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Originalmente publicado na revista Trópico, em 3 de novembro de 2010.
“Uma história radicalmente condensada da vida pós-industrial
Quando foram apresentados, ele fez uma piada, esperando ser
apreciado. Ela riu extremamente forte, esperando ser apreciada.
Depois, cada um voltou para casa sozinho em seu carro, olhando
direto para a frente, com a mesma contração no rosto.
O homem que apresentou os dois não gostava muito de nenhum
deles, embora agisse como se gostasse, ansioso como estava para
conservar boas relações a todo momento. Nunca se sabe, afinal,
não é mesmo não é mesmo não é mesmo.”
David Foster Wallace, Breves Entrevistas com Homens
Hediondos. Trad. José Rubens Siqueira, 2005 (1a edição no
original em inglês, 1999)
“The present is harder to find. It is being sucked out of the world
to make way for the future of uncontrolled markets and huge
investment potential. The future becomes insistent. This is why
something will happen soon, maybe today.”
Don DeLillo, Comsmopolis, 2003
A vida pós-industrial da primeira epígrafe-conto é o agora, o presente. É o mesmo presente difícil de encontrar, apalpar – o da segunda epígrafe – “porque está sendo ejetado do mundo para dar lugar ao futuro insistente do mercado descontrolado e de imenso potencial de investimentos. É por isso que algo está para acontecer a qualquer momento, talvez hoje mesmo”.
A constatação de Vija Kinski, Gerente de Teoria (ChiefofTheory) da personagem central de Cosmopolis, o jovem e trilhardário consultor financeiro Eric Parcker, se revela a partir de uma tontura familiar. Ela afirma o esvaziamento do presente, ou sua carga de especulação sempre projetada para um futuro pretensiosamente previsível, mas aponta para as consequências desse exercício de pura ansiedade no hoje. Um loop perfeito, sem passado: o vídeo ou filme que pegamos pelo meio numa exposição de arte contemporânea não se mostra como uma perda da parte não vivida, mas enuncia o futuro do seu re-começo no instante em que se adentra a instalação.
Estatonturaconhecidanãonosabandonaenquantonavegamos pela 29aBienal de São Paulo. Aarquiteturaerrante da exposiçãonos é oferecidacomo um arquipélago com centenas de “ilhas” a seremvisitadas –trabalhosartísticos de indiscutívelqualidadeselecionados sob a rubrica da “arte e política”, que exigem tempo, envolvimento e atenção para seremabsorvidos.
A linha narrativa de Cosmopolis marca a esquizofrenia do capital especulativo na aurora daquilo que veio a culminar na crise econômica mais severa da história que vemos hoje, a queda do iene, em 2000. Trata-se da navegação errática de Parcker pela ilha de Manhattan dentro de sua limusine altamente equipada com dispositivos de segurança e de bem-estar, durante um período de 12 horas de um dia qualquer de abril do primeiro ano do século 21, no intuito de conseguir um corte de cabelo. Entre gráficos de bolsas de valores e em constante movimento, o consultor assiste centenas de milhões de dólares escoarem na medida em que o iene despenca e afeta a economia no mundo todo; tem encontros sexuais com sua amante galerista; encara reuniões com vários membros de sua equipe; vê sua limusine danificada por um protesto anarquista contra a reunião do G8 e cinicamente regozija com a passeata que exibe o caixão de seu cantor de rap favorito.
No centro da ficção-científica blasé de DeLillo está um orquestrado desejo de profundidade por parte do autor e de suas personagens, conseguindo alcançar apenas uma superficialidade roteirizável que acompanha o ritmo da flutuação especulativa do capital imaterial e da especulação linguística. O livro apresenta uma economia radical de vírgulas (pausa, respiro, contemplação), e os pontos de interrogação (dúvidas, questionamentos) são substituídos por pontos finais, numa linguagem seca e rígida. O clímax da narrativa se resume ao personagem ter de conviver com o fato de que sua próstata é assimétrica, qualidade que partilha com seu assassino, o lunático BennoLevin, numa conclusão previsível e banhada a testosterona.
