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* A partir de conversa com Clarissa Diniz e Yuri Firmeza. A pergunta colocada a seguir foi baseada no trabalho de Yuri Firmeza e Pablo Lobato, O que exatamente vocês fazem, quando fazem ou pensam fazer curadoria (2010), que, por sua vez, faz menção a uma entrevista de Deleuze, na qual se pergunta “O que exatamente você faz, quando faz ou pensa fazer filosofia”. O método, mais ou menos intuído, é que o termo “filosofia” da pergunta original pode ser substituído, na formulação de “novas” perguntas, por qualquer disciplina ou atividade “autônoma” outra, no âmbito do conhecimento e da cultura. No que diz respeito ao presente texto, a mesma pergunta foi reformulada e proposta de maneira turva, numa espécie de telefone sem fio: “o que você pensa…” ao invés do original “o que você faz…”. O texto procura, trabalhando com a particularidade da proposta enviesada, operar nessas diversas camadas de deslocamento.
Máquina causal e mecanismo de interrogatório
Pergunta: O que você pensa quando escreve ou pensa escrever sobre arte?
Resposta:
– A pergunta faz pensar, em primeiro lugar, sobre … Ela própria. Pois não estou certo em relação à formulação original (tomada a Deleuze, salvo engano), que, na verdade, pouco importa aqui qual seja. Para ativar a pergunta de maneira menos subjetivista ou empirista, ou seja, para deslocá-la da perspectiva individual, caberia reformulá-la, tratando-se menos de:
– o que você pensa quando escreve ou pensa escrever sobre arte?
Do que de:
– o que você faz quando escreve ou pensa escrever sobre arte?
Fratura exposta
Importaria, sim, em vista de melhor responder – e ao mesmo tempo ultrapassar – a pergunta colocada inicialmente, marcar a diferença entre uma coisa e outra. Fazer um desvio que colocaria outras (novas?) perguntas, ao invés de tentar responder – de maneira ingênua ou mesmo irresponsável – a uma única pergunta. Gerar um curto-circuito no mecanismo positivista e policialesco (psicanalítico, normativo, produtivo, disciplinar) do jogo pergunta/resposta.
Basicamente, mudar o assunto. (Em vistas de não o deixar intocado ao final.)
Ilusões perdidas
Assim, marcando a diferença e adiantando um juízo: o que se pensa ao fazer importa pouco. Ou só importa na medida em que se trata de reconhecer as ilusões (no mais das vezes concretas) da cabeça pensante (ilusões muitas vezes compartilhadas por outras cabeças também possivelmente pensantes). Mais interessante, seria, no entanto, a tentativa de acessar os processos que determinam o que se faz quando se pensa fazer alguma coisa.
Pois fazer algo no âmbito da ‘vida do espírito’, ou seja, no âmbito das disciplinas supostamente autônomas do conhecimento e da cultura (filosofia, arte, história, antropologia…) significa – ou pensa significar – fazer algo diferente. Geralmente, fazer algo nesse âmbito pensa significar uma contribuição nova e genuína que apontaria, hipoteticamente, para fora do fluxo hegemônico (que é, no limite, o do capital). Mas é patente o processo geral de homogenização, amplamente difundido e não suficientemente temido, a que são submetidas – sem exceção, de imediato e por princípio constitutivo – as formas culturais e do saber no capitalismo avançado.
Documentos de cultura…
O cortejo triunfante de bens culturais não dissocia, no presente, indústria cultural (o termo já se refere a um passado que parece longínquo) de arte dita “culta”, experimental ou “de vanguarda”, ainda que lhes reserve, como ativos semi-imateriais, nichos de atuação diversos. “A cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a mercadoria vedete da sociedade” já diz Debord, em texto – muito comentado e pouco lido – de 1967. E continua: “Clark Kerr, um dos ideólogos mais avançados dessa tendência, calculou que o complexo processo de produção, distribuição e consumo dos conhecimentos já açambarca anualmente 29% do produto nacional dos Estados Unidos; e prevê que a cultura deve desempenhar na segunda metade do século XX o papel motor no desenvolvimento da economia, equivalente ao do automóvel na primeira metade e ao das ferrovias na segunda metade do século XIX”. [2] A ligação orgânica entre finanças e cultura (seja “alta” cultura, seja cultura “popular”) no presente, objetivada na diversificada atuação das instituições financeiras no campo da cultura, confirma o prognóstico emitido há mais de quarenta anos.
