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Originalmente apresentado no Seminário Internacional Depois do muro:Geopolítica das Artes. Fundação Joaquim Nabuco, Recife, 11 de novembro de 2009.
O ponto de partida deste texto é a interseção entre o que entendo do pensamento que vem sendo formulado por Hans Belting e por Andrea Buddensieg no projeto sobre a arte global, a respeito das novas relações entre a arte contemporânea e a arte étnica, e o que já pode ser percebido na esfera de museus e exposições. A questão que o motiva é: Será que a arte global, tal como concebida por esses autores está se explicitando como força de transformação do que entendemos por arte? E, em caso afirmativo, de que modo essa explicitação se manifesta na própria concepção e organização da visualidade da arte hoje, bem como em sua institucionalização?
O ponto de partida é, portanto, o pressuposto de que a arte global não é mesmo uma hipótese, mas uma realidade cujo alcance precisamos descobrir. E como se trata de um processo novo e recente, só podemos fazê-lo tateando o terreno e buscando evidências na prática expositiva atual de aproximar a arte contemporânea e a arte moderna, da arte que uns chamam de tradicional, outros de primitiva, outros de primeira, outros de antiga, outros de indígena, outros de étnica. Com efeito, parece-me que, se focalizarmos o problema da aproximação, encontraremos, no gesto que aproxima, a matriz do modo como a arte global transforma a arte étnica, mas também, e concomitantemente, a arte contemporânea.
Em seu artigo A Arte contemporânea e o Museu na Era Global Belting deixa claro o que está em causa: a capacidade do museu de arte para enfrentar o desafio da aceleração que a globalização impõe à expansão da produção contemporânea, juntamente com a capacidade da atual noção de arte para sobreviver a esta explosão. Para sustentar seu argumento, Belting invoca a arte global vista como um ramo da arte contemporânea e que é, para a maioria, sinônimo desta última. Do ponto de vista do autor, a história da arte e a etnologia são como dois lados de uma mesma moeda – um deles, o lado Ocidental, define o que se entende por arte, enquanto o outro define a cultura material, os artefatos produzidos por outros, isto é, aqueles que nunca criaram “arte” no sentido ocidental do termo. Foi por esta razão que os museus de arte e de etnografia passaram a existir.
Tais construções mudam com a globalização e com a mudança das regras do jogo. Por um lado, a produção dos artistas contemporâneos não-ocidentais não cabe nesse sistema, porque esses artistas recusam tanto o legado de uma história da arte que não é a sua e o legado étnico, tradicional, que sempre foi enfraquecido, mas também porque a entrada dos países emergentes como novos e importantes parceiros na cena mundial interroga tanto a supremacia do modelo de globalização da arte ocidental quanto a suposta universalidade do mundo da arte, visto com a quintessência artística da herança mundial. A arte global é então a resposta paradoxal a essas questões – nas palavras de Belting “um problema não resolvido” com relação à inclusão de todos os “mundos contemporâneos”; a arte global, por conseguinte, abandona ao mesmo tempo os parâmetros Europeus e Americanos, na medida em que a vitória de uma arte contemporânea que se tornou pós-moderna, pós-histórica e pós-colonial desbarata toda produção étnica e nivela qualquer diferença cultural em um único processo de institucionalização.
Assim, para entender melhor esse problema não resolvido, é necessário visitar museus e exposições para descobrir como a arte global transforma a arte étnica de acordo com uma lógica paradoxal. Mas não podemos desprezar o fato de que meu relato das visitas às exposições européias, especialmente em Berlim, é o relato de alguém que, apesar de usar as lentes fornecidas por Belting, vê a arte com um “olhar brasileiro”, isto é, pós-subdesenvolvido, pós-periférico e tropical. Ele é alimentado pela dúvida em relação ao impacto causado no Brasil, na presente crise, pelo colapso dos mercados financeiros e o golpe brutal sofrido pelos principais países industrializados. Tentarei também discernir as tensões negativas e positivas causadas pelo encontro/divergência entre a cultura moderna e contemporânea ocidental e as culturas tradicionais dos povos indígenas. O que deveria ser levado em conta é que a arte moderna e contemporânea brasileira nunca tentou levar a sério sua não-relação com a arte étnica que era e ainda é produzida, porque ela nunca sequer se colocou a questão se os povos indígenas e tradicionais costumavam produzir arte e ainda continuam a fazê-lo.