A metáfora que se lança em jogo é o esvaziamento do indivíduo de sua carga subjetiva para um corpo depositário de informação infinita, pois vemos a substituição na narrativa do livre arbítrio pela arbitrariedade. O deslocamento incerto, ou mobilidade, é condição paradigmática do livro, bem como o é a condição da vida pós-industrial neoliberal.
Em tempos que marcam um limbo de emergências (política, ecológica, psicossocial) e o desconforto pelo atropelamento constante do devir, há uma patológica explosão de paradigmas simultâneos contra os quais julgar nossa posição no mundo. Tudo se relativiza e se negocia no trânsito errático entre a herança do insistente “universal” (estado-nação) e o seu sinônimo daltônico (crise congênita do estado-nação), o “global”. As bandeiras de “Apolítico” (2000), de Wilfredo Prieto, timidamente instaladas no exterior do pavilhão de Niemeyer, atestam a coreografia hereditária da verticalidade dos postes firmes e dos rituais oficiais rígidos de outrora. Na instalação do artista cubano, o “global” não se manifesta como uma ruptura com seu passado totalitário, bipolarizado e bélico, e sim como uma continuação lógica, mesmo que com menos definição e mais arbitrária, de seu irmão “universal” moderno.
As bandeiras estão hasteadas em preto e branco, desprovidas de cor que carimbariam diferenças, fronteiras e valores nacionais. Ao invés de aludir a uma arquitetura globalizada – marcada pelo desejo politicamente correto pela horizontalidade, pela igualdade e pela ideia de comunidade –, elas explicitam o estereótipo, ou seja, a desengonçada indefinição de códigos de diferenciações culturais, seguido da insegurança violenta frente à constante ameaça da homogeneização identitária ocidental.
Daltônicas, sem as cores que garantem a distinção entre as formas, as bandeiras da França pseudodemocrática de Sarkozy e da Itália fascista de Berlusconi são as mesmas. O internacional deu lugar ao “internacionalismo”, já que o livre-arbítrio foi substituído pela arbitrariedade.
Sem querer abrir uma caixa de Pandora, dado o perfil heterogêneo do público globalizado da Bienal de São Paulo e (talvez) demandas institucionais menos heterogêneas, mas igualmente globais (lê-se “internacionais”), o vídeo comissionado Opus 666 do projeto Pixação SP é simultaneamente grosseiro e apaziguador, alentador e assistencialista, necessário e desprezível, justo e estúpido. Como resultado do excesso de agendas a serem cumpridas e de especulação de significações possíveis, o ato se neutraliza e se esvazia (não o ato da pixação em si, ou a suposta relevância daquilo que se convencionou chamar de “arte de rua”, mas a escolha de apresentar essa documentação na mostra). Desmaterializa-se; torna-se arbitrário.
Em exposições de portes físico e orçamentário gigantescos como as bienais é difícil assegurar a autonomia da arte. Sobretudo quando, em artigos publicados no caderno de cultura dos principais jornais do país, o presidente da Fundação e membro do conselho equalizam a importância de um evento de arte contemporânea com a imagem de um “novo Brasil”, em que a arte confere “riquezas e oportunidades”, atua como um “termômetro da economia”, “gerando progresso e benefício para todos”, que “mais cedo do que tarde, mais empresas brasileiras descobrirão como arte é um excelente investimento financeiro e social” e que “[A] indústria cultural brasileira terá papel fundamental no nosso desempenho na Copa do Mundo de 2014 e nos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio.”
Evidentemente que a esfera econômica é um dos aspectos envolvidos na construção de uma Bienal, mas o problema é quando ela se torna um dos paradigmas de fruição das obras. O excesso como tomada conceitual da carga política contida na arte se traduz no pavilhão como a lógica corrente da hiper-expressão do capital e da hiper-estimulação da atenção e dos sentidos, resultando no atrofiamento da habilidade de interpretar criticamente o discurso proposto. Essa explosão de símbolos na presente edição – arte e política, arte e mercado, arte e investimento, intercambiantes entre si – nos remete justamente à arquitetura do loop perfeito: o “Brasil país do futuro”, slogan vociferado desde um país ditatorial, é o hoje – o presente difícil de encontrar e de apalpar, cujo passado de violência, revolução e contracultura é sequestrado pela atualidade e transformado em valor de marketing na corrida pelas eleições.
