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Tradução Eloísa Araújo Ribeiro
Considerar o cinema como uma prática artística emancipada de todo controle, afirmá-lo desdobrando as particularidades que o meio esconde, compreender e esclarecer a singularidade de atuar que ele permite, examinar as modalidades de fabricação, apresentação e distribuição dos filmes. Aqui encontramos algumas das particularidades que caracterizam o campo conhecido como cinema experimental e que tantas vezes responde de maneira crítica ao cinema dominante por suas formas, conteúdos, meios de produção e condições de exposição (distribuição e espaços de exibição). Nas relações estabelecidas entre cinema experimental e as artes plásticas, encontra-se a singular posição de Valie EXPORT. Desde o início, a artista escolheu trabalhar com cinema. Não com qualquer tipo de cinema, mas com aquele que ela chama deexpanded cinema (cinema expandido).
Conservaremos o nome inglês, pois se trata de uma compreensão do cinema mais próxima àquela dos artistas plásticos dos anos 90 e, portanto, radicalmente diferente do cinema expandido dos cineastas experimentais do fim dos anos 60 e 70. Diversamente à produção americana – dominada desde o fim dos anos 60 pelo cinema estrutural –, mas também diferentemente da escola materialista europeia, encarnada pelo cinema britânico e alemão do início dos anos 70, Valie EXPORT privilegia o conteúdo em detrimento da forma, tal como tradicionalmente compreendida. A artista não cultiva uma dinâmica essencialista em relação ao cinema: “nunca fui ligada a uma interrogação puramente formal do material fílmico, mas sempre me preocupei com o conteúdo da imagem, isso sempre foi importante para mim [1] ”.
Em Viena, no contexto do fim dos anos 60, o corpo – em todas as suas expressões – torna-se matéria-prima para os acionistas vienenses (Otto Mühl, Rudolph Swarzkogler, GunterBrus e Hermann Nitsch). Em especial, a forma de exploração da mulher por aquele grupo de artistas torna-se um ponto de partida crítico para a obra de Valie EXPORT. Apesar do reivindicado radicalismo e insubordinação dos acionistas – que visavam perturbar uma sociedade voltada para si mesma, fechada em um conservadorismo pós-fascista –, suas ações utilizavam e representavam a mulher como qualquer outro grupo, como um objeto cujo único crédito era o de ser um dos elementos da performance, triturado pela instância dominante: o homem. Assim, EXPORT criticará “o papel das mulheres nas ações materiais realizadas por artistas masculinos (como feminista, não me interesso pelos papéis dos homens)”. Em suas performances, a ação
“visa obter a união do ator e do material, da percepção e da ação, do sujeito e do objeto. O acionismo feminista procura transformar o objeto da história natural do homem, o material “mulher”, subjugado e mantido na escravidão pelo criador masculino. Numa atriz e criadora independentes, ela é sujeito de sua própria história. Pois, sem a capacidade de se expressar por si só e sem campo de ação, não poderia haver dignidade humana”.
Mais adiante, se os acionistas saturavam o sentido por sobrecarga, denunciando os tabus e a repressão da sociedade austríaca por meio do espetáculo, eles o faziam ainda com uma linguagem que procedia da pintura gestual e de um determinado expressionismo, diferentemente de Valie EXPORT, ou Peter Weibel. Na obra desses, estamos diante de uma análise da comunicação, que se expõe na projeção de um corpo compreendido como superfície receptora-produtora dos fenômenos de socialização: “Meu trabalho deveria ser compreendido como uma crítica das ações materiais, uma resposta artística distinta para responder a essas ações materialistas”. Foram esses, portanto, os trabalhos identificados como expanded cinema.
Com Valie EXPORT, trata-se, então, de ações cinematográficas: projeções de signos que se produzem fora do lugar de consumo clássico do cinema:
“o conceito e a intenção dos primeiros trabalhos em expanded cinema consistiam em descodificar a realidade tal como ela é manipulada no filme. Levar o dispositivo cinematográfico para o espaço e para a temporalidade da instalação, a fim de romper a bidimensionalidade da superfície plana. No cerne de minha análise, encontrava-se a desconstrução da realidade dominante, a desconstrução e a abstração do material, a tentativa de produzir novas formas de comunicação e sua realização. Meu trabalho empenhava-se em se afastar das formas do cinema tradicional, de sua produção comercial – produção convencional das sequências cinematográficas segundo a filmagem, montagem, projeção, e substituí-las, em parte, por aspectos da realidade como novos signos da realidade. Apresentação, produto, produção, realidade, formam um todo no expanded cinema. Na ação Cutting (1967-68), eu não cortava a película de celuloide, mas o corpo da tela iluminada pela luz do projetor. O som do corte (a raspagem), da respiração e do projetor sem filme, constituem a faixa sonora. A iluminação, a revelação e as imagens eram, portanto, produzidas simultaneamente” [2] .