Homo oeconomicus
Fora do âmbito empírico ou da mera constatação de fatos, desde os anos 1980, realiza-se socialmente o fenômeno generalizado que Frederic Jameson chamou “lógica cultural do capitalismo tardio” – lógica segundo a qual, em intercâmbio recíproco, a cultura cristalizou-se como fato econômico e a economia como fato cultural. Na fórmula situacionista, ainda válida, “a cultura é a mercadoria ideal, que obriga a comprar todas as outras. Não é estranho que se queira oferecê-la a todos…”. Ou, como colocou Otília Arantes – em análise sintética sobre a transformação estrutural ocorrida no sistema específico das artes (sua “virada cultural”, entendida nos termos econômicos de Jameson) – o sistema das artes passa a funcionar como operador da “inédita centralidade da cultura na reprodução do mundo capitalista, na qual o papel de equipamentos culturais está se tornando por sua vez igualmente decisivo”. Assim, conclui a autora, “o que de fato parece ter acontecido é a migração dos valores propugnados por aquela crítica [especialmente a artística, frisa a autora] para o mundo empresarial e vice-versa: as antigas barreiras que separavam os dois mundos em princípio antagônicos – dos negócios e da vida de artista – teriam se tornando de tal modo porosas, que ficou cada vez mais difícil distinguir um artista, digamos ‘empreendedor’, de um executivo de uma firma que funcione na base de prospecção de ‘parcerias’ para a realização de ‘projetos’”. [3]
Ocorre, assim, uma inflexão radical de sentido no cerne da própria subjetividade artística – que fora o modelo, ainda romântico, desmesuradamente idealista, do sujeito revolucionário proposto pela Internacional Situacionista. [4] Despojada de seu ímpeto romântico-revolucionário, essa subjetividade ganha, agora, a dimensão pragmática do homo oeconomicus, na acepção que Foucault demonstrou ser a do neoliberalismo: o sujeito como “empreendedor de si mesmo”. [5] pelo homo oeconomicus empreendedor de si mesmo, sendo para si mesmo seu próprio capital, sendo para si mesmo seu próprio produtor, sendo para si mesmo a fonte de seus rendimentos” (FOUCAULT, Michel, Naissance de la Biopolitique. Paris: Gallimard/ Seuil, 2004, p. 232). Para uma leitura atualizada da mesma reflexão, ver: SANTOS, Laymert Garcia dos. “Humano, pós-humano, transumano”. In: NOVAES, Adauto, Mutações – novas configurações do mundo. São Paulo: Edições SESC-SP/ Ed. Agir, 2008.]
(Sob esse prisma, apresentado por Foucault, é possível compreender o atual modelo pragmático-conformista, cujo exemplo caricatural e paradigmático – mas não o único – é o ideário das “utopias do possível”, sustentado pela doutrina “relacional” de Nicolas Bourriaud, doutrina segundo a qual a arte deveria hoje apresentar – e, segundo o autor, seus “locatários da cultura” já apresentariam – “modelos de universos possíveis”. Panglossianismo de mercado: modelos para o “melhor dos mundos possíveis”.) [6]
Que é a crítica?
Era fato corrente, ainda sob a égide da arte moderna, que críticos de arte trabalhassem em regime de cooperação direta com artistas. Não à toa, uma vez que o artista moderno foi também, por sua vez, um crítico. Daí que, dentro dos diversos campos antagônicos ou “movimentos artísticos” das vanguardas modernas, artistas e críticos se encontrassem atrás das mesmas barricadas, combatendo um campo inimigo comum que, por sua vez, também congregava outros artistas e críticos. (Que se pense, entre inúmeros exemplos, a operação crítica – na verdade uma batalha – organizada e levada a cabo pelo cubismo contra os fauves, ou, ainda, na experiência brasileira moderna, a contenda entre concretos e neoconcretos).