Static (2009), do britânico Steve McQueen ilustra com brilhantismo o processo da alienação contemporânea. Com uma câmera 35mm, o artista sobrevoa em um helicóptero a Estátua da Liberdade, revelando detalhes inéditos do monumento. O ritmo circular, repetitivo e estonteante do percurso aéreo insiste na exposição de todos os pontos de vista possíveis da estátua, aludindo aos diferentes usos desse símbolo e desse signo, que serviram simultaneamente de paradigmas para movimentos de subversão, de controle ideológico e de potencial de consumo. Hipnotizados pelo som do motor do helicóptero e pelo excesso de imagens de sua superfície, nos damos conta de que a liberdade sofreu um processo de despolitização e foi esvaziada de seu conteúdo semântico. Ela vira apenas um logo, um substantivo vazio de significação, estático.
Tal como a liberdade, o termo “política” vem sendo tão abundantemente proliferado com distintas cargas ideológicas, frequentemente com paradigmas mutuamente excludentes – política da arte, política partidária, política do sujeito, política global, política do capital – em um processo de despolitização, que clamar seu uso hoje sem assumir pessoalmente as rédeas de seu significado não só é difícil, como perigoso.
O curador-colaborador convidado para compor o time curatorial da 29a Bienal, SaratMaharaj, expôs em sua apresentação no Teatro de Arena/CAPACETE [1]
uma certa preocupação com o verso-título da mostra retirado do poema moderno de Jorge de Lima, “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”. Segundo Maharaj, a tradução para o inglês por sinônimos mais próximos, arriscaria um ato sexista, dado que a palavra “homem”, traduzida para “man” excluiria da navegação mulheres, homossexuais e outras ditas minorias. Optou-se, portanto, pela versão “Thereisalways a cupofseatosail in”, que, percorrendo as curvas amorfas e sem objetivo preciso além do lucro a qualquer custo da arquitetura geopolítica global, boomerangueia para o português como “Há sempre um copo de mar para se navegar”. Para não correr o risco de descumprir uma agenda politicamente correta de um sistema democrático (sic) capitalista, que se intitulou teleologicamente o único possível, matou-se o sujeito. O sujeito da sentença original é excludente e o da sentença traduzida é inexistente. E sem quorum ou sem sujeitos, não há qualquer tipo de política.
“Oh, shit, I’mdead”, diz Parcker poucos minutos antes de Levin puxar o gatilho.
Referências
David Foster Wallace, Breves Entrevistas com Homens Hediondos. Trad. José Rubens Siqueira (SP: Companhia das Letras, 2005)
Don DeLillo, Cosmopolis (NY: Scribner, 2003)
Franco Bardi (Bifo), The Pathologies of Hyper-Expression. Trad. De ArannaBove (2007). http://transform.eipcp.net/transversal/1007/bifo/en#redir
Stuart Hall, “Democracy, Globalization and Difference”. In Documenta 11: Platform_1 DemocracyUnrealised(Kassel:HatjeCantz Publisher, 2002)
“IntelligenceAgency”, SylvéreLotringer em entrevista com Nina Power. Frieze Magazine, nº 125, Setembro 2009. http://www.frieze.com/issue/article/intelligence_agency/
Heitor Martins, “A importância da Bienal de SP para o Brasil”. Folha de São Paulo, publicado em 11-07-2010.
Nizan Guanaes, “O termômetro da Bienal de São Paulo”. Folha de São Paulo, publicado 24-08-2010, no caderno Mercado.
Roland Barthes, Aula (São Paulo: Cultrix, 7a. Ed. 1996).
[1] — A nota de roda-pé não pertence a uma estrutura hierárquica de um corpo de texto principal e um secundário. Ela embasa ao mesmo tempo que é independente do texto que a tornou necessária. O leitor, em seu livre-arbítrio, pode conferi-la ou não, fica a seu critério. Esse é, portanto, o espaço ideal para se traçar algumas breves linhas sobre o programa do CAPACETE que compõe o projeto da 29a Bienal de SP.
