Revista Tatuí

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Lisette Lagnado

Escrito por Lisette Lagnado

Originalmente publicado no catálogo Marepe. São Paulo, Galeria Luisa Strina, 2002


São Paulo, 17 de março de 2002

Marepe, querido,

Esta carta, meu amigo, será um inventário de dúvidas. Entre tantas tentativas de escrever o texto que você me pediu para seu primeiro catálogo individual, encontrei palavras inadequadas. Não conheço a paisagem nem os costumes dos habitantes do recôncavo baiano; posso assim mesmo escrever sobre o que você faz sem cair na armadilha do exotismo? A história de cada um seria extensa demais para caber aqui, mas preciso explicar a diferença que nos une. Trabalhos como o seu me obrigam a novas expedições. Nasci em Leopoldville, antes de virar Kinshasa, dentro de uma família de judeus árabes. Comer mandioca não me faz pertencer à irmandade que se constituiu na região de Nazaré. Você nasceu Marcos Reis Peixoto. A intolerância foi minha língua natal; em casa, ouvi um árabe de Alepo e o lingala do boy que prestava serviços domésticos. Estudei no Cours Descartes e fui alimentada com os ideais de Rousseau. Você me escreve que quando os portugueses trouxeram esta língua, mataram outras. Desde dezembro de 1974, me comunico por meio de algum português, hoje minha língua profissional. Além dos milênios de diáspora, me foi preciso compreender o significado daqueles 500 anos, somados aos quarenta de Colônia Juliano Moreira, ultrapassar a resistência a sorver um tacacá ou acompanhar as missões dos jesuítas, até conquistar a baba antropofágica e as bases fundamentais do Parangolé, nomes próprios que se converteram nas experiências mais generosas que vivi. Ainda assim, permaneço deslocada das missas do Padre Mateus Vieira de Azevêdo. Isto foi em 1758, mas isto é hoje também. Você me fala da formação de um núcleo urbano, da organização de um povoado, com capela, guarda nacional e escolas, antes mesmo de Santo Antonio de Jesus virar cidade em 30 de junho de 1891. O que é uma cidade para você?

Só posso ser uma companhia, como outros hipócritas leitores, nos crimes que antecederam a independência. Quais são de fato nossas condições para sair do estado de menoridade? Mais do que uma tarefa, esta pergunta é vivenciada tal qual uma obrigação. Há duas vias possíveis – e penso que se dão na simultaneidade –, espirituais e institucionais, éticas e políticas. Para entender-te, precisei confundir conceito com afeto, uso público e uso privado da razão; passar da extração do manganês e da lenha à luz elétrica, da cultura de fumo, café e laranja à plantação das palmeiras imperiais, e destas à linha de trem. O transporte de um recorte extraído de um muro, pesando quase três toneladas e meia, da tua cidade para a Bienal de São Paulo, impõe, de modo literal, a medida da valência do desenvolvimento da tua região – de como uma loja de material de construção pode mudar a paisagem ou, extrapolando, de como sertanejos migram de uma condição ingrata para outra. Estes seriam os argumentos do ponto de vista ideológico. Já formalmente, parece-me uma atitude meta-pop, veicular a propaganda de uma firma poderosa, a Comercial São Luis, fazendo o comércio do comércio. São de uma beleza, essas letras garrafais azuis sobre fundo amarelo, mas o que significa levar o conteúdo do logotipo “tudo no mesmo lugar pelo menor preço” para o sistema da mega-mostra de arte? Seria uma dupla singeleza acreditar em lugar fixo e em preço menor! Estamos em outro território lingüístico quando se fala em apropriação e deslocamento, é a rotação dos signos duchampianos, tudo em outro lugar pelo maior preço. Ora, esse tipo de interpretação não me convence a seu respeito. Há, de sua parte, uma sobra de escrúpulo pelas convenções sociais, que se traduz no cuidado para não modificar o destino dos habitantes da cidade: após a comoção coletiva provocada pela retirada do anúncio publicitário, outro foi providenciado no lugar como se fora uma exigência do sagrado. Existe uma moral nesse zelo ou é despreendido de finalidade? Respeitar as especificidades do meio ambiental. Não retirar a não ser substituindo. Mas, à apropriação corresponde uma violência, a produção de um rombo. Receio de que sua castidade, em meio ao cinismo do pensamento dominante, não vingue. O lema escolhido, a atitude geral do trabalho, revelam um vínculo entre consciência e empreendimento sólido. Homenagear o “progresso” de uma cidade demonstra apego ao território. Suas fronteiras vão desde a memória da cidade até a construção de famílias, a Comercial São Luis tendo gerado empregos por várias gerações, única fonte de renda de seu pai – cuja ausência precisa ser lembrada. A declaração de permanência do lugar é um compromisso básico para quem conhece a instabilidade da ordem política, social ou econômica. Por isso, sua intervenção pertence a um projeto construtivista, não quer abandonar a tradição. Porém, a outra face da moeda há de ser considerada: qual o preço de uma promessa? Promessa tem prazo de validade. Tudo no mesmo lugar não retardaria o choque do novo?