Nesse sentido do conflito (entre as diversas tendências ou partidos), a crítica moderna é entendida como “uma ponte entre a esfera ‘separada’ da arte e a esfera social (e não inversamente), de tal modo que a crítica pode ser considerada um prolongamento, ou um tentáculo com o qual a arte tenta agarrar-se à sociedade, qualificando-se como uma atividade não totalmente contrária ou dessemelhante daquelas a que a sociedade dá crédito como produtoras de valores necessários, tais como a ciência, a literatura, a política, etc”. [7] Descreve-se aqui algo que está fora das cogitações atuais – em vista da profusão de relações imediatas entre a arte e as “atividades que a sociedade dá crédito como produtoras de valores”.
Diante da situação de generalização da “lógica cultural do capitalismo tardio”, a função mediadora (o processo dificultoso e conflitante de inserção das diversas tendências antagônicas da arte no sistema geral da cultura) que exerceu a crítica durante a vigência da arte moderna mudou inteiramente de figura – na hipótese otimista e pouco provável de não ter caducado de maneira completa. Há, portanto, ainda necessidade dessa função mediadora atribuída à crítica (no sentido forte da palavra, se ainda houver)?
Reflexão totalizante
Sendo possível perceber uma ruptura histórica entre as funções anteriores e as atuais exercidas pela crítica de arte – ruptura histórica marcada pelo processo de desintegração dos parâmetros que compuseram o regime crítico, combativo e de historicidade da arte moderna – as perguntas deveriam se colocar de outra maneira.
Em primeiro lugar, elas não deveriam se dirigir diretamente à atividade do reles crítico de arte – que, como crítico, a rigor, nem existe mais, desprovido que está da ambição totalizante que animou tal atividade no período da arte moderna desde a invenção do termo “crítica” sob o signo do Iluminismo. As novas questões surgidas da “lógica cultural do capitalismo tardio” ganhariam realidade concreta, para além da medida ficcional do indivíduo, se mirassem à gama de processos históricos que subjaz ao ato presente de escrever sobre arte – questões marcadas, desde o princípio, pela possibilidade (não inteiramente cogitada, dentro ou fora do sistema) de que as respostas a se obter acabem por se mostrar pouco simpáticas…
Não se trata de um retorno ao passado – o que seria uma atitude regressiva –, um retorno aos “bons tempos” dos projetos compartilhados entre atividade artística e crítica-de-arte. Trata-se da elaboração (no sentido psicanalítico) das problemáticas trazidas pelo passado histórico da arte moderna (a realidade de antagonismo ou de conflito aberto). Postas assim, essas questões trariam, a reboque e inexoravelmente, a necessidade de reflexão sobre aquela gama ainda mais ampla de processos históricos – que inclui a ruptura traumática do fim do ciclo moderno, a reconfiguração do sistema das artes com uma “reconciliação” ou um consenso tácito geral – que está por trás da própria disciplina arte:
– O que exatamente se faz, hoje, quando se faz ou se pensa fazer arte?
Ficção-crítica
– Que fazer? (Pensar-fazer)
– Trata-se, em primeiro lugar, de abolir o sujeito (que enuncia as frases). Não porque se procure uma objetividade pretensamente neutra. Mas, para escapar a um enganoso “nós” – e a um não menos enganoso “eu” –, o processo de abstração do sujeito que enuncia (reflexo da abstração que é o “público leitor”) deve ser o objetivo declarado do texto: “O trabalho com o desaparecimento do autor é uma resistência contra o desaparecimento do homem”, de acordo com Heiner Müller.
– Como fazê-lo?
– Mediante a tensão entre tom – que será impositivo – e sintaxe – que será reflexiva (pelo uso da partícula “-se”).
– E onde entra a arte nesse processo?
– Ela também deveria ser abstraída do texto – ou, talvez, expurgada: o trabalho com o desaparecimento da arte é uma revolta contra a generalização da economia.
– É notável a falta de clareza. O excesso de inversões e saltos de linguagem parecem, antes de tudo, procedimentos estilísticos.
– Ou pior, artísticos…
– Mais um motivo para a acusação de falta de clareza e, inclusive, de ambiguidade.
