cada imagem que cria é capaz de potencializar nossa percepção e incitar-nos a uma perseguição de significados – que às vezes nos escapam e vão para além. Rodrigo torna a possibilidade de viver o onírico diante da câmera. Depois de Da Alegoria Perecível fica estabelecida uma nova possibilidade de leitura. Encerra-se um ciclo.
Por isso que não é bom desdenhar aquilo que se chama arte. Vale à pena empreender a busca do seu entorno, o mundo em que esta foi criada, o mundo que esta estabeleceu. Como disse: toda obra tem uma chave que nos permite vasculhar seu interior, seu íntimo – que pode se revelar equivocado, frágil, pouco significativo. O que, definitivamente, não é o caso das obras de Rodrigo Braga. Nele: a alegoria do inimaginável encontra abrigo e o que é perecível ganha tamanho significado que vira código à espera de análises reflexivas.