Semana retrasada, Laura  [1]   me levou à feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, e foi mais uma chegada na terra. Continuo chegando na “ciência do concreto” para diminuir minha distância com tuas bancas de camelô, expostas na mostra do Antarctica Artes com a Folha, em 1996.  [2]   As bases da discussão acerca do transporte de valores já estavam lançadas, naquela época por intermédio do comércio informal, na imagem dos ambulantes de rua. De que modo as barracas dos ambulantes passam a funcionar dentro de um pavilhão de arte, do circuito institucional? Seu procedimento não ficou devidamente explicitado, gerando uma série de ambigüidades. Mais uma vez, “apropriação” seria um conceito inadequado; proponho “edificar”. Você fotografa a cena, seus elementos constitutivos, observa assiduamente os detalhes, reinventa o método do outro refazendo aquilo que foi feito sob a lei da necessidade. Atua como um pesquisador que vasculha céus a fim de entender o sentido das coisas, onde comprar determinada madeira, onde encontrar os rudimentos que faltam. Enfim, trata-se de andar na pegada do homem da rua, rastrear o caminho percorrido por um trabalhador até erguer sua própria barraca, viver um conjunto de gestos, a casa, as ações e o corpo do outro. Você então compõe “à maneira de”, assim como Picasso olhou Ingres, cada qual com seu museu. Caixotes e banquinhos de madeira substituem o tradicional pedestal para a escultura; alegorizada, a “arte” é uma mercadoria semelhante a doces, venenos ou jóias. Mas, aquele conjunto de objetos, na sua diversidade utilitária, uma vez des-locado, esvazia-se de sentido; vira bricabraque na casa do colecionador, ou não? Você fala repetidamente em objettrouvé, no pobre e no popular. Esse Duchamp que representa teu Norte é, paradoxalmente, uma fonte de segunda classe. A ideia de ready-made é totalmente desinvestida de historicidade, lembre-se, é a busca do neutro, o tom podendo variar entre a boutade e a ironia fina. O Air de Paris encapsula uma matéria invisível, ao passo que o ar de Santo Antonio é saturado de lendas. A curiosidade que anima seu trabalho me trouxe o relato das crianças que podem identificar a espécie e o sexo de uma árvore, observando a aparência, a textura e o cheiro da casca; que sabem enumerar quinze espécies de morcego pelos costumes alimentares; que possuem, à disposição, outros quinze termos distintos para designar as diferentes partes de um pé de milho. Estou voltando às pistas do pensamento selvagem de Lévi-Strauss por causa dessa relação mais concreta e vivencial com as coisas do mundo: “O pensamento mítico não é somente prisioneiro de acontecimentos e de experiências, que ordena e reordena, incansavelmente, para lhes descobrir um sentido; é também libertador, pelo protesto feito contra a falta de sentido, com que a ciência estava, a princípio, resignada a transigir.”

O conceito, Marepe, deriva de uma necessidade, não é delírio abstrato de intelectual. São as “unidades de sobrevivência” tão bem definidas com as Trouxas – um tipo de Merzbau, tropical e transportável. É afeto em estado bruto. Há, em todo seu trabalho, um “prestar atenção” aos encontros, salvaguarda de uma memória, sobretudo do “feito a mão” (servir cafézinho ou mingau de milho). Eis a riqueza residual das técnicas em extinção, testemunhando o elo que se esgarça entre indivíduo e sociedade, saberes e fazeres em extinção, engraxar sapatos, amolar tesouras, alicates etc. Certamente no seu caso, a bricolagem teria conotação pejorativa, no entanto você põe sempre algo de si mesmo em seu projeto, não põe?