Enquanto o espaço habitual do cinema só funciona na doce neutralidade de seu entorno acolchoado – tratando-se, portanto, de um lugar de mão única, sem reciprocidade –, Valie EXPORT redefine o cinema como lugar de troca, ativando-o como um espaço de comunicação. Valie EXPORT põe literalmente o cinema para fora das quatro paredes.Ele sai de seu armário e de seu uso amortecido, se expõe. Tal exposição é particular, já que manifesta o dispositivo e, a um só tempo, se realiza através de ações precisas que só recorrem de modo secundário às ferramentas do cinema. Essa inversão desloca, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto do cinema, na medida em que se refere aos usos dominantes do cinema, criticando-os pelo simples fato de expô-los. Assim, Valie EXPORT procura restituir novas perspectivas de percepção para nossos sentidos amputados. Às vezes, ela interroga a questão da materialidade do suporte e dos processos, substituindo alguns de seus elementos. Outras vezes, privilegia o momento da recepção do filme – ou seja, a interação com os espectadores induzida pelo dispositivo –, em outras, ainda, ela fará do corpo, o dela, um objeto de osculação, como em TappundTastkino a Glotis, ou em The Voice as Performance, ActandBody (2007).
Por sua vez, Abstract Film N°1 (1967-68) trata da produção e projeção da imagem segundo um sistema particular de trocas, que recorre a elementos naturais – como pedras, água e árvores – que fazem as vezes de tela. O recurso a tais elementos permite afastar o aspecto tecnológico em prol da relação entre natureza e cultura, sublinhando a existência de um indivíduo-superfície: para EXPORT, o corpo é lugar de determinações culturais, no qual estão gravados o espaço e a lei da sociedade [3] , mas também capaz de se mostrar para o mundo e de se comunicar com ele. Mais adiante, InstantFilm (1968), um retângulo de plástico transparente que faz as vezes de filme instantâneo, trabalho de Valie EXPORT e Peter Weibel, leva adiante algumas dessas questões: “InstantFilm é um meta filme, reflexo do filme e da realidade. Depois do desenvolvimento do café instantâneo e do leite em pó, conseguimos, finalmente, produzir o filme instantâneo, que é tela, projetor e câmera ao mesmo tempo. A junção deles depende do espectador”. O trabalho demanda a participação dos espectadores para existir como filme – vale ressaltar que, frequentemente, quando as instalações não recorrem à participação do espectador, elas o deixam de lado.
Há, na produção de Valie EXPORT, diversos projetos interativos. Em PingPong(1968), a questão da recepção é abordada como um jogo: com uma raquete e uma bola, o jogador mira alvos redondos que aparecem e desaparecem independentemente da reação do performer. Se, por sua vez, TappundTastkino(1968) – outro de seus projetos interativos – demanda um dispositivo particular, é porque interroga o cinema segundo modalidades distintas e, principalmente, põe em cena o voyeurismo inerente ao consumo cinematográfico. A pulsão escópica ativa atitudes e modalidades de apreensão que salientam o poder do olhar do homem em relação à mulher-objeto (objeto de todas as suas cobiças), a tal ponto que fixa as regras do olhar, dela e do próprio dispositivo. Com TappundTastkino, a artista inverte o processo de consumo do filme na sala escura. O olhar do voyeur não está mais protegido pela escuridão, engajado de maneira anônima para satisfazer seu prazer falsificado; ele está engajado em ter seu prazer de verdade, publicamente, diante do olhar do outro – que o examina –, mas também do público, que o vê fazer. Um dispositivo de troca, de comunicação, se atualiza ao vivo.
Vamos nos deter um instante nas diferentes apresentações de TappundTastkino, realizadas por EXPORT. Se na primeira apresentação ela recorreu a um cúmplice, um ator que agarrava o cliente (na pessoa de Peter Weibel), na segunda, Valie EXPORT recorreu a uma mulher como aliciadora – o que provocou as mais variadas reações, hostis em sua maioria: “essa ação foi bem interessante, pois éramos duas mulheres, as pessoas ficaram muito agressivas. Pensavam que éramos prostitutas”. Com TappundTastkino, Valie EXPORT quer, efetivamente, modificar a consciência das pessoas:
“nessa ação, na linguagem do filme, autorizo quem quiser a tocar meu corpo-tela, meus seios. Rompo com os confins socialmente legítimos da comunicação social. Meus seios já não eram parte da sociedade do espetáculo, esta última fazendo da mulher um objeto. Meus seios já não eram a propriedade de um só homem, ao contrário, a mulher tenta, com a livre disponibilidade de seu corpo, determinar sua identidade independente, o primeiro passo que vai do objeto ao sujeito. (…) O fato de tudo se passar na rua, e de o consumidor poder ser qualquer pessoa, homem ou mulher, constitui uma infração reveladora do tabu da homossexualidade”.
