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Atravessada por anos de estudos nos quais o segundo modo de pensar – benjaminiano – me mobilizou, iniciei a resposta ao convite da Revista Tatuí: escolher um ensaio, ou mais de um, paradigmático sobre arte contemporânea publicado nos anos 2000 e, através da análise do mesmo, produzir uma reflexão acerca do decênio que acaba de terminar.
Consciente da pouca distância temporal que temos em relação a este ciclo que ainda deixa rastros no nosso presente, ciente de que os anos 2000 representam o tempo no qual comecei a exercer o meu ofício de crítica e curadora, fui buscar as raízes desse começo. Assim, quem sabe, poderia apresentar uma visão minimamente própria sobre o cerne do que me tocou na produção de arte dessa década, através do texto e do trabalho de terceiros.
De saída, o pensamento da crítica, curadora e professora Lisette Lagnado me pareceu o ponto incontornável e mais coerente de partida. Tive a sorte de tê-la como leitora atenta e rigorosa dos meus primeiros textos, quando os seus escritos e as suas exposições já faziam parte do meu imaginário. Alguma coisa na sua bibliografia havia de me conectar com um espírito do tempo, um zeitgeist, dos anos 2000. Lagnado, ao ser consultada através de um e-mail sobre como eu poderia encontrar na sua fortuna crítica um texto que refletisse de forma concisa a década passada, replicou: “Se você me disser o que foi significativo nos anos2000paravocê, Luisa Duarte, talvez isso possa me ajudar a te sinalizar uma leitura. Eu prefiro ser guiada pelo outro… Vc tem pressa? Hope not.”
Essa resposta em forma de pergunta, que engaja o outro num pensamento a dois, que prefere seguir de mão dada, em diálogo, era aquela que eu mais desejava/precisava obter. A minha resposta, ansiosa e precária, foi a seguinte:
“Tivemos os anos 1960 e 1970 com mudanças radicais ocorrendo no mundo. Na arte, por um lado, houve o acontecimento de obras como as de Lygia Clark e Hélio Oiticica, e por outro o minimalismo, a arte conceitual, a pop art. Mas penso agora na arte realizada aqui em diálogo com o mundo, a vida, e, às vezes, em relação ao nosso contexto violento e ditatorial. Um claro viés político, de diferentes naturezas, esteve presente em boa parte da produção daquelas décadas.
Nos anos 1980 e 1990 lembro tanto do tão falado retorno da pintura, assim como, num contexto dilatado, do nascimento do neoliberalismo – Reagan e Thatcher surgem no limiar dos 1970 para os 1980. Em 1989 testemunha-se a queda do muro de Berlim. Começa a superação da Guerra Fria. Leonilson escreve em alguns de seus trabalhos: “leo não pode mudar o mundo”. Você, Lisette, escreveu: “leo não pode mudar o mundo. A frase, reafirmada em português e inglês, revela o quanto a impotência é inominável, a experiência do abismo, intransponível; as luzes da utopia e do heroísmo parecem abandonar a fortuna do artista”. Ou seja, trata-se de um tempo em que perde-se uma certa inocência, um idealismo. Entram em cena novas formas de articulação. O gesto de resistência e força parece partir da delicadeza, de uma admissão e exposição da fragilidade da nossa condição. Nos anos 2000, uma distância para com as mudanças radicais ocorridas no mundo a partir dos anos 1980 parece gerar uma nova conexão entre arte e mundo, arte e real, arte e política. Mas agora sob uma nova chave, não mais aquela das vanguardas, tampouco aquelas heróicas de 1968. Entra em cena um trabalho como o de Rivane Neuenschwander, as trocas, olhar a poeira, a micropolítica, a convicção de que menos é mais. Sinto que há uma reação a um mundo que vai carcomendo todo o nosso poder de vida, de potência, silenciosamente somos podados no que nos é mais precioso: nosso tempo, nosso desejo, nossa imaginação. A arte que de alguma forma mais me interessa reage a isso e sinaliza para maneiras não espetaculares de lidar com o mundo. Vejo em 2003 o trabalho Oceano possível, da Sara Ramo, e aquilo é uma epifania. Um mundo em um espaço micro. Essa dialética de operar mudanças numa escala micro, mas não menos potente, me interessa desde lá. Não se trata do particular, do individual, mas sim de uma nova forma de operar e dialogar com o que está fora; com o outro.
