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Viajar? Para viajar basta existir.
Fernando Pessoa
1ª Viagem
Em 2005, na ocasião de minha primeira viagem a Buenos Aires, na qual fui, primeiramente, a passeio, entendi que ao conhecer artistas, circular por seus eventos e inteirar-se das dinâmicas sociais dos círculos de arte,a compreensão da história e cultura daquele país se tornava mais clara e as obras, bastante familiares. Seria possível rodar o mundo e entendê-lo tendo como porta de entrada a arte contemporânea? Compreender contexto através da estética e apreciar especificidades levando em conta situações foi – e continua sendo – motor para a minha mobilidade. Seguindo esta pista, inicio a pesquisa/articulação por países da América Latina com a constanteinquietação: como disseminar esta vontade de perceber o meu próprio trabalho a partir do embate com o outro, o diferente, o distante, o oposto?
Perseguindo este pensamento, tenho proposto exercícios migratórios entre artistas e teóricos do Brasil e demais países latino-americanos, assim como entre os do Rio de Janeiro (onde vivo e trabalho) e de outros estados e cidades brasileiros.
There are no foreigners in art [1]
Vivemos o período dos deslocamentos com vigilância. A mesma euforia entusiasta da era das Grandes Navegações – período entre os séculos XV e XVI – é presente em tempos nos quais a tecnologia da comunicação se aprimora a cada instante e a globalização é muito mais disseminada, do que entendida em toda sua complexidade. Fatores econômicos e incentivos governamentais nos permitem presenciar a facilidade da viagem e das trocas culturais, contudo, em movimento paralelo e contrário, pipocam os obstáculos para os cruzamentos fronteiriços, devido à onda de medo e paranoia internacional, elevando tensões e frustrações.
Hoje em dia, não viajamos com caravelas, que adentram o mar à conquista de novos mundos ou ao encontro do exótico. Deslocamo-nos rapidamente (muitos sem um pouso fixo). Somos móveis, transitórios e compartilhamos da utopia de um mundo sem fronteiras.
É nítida a familiaridade com que percebemos semelhanças e diferenças culturais, apesar de vivermos este paradoxo do ir e vir. Se cultura é a maneira como entendemos e nos portamos diante do mundo, este re-conhecimento cultural, proveniente da deslocação, desencadeia diferentes formas de percepção e compreensão de mundo e vida. Ou seja: quanto mais temos oportunidades de nos desvincular de uma zona de conforto para experenciar inéditas situações, ou até mesmo situações externas à rotina, sabemos que ao voltar para casa estaremos mais híbridos [2] .
Na arte dos últimos anos esta busca pela hibridez cancliniana vem se tornando foco de investigações artísticas e curatoriais, gerando conceitos para obras e exposições [3] .Viagens, residências e diários de bordo já não fazem parte somente do processo, são também o resultado de pesquisas.O ateliê torna-se espaço móvel ou pode restringir-se a um caderno de notas: o registro, muitas vezes, é a memória.
Esta experiência no âmbito pessoal (vivência), que se traduz em arte, possibilita outras relações com o espaço e o tempo. Orientações cartográficas, alucinadas derivas e trocas afetivas em movimento oferecem oxigênio a pesquisas e trabalhos, ao mesmo tempo em que se constituem dinâmicas iniciais para a legítima interação com o lugar. Ao propor um trabalho a partir do deslocamento, atentando para especificidades de cada contexto, é preciso nutrir o sentido de pertencimento dispondo-se à identificação de conflitos, soluções e possibilidades para a mediação, ou seja, deixar-se ser afetado pelo lugar.
Rede de contatos – ações colaborativas
O deslocamento de artistas sempre foi fator importante para a construção de identidades e emoções sociais em toda a história da cultura. Atualmente, essa prática é difundida de forma expressiva através dos programas de residênciaartística. O artista não se move mais apenas pelo registro ou documentação. A mobilidade é praticada visando o amadurecimento da produção e a troca, seja entre pessoas ou em relação ao lugar. Através dos espaços de residência e suas ações em rede, o trabalho artístico recebe ferramentas para a interação.
Grande parte desses espaços se constitui em iniciativas independentes (alguns se iniciaram como projetos artísticos) e autogestionadas que fundamentam suas atividades a partir da experiência e do trabalho em processo.Sustentam-se por redes colaborativas de informação, difusão de projetos e da interseção de propostas para programas participativos, dos quais custos referentes ao intercâmbio são supridos. As colaborações também estão associadas à criação e produção de publicações, textos críticos, projetos de artistas e ações educativas.