Seu olhar engloba origens e evolução dos materiais físicos, formas menores de subsistência, truques da economia alternativa. A sociedade de troca, um punhado de cigarros por um passe de transporte, tem uma lógica tributária com condição de câmbio ao par. O deslocamento é o verbo imperativo para várias de suas estratégias, nos trabalhos indoors e nos trabalhos de rua. O retirante, como o ambulante, são figuras que andam. Eles se locomovem, você os desloca; eles não têm lugar fixo, você deambula. Banidos da educação e da riqueza, são destinados a buscar uma promessa que desconhecem todo dia, transportam seus valores numa situação caracterizada por instalações provisórias. Segundo você, as miudezas desse comércio ilegal equivalem às obras produzidas pelos “grandes mestres”. É uma homenagem contínua à capacidade de improviso, à imaginação criativa dos comerciantes das ruas de Salvador. Minha pergunta é: como ser colportor dessa sensibilidade sem cair no exotismo do turismo cultural que vem fascinando uma certa má consciência? Gostaria que essa preocupação servisse para separar o joio num saco dentro do qual são aceitas ações oportunistas que estetizam o regionalismo. “Da adversidade vivemos!” significa também “luxo para todos”. Artistas fazendo exercícios de deambulação urbana estão na moda. Nostalgia do Situacionismo? Se Oiticica não tivesse andado tanto pelas ruas do Rio de Janeiro, não teríamos toda a conceituação que derivou de “Delirium ambulatorium”, nem o que veio antes de Tropicália. Trata-se de dar continuidade à crise da representação. Evidentemente, os lugares tradicionais de exposição são mais ingratos para acolher esse tipo de instalação. Dois anos atrás, na mostra “Os 90” (Paço Imperial, Rio de Janeiro), seu projeto Os Embutidos poetizava a moradia improvisada. Era uma construção de madeirite magenta por fora, com uma organização interna que misturava os ambientes da vida cotidiana (quarto, cozinha, sala, banheiro). O usuário era instruído a interferir na estrutura dessa arquitetura do precário. Minha pergunta é: trazer para dentro da instituição uma circunstância social-ético-política do casebre do mendigo provoca alguma diferença?

Provoca, você me disse ao telefone. Ready-made, para você, é Nécessaire. No pacote que recebi pelo Correio, leio sua preocupação pelas “contradições sociais, situações subalternas e sub-humanas das minorias, o subdesenvolvimento”. Você quer se referir ao necessário, palavra que reúne o imprescindível e a futilidade. Palmeira doce sintetiza essas questões. Poderia ser chamado de “acontecimento poético-urbano”, expressão de Oiticica. Realizado em Santo Antonio de Jesus, no dia 27 de setembro de 2001, envolveu a população local. O “Tonho do algodão” ganha a vida com o negócio da guloseima colorida. Juntos, fizeram cerca de quatro mil sacos. Quando foram pendurados ao longo do tronco de uma dessas palmeiras imperiais, evocaram, para mim, releituras da natureza-morta por Gabriel Orozco. Em poucos minutos, a obra foi assaltada e devorada, duas ações muito eloquentes do cotidiano cultural, urbano e suburbano, brasileiro. Nas fotografias, você aparece como um gigante comendo as nuvens do céu, tufos brancos no alto do braço estendido.

Preciso terminar essa carta, que ficou sendo o que eu tenho a te oferecer, a tempo de entrar na gráfica. Faltou dizer da importância da instalação dos filtros, na exposição do Instituto Itaú Cultural em 1999. Era um projeto sobre a ressignificação do cotidiano, e você me veio com a seca e a água potável, a ação da umidade do tempo sobre o barro, seus compartimentos bojudos expostos a diversas colorações, as colunas e as bases do Brancusi, o filtrado filtrado. Fico devendo um comentário sobre o fogão e o casamento; sobre a Cabeça acústica, também apelidada “Bibifonfa”, feita de bacias de alumínio, dobradiças e borracha. Continuo devendo, muito e ainda, por isso escrevo.

É Natal e Bienal em pleno março. Para além do ar fora de lugar, a data também está fora de hora – realidade concreta, tempo abstrato. Por aqui neva. Aquele cajueiro macho, abatido por causa da construção de uma nova estrada, está todo branco, imitando o que não temos. Mas você me garante que são bem reais os horizontes agrestes de galho seco e algodão que margeiam o sertão até o recôncavo.

Com meus votos de sucesso, sobretudo com meus agradecimentos por me permitir desaguar meu rio Congo no rio Sururu.

 

Lisette

P.S.: Desde que vi o muro de Santo Antonio, parece que meu olho agora só enxerga a cidade através dos matizes azuis e amarelos, o Banco do Brasil, os Correios, as lojas Pernambucanas, mas o melhor foi encontrá-los na transportadora e empresa de mudanças, a Lusitana.

[1] — Nota do autor: Laura Lima, artista.

[2] — Data em que a autora conheceu o artista Marepe.

Lisette Lagnado / Escrito por Lisette Lagnado / Revista Tatuí Edição 12 / www.revistatatui.com.br