Se o advento da arte global reconfigura o sentido anteriormente conferido à arte contemporânea e ao seu “outro”, a arte étnica, a questão levantada por Belting se torna de grande relevância para nós porque a posição ocupada pela arte brasileira no novo contexto será necessariamente problematizada e questionada, tendo em vista a nossa inserção peculiar no que vem por aí.
Belting já havia assinalado, em Why the Museum? New Markets, Colonial Memories, and Local Politics [2] que a arte latino-americana, do Uruguai ao México e a Cuba, talvez pudesse ser considerada “meramente como a outra face da Europa e de sua arte”. Em outras palavras: dentro do esquema analítico e dos conceitos norteadores por ele desenvolvidos, a arte latino-americana se move segundo os preceitos da arte ocidental, escapando portanto da designação de arte étnica e surgindo como uma espécie de desdobramento menor, mesmo quando reavaliado, do que foi a arte moderna e do que tem sido a arte contemporânea nos centros hegemônicos. Nesse sentido, se Belting estiver certo – e eu creio que está – as transformações recentes que o advento da arte global está suscitando, devem afetar a arte latino-americana e a arte brasileira, particularmente sua relação com a arte euro-americana.
Creio que todos nós tenderíamos a pensar que essa perspectiva é correta e que é nessa direção que deveríamos explorar o problema, tendo em vista o recalque no Brasil do reconhecimento da existência de múltiplas manifestações de arte étnica. No entanto, sinto que está se explicitando um fenômeno particularmente perturbador que talvez modifique intensamente todo o quadro e apresente articulações novas, capazes de trazer para dentro da cena brasileira, e de um modo inédito, os dois pólos analisados por Belting, a saber as novas relações entre arte contemporânea e arte étnica.
Com efeito, o que está acontecendo que nos permite levantar essa lebre? Antes de tudo, uma tendência já detectada por Belting no texto Art in the TV Age. On Global Art and Local Art History. Pois nesse ensaio, refletindo sobre o que cabe à arte numa era tecnológica, o historiador sugere que a arte e a tecnologia sempre competiram, desde a emergência da modernidade, em termos de descobrimento e de progresso. Entretanto, diz ele, “hoje a tecnologia parece vencer a velha competição e até conquistar uma indisputada autoridade na constituição de uma nova identidade global. Além disso, a tecnologia controla a experiência do que chamamos realidade virtual, cujo fascínio ofusca o velho papel da arte como o porto do imaginário”. Ora, sempre segundo Belting, a vitória da tecnologia teve implicações importantes para a arte: em primeiro lugar, porque a utopia deixou de ser uma de suas reivindicações e tornou-se privilégio da tecnologia; por outro lado, a arte se tornou por excelência o campo da imaginação privada e da criatividade enquanto a TV se tornou a expressão dos interesses econômicos e políticos em escala global; finalmente, lembrando Peter Sellers, o historiador afirma que, contrariamente aos mass media, a arte deve ser lenta, difícil e obscura se quiser manter sua vida e seus direitos no mundo de hoje.
A observação de Belting é importante porque, ao mesmo tempo em que aponta a vitória da tecnologia como vitória da aceleração e da colonização do espaço público, indica que a liberdade e a criação artística se refugiaram no âmbito do privado. Nesse sentido, vale então a pena se interrogar como a individualidade e o próprio processo de individuação vem sendo “processado” tanto pela arte quanto pela tecnologia.
Ora, vista por esse prisma, a vitória da tecnologia sobre a arte também passa a significar a primazia da capacidade da tecnologia de afetar o humano do modo mais intenso, de propor-lhe experiências cujo impacto transformador é inigualável e, no limite, de transmutar a própria individuação, na medida em que interfere na noção mesma de natureza humana. O que equivale a dizer que a potência de transformação da tecnologia, inclusive e sobretudo no tocante à percepção da realidade, é incomparavelmente maior do que aquela que a arte hoje pode vir a almejar.