– Deveria haver, antes, um entendimento preciso sobre o que seja (em vista do que já pôde ser) arte. Não a negação do estilo, mas o estilo da negação. Quer dizer, a ativação das contradições: o estilo, a arte, não importa, apenas ferramentas de tensionamento.
– Os poderes instituídos (do capital) têm lá também seus meios de tensionar a ordem (jurídica). Salvo engano, a ferramenta é chamada “estado de exceção”.
– Sim. Exceção que é, há tempos, a regra do mundo.
– “A regra da arte”?
– A arte, se pudesse, deveria pretender instaurar, segundo lhe ensina “a tradição dos oprimidos”, um “real estado de exceção”, que abarcaria a totalidade dos processos concretos, a tarefa histórica notada por W. Benjamin.
– Fosse assim e ela seria um bocado violenta.
– É uma boa hipótese.
– Hipótese na qual já não seria apenas arte.
– Sim.
[2] — DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo, trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p.126-7 (item 193). O grifo é de Debord.
[3] — ARANTES, Otília B. F. “A ‘virada cultural’ do sistema das artes”. In: Revista Margem Esquerda, n. 6. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p. 65-6; 68. Ver também, para uma análise crítica específica do termo “projeto” na arte contemporânea: MAZZUCCHELLI, Kiki. “Arte como projeto”. In: Revista Cultura e Pensamento, n. 2, novembro 2007, Rio de Janeiro, FUNARTE, p. 21-25.
[4] — Para o juízo da herança romântico-idealista na “subjetividade artística” propugnada pelos situacionistas, ver: PERNIOLA, Mario. Os Situacionistas. Trad. Julliana Cutolo Torres. São Paulo: Annablume, 2009, p. 75-76. Ver também: AGAMBEN, Giorgio. “No mundo de Odradek – A obra de arte frente à mercadoria”. In: Estâncias – A palavra e o fantasma na cultura ocidental, Trad. Selvino José Assmann, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 93.
[5] — A descrição de Foucault é datada de 1979, e, portanto, é testemunha de primeira hora da ascensão das doutrinas neoliberais. No texto, Foucault intui e antecipa as conclusões lógicas do deslocamento que o neoliberalismo faz da idéia, oriunda do liberalismo clássico (Adam Smith, David Ricardo), de homo oeconomicus: “O homo oeconomicus é um empreendedor de si mesmo. E isso vai ser tão verdadeiro que, praticamente, essa vai ser a questão de todas as análises feitas pelos neoliberais, trocar o tempo todo o homo oeconomicus parceiro da troca [do liberalismo clássico
[6] — A dimensão de conformismo inscrita na arte dita “relacional” pode ser confirmada com um rápido bater de olhos no livro de Nicolas BOURRIAUD, Estética Relacional, trad. Denise Bottmann, São Paulo, Martins Fontes, 2009, especialmente p. 16-19. Para uma leitura francamente crítica do ideário “relacional”, ver: BISHOP, Claire. “Antagonism and Relational Aesthetics”. In: October, n.110, Fall 2004. Cambridge: MIT Press, p. 51-79. Ver também, da mesma autora, “The social turn: collaboration and its discontents”. In: Artforum, XLIV, n. 6, february 2006, New York, Artforum International.
[7] — ARGAN, Giulio Carlo. Arte e Crítica de Arte, trad. Helena Gubernatis. Lisboa: Editorial Estampa, 1988, p.130. Para a função mediadora e o processo de inserção da arte no sistema geral da cultura que a crítica realizou no âmbito da arte moderna, ver o capítulo “Tarefa e significado da crítica”, p.127-130. Ver, para a problematização do período de transição, ou seja, o do fim ou morte da arte segundo os parâmetros da arte moderna, o capítulo “A crise da crítica e a crise da arte”, p. 159-161. Ver também: CONTARDI, Bruno “Introdução” e ARGAN, G. C. “A arte do século XX”, In: Arte Moderna na Europa – de Hogarth a Picasso, trad. Lorenzo Mammi. São Paulo: Cia. das Letras, 2010, p.9-14; 438-494.