Encontramos um recurso à homossexualidade como marcador social em Menschenfrauen [mulher humana] (1979), no qual duas mulheres grávidas, Anna e Petra, se beijam num restaurante, provocando um protesto geral. Com Genitalpanik (1969), Valie EXPORT expõe seu sexo para a visão dos espectadores de um cinema onde entrou. Com uma arma à tiracolo, os cabelos arrepiados, pensa-se imediatamente em Angela Davis, que teria decidido atacar os machões de plantão como deslocamento de reivindicação racial. A inscrição do político nesse trabalho é patente.
Em trabalhos do início dos anos 60, a preocupação com as questões sociais da mulher já se coloca como central na obra de EXPORT: “com TappundTastkino, já havia esse confronto entre a análise da feminilidade e da imagem da mulher, do olhar sobre a mulher (…), tema muito presente e muito importante”. As questões que rodeiam a imagem da mulher são problematizadas num procedimento recorrente: a artista atua a partir de lugares que, conforme os tipos de relações que instauram, fazem ver determinadas regras e regulamentações sociais, que são portanto retomadas em seus termos. É o corpo da mulher, na pessoa de Valie EXPORT, que é interrogado, através de encenação que visa fazer uma voz ser ouvida: sua voz; a voz de uma mulher. Assim são compreendidas obras como bodyandsign (1970), que perpetuam as ações precedentes, propondo uma imagem congelada cujo movimento inscreve o trabalho do pensamento.
O equívoco do signo tatuado atua em vários registros, vários planos, como também o fazem os dispositivos de vídeo e as fotografias que separam camadas sucessivas de partes de corpos. A foto, a performance e alguns filmes salientam ainda esses deslocamentos, que nos fazem passar do corpo de uma mulher ao de Valie EXPORT em prol de uma exteriorização de estados mentais, cujo vestígio pode ser lido segundo várias mídias. Trabalho da transferência, passa-se de uma superfície à outra, fazendo a tinta subir para ser reabsorvida ou impressa sobre uma superfície sensível, pele, película, papel. O signo faz sentido por seu próprio transporte.
À época da exibição de TappundTastkinoem Munique, o feminismo ainda não preocupava artistas como Birgit Hein – “para mim, havia o cinema estrutural, Freud e Marx” –, de modo que Valie EXPORT antecipa a reflexão engajada, alguns anos mais tarde, pelas feministas anglo-saxãs. Seu expanded cinema fica à margem daquele dos cineastas do momento, mais preocupado com questões estruturais do dispositivo e com a materialidade do suporte, do que com conteúdos que interrogam tanto o olhar quanto aquele que olha, e investindo sobre campos excluídos, para não dizer proibidos.
O expanded cinema da época, produzido antes de tudo nos Estados Unidos, vinha da estética underground, tal como ilustrada por Andy Warhol em PlasticInevitable, ou ainda porEvents no Moviedrome, de Stan Vanderbeek, nos quais verdadeiras colagens, assemblages audiovisuais, são elaboradas ao vivo. É preciso esperar os anos 70 para ver eclodir uma escola que trabalha os processos e investe as relações efetuadas pela projeção no espaço – o que está presente, antes de tudo, no cinema materialista britânico, bem como em algumas figuras importantes nos Estados Unidos, como Paul Sharits e Michael Snow, para citar apenas duas delas. Tendo em vista esse contexto – marcado, de um lado, pelo cinema estrutural e, de outro, por um expanded cinema de estética underground –, inevitavelmente as ações do expanded cinema de Valie EXPORT tornam-se ambíguas: elas manifestam questionamentos diferentes, e singulares, privilegiando, ao mesmo tempo, uma estética minimal.
Suas ações se aproximam das ações da body-art, mas se distinguem delas por uma afirmação propriamente feminista. Valie EXPORT aventura-se num território relativamente intacto – onde tudo é possível pois tudo, ou quase tudo, está por ser feito. Devemos lembrar que o artigo essencial de Laura Mulvey, Visual Pleasure and Narrative Cinema, é publicado na revista Screen, em 1974. Nesse artigo, Laura Mulvey questiona, por intermédio da ferramenta psicanalítica, o trabalho patriarcal no cinema narrativo e, mais precisamente, a representação das mulheres através do olhar dos homens. Valie EXPORT, entretanto, não é a única a interrogar e a inscrever a especificidade de uma fala, a traçar uma escritura feminista. Carolee Schneemann já abrira a via, já esboçara caminhos em conflito com as instituições.