A fim de se ter uma “medida”, se é que se pode dizer assim, do impacto e da intensidade da aceleração tecnológica sobre o humano, vejamos o que diz Konstantinos Karachalios, um especialista do Escritório Europeu de Patentes que se dedicou nos últimos anos à construção de cenários futuros nessa organização. “Se você considerar o progresso tecnológico realizado no ano 2000 como uma “unidade de tempo tecnológico”, então calcula-se que o século XX teve, ao todo, 16 dessas unidades. Todo o século XX é equivalente a apenas 16 anos do progresso tecnológico medido pelo ano 2000; isto é, em termos tecnológicos o século todo poderia ser comprimido em apenas 16 anos, com desenvolvimentos cada vez mais concentrados em seu final. Levando em conta esse efeito de aceleração, você poderia imaginar quantas unidades de tempo tecnológico nós e nossos filhos vamos experienciar (e ter de enfrentar) durante o século XXI? Aparentemente, haverá mais do que 100, mas você pode imaginar quanto? Bem, se você simplesmente extrapolar a tendência atual, assumindo que não ocorrerão desastres em larga escala e a longo prazo, pode ser que tenhamos que lidar com um progresso tecnológico equivalente a 25.000 anos (baseado na tecnologia do ano 2000) dentro de duas gerações. Mesmo que você considere “apenas” 1000 anos, teremos que enfrentar desafios semelhantes aos que a maioria das populações da África ainda está enfrentando, populações que foram catapultadas da idade da pedra ou do ferro na modernidade, dentro de 2-3 gerações”.
Se Karachalios estiver certo, a pergunta, então, que se coloca é a seguinte: como a experiência humana vai “processar”, ou melhor, está “processando”, essa aceleração que os especialistas qualificam como “avalanche tecnológica”? A analogia com os povos indígenas soa interessante, não porque estes sejam “atrasados” ou “arcaicos” em termos sociais e culturais, mas porque não trilharam o caminho do desenvolvimento técnico cada vez mais acelerado, optando por outros rumos. Assim, quem já esteve numa aldeia Yanomami, por exemplo, sabe da distância que separa a sua vida cotidiana do nosso universo tecnologizado e constata a sua dificuldade em lidar com nossas máquinas; mas nesse caso, o problema que eles enfrentam não é com a sua sociedade, e sim com a organização social dos outros, dos brancos. A ironia, entre nós, é que vamos ser cada vez mais confrontados com a vertiginosa aceleração que nossa própria sociedade produz e de cujo impacto parece que não temos como escapar. Como se estivéssemos nos tornando um povo primitivo dentro de nossa própria cultura!
Se a comparação faz sentido, o homem da sociedade indígena se torna rigorosamente contemporâneo do homem civilizado; e o Brasil se torna então um campo de provas extraordinário, um terreno de experimentação riquíssimo, no qual se apresenta a oportunidade única no mundo de confrontar as diferentes soluções encontradas no campo da individuação para lidar com a avalanche tecnológica e sua relação com as temporalidades das diferentes culturas. Mais ainda: no âmbito do que Belting entende por arte global, o Brasil emerge como um lugar privilegiado para se acompanhar as transformações do que se entende por arte contemporânea e por arte étnica, e a fecundação, ou não, de uma pela outra. Digo isso porque não são só os artistas brasileiros que podem se apoderar das novas tecnologias como meios de expressão estética – os mais de duzentos povos indígenas, para não falarmos dos quilombolas, dos seringueiros e de outras populações tradicionais que compõem a sociodiversidade brasileira, já estão também entrando na cena.
Foi com essas questões em mente que o espectador foi ver a exposição Os Trópicos. Visões do Meio do Globo, curada por Alfons Hug (Goethe Institut Rio), Peter Junge (curador do Etnologisches Museum de Berlim) e Viola König (diretora do mesmo museu), no Martin-Gropius Bau, em Berlim. Os Trópicos não pode ser considerada, apenas, como mais uma grande mostra em cartaz em Berlim, no segundo semestre de 2008; Hermann Parzinger tem razão quando escreve que se trata de uma exposição “excepcional em vários aspectos” [3] . Sua realização é muito importante porque expressa um momento alto do processo de aproximação da arte contemporânea com a arte étnica, segundo a ótica da arte global. Com efeito, a mostra reivindica sua inscrição num movimento que teve início em 1986 na exposição Les Magiciens de la Terre, no Centre Georges Pompidou, passou pela abertura do Musée des Arts Premiers, no Quai Branly, em Paris, em meados de 2006, e agora se manifesta em Os Trópicos como o protótipo ou o projeto-piloto do Humboldt-Forum, a ser criado na Ilha dos Museus. Nesse sentido, a aproximação talvez possa ser entendida como a prefiguração do modo como se pretende estabelecer um marco da institucionalização da arte global na Alemanha, e talvez na Europa. Isso porque o Humboldt-Forum vai exercer um papel simbólico muito forte: concebido para ocupar o reconstruído Berliner Schloss, que será erguido no lugar do antigo Parlamento da Alemanha Oriental, recentemente demolido, o Humboldt-Forum é o principal projeto político-cultural da Alemanha no início do século XXI e será destinado a acolher as artes e as culturas da África, Américas, Austrália, Oceania e Ásia, instalando, assim, a produção das regiões não-européias ao lado dos museus que reúnem a arte antiga e moderna reconhecida pelo Ocidente como patrimônio seu.