O programa do CAPACETE no Teatro de Arena, com sua escala arquitetônica reduzida em oposição à sua escala histórica, promoveu encontros entre artistas, teóricos, músicos, arquitetos e acadêmicos de toda parte.
Com microfone, kibe, ou um copo de cerveja na mão, agenciou um estado de vizinhança entre indivíduos, instituições, bairros. Entre. Entre sujeitos, coisas e “Entre, fique à vontade”. Nas palavras de Marta Bogea – arquiteta responsável pela tradução das questões curatoriais que lhe foram pautadas em expografia da presente edição do maior evento de arte contemporânea no país – um vizinho em ativo convívio, que não somente reitera, mas que estranha seu próprio anfitrião.
Lembro-me no dia da abertura antecipada da Bienal, logo após a apresentação lotada do artista albanês Anri Sala, no dia 10 de março: estávamos todos no bar em frente ao teatro (um epicentro de vértices formando uma espécie de triângulo isósceles; situação geográfica em perfeita consonância com a intenção do CAPACETE de promover encontros dos mais diversos, comuns, no tecido da cidade). O bar, que hoje está sendo reformado para se tornar uma agência do Banco do Brasil, acomodava imigrantes nigerianos, a elite intelectual paulistana e de outras capacidades, artistas e curadores nacionais e internacionais, putas e garçons. Em dado momento – como dita a tradição nesta cidade – o diretor do programa foi abordado na eminência da estratificação do grupo para que fossem jantar num lugar “mais apropriado para os convidados VIPS e internacionais”. A resposta veio pronta e imediata: “Mas nem todos presentes podem pagar 100 paus por um jantar…vamos aqui mesmo no restaurante da Praça Roosevelt que deu a todos um voucher com desconto de 50%. E olhe para os artistas, para as pessoas: estão todos felizes!”. Estávamos felizes, e isso bastava. Qualquer baliza que ultrapassasse o paradigma da troca horizontal e fácil, do inusitado e do bem-estar comum entre todos os presentes – não-importasse-quem – era naturalmente alienígena àquela situação. O grande lance é o encontro, o contato, a conversa. Sem hierarquias; ou com elas, para aqueles que escolhessem adotá-las numa escala pessoal, contanto que fosse naquele lugar. Tudo bem. Somos só seres-humanos, recortados e limitados; ambiciosos para o bem ou para o mal (quando é que conseguiremos sair do binário católico-digital, ex-dicotomia, ex-dialética? A matemática, há milênios, nos mostra o padrão do infinito, a curva do π, apenas o provável da probabilidade quântica, o caos, mas, no entanto, nas humanidades, ainda adotamos a “arte e política”, “a riqueza e a oportunidade”, a direita e a esquerda, o passado e o futuro…e o presente? O presente, acredito, está na escala pontual e diminuta das conversas no café da manhã na Casa da Denise; na fazenda dos meninos; no sabático; no assistir canais de TV aberta; na busca por um coco gelado no Parque do Ibirapuera e, de repente, perceber que a 29a Bienal está em cartaz, adentrá-la e, ignorantes de sua proposta curatorial, percorrê-la sem um objetivo definido,apenas senti-la, gozá-la, sem ter a demanda de olhá-la com uma defesa crítica para depois cumprir o dever de escrever um texto a seu respeito…).
Assim, não é com honra, pois – como diz meu amigo, também amigo da minha amiga que me pediu o texto acima – a honra sempre carrega um resquício de poder, e portanto pode ser imerecida; é com Alegria que em nome do CAPACETE, agradeço a Agnaldo Farias, Moacir dos Anjos e a toda a equipe curatorial, editorial e de produção da 29a Bienal de São Paulo, e sobretudo à administração do Teatro de Arena, pela oportunidade de poder ter gerado entendimentos, aproximações, constrangimentos, faíscas, lançamentos, debates, performances, tédios e amizades nesse percurso entre erros, acertos e acertos. A Alegria é, por definição, sempre política.