Se compreendermos o trabalho de Valie EXPORT como um trabalho de resistência diante do conjunto de imagens de mulheres defendido pelo acionismo vienense, encontraremos aí uma semelhança com os filmes de Carolee Schneemann e, principalmente, com Fuses, que vai de encontro à ideologia de Stan Brakhage. Schneemann, como EXPORT, não seguia um cronograma: elas subvertem a arte para que suas vozes de mulher sejam ouvidas. Suas obras têm a particularidade de trabalhar a representação do prazer sexual, como Fuses (1965), PlumbLine (1970) e Menstruation (1967), hoje perdido, e Mann, Frau& Animal (1973), de Valie EXPORT. A afirmação do prazer do feminino choca tanto o bom gosto quanto os hábitos dos homens, na medida em que já não se trata do prazer deles. O que fala, o que se mostra na imagem, é o outro, a grande ausência. Essa fala é, antes de mais nada, política.
Com Mann, Frau& Animal, e Remote Remote, ambos de 1973, Valie EXPORT explora registros mais pessoais e põe em cena a dor, a automutilação, o prazer. Mais uma vez, encontramos nessas encenações semelhanças com várias ações de Gina Pane. Nesses dois filmes, Valie EXPORT exterioriza estados mentais. Em um caso, o prazer; no outro, a dor. Retomando os termos de Juan Vicente Aliaga, em Mann, Frau& Animal Valie EXPORT explora o percurso do prazer individual, solitário e autossuficiente de uma mulher com um fim sangrento (estupro simbólico?) ao som de gemidos viris. A irrupção do sangue, a menstruação na imagem, quebra um tabu. O que é chocante aqui, em todos os sentidos do termo, é o fato de fazer ver, a um só tempo, o prazer, o orgasmo e a menstruação.
Com Remote Remote, não é tanto o prazer, mas a mutilação que é exposta – e, mais exatamente, a automutilação. O ato de cortar sua própria pele, ou seja, o cuidado estético bruto, a manicure, pertence aos códigos elementares da representação feminina. Em Remote Remote, o ato é prolongado na duração. Insistentemente, passa-se do cuidado ao mau trato; fere-se, inflige-se aos dedos tratamentos no mínimo sangrentos. Isso é feito com um estilete. Não apenas corta, mas se insiste. A repetição dessas mutilações induz à percepção de uma dor para o público e remete ao temor da castração para os homens. Ela anula o uso patriarcal do prazer cinematográfico, desnaturando-o. A mão é lavada em uma tigela de leite, que expressa calma e purificação – mistura de elementos aparentemente opostos que aparece com frequência na obra de Valie EXPORT. A artista anula o conforto da performance quando sai de campo para nos deixar diante da imagem de duas crianças violentadas vestidas com pijama listrado, que evocam outras lembranças da sociedade austríaca contemporânea.
Esses filmes, próximos das ações do expanded cinema, afastam-se dele, entretanto, pela utilização parcial – no que concerne Mann, Frau& Animal – de técnicas que mesclam diferentes suportes (fotos, grafismo) no mesmo filme. Valie EXPORT desenvolve, com o vídeo, dispositivos que unem, simultaneamente, vários pontos de vista, que podem se encaixar uns nos outros para produzir um acontecimento específico. É o caso de Split Reality (1970-73), ou Adjunct Dislocations (1973) e sua segunda versão (1973-78), que evocam um trabalho próximo ao de Dan Graham e serão formidavelmente orquestrados em Syntagma, com uma única tela. Os dispositivos com duas câmeras, habitualmente usados por Valie EXPORT, partilham com os de Dan Graham semelhanças de atitudes e de questionamentos quanto à percepção simultânea de uma ação através de dois pontos de vista. Assim, Roll (1970) e Helix/Spiral (1972) antecipam e lembram os dispositivos de tomada simultânea de Valie EXPORT. Nessa junção de uma filmagem simultânea e de sua restituição sincrônica, é abordada a questão do fora de campo, como também a anexação do campo-contra-campo simultâneo. Não há mais distância; fica-se, a um só tempo, fora e dentro. Esse trabalho sobre a questão da simultaneidade dos pontos de vista é compreendido em relação à situação do cinema experimental austríaco da época.