Por outro lado, além de sua inscrição no panorama artístico e cultural alemão, Die Tropen traz para dentro da exposição muitas marcas da influência que o Brasil exerceu sobre a sua própria concepção. Tal influência se faz notar não só porque a mostra do Martin Gropius Bau foi precedida por versões menores, experimentais, em várias cidades brasileiras, mas também porque a idéia nasceu no Rio de Janeiro, onde mora e trabalha Alfons Hug, porque o Brasil é o maior pais tropical do planeta, porque dos 40 artistas contemporâneos convidados treze são brasileiros e, last but not least, porque a arte e a cultura brasileiras já haviam tentado elaborar, dentro da matriz moderna ocidental, a sua diferença específica como tropicalidade, através da Antropofagia de Oswald de Andrade, nos anos 20, do Tropicalismo nos anos 60, e do trabalho revolucionário e complexo de Hélio Oiticica, que soube romper com as persistentes oposições arte erudita/arte popular, arte européia/arte não-européia, arte internacional/ambiente local, etc.
Finalmente, Die Tropen acontece num momento crítico para a arte contemporânea, e pode ser vista como uma das respostas que vêm sendo construídas para lidar com tal crise. Com efeito, abrindo seu texto para o catálogo, Alfons Hug escreve: “Quase 20 anos depois da exposição precursora Les Magiciens de La Terre, a mostra Os Trópicos em Berlim é uma outra tentativa, em tempos de tensão, de identificar os fluxos de energia e as perturbações sutis entre os hemisférios. O objetivo da exposição é determinar que forças culturais estão atuando juntas e quais são antagônicas, e compilar um incorruptível conjunto de imagens que resiste à crise, que permita uma visão não hierarquizada do mundo. Berlim parece predestinada como o lugar, na medida em que a cidade não só possui uma das mais importantes coleções de arte não-européia do mundo, em seu Museu Etnológico, mas também é uma das mais vigorosas cenas do planeta na arte comtemporânea”.
Trata-se, portanto, antes de tudo, de encarar a configuração geopolítica emergente afirmando uma visão não-hierárquica do mundo e das culturas, através da arte. E a fonte de inspiração para tanto é a tela de Gauguin Where do we come from? What are we? Where are we going?, pintado em Tahiti, em 1897. Assim, o curador reata com a (re)descoberta dos Trópicos que já havia se dado nos primórdios da pintura moderna. Mas na concepção de Hug as perguntas do pintor devem ser referidas não à história da arte e sim ao fato de que o Homo Sapiens nasceu nessa região e de que a vida tem um ritmo próprio e leis diferentes nessa faixa que cobre o meio do globo.
No entanto, seria conveniente lembrar que no quadro da crise e das tensões contemporâneas, outros artistas também retomaram, de outros modos, as perguntas de Gauguin. Em 2001, Hans U. Obrist perguntou a Maurizio Cattelan quais foram os começos do começo de seu trabalho, e recebeu a seguinte resposta: “Você começa quando nasce e então morre. Não há um grande começo. Todas as vezes você tenta entender onde está e para onde está indo. Você tenta apenas tornar a viagem mais agradável” [4] . É interessante notar que o italiano já não se pergunta de onde viemos, enquanto humanidade, e concentra sua atenção no presente e no futuro do artista. Talvez por isso mesmo, quando se tornou um dos curadores da Von Mäusen und Menschen (Of Mice and Men), na 4th Berlin Biennial for Contemporary Art, em 2006, Cattelan escreveu, junto com Massimiliano Gioni e Ali Subotnick: “Quase todos os artistas da exposição, ou pelo menos suas obras, parecem envolvidos numa escuridão radical, que poderia ser lida como uma persistência do irracional e do obscuro face à racionalidade e ao fundamentalismo. (…) Diversos trabalhos também compartilham um profundo mal-estar, que ressoa com os espaços nos quais são exibidos, (…) É a percepção nublada da realidade como uma manifestação sinistra das sombrias fantasias de cada um. Com certeza, não é por acaso que a arte atual é predominantemente uma arte de imagens. Para ir direto ao ponto: podemos dizer que vivemos numa era do triunfo da arte figurativa. Mas tais figuras e imagens são antes de tudo e principalmente alucinações; são espectros. Queremos levar em conta a abertura de Sebald para os fantasmas da história”.