No que diz respeito aos espaços de residência ibero-americanos, suas colaborações em rede, desde 2008, tem acontecido em grande escala através da residencias_en_red [residenciasenred.blogspot.com]. Esta rede, que atualmente é coordenada logística e financeiramente pelo Centro Cultural de Espanha em São Paulo, visa à costura de um projeto comum de autogestão e financiamento, levando em conta diversidades encontradas em cada contexto.
Em países onde políticas públicas para cultura não alcançam patamares satisfatórios, iniciativas que incentivam a prática de pensar outras maneiras de fazer arte, que não as vinculadas às grandes instituições legitimadoras, são mais do que respostas às demandas locais –são resultados de uma sociedade e suas reflexões.
Três exemplos de iniciativas independentes que transformaram a cena artística de suas cidades, e que pude conhecer de perto como curadora-residente, são: Lugar a Dudas em Cali, Colômbia; Kiosko em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia e Batiscafo em Havana, Cuba.
Lugar a Dudas [lugaradudas.org] foi minha primeira residência artística/curatorial. A partir dela e das experiências vividas em Cali, delineei as intenções de meu projeto de pesquisa.Idealizada pelo artista Oscar Muñoz e coordenada por ele e sua companheira Sally Mizrachi ,Lugar a Dudas, atualmente, concentra um espaço com acomodações para residência, centro de documentação, salas de exposições, periodicidade em publicações e festivais de cinema, gerando grande visitação e reconhecimento. Iniciou suas atividades em um panorama local completamente carente de espaços e políticas para arte contemporânea, porém hoje já é centro de referência em toda Colômbia, assim como nos demais países latino-americanos. Para a cena local, seu surgimento possibilitou intercâmbios com outros centros de residência em todo o mundo, o impulso de ações de arte coletivas e públicas e o incentivo à pesquisa e produção crítica, incrementando ainda mais a fervente produção colombiana em arte.
Na Bolívia, a linguagem contemporânea, todavia, encontra resistência da classe mais tradicional da arte e do governo atual, dificultando o trabalho de artistas, teóricos e gestores da área. Nos dois meses que passei no país como residente, não tive conhecimento de programas públicos de financiamento e encontrei poucos espaços independentes. A presença de Kiosko Galeria [kioskogaleria.com] e seuprograma de residências são de extrema força ativadora para o país. A galeria e o programa fazem parte do organograma do estúdio de design Simple, que iniciou suas atividades de maneira autônoma devido à iniciativa deum grupo de artistas e designers. Localizada na cidade economicamente mais intensa (com características e posicionamentos políticos opostos à capital La Paz), Kiosko gera para a Bolívia um fundamental intercâmbio de projetos e reflexões, pois, ao lado do Proyecto Martadero de Cochabamba, articula as possibilidades de residências no país.
Batiscafo [batiscafo.org] atua em Cuba de maneira clandestina, como as demais iniciativas da Ilha que não são administradas pelo governo. Não possui sede fixa –residentes se hospedam em casas de cubanos –e se constitui apenas de uma pequena equipe (que também não é fixa) trabalhando na logística e no acompanhamento dos artistas e curadores visitantes. Atualmente, a residência passa por indefinições quanto à sua continuidade, devido ao término de financiamento estrangeiro para as bolsas e nenhuma possibilidade de apoio local. Contudo, desde 2002, Batiscafo gestiona o intercâmbio entre duplas – sempre um artista cubano e um estrangeiro -, promovendo debates e ações por Havana que reverberam por todo o mundo. Batiscafo é antes de tudo uma iniciativa de resistência. Ativismo político em forma de programa de residência.
Articulações em pesquisa ou A curadora viajante
Incentivar a costura destas redes de afetos e desejos vem sendo minha atividade-praticamente cotidiana -, há 5 anos. Presencial ou virtualmente, tento tecer vivências de deslocamentos, físicas ou intelectuais, e propor situações entre zonas de intervalos. A noção de tempo-espaço via internet se alarga e se comprime simultaneamente, fazendo com que distâncias, ritmos pessoais e línguas mescladas promovam a comunicação à ferramenta que celebra a diversidade. Ao aproveitar esta grande rede tecnológica(o cérebro do mundo)temos a oportunidade de agir em cooperação para a efetividade e difusão de experiências entre países, estados ou cidades.
Alguns são os pensamentos e projetos que venho tocando a partir de minhas próprias viagens. Como o ato de ir de um a outro lugar distante interfere na produção de um artista? Qual lugar seria mais instigador para determinada pessoa? Que artista seria mais estimulador para determinado contexto? E ainda:quais seriam as maneiras possíveis, em panoramas de recursos escassos, para a realização de uma residência artística?
