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Gosto de Kafka, porque suas metáforas se multiplicam. No seu romance inacabado “O castelo”, por exemplo, temoso suposto agrimensor K, que passa o livro todo tentando, em vão, entrar num castelo para o qual parece destinado.Talvez o castelo tenha um trabalho a lhe oferecer – ao menos, é o que K afirma, é a justificativa para se instalar na aldeia. A história, coberta por neve, sombras, burocracia ilógica e ambiguidades, seduz. Por que não aproximar esta imagem do próprio percurso da leitura, ou melhor, do caminho trilhado por este leitor encalacrado, o tal do “crítico”? No fundo, acredito que todo trabalho de crítica de arte, seja qual for o seu objeto, um poema, uma performance, uma imagem, é um outro modo de uma história ser contada, cujo personagem principal é o próprio olhar da leitura. É possível dizermos que cada leitor constrói, a partir da obra, um castelo ao qual pleiteia acesso; o trágico, o excitante, meus caros, é que há sempre um intervaloentre o crítico e seu objeto de estudo e nele cabesomente uma pantomima de sombras.
Não sei se o leitor lembra da lição que nos ensinou a mulher de Ló. Por causa dos pecados de Sodoma e Gomorra, cidade na qual Ló e sua família viviam, Deus, que naquela época ainda não criara a ONU, decidiu destrui-la.Numa fuga desesperada, auxiliado por dois anjos, Ló, sua esposa e suas duas filhas deixam tudo para trás e se refugiam numa cidade próxima, antes que sejam devorados pelo fogo e pelo enxofre que cairão dos céus. “Não olhes para trás, nem pares em toda a campina”, alertam os anjos. As filhas e o patriarca cumpriram o que foiexigido, porém sua mulher, não: como punição, ela é transformada numa estátua de sal. Por que ela desobedeceu, afinal? Piedade? Curiosidade? Havia alguma coisa, lá onde “da terra subia fumaça, como a fumarada de uma fornalha”, que ela não conseguiu deixar? A Bíblia, com seu jeitinho elíptico que tanto intrigou Auerbach no livro “Mimesis”, não explica.
O leitor já deve ter percebido que quero conversar sobre dívidas. Que preço um escritor paga, afinal de contas, ao olhar para trás? Oque ele pode encontrar nas ruínas? Como podemos interpretar estes diferentes retornos? Perguntas nascem geralmente de outras, mais amplas, mais simples, por isso mais difíceis. No caso destas, não seria diferente: se nosso objetivo, atendendo ao convite da Tatuí, consistirá em debater acerca da presença do passado na produção artística de hoje, de quantos passados estamos tratando?
Sim, porque, pasmem, quem disse que o passado existe? O caminho que sigo, naturalmente, não é o do relativismo como credo, mas sim como método. Como sintoma do devir. Pois, digo isto por insatisfeita experiência própria, se um casal, digamos, nem sempre consegue chegar a um consensoacerca do passado que compartilham juntos, isto significa que arrancamos muito dos nossos próprios ossos e carne para constituir esse passado do qual bebemos com tanta sede. Os monumentos, os vestígios, eles estão lá, mas a relação que temos com eles pode mudar a cada tempo: às vezes, ficamos horrorizados com as ruínas e procuramos restaurá-las, ou acreditamos que são intocáveis, que seria um equívoco tentar a restauração; em outros momentos, nós as alteramos e as modificamos, construímos coisas nelas, ou então as achamos perigosas às nossas crenças e as explodimos. O objeto do passado continua lá, porém parte considerável de sua alma se move dentro de cada cultura, de cada momento da história. Estas não são reflexões novas, porém necessárias: se todo encontro com uma obra de arte é labiríntico, que possamos ao menos discernir a quais castelos, dentro da geografia da crítica de arte, queremos chegar.
O retorno do passado na literatura brasileira contemporânea pode ser pensado a partir de dois eixos, dentre outros possíveis:a) a retomada de tradições e procedimentos formais; b) o passado recolonizado.
Comecemos pelo final. Se há um filão editorial nos últimos tempos, é o dos romances históricos. Se prestrarmos atenção em parte considerável das listas de best-sellers, ao lado de magos, exotismos, cachorros simpáticos e detetives, encontraremos a história. Vivemos uma fome desmesurada de realidade, cuja forma extrema implica numa alergia à ficcionalidade e à imaginação. A consequência disto, que não aprofundaremos aqui, é a profusão, por exemplo, de literatura que esconde a própria ficcionalidade, geralmente marcada por estéticas ultra-realistas,neodocumentais (lembremos de um “Cidade de Deus”, de Paulo Lins, por exemplo), ou de livros-reportagens, como o famoso “O livreiro de Cabul”. Uma outra consequência desta busca é um interesse renovado pela história, como pode ser atestado pelo livro “1808”, de Laurentino Gomes, que se tornou um dos maiores best-sellers dos últimos dois anos, assim como o sucesso de biografias que contam “histórias reais”.