As observações esboçadas por Maurizio Cattelan às perguntas: Onde estamos? Para onde vamos?, apontam, assim, para a incerteza do presente e a escuridão radical quanto ao futuro. Ora, em 1996, Ugo Rondinone também abordava o tema, realizando sua vídeo-instalação Where do we go from here?… Do que se trata? O espectador entra numa sala vazia que tem ao fundo, cobrindo a parede toda, uma imensa fotografia preto e branco de uma floresta, retrabalhada de tal maneira que o olhar vai registrando a transformação das árvores à medida que se aproxima da imagem. Do lado esquerdo desta, porém, uma abertura o convida a atravessar a imagem da natureza e a entrar num grande corredor de madeira iluminado por néons, que por sua vez desemboca numa grande sala quadrada, onde o aguarda, em cada uma das quatro paredes, a imagem de um imenso palhaço. Ali, cercado por eles que, escarrapachados no chão limitam-se a olhá-lo, ouvindo o som pesado da respiração deles, o espectador se encontra numa espécie de vazio terrível, do qual nem pode fugir porque a luz que emana dos quatro projetores persegue os seus olhos, ofuscando-os.
Ali, a desconstrução do mito do artista parecia levar a um impasse: pois à entrada da instalação o curador reproduzira o seguinte enunciado de Ugo Rondinone: “Perguntado sobre o que então a arte deveria ser, Beckett afirma que ela deveria ser “a expressão de que não há nada a ser expressado, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhum poder de expressar, nenhum desejo de expressar, junto com a obrigação de expressar”.
É, portanto, no momento em que a condição do artista contemporâneo se vê radicalmente questionada, que Die Tropen retoma as perguntas de Gauguin e se volta para a aproximação entre arte contemporânea e arte étnica, tentando respondê-las a fim de “facilitar o entendimento entre os hemisférios” [5] . Pois como diz Hug: “A mostra forja um elo – pela primeira vez na história – entre obras criadas em tempos pré-modernos e obras contemporâneas. A modernidade é conscientemente saltada nesse contexto, pois as relações entre, por exemplo, Picasso e a arte africana ou o Expressionismo alemão e a escultura melanésia já foram suficientemente examinadas. (…) Trata-se de uma exposição de arte, isto é os trabalhos mais antigos são escolhidos primeiramente em virtude de critérios estéticos, não científicos. O objetivo geral é a re-estetização dos Trópicos para ajudar a trazer o peso cultural das regiões tropicais para ajudar a contrarrestar os discursos econômicos e políticos todo-poderosos”.
Talvez seja um pouco de exagero afirmar que se efetua, em Die Tropen, pela primeira vez, a ligação entre obras pré-modernas e contemporâneas. Só para ficarmos em Berlim, no outono-inverno de 2008, havia no âmbito das grandes exposições de Der Kult des Künstlers, pelo menos outras duas que também efetuavam confrontações de obras produzidas em tempos diferentes. Em primeiro lugar, a mostra Giacometti, der Ägypter, no Altes Museum, oferecendo ao público a possibilidade de verificar a influência que a antiga arte egípcia exerceu sobre a escultura do artista suíço moderno, e criando um “diálogo” entre os bustos de Nefertiti e Annette Arm. Por outro lado, a mostra O Culto do artista, no Kulturforum, reunia obras-primas tanto da história da arte, clássica e moderna, quanto de tradições não-européias a trabalhos de artistas contemporâneos, a fim de discutir as diversas maneiras através das quais se expressa a idealização do artista em todos os tempos. Como se vê, então, as aproximações trans-temporais e trans-espaciais parecem estar na ordem do dia… e, de certo modo, constituem uma tendência consistente no universo da visualidade contemporânea.
