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Primeiro dia de 27ª Bienal de São Paulo, muita reserva de energia para ser gasta no árduo processo de “ver” uma bienal, curiosidade à flor da pele e… de repente: “olha, uma “ponte” atravessando os vidros do prédio!”. Trabalho do Atelier Bow-Wow que, segundo informava a entrevista concedida a Ana Elena Mallet para o catálogo da exposição, era um “projeto de interação com as árvores existentes nos arredores do Pavilhão”. Lá fui eu. Parecia ser, ao menos, uma boa oportunidade para respirar “ar puro”.
Caminho em direção ao trabalho, ensaio subir na estrutura de madeira (“ponte”) que me levaria para uma “voltinha” além das vidraças quando, mais do que repentinamente, surge um forte e indelicado bombeiro à minha frente. “Você pretende entrar aqui, senhora?”. “Sim”, respondi. Prontamente, ele me explicou, com um automatismo robótico, que, para que eu me aventurasse a passear na obra do Bow-Wow, seria preciso antes assinar uma espécie de atestado de responsabilidade sobre minha própria vida, o que me obrigou a ter que desembolsar documento de identidade e CPF…
Passado o susto do bombeiro-parede e a chatice de preencher um formulário assegurando que, caso eu resolvesse me jogar da estrutura, a culpa seria minha e não de Lisette Lagnado, ensaio outra vez subir a “ponte” quando, novamente, mais do que repentinamente, surge uma monitora-bombeira que diz “olhe, você não pode sentar naqueles banquinhos, tem que andar reto e não pode se demorar mais de 10 segundos em seu trajeto!”. À beira da desistência, engulo seco, faço sinal de concordância e, finalmente!, penetro a tal estrutura-ponte.
O que lá se passou não lembro bem, devido à tensão que me atormentava pela responsabilidade de manter minha vida bem viva e, de quebra, “apreciar” a obra nos míseros dez segundos que me haviam sido dados. De fato, minha relação com “as árvores existentes nos arredores do Pavilhão” foi nula. Mal foi possível perceber sua existência. Não me recordo de sua altura, espessura, textura, cheiro ou qualquer coisa do tipo. Ao fim da travessia, a única interação que me foi possível estabelecer foi com o bombeiro-parede e com a monitora-bombeira.
Passou. Nos dias seguintes, como de infeliz costume, algumas outras situações desconfortáveis como essa aconteceram. Não era permitido encostar no parapeito, não era possível chegar perto e decentemente enxergar desenhos – já devidamente protegidos por vidros – por conta das listras amarelas que limitavam meu percurso na exposição, não era autorizado sentar num sofá-obra (mesmo sendo a obra o ato de sentar!) porque “simplesmente não é permitido”, não se podia sentar à beira do dique para contemplar o Marulho, etc., etc., etc. Vários foram os “nãos” ouvidos; e a cada um aumentava a ironia da idéia de que arte e liberdade caminham de mãos dadas.
De “não” em “não” cheguei ao Museu da Língua Portuguesa, já em meus últimos suspiros de paciência e já com alguma saliva gasta em discussões inúteis com monitores que, em última instância, justificavam suas proibições com um simples “é a regra”. Eis que lá, num museu de língua – onde, teoricamente, tudo é imaterial –, me era permitido e, inclusive, incentivado, tocar em tudo! Descobri, ao lado da regrada Pinacoteca (onde levei alguns injustos esporros monitorais), um paraíso da liberdade! Ali, tão pertinho, o exato oposto: a idéia de que arte sugere – e, por conseguinte, deve criar formas de suportar – movimento, indagação, participação e, só para enfatizar, liberdade.
Como se já não me bastasse a alegria de poder interagir, no último andar daquele museu, durante um “espetáculo audiovisual” acerca da nossa língua, foi possível também me emocionar ao ver como, ao final do “espetáculo”, dezenas de crianças se jogaram – em total liberdade – sobre frases iluminadas que surgiam do chão. Aquela cena instantaneamente arrancou de mim lágrimas que senti reprimidas durante toda a minha expedição de artes visuais pela paulicéia. Se na Bienal e similares a atmosfera de vigília imperava sobre a do prazer, no Museu da Língua Portuguesa a relação era inversa. O último despertava desejo; os primeiros, receios. Para freqüentar a Bienal é preciso noções de etiqueta, mas para se sentir à vontade no Museu da Língua basta o interesse.
Deixei São Paulo com raiva da moral das artes visuais. Revoltada com a museografia, com a museologia, a curadoria e todos os que definem as regras do que é e do que não é permitido numa exposição de arte. Indignada por ver tantas obras eletrizantes engessadas por instituições incapazes de manter vivas as intenções artísticas. Essas sim – as instituições brochantes –, e não eu e as criancinhas, é que deveriam ser obrigadas a assinar atestados de responsabilidade sobre a vida das obras que vão matando aos poucos. Atestados bem grandes e complexos, aplicados por trezentos e cinqüenta bombeiros fortes e bravos, que é para que elas nunca se esqueçam do quão é desagradável a sensação de ter seus instintos reprimidos em nome de uma etiqueta displicente e preguiçosa.