www.revistatatui.com.br
Em nosso dia-a-dia, nossas ações são discutidas e lapidadas por longas conversas. Não foi diferente com as ideias presentes neste texto. A ação coletiva se faz presente em todas as atividades do grupo e, de fato, essa é uma tarefa árdua na maioria das vezes, já que os seis integrantes [1] do GIA possuem repertórios e opiniões divergentes. Nosso maior desafio, atualmente, é encontrar o denominador comum de nossas ideias e vontades. Há um ponto, porém, com o qual todo o GIA concorda: é preciso repensar o espaço público e a forma como a arte dialoga com seus habitantes. Quando digo “espaço público”, não me refiro apenas às praças, ruas, becos etc, mas também às relações subjetivas que nele se estabelecem, algo que remete à psicogeografia situacionista [2] , com suas devidas adaptações.
Nesse texto, pretendo esboçar alguns relatos sobre o Flutuador, uma das últimas ações realizadas pelo GIA. Esse trabalho foi escolhido por colocar em evidência algumas reflexões a respeito do uso do bem público e suas implicações, além das relações sociais estabelecidas a partir de movimentações artísticas na cidade. Além disso, a intervenção ilustra as diferentes formas possíveis de contato entre o GIA, as instituições artísticas “oficiais” e o público.
Ao lado do Museu de Arte Moderna da Bahia existe uma comunidade carente, entre tantos outros aspectos – saneamento básico, por exemplo –, de lazer e atenção: a comunidade do Unhão. Por ironia do destino, ela se localiza não apenas do lado de uma das instituições artísticas mais prestigiadas de Salvador – o MAM –, como também em frente a um empreendimento imobiliário milionário da cidade: a Morada dos Cardeais, prédio luxuoso e local de morada de conhecidos artistas da cena nacional. Ironicamente, tanto a comunidade do Unhão, quanto os moradores da Morada dos Cardeais, podem usufruir de uma das vistas mais belas da cidade, a Baía de Todos os Santos.
Em ocasião do QG do GIA realizado no Museu de Arte Moderna da Bahia em maio de 2008 (www.qgdogia.blogspot.com), o grupo desenvolveu com os moradores da comunidade do Unhão a montagem do Flutuador, uma plataforma flutuante (cuja estrutura é feita de garrafas pet reutilizadas) que fica ancorada em determinada praia, à disposição do público. É um espaço de convivência em pleno mar. Em sua primeira versão, portanto, o Flutuador ficou ancorado na Baía de Todos os Santos, sendo prontamente aproveitado pelos moradores da redondeza. Os momentos de lazer e festa que essa “intervenção” proporcionou aos seus fruidores ultrapassaram as implicações conceituais que o GIA tinha formulado: esses momentos eram, sem dúvida, mais importantes do que a função inicial que o grupo tinha planejado para o Flutuador.
Comunidade do Unhão e GIA usufruindo do Flutuador, ancorado na Baía de Todos os Santos, em frente ao Museu de Arte Moderna da Bahia e à comunidade adjacente.
(Foto: Mark Dayves)
Cidadão pratica Ioga no Flutuador (Foto: Solange Farkas)
Uma “zona liberta” se apresenta em pleno mar como uma Zona Autônoma Temporária, conceito desenvolvido por Hakim Bay. O autor aponta:
Devemos perceber que todos esses eventos são, de certa forma, “zonas libertas”, ou pelo menos TAZs em potencial. Seja ela apenas para poucos amigos, como é o caso de um jantar, ou para milhares de pessoas, como um carnaval de rua, a festa é sempre “aberta” porque não é “ordenada”. Ela pode até ser planejada, mas se ela não acontece é um fracasso. A espontaneidade é crucial.[3] [3]
Essa anarquia foi levada às últimas conseqüências em uma segunda experiência com o Flutuador em janeiro de 2009. A plataforma flutuante foi deslocada para o Porto da Barra, um dos pontos turísticos de Salvador: bela paisagem, bela praia, muitos turistas, muitas drogas e prostituição. No mês de janeiro, alta estação, o local fica repleto de pessoas a qualquer hora do dia. O Flutuador foi muito bem recebido pelos frequentadores do local, principalmente pelas crianças. É um costume de crianças e adolescentes que frequentam a praia ficar pulando de um píer que se prolonga do Forte de Santa Maria para o mar: pulam o dia inteiro… O Flutuador foi recebido como uma fonte de lazer gratuita e prazerosa, sendo cada centímetro da plataforma disputado ininterruptamente. Infelizmente, em poucos dias, sua âncora foi roubada (ou desatada) e o Flutuador completamente destruído. Um mergulhador, “rato de praia” do Porto, em uma conversa com alguns integrantes do GIA, falou que um dos problemas do fim da plataforma foi o mau uso que ele atribuiu às crianças do subúrbio, que não sabem cuidar das coisas e vêm aqui pro nosso bairro bagunçar. Isso fez o grupo refletir… Afinal, o povo não tem muita vocação para o bem público, não é mesmo? O que aconteceria se essa ação tivesse ocorrido em alguma praia do subúrbio? Uma demonstração de selvageria e barbarismos? Não seria o momento de responder a essa questão, deslocando as ações do GIA dos bairros centrais para as zonas periféricas de Salvador? Estaria o problema, realmente, nas “crianças do subúrbio”?