É claro que cada uma dessas aproximações porta consigo pressupostos, princípios, propósitos e objetivos que podem variar, e cujas diferenças mereceriam problematização. Entretanto, parece haver uma constante, um pressuposto invariante que permearia todas elas: é o caráter atemporal da arte, que se traduz na suspensão das temporalidades próprias das obras de todos os tempos. Em Die Tropen, por exemplo, é esse caráter que funda e legitima toda a démarche curatorial, na medida em que a arte pré- moderna dos Trópicos é considerada como “timelesness”, enquanto a arte contemporânea, que teria abandonado a noção linear de tempo e progresso, é considerada como uma “máquina do tempo”.
Por que a arte pré-moderna é atemporal? Porque na escala de milênios as paixões humanas são sempre as mesmas, são sempre manifestações de uma natureza humana imutável. E é aí que reside, em meu entender, o maior problema da aproximação da arte contemporânea com a arte étnica em Die Tropen, na medida em que tal premissa articula cinco dos sete grupos temáticos que estruturam a exposição.
Que se tome, por exemplo, o grupo temático After the Flood – nature and landscape, que abre a mostra. De saída, é preciso ressaltar que a inscrição da natureza e da paisagem tropicais numa perspectiva bíblica de antes ou depois do Dilúvio já introduz um ruído considerável no entendimento da aproximação das obras escolhidas e expostas porque o espectador não tem mais critério para apreciá-las, sobretudo as que pertencem à arte étnica. Pois como e por quê vinculá-las a essa referência cristã? Tudo leva a crer que a incorporação das obras sob essa rubrica tem o dom de subtraí-las de sua própria materialidade para torná-las expressões metafóricas de um entendimento do mundo tropical informado pelo mito e pela religião do europeu. Assim, a floresta deixa de ser um espaço disputado por culturas em conflito para tornar-se um espaço metafórico. E como tanto os trabalhos contemporâneos quanto os étnicos são tomados nesse mesmo registro, encontram-se em pé de igualdade, isto é não-hierarquizados porque são todos metáforas de uma natureza e de uma paisagem que lhes é comum. Ocorre que tanto a natureza quanto a paisagem não podem se constituir como esse substrato comum porque as próprias noções de natureza e de paisagem diferem radicalmente, quando consideradas sob a perspectiva ocidental contemporânea e sob a perspectiva étnica – um conceito universal de natureza e de paisagem só pode ser suposto como “dado” na cabeça de um homem ocidental moderno!
A Antropologia pós-Lévi-Straussiana já mostrou que a perspectiva dos povos indígenas das Américas difere radicalmente da perspectiva ocidental, sobretudo no tocante à relação entre natureza e cultura. Isso porque tanto os ocidentais modernos quanto os contemporâneos fundamentam, em última instância, sua perspectiva num pressuposto ontológico e epistemológico comum criado pela ciência: o de que existe uma única natureza e múltiplas culturas. Mas essa não é a perspectiva compartilhada pelos povos indígenas nos trópicos americanos. Pois do ponto de vista destes, o mito cria a perspectiva inversa: existe uma única cultura, a cultura humana, e muitas naturezas. Com a palavra o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “Se existe uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, ela é a de um estado original de não-diferenciação entre humanos e animais descrita na mitologia. A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas, antes, a humanidade. A grande divisão mítica não mostra a cultura se distinguindo da natureza, mas, antes, a natureza se distanciando da cultura. Assim os mitos descrevem como os animais perderam os atributos herdados ou preservados pelos humanos. Os humanos são aqueles que continuaram como antes: animais são ex-humanos e humanos não são ex-animais”.
Na perspectiva ameríndia, todos os seres vêem (representam) o mundo da mesma maneira – o que muda é o mundo que eles vêem. Os animais usam as mesmas categorias e valores que os humanos: seus mundos, como os nossos, giram em torno de caçar e pescar, cozinhar e tomar bebidas fermentadas, em torno de primos cruzados e guerra, em torno de ritos de iniciação, chamãs, chefes, espíritos, etc… Mas as coisas que eles vêem são outras: o que é para nós (por exemplo) o sangue, para a onça é cerveja de mandioca. 19. Assim o ponto de vista ameríndio de que há apenas uma cultura e muitas naturezas expressa a existência de uma epistemlogia constante e de uma ontologia variável. Mas, ao contrário do multiculturalismo, do ponto de vista do multinaturalismo, não há representação.