Garaicoa, Macchi, Rivane, Dominique, Sara, Marilá, Cinthia, Nicolás e tantos outros, são nomes que me levam a pensar nesses anos 2000. A sua Bienal Como Viver Junto marcou os anos 2000. As discussões sobre uma arte política narrativa e outra não narrativa também estiveram presentes nessa década. Tento manter a esperança em meio a uma brutalidade imensa. Os anos 2000 estão um pouco naquela passagem da Ariane Mnouchkine, que já te mandei mais de uma vez. Lembra? O mundo está explodindo, mas ainda tentamos, loucamente, ter esperança… Somos náufragos e salva-vidas. E a arte que me interessa busca modificar, mesmo que um pouquinho, este mundo ao redor… Salva-vidas… Mesmo que efêmeros…”.
Segue a resposta de Lisette Lagnado ao meu brainstorm:
“Luisa, querida, li e te vi neste relato, sim. E sim, a Rivane foi muito importante no meu crescimento intelectual e sensível. Ela resume tudo! Vou buscar aqui nos meus cacos alguns fragmentos para você escolher, pegar ou cuspir, como canta o Raul Seixas, que a Mira me colocava na vitrola dela um ano antes de morrer… Hasta muy pronto, Bjs, Lisette”.
Nessa resposta final de Lisette, estava dada a centelha que eu precisava para deflagrar o processo e dizer, mesmo que em cacos, o que me interessa sobre a década passada. Após essa troca, decido escolher, enfim, os textos A troca e o troco, de Lisette Lagnado, e Olhar a poeira, por exemplo, de Moacir dos Anjos, ambos sobre o trabalho de Rivane Neuenschwander.
O ensaio de Moacir dos Anjos me pareceu um complemento mais do que adequado para dar conta da poética da artista. E também pesou o fato de ser um ensaio que chegou às minhas mãos quando eu começava a escrever sobre arte – portanto um período de formação –, tendo cumprido um papel importante no meu olhar. Assim, busco sublinhar a importância destes ensaios para a compreensão de uma obra-chave – “que resume tudo!” – para se pensar um desenho possível da década passada.
Em A troca e o troco, Lagnado realiza uma interpretação complexa sobre as relações de troca, trabalho e uma forma singular de economia presentes na obra de Rivane. O texto tem início com a citação de um sonho, no qual a autora está dentro de uma mostra da artista. As obras surgem ali sempre “ameaçadas” por um público tão vivo quanto desastrado, a ponto da exposição desabar.No mesmo sonho, a resposta da artista, serena, sábia e desapegada, para o espanto da curadora diante do caos: “É assim mesmo. A vida faz parte. É a medida do trabalho.”
“Analisar esse conjunto de imagens me serve para tratar das diferentes participações, colaborações e parcerias que estão na base da produção criativa dessa artista. Para uma primeira camada de interpretação daquele sonho, conservo a sensação de que os visitantes da exposição estão presentes no recinto, mas que esse comparecimento é também sinônimo de ausência de clareza. Já não é novidade emitir, nas contínuas pesquisas de Rivane, qualquer observação relativa à sua tênue visibilidade. É um dado que se verifica inúmeras vezes. Por exemplo, quando ela ressalta o contraste entre cada taco do piso de madeira, incrustando pó de mármore nas linhas de junta [Stephen Friedman Gallery, Londres, 1999]. É preciso avançar agora e dizer que fazemos parte da ressonância dessa “obra”, do aumento de suas capacidades, venha ela a desabar ou não, e que somos integrados no seu cálculo.”