Dentro deste horizonte de leituraestão os romances históricos. Históriassobre homens pré-históricos, imperadores romanos, interpretações “históricas” de mitos como o do Rei Artur, sagas de grandes famílias capitalistas; há todo um leque de opções. O romance histórico, claro, não é uma novidade e sua força já pode ser encontrada entre os séculos XVIII e XIX, num contexto no qual uma série de fatores sociais direcionou escritores e leitores à história. É o caso, para ficarmos apenas num fator, da construção de identidades nacionais tanto na Europa, quanto na América Latina. Por isso, temos um Alencar, aqui, escrevendo romances que mapeiam aspectos considerados formadores da história brasileira e entronizando o índio como unidade primeira da dignidade de nossa raça.
Há romances históricos e romances históricos, que variam desde best-sellers até romances com propostas menos voltadas à satisfação de imediatas demandas de mercado; no caso destes últimos, há uma preocupaçãoem inscrever-se noscânones da literatura erudita. Na verdade, trazendo para perto Luiz Costa Lima, em “Dispersa Demanda”, que cita o Silviano Santiago de“Vale quanto pesa”, dizemos, junto com eles, que uma vertente forte da nossa literatura está ligada à memória. Alguns de seus momentos mais importantes estariam relacionados a uma escrita memorialística que procura articular impasses de trajetórias individuais e interpretação social. É só lembrar do grande ciclo da cana de açúcar de José Lins do Rego.
Hoje, um bom exemplo desta continuidade pode ser encontrado num escritor como Milton Hatoum, cujos romances, embora não estejam vinculados ao regionalismo do nosso escritor paraibano, continuam o tema da decadência das grandes famílias burguesas diantedos processos de modernização dos espaços sociais brasileiros. Desta vez, no lugar do nordeste canavieiro, temos o estado do Amazonas e suas encruzilhadas migratórias: europeus, índios, árabes, brasileiros. Tudo isto escrito por personagens que “sobreviveram” às crises familiares e se dispõem, partindo da memória, a contar o passado.
Mas há entre nós os romances históricos propriamente ditos. Temos, na nossa literatura atual, bons representantes, dos quais destacamos Ana Miranda, Luis Antonio Assis Brasil e Luzilá Ferreira Gonçalves. Num livro como “Rios Turvos”, de Luzilá, temos a condição da mulher no século XVI pontuando a reconstrução histórica, através da história de amor e morte entre o poeta barroco Bento Teixera e sua esposa Filipa Raposa. Passado recolonizado, portanto: na literatura contemporânea, as inquietações do presente – emancipação feminina, impasses multiculturais – levam a ficção a alargar a experiência da história “oficial”.
Citamos, quase agora, José Lins do Rego e o regionalismo. Outro exemplo da presença do passado no presente da nossa literatura é a renovação da tradição regionalista. O termo regionalismo pode abranger vários sentidos. Numa concepção mais ampla, o leitor pode chamar de regionalista qualquer obra literária que seja ambientada num espaço rural. O sentido que utilizo aqui, entretanto, implica a idéia de que regionalismo consiste num projeto estético e político vinculado a momentos específicos da nossa cultura. No livro “Formação da Literatura Brasileira”, Antonio Candido afirma que o regionalismo nordestino de 30 – o mais importante, que nos legou Gilberto Freyre, Zé Lins, Graciliano – se fundamenta em três elementos: o senso da terra, ou seja, a ligação estreita com a paisagem nordestina; opatriotismo regional, expresso no orgulho pelo legado histórico da região, como, por exemplo, a exaltação da presença holandesa, do patriarcado açucareiro, ou das rebeliões nativistas; a preeminência do Nordeste, associando esta região à pureza e ao nacional em estado bruto, em detrimento de outras regiões do país. Portanto, alguns escritores contemporâneos, como Raimundo Carrero, Pedro Salgueiro e Ronaldo Correia de Brito, muitas vezes são chamadas de regionalistas num sentido amplo, no entanto suas obras pouco dialogam com a idéia de regionalismo enquanto projeto.
Na verdade, as marcas do regionalismo, nos termos de Candido, se encontram presentes com força maior em outros dois momentos importantes. Primeiro, na renovada atenção que tem se dado à obra de Ariano Suassuna e ao seu Movimento Armorial, que foi, até agora, o último movimento regionalista do Brasil. Apesar da importância do Movimento Armorial e da qualidade de algumas das obras ligadas aos seus ideais – lembremos do “Romance da Pedra do Reino”, das gravuras de Samico e da música de Madureira – é inegável que ele contém limitações, como é o caso da sua relação com a cultura popular, por exemplo. Se estas limitações continuam se repetindo e ecoando sem o devido balanço crítico, a hipótese é de que elas respondem a alguns consensos que ainda persistem na visão que temos da nossa cultura; consensos estes que precisam receber umas sacudidas. Já o segundo momento pode ser encontrado na sólida obra do sergipano Francisco Dantas, que em livros como “Coivara da Memória” retoma alguns personagens e temas consagrados pelo regionalismo de 30.