Uma perspectiva animista não pode ser uma representação porque é “uma propriedade da mente ou espírito, enquanto o ponto de vista está localizado no corpo. A habilidade para adotar um ponto de vista é um poder da alma, e não-humanos são sujeitos na medida que têm (ou são) espírito; mas a diferença de pontos de vista… não está situada na alma. Desde que a alma é formalmente idêntica em todas as espécies, ela só pode ver as mesmas coisas em todo lugar – a diferença é dada pela especificidade dos corpos”. E Viveiros continua: “Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos organismos há um plano intermediário que é ocupado pelo corpo como um feixe de afetos e capacidades e que é a origem das perspectivas”. Em suma: “os Ameríndios postulam uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física entre os seres do cosmos, a primeira resultando no animismo e a última no perspectivismo: o espírito ou a alma… integra, enquanto o corpo… diferença”.
As análises de Eduardo Viveiros de Castro são de grande valor para o presente ensaio e precisavam ser longamente citadas porque foram elas que permitiram ao espectador tropical detectar, logo na primeira sala, os problemas conceituais da curadoria de Die Tropen e a procurar entender porque emergia uma sensação muito grande de mal-estar com o modo como se aproximava a arte contemporânea da arte étnica, pressupondo um denominador comum que, em vez de ser considerado como “dado”, deveria ser a própria problemática a ser tratada, caso se quisesse efetivamente confrontar as obras de modo produtivo e discutir as diferentes perspectivas sobre os Trópicos. Ora, à medida que os núcleos temáticos se desdobravam pelas salas, ia ficando evidente que o equívoco só fazia aumentar, pois parecia que eles reiteravam o problema conceitual inicial. Como se os artistas contemporâneos e os “artistas” étnicos fossem todos produtores de metáforas sobre esses mesmos temas, como se pertencessem todos à mesma boa e velha humanidade ocidental universal, ficando a diferença entre suas obras por conta da diversidade de interpretações.
É evidente que não estão em questão, aqui, a qualidade e pertinência das obras contemporâneas selecionadas, nem a excelência e a adequação das obras étnicas escolhidas no acervo do Etnologisches Museum de Berlim, nem a expertise dos curadores desse museu Não se trata, portanto, de um desconhecimento ou de uma simplificação da problemática da arte étnica concebida pela abordagem etnológica, mas do modo como esta última é abandonada em favor de um “visualistic approach” baseado em temas. Também precisa ficar claro que não se defende aqui a idéia de que a abordagem etnológica é intocável e de que toda e qualquer aproximação entre arte contemporânea e “old art”, ou arte étnica, deve ser a priori condenada.
Voltemos então à exposição, e vejamos pelo menos dois exemplos do que no “visualistic approach” adotado suscita incômodo, aos olhos do espectador tropical. Foi pressuposto pela curadoria que a imagem contemporânea e a imagem presentificada no objeto étnico eram equiparáveis, enquanto expressões da relação homem-meio, no núcleo temático que tratava da natureza e da paisagem. Mas como ver num mesmo registro visual e estético a série de fotografias de Candida Höfer sobre os animais tropicais nos zoológicos europeus e o fantástico Elephant Mask of the Kono Society, do Mali? Isso só é possível se encararmos os animais figurados tanto na imagem fotográfica quanto na imagem esculpida como representações simbólicas de animais naturais dos trópicos. Ora, a imagem do animal no zoológico não tem o mesmo estatuto que a máscara de elefante, pois este é um objeto de culto, portanto um objeto transacional, um vetor de acesso e de atualização de potências que, contudo, é visto pela curadoria como uma metáfora de forças míticas e não como a própria presença delas. Assim, tanto o objeto artístico contemporâneo quanto o objeto étnico são reduzidos a um pobre denominador comum, que é a linguagem da representação.