A fala sonhada de Rivane, sobre a vida como medida do trabalho, não poderia ser mais aguda, sensível e desapegada. A primeira análise de Lagnado, penso, reúne os dois aspectos essenciais da obra da artista, quais sejam, sua intencional presença discreta e frágil no mundo, e a capacidade de colocar em obra o gesto de cada um, o nosso gesto, como parte muitas vezes fundamental para o acontecimento do trabalho. Como afirma Lagnado, essa “participação” está integrada ao cálculo primeiro da artista. Nessa junção entre fragilidade e um plano que pressupõe a nossa presença, desastrosa ou não, está posta uma medida para o trabalho que inclui a vida.
Os anos 2000 reativaram uma dimensão do real – do mundo da vida – na produção contemporânea. Não uma vida lírica como a de Leonilson na passagem dos 1980 para os 1990, ou aquela que fez com que tantos álbuns de família fossem resgatados em favor de uma articulação poética diante de uma realidade cujo senso coletivo havia sido aniquilado no auge do regime neoliberal. Não, a vida na última década ressurge em muitas obras como um desejo de vida emancipada, reverso da Vida Nua. Um desejo de vida partilhada em meio ao auge de um projeto cuja raiz está, justamente, no extremo individualismo e no solapamento de todas as capacidades de sublimação humanas em favor de sua produtividade, utilidade e consequentemente alienação. Um trecho de um filme, Os Residentes, de Tiago Mata Machado, condensa esse sentimento: “Essas pessoas não se interessavam por mais nada, diziam que o esquecimento era a sua maior paixão, queriam reinventar tudo a cada dia, tornar-se mestre e senhores de suas próprias vidas. Viviam em um mundo sem transcendência, um mundo utilitário e sem poesia, contra o qual um dia resolveram pegar em armas”.
A questão é: quais são as armas de hoje – dos anos 2000 – para um inimigo sorrateiro como este, que nos ataca desde dentro? Não são as mesmas de 1968, certamente. Penso que a poesia da obra de Rivane, o pensamento de Lagnado e o de dos Anjos, podem iluminar esse percurso.
Lagnado, de forma notável, demonstra essa rede que atravessa a nossa contemporaneidade: o sonho nos fala de uma demolição, advinda de fora, súbita e avassaladora; ao mesmo tempo em que, pela fala de Rivane, construída no sonho de Lagnado, tal demolição é relativizada e posta na conta do fluxo do devir. “Vejo-me na condição de sentinela, cuidando para impedir os “estragos” causados por essas duas forças, enquanto a autora da obra demonstra o mais completo desapego. Se não acredito numa suposta insignificância do fazer artístico, só posso estabelecer uma correspondência entre os signos desse sonho e o plano da realidade”.
Esse compromisso com a importância do fazer artístico e seus vínculos com o contexto em que ele é realizado, com o mundo em que vivemos, marca toda a trajetória do pensamento de Lisette Lagnado e tem na obra de Rivane Neuenschwander um lugar exemplar de acontecimento.
“Sabe-se que uma exposição de arte (de objetos, de sentimentos, de ideias) requer o zelo de um vigilante. Rivane intui, além dos conceitos de frágil e perecível que tanto foram mencionados em textos anteriores sobre ela, que a responsabilidade abarca outros compromissos que a forma.O problema do público passa por uma necessidade de cuidados. Sem manutenção, a produção do homem desmorona.2 A montagem de Chove chuva só é exequível se houver um gerenciamento da instalação, isto é alguém, com disponibilidade, a quem é transferida a tarefa de passar a água dos baldes inferiores para os baldes suspensos a fim de que o processo de gotejamento possa cumprir seu ciclo. A tentativa de “proteger” o trabalho de uma ruína, material e moral, não deixa de ser uma espécie de dispêndio ou de doação.Por isso, sustento que essa modalidade de participação há de ser inserida numa “política da amizade”.
No trecho acima, Lisette introduz a seguinte nota de autoria de Paul Ricouer: “Onde há poder, há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade. Quanto a mim, tenderia mesmo a dizer que o objeto da responsabilidade é o frágil, o perecível que nos requer, porque o frágil está, de algum modo, confiado à nossa guarda, entregue ao nosso cuidado.”