Certo dia, Pedro Marighella, integrante do GIA, foi visitar a praia de São Tomé de Paripe, ao lado da Base Naval de Aratu, subúrbio soteropolitano.
Por conta de depoimentos como aquele do rapaz do porto, Pedro esperava encontrar em Paripe o tal “bando de selvagens”, mas o que encontrou foi um lugar lindo e pessoas tão simpáticas quanto poderiam ser em qualquer outro bairro… E uma enseada perfeita pra um flutuador! Tudo isso incutiu no GIA uma enorme vontade de construir novos Flutuadores e vivenciar as diferentes reações do público, oriundas das suas necessidades e anseios. Essas reações, por conseguinte, se configuram em diferentes modos de lidar com bens coletivos e, numa esfera mais ampla, com a cidade. Não poderia ser a arte uma mediadora dessas possibilidades? O GIA acredita que sim.
A escolha dos lugares para ancorar o Flutuador, portanto, levanta questões bem definidas a respeito das necessidades e do uso do bem público:
O Porto da Barra representa o centro e a classe média, sendo foco de iniciativas ligadas ao lazer e ao turismo – verão, música, boates, calçadas bem cuidadas, carnaval oficial. (Apesar de ser foco das ações governamentais e de ser supostamente “bem frequentado”, foi justamente nessa região que o Flutuador foi destruído);
A região do Unhão é uma comunidade carente, espremida e dependurada num paredão prestes a cair no mar. Existe, nesta localidade, uma carência de espaços de lazer, devido a um intenso processo de gentrificação e resistência da especulação imobiliária (apesar desses problemas, a comunidade cuidou e usufruiu do Flutuador de forma democrática e espontânea, sem destruir ou danificar sua estrutura);
O subúrbio, por sua vez, representa a classe baixa, a “última fronteira”: local espaçado, de pouca atração imobiliária e distanciada das iniciativas mais audaciosas do Estado.
…
(Pedro entra na fala de Ludmila)
Certamente, a manutenção ou destruição deste, ou de outro elemento, está além da questão das condições financeiras e da atenção das entidades oficiais, mas passa pela capacidade de reconhecimento do que deveríamos conceituar como “patrimônio”. Pelo que conheço, a relação de patrimônio se constrói em oposição a históricos de exploração e imposições.
As condições de construção e aplicação do Flutuador na comunidade do Unhão, por parte do GIA, foram naturais e atendiam a uma expectativa afetiva das pessoas, agregando e repassando informação… Gentil, carinhosa, atenciosa (já que as próprias pessoas da comunidade ajudaram na construção do Flutuador).
No Porto da Barra, o flutuador era um elemento tão estrangeiro e efêmero quanto os gringos dilapidados e dilapidadores, atores do turismo irresponsável, da prostituição escrota e alvos da criatividade e lucro da malandragem. Acho que o GIA foi pego no vai e vem intenso desses ambientes, onde o bem-estar foi relegado ao “Estado” e não às “pessoas”, estas sim detentoras da sensibilidade que constrói coisas como o carnaval ou a confiança.
Às vezes, tenho uma fantasia de que toda irresponsabilidade do povo, na verdade, é uma espécie de “pirraça” a todo comportamento de dominação e a ações mantenedoras do poder constituído. Parece uma espécie de continuação das relações coloniais: “Pô, devem tá de sacanagem com a gente!” –, pensam assim vândalos que conheci.
Concluindo, meu querido amigo artista/interventor, esse depoimento é pra te alertar: não caia nessas armadilhas. Dispense a pressa, dê um tempo pra timidez… Só tome cuidado com a malandragem e os chatos. Quer dar uma ideia segura? Deixe de onda, não faça o trabalho por fazer. Crie relações com as pessoas, mexa com elementos significativos e afeição. Deixe essa história de arte pra lá por enquanto. Veja se a vida, às vezes, não fica melhor assim.
[1] — Atualmente, o GIA é composto por: Everton Marco Santos, Ludmila Britto, Mark Dayves, Pedro Marighella, Cristiano Píton e Tiago Ribeiro.
[2] — Abdelhafid Khatib define a“psicogeografia como um estudo das leis e efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos”. (KHATIB, Abdelhafid. Esboço de Descrição Psicogeográfica do Les Halles de Paris. In JACQUES, Paola Berestein. Org. Apologia da Deriva: Escritos Situacionistas sobre a Cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. p.80)
[3] — BAY, Hakim. TAZ: Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2001. p.26.