Temos, neste caso, um diálogo e não uma repetição: Dantas consegue imprimir uma voz própria ao que parecia “ultrapassado”, apostando numa linguagem que concilia o registro das falas populares com uma pegada proustiana. Uma das hipóteses que explicaria esse diálogo da obra de Dantas com o regionalismo estaria, como bem apontou Lafetá na resenha que fez a “Coivara da Memória”, na permanência, em plenos anos 90 e 00, de certas mazelas sociais, como a do mandonismo local, mazelas estas que foram abordadas pelo regionalismo de 30 e que ainda sugam o nosso sangue (e dinheiro).A literatura continua trazendo, ao presente, o tanto de passado que o sustenta.
Por fim, vamos saltar da prosa à poesia contemporânea. Nela, fica claro outro aspecto do passado no presente, uma espécie de nostalgia-simulacro (uma reflexão teórica mais aprofundada sobre isto o leitor pode encontrar no ensaio de Clarissa Diniz, publicado nesta mesma Tatuí). O palavrão é horrível, porém procura traduzir o seguinte: alguns artistas – e isto parece ser bem pós-moderno, embora eu não goste da palavra – criam bolhas de passado no tempo presente e que são capitaneadas pela repetição de certas imagens eprocedimentos formais. Queremos exemplos? Se o leitor não assistiu, certamente ouviu falar nos filmes de Indiana Jones. Neles, Spielberg e George Lucas tentam reconstruir certos “climas” de filmes e seriados antigos. Ao rever os filmes de Indiana Jones, inclusive este novo, lançado em 2008, me surpreendi com o clima retrô de todos eles. O que parecia, na nossa memória, tipicamente uma estética anos 80 se revela, em parte, uma angústia que procura a coexistência passado-presente na forma.Sim, este passado enquanto malassombro parece ser uma característica do nosso tempo, principalmente dos 80 para cá.Outro exemplo, ainda no cinema, seria Kill Bill, de Tarantino.
A partir da década de 90, se tornou mais claro que alguns poetas brasileiros procuram realizar coisas semelhantes. Certos procedimentos consagrados pela história da literatura são ressuscitados de maneira mais evidente, sistemática. De modo grosseiro, sem pretensão de esgotar o assunto, podemos colocar estes tipos de poemas em três grandes grupos, nos quais predominam: a) a retomada da poesia visual das vanguardas do século XX, notadamente o concretismo; b) a retomada do barroco; c) o retorno do simbolismo.Aqui, cabe uma observação: há uma diferença entre aquilo que influencia um poeta, ou seja, os textos e tradições que contribuem à formação da sua palavra, e o escrever à maneira de. Logo, poetas como Frederico Barbosa, Delmo Montenegro, Alexei Bueno, Amador Ribeiro Neto, Augusto Contador Borges, Mariana Ianelli, Claudio Daniel, Jussara Salazar, Marco Lucchesi, Arnaldo Antunes e Wellington Melo, entre outros, correm, apesar de serem tão diferentes entre si, o mesmo risco da mulher de Ló. Em maior, ou menor grau, são todos bons poetas, mas alguns poemas escritos por elesjá corroboram nossa preocupação. Ao poeta iniciante, o conselho:de nada adianta manter-se nas bolhas das nostalgias-simulacros. Talvez isto nos divirta em Tarantino e Indiana Jones, contudo da poesia esperamos outra experiência, outra voz.
O escritor se enfraquece ao ver o passado como heróico, acreditando que os problemas continuam os mesmos e as soluções, também. Em todas as tendências pelas quais passamos rapidamente o olhar, foi possível perceber este perigo. A nostalgia da pós-modernidade parece nos iludir com a vontade de repetir as histórias dos nossos heróis, ou seja, escrever como eles; “chocar a sociedade”, como eles; “varrer do mapa os parnasianos”, como eles. “Seja marginal, seja herói”: isto fazia sentido no tempo de Oiticica, porém pode soar ridículo hoje. Mas quantos e quantos artistas visuais – aqui já pulei de um galho ao outro –não criam obras e personas estereotipadas pelo próprio passado sobre o qual leram?O sal, ainda. É preciso jogar o jogo da arte sem medo dos riscos, claro. Sem esquecer, porém, que aquilo que nós, artistas, procuramos, é simplesmente o sabor.