A visão que permite a aproximação e a confrontação, e que fundamenta a apreciação das obras se pretende contemporânea e, num certo sentido, pós-moderna. Como vimos, o próprio texto de apresentação que abre a mostra afirma que as obras assim reunidas o são pela primeira vez. O que significa que o critério que as junta é um critério que recusa ao mesmo tempo o critério formal, picassiano, dos modernos, e o critério de classificação do etnólogo. Tudo se passa, então, como se a curadoria, desinvestindo ao mesmo tempo da função da forma na arte moderna e da função ritual na arte étnica, estabelecesse que a falta de função ou de fundamento outro que não o estético da aproximação pudesse se constituir no próprio solo a partir do qual se pode estabelecer uma articulação inédita. Cabe, então, a pergunta: Que novo sentido emerge dessa articulação? Como ver, por exemplo, a aproximação da tela Sampa, de Beatriz Milhazes, de um cocar do povo indígena Rigbatsa, do Brasil, ou de um Bark Painting, de Papua-Nova Guiné? A pergunta se impõe porque estamos diante de um caso que instiga a reflexão sobre o feixe de ambiguidades que se desdobra.
Antes mesmo de ver Die Tropen, o espectador tropical pudera constatar um fenômeno no mínimo curioso. É que, em Paris, o Musée des Arts Premiers exibia pintura contemporânea dos Aborígenes Australianos como obras de arte étnica, isto é tradicional, muito embora já descontextualizadas da abordagem etnológica; mas, no mesmo momento, a Galerie des Médicis, da Place des Vosges, embora referindo os trabalhos de sua própria exposição às telas do museu, mostrava e punha à venda aboriginal paintings como arte contemporânea, cujo valor estético era paradoxalmente autenticado pelo pensamento mágico e chamânico. Assim, se por um lado o espectador era introduzido no museu às pinturas étnicas criadas por artistas contemporâneos, na galeria estava diante de pinturas contemporâneas criadas por artistas étnicos! Portanto, os artistas aborígenes australianos eram, ao mesmo tempo, étnicos e contemporâneos. Isto posto, voltemos então à tela de Beatriz Milhazes, e à relação que se estabelece entre ela, o cocar indígena e a pintura em casca de árvore.
Se os artistas aborígenes australianos ocupam uma ponta da relação entre o étnico e o contemporâneo no espectro global, a artista brasileira ocupa, seguramente, a outra ponta, caso endossemos o juízo de Madeleine Grynsztejn, atual diretora do Museum of Contemporary Art de Chicago. Com efeito, para ela Milhazes desperta interesse por ser “glocal”, isto é alguém que ancora seu trabalho na linguagem internacional do modernismo e ao mesmo tempo finca suas raízes em seu tempo e sua cultura, misturando “figuração e abstração, e até mesmo decoração e artesanato, com um empreendimento altamente intelectual de abstração formal”.
Talvez, então, a chave de seu sucesso seja precisamente a ambiguidade de sua pintura: é contemporânea étnica ou étnica contemporânea? Na dúvida, e por causa dela, o espectador tropical se pergunta: O que é ser um artista “glocal”? E em que medida este difere do artista global, tal como definido por Hans Belting, isto é aquele que ao mesmo tempo recusa inscrever-se tanto nos parâmetros da arte contemporânea ocidental quanto nos parâmetros de seu outro, a arte étnica? A questão se coloca porque, ao que parece, não estamos diante de uma negação e superação dessa dupla filiação mas, muito ao contrário, de uma reivindicação de pertencimento a ambas. Mas se isto for verdade, só aparentemente o caso de Milhazes significa uma refutação da tese de Belting sobre o advento da arte global; porque, muito ao contrário, o sucesso da artista brasileira reitera o paradoxo por ele apontado quando afirma que a arte global é “um problema não resolvido”, na medida em que se configura como uma arte contemporânea que precisa incluir a representação de todos os “mundos contemporâneos”, e portanto, abandonar seus parâmetros euro-americanos, e ao mesmo tempo, como a vitória de uma arte contemporânea que se faz pós-moderna, pós-histórica e pós-colonial para derrotar toda produção étnica e nivelar qualquer diferença cultural, num processo único de institucionalização. Assim, no “visualistic approach” de Die Tropen, o problema não resolvido da superação não-superação se manifesta quando Sampa, de Milhazes, é aproximado do cocar Rigbatsa e da pintura em casca de árvore da Papua-Nova Guiné porque todos eles visualizariam, antes de tudo, a questão da cor e do movimento. Considerar, porém, as três obras nessa chave, não implicaria em prolongar, e fazer inevitavelmente prevalecer o ponto de vista formal, ocidental e moderno da pintura? Do mesmo modo, aproximar o retrato e a máscara nesse mesmo registro não acabaria fatalmente privilegiando e universalizando as representações ocidentais de indivíduo, de pessoa e até mesmo de