A abordagem dessas questões, através da lógica curatorial, só se torna possível (de maneira leal) após a pesquisa in situ, na qual especificidades locais são tratadas com respeito e se tornam condicionantes. Entender a curadoria como a ativação de diálogos responsáveis entre artista, contexto, obra, público, indivíduo e mundo conduz a prática a uma atuação articuladora de sentidos, próxima a um pensamento político e ideológico.
Como ramificações do Projeto de pesquisa Intercâmbios, propostas de exposições, obras em colaboração e residências móveis aconteceram no decorrer desses últimos anos, desempenhando um papel aglutinador. O projeto Arte in Loco (2009-2010) [inlocoproject.blogspot.com], no qual dividi a curadoria com Pablo Terra, realizou o intercâmbio entre brasileiros e argentinos envolvendo exposições e um mês de residência em cada país. As ações ocorreram em Buenos Aires e Rio de Janeiro, com exposições na Fundação de Estudos Brasileiros e Museu da Maré, respectivamente. Belén Gunset, Daniel Murgel, Ezequiel Semo, Federico Zukerfeld, Joana Traub Cseko, Loreto Garín, Luciana Lamothe e Yuri Firmeza participaram do projeto de intercâmbio, que gerou quase um ano de conversas e reflexões sobre o espaço urbano, o conflito entre culturas e a importância do divertimento em arte. “Se não é divertido não é sustentável” [4] .
Como uma sugestão de reconectar laços atados durante minhas andanças e, literalmente, aproveitar dicas de cadernos de viagens, continuo o convite a artistas brasileiros às residências móveis dentro do projeto Mobil(c)idades: s. f. 1 movimento comunicado por uma força qualquer [mobilcidades.blogspot.com]. A residência móvel Mobilidades consiste em uma exposição e percurso por diferentes cidades de um mesmo país, com o intuito de agregar bagagem visual e sensível ao artista. Nesta proposta já embarcaram Gustavo Speridião para Bolívia, Guga Ferraz para o Equador e, em março de 2011, Julio Callado embarcará para o Chile. Esta iniciativa é apoiada por colecionadores e produtores de arte em parceria com os próprios artistas. Soluções estratégicas para a circulação de produções e transitórias vivências internacionais.
A proposta pioneira de deslocamento de artistas dentro de minha atuação curatorial foi o projeto 4 territórios [4territorios.blogspot.com],o qual acredito ser um bom exemplo de ampliação do entendimento público sobre residências artísticas. O projeto foi contemplado pelo edital Conexão Artes Visuais Funarte no ano de 2007 e teve sua realização em 2008 no Rio de Janeiro, Olinda, Brasília, Belém e Curitiba. Sete artistas e um coletivo, trabalhando em duos, trocaram de casas para realizar intervenções e vídeos que propunham diários de viagens. O projeto não consagrava catálogos, exposições ou palestras – entendidos como possibilidades de registro de resultados e comprovação de trabalhos realizados. Consistia, com ênfase em sua justificativa para o edital, na valorização da experiência.
A arte a partir da viagem alcança desdobramentos talvez antes impensados. Nestas situações não é somente o artista ou sua obra que se tornam visíveis e com os quais é preciso relacionar-se. Em viagens, hospedagens solidárias [5] e colaborações de trabalho, o indivíduo por trás do profissional (artista)também está em constante evidência. É neste detalhe que o olhar do curador é de singular importância. O êxito de um projeto que depende de momentos de convivência muito se relaciona à escolha acertada entre lugar, ambiente e personalidade de cada pessoa. Esta feliz decisão deve estar intrinsecamente conectada à proposta curatorial. A convivência e o deslocamento, se quiserem ser produtivos, devem conter, em medidas idênticas e exatas, tensão, inquietude, riqueza e criatividade.
[1] — Frase proposta como um dos eixos curatoriais da 52ª Bienal de Veneza. Em português: “Não existem/ Não há estrangeiros na arte”
[2] — Pensamento defendido por Nestor García Canclini sobre a hibridez nas culturas in: CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
[3] — Como exemplos: 52ª Bienal de Veneza (2007)e Trienal de artes da TateBritain (2009).
[4] — Um dos critérios valorizados por moradores de comunidades sustentáveis em momentos de tomada de decisão.Aqui, a apropriação faz referência a alusão ao sentido do verbo suportar.
[5] — Como proposta de pesquisa, ao viajar sem convites prévios de espaços de residência, tento me hospedar em casas de artistas locais como um meio mais rápido para a interação com o lugar. O mesmo tento articular para artistas, ligados ou não a projetos artísticos, que desejam o deslocamento a baixo custo e a ampliação de suas redes de amizades.