Penso que não é à toa que uma obra marcada pela fragilidade, a delicadeza, a “tênue visibilidade”, por uma inteligência poética discreta e precisa, que envolve o outro em cada passo dado, seja aquela que “resume tudo” do que interessa aqui destacar sobre uma produção artística e reflexiva nos anos 2000. Quando elegemos essa obra como paradigmática, estamos dizendo que a arte que nos faz pensar de forma mais aguda e sensível sobre nós mesmos e o mundo no qual vivemos tem uma natureza frágil, sendo, a um só tempo, forte.
Mas essa fragilidade primeira é o que nos dá o passaporte para deixarmos o lugar contemplativo e ganharmos um espaço dentro do trabalho. Somos parte essencial da equação, antes de tudo pela sutil cumplicidade com o outro engendrada pela artista. Sobre esse tom de delicadeza, de murmúrio, que se escuta na obra de Rivane, Moacir dos Anjos escreveu com igual sutileza: “Olhar a poeira, por exemplo. Não como um todo indiviso, nuvem opaca e indistinta. Mas olhar detidamente cada uma de suas pequenas partículas suspensas no ar (e também o espaço exíguo que separa umas das outras), identificando o que não é notável ao senso apressado e comum. Mais ainda: não somente decompor em partes o que se apreende tantas vezes como inteiro, mas aceder ao fato que é da percepção do ordinário e do quase impalpável que se engendra, num processo não consciente de cognição, a percepção do que é relevante e visível. [1] É desse impulso de conhecer o mundo escapando de um juízo totalizador e amnésico de suas porções constitutivas que, ao longo de uma década de produção intensa, Rivane Neuenschwander tem composto uma obra impermeável, ela mesma, a definições abrangentes. Valendo-se de modos de expressão variados (instalações, filmes, construção de objetos), a artista torna manifesto o que, na vida corrente, é só rumor, pedaço ou entrevisto. Inexiste nesse intento, contudo, elogio algum ao que é frágil ou contingente, posto que a sua obra não se ocupa de criar refúgio para o desconforto que se possa sentir no mundo. Há, ao contrário, o desejo de dar a potência devida ao murmúrio incessante das pequenas coisas que o formam e habitam, sejam elas uma palavra, um gesto, uma imagem ou um momento. A sutileza de seus trabalhos é da ordem, portanto, daquela encontrada na prosa de Clarice Lispector ou no cinema de Eric Rohmer: afirma que o importante pressupõe o prosaico e dele depende para existir”.
Com a habilidade para extrair potência de elementos, hábitos e lugares os mais prosaicos, assim como um Rohmer e uma Lispector – por que não dizer, como Virginia Woolf também? –, Rivane constrói uma obra única em meio à arte contemporânea, muitas vezes repetitiva e repleta de fórmulas. Sua natureza nos contamina com a força forjada pela delicadeza, força esta necessária para lidarmos com um tempo sôfrego como o nosso. Sem alarde, revela que cada um, na própria e incontornável singularidade, não é só espectador, mas também sujeito. A arte e o pensamento gerados nos anos 2000 nos recordam a insuspeita força que mora na fragilidade e na esquecida potência que reside em cada um de nós, fazendo assim, quem sabe, com que a vida a ser vivida seja constantemente desejada, tomada como um campo de construção de transformações, mudanças, mesmo que numa escala micro. Mas bem sabendo que ali, nas pequenas coisas, podemos desvelar um universo inteiro.
To see a World in a grain of sand,
And a Heaven in a wildflower,
Hold Infinity in the palm of your hand,
And Eternity in an hour.
Ver um Mundo num grão de areia,
E um Céu numa flor selvagem,
Segurar o Infinito na palma da sua mão,
E a Eternidade numa hora. [2]
[1] — Esse percurso do conhecimento é sugerido por Gilles Deleuze, para quem as pequenas percepções são menos partes da apreensão de um fato, do que seus requisitos ou elementos genéticos (DEULEUZE, Gilles. A Dobra. Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991)
[2] — William Blake, “Auguries of Innocence”, in The works of William Blake (Inglaterra, The Wordsworth poetry library, 1994), p. 127. Tradução da autora.