Como se podia ainda realizar filmes depois do cinema métrico de Kubelka? Como abrir outros horizontes para o cinema? É assim que se deve compreender a interrogação em torno da simultaneidade, cujo primeiro vestígio é encontrado no filme Hernals (1967), de Hans Scheugl, no qual
“procedimentos documentais e pseudo documentais foram simultaneamente utilizados por duas câmeras situadas em ângulos diferentes. Cada fase de movimento foi dividida. Durante a montagem, cada uma dessas fases foi duplicada. As técnicas utilizadas para isso variam. O som também foi duplicado e, aí também, diversas técnicas foram utilizadas. Duas realidades diferentemente percebidas, devido às condições de filmagem, foram montadas em uma realidade sintética na qual tudo se repete. Essa duplicação destrói o postulado da identidade da cópia e da imagem. Perda de identidade, perda de realidade (esquizofrenia)” [4] .
Já com InvisibleAdversaries, Valie EXPORT trabalha a narração. A abertura e o fim do filme evocam o último plano de Profissão Repórter, de Antonioni, no qual uma câmera sai de um cômodo para percorrer a cidade. Ela não é a primeira a se lançar numa aventura dessas. Com certeza foi Yvonne Rainer quem impulsionou esse aspecto no campo do cinema experimental. Com Livesof Performer, de 1972, Yvonne Rainer deixa o campo coreográfico, reforçando o emprego de elementos narrativos. Mas tudo é feito com distanciamento. Encontramos estratégias semelhantes em Valie EXPORT no que diz respeito à não aderência de um personagem a seu papel, ou pelo jogo sutil de repetições defasadas, como na cena do lado de fora do café, ou no momento de um diálogo organizado por monitores de vídeo. Esse agenciamento de planos, que antecipa, freia e relança a narrativa, confere a esses filmes sua matéria de assemblage; constituídos de momentos mais ou menos narrativos, por meio da mescla de elementos de diferentes procedências, eles deslocam a experiência do filme da narrativa para a própria trama. Em Yvonne Rainer, elementos autobiográficos estão lado a lado com ensaios e espetáculos de dança; já Valie EXPORT incorporará ou recriará peças fotográficas que ela põe em situação.
Para as duas artistas, e em graus diversos, o trabalho cinematográfico trata de ir além do filme estrutural que, à época, estava se esgotando, ficando sem saída, e oferecendo indícios que já deixavam perceber alternativas a esse cinema. Para Valie EXPORT, tratava-se, antes de tudo, de introduzir formas e conteúdos da vanguarda no cerne dos longas-metragens: “tentei introduzir, nos filmes convencionais, discursos alternativos de um artista das mídias. Eu queria encontrar uma maneira de criar uma polifonia com ajuda de metáforas visuais, para ilustrar os diferentes processos psíquicos pessoais”.
Desde então, o expanded cinema de Valie EXPORT adensa o contexto do cinema experimental, problematizando as normas do discurso cinematográfico clássico, donde advém seu caráter transgressivo, subversivo. Hoje, essa prática mantém-se marginalizada do domínio da produção de imagens em movimento, tantas vezes estando forçada a regimes de invisibilidade. É certo que sua relevância histórica é reconhecida. Todavia, tal reconhecimento é, por vezes, forma de despojar as produções contemporâneas experimentais, acusadas de não corresponder às expectativas do discurso crítico do momento.
Assim, dada a amplitude das redes de circulação que atualmente detêm o poder do consenso estético, o cinema experimental contemporâneo enfrenta o problema de “ilustrar-se pela sua ausência” – situação partilhada também por outras linguagens artísticas –, razão pela qual precisa (re)definir-se constantemente. Por isso o cinema experimental é, cada vez mais, simultaneamente combate e resposta.
Fazer cinema experimental é ser o agente desse cinema, continuamente buscando estratégias de resistência que evitem sua aniquilação. É também inventar as condições de sua partilha pública. Finalmente, fazer cinema experimental é refletir sobre uma história subavaliada e, ao mesmo tempo, questionar as formas desnarrativas (isto é, que rompem com os padrões históricos de narração no cinema) de um suporte linear: o filme.
[1] — Entrevista publicada no livro de Roswitha Mueller Valie Export Fragmens of the Imagination Indiana University Press, Bloomington and Indianapolis, 1994. (tradução do autor)
[2] — Valie Export in RM,p 219, op.cit.
[3] — Pensamos imediatamente na aquisição da memória descrita por Nietzsche naGenealogia da Moral.
[4] — Peter Weibel escrevendo sobre o filme de Hans Scheugl no catálogo online Light Cone. Disponível em: http://lightcone.org/en/film-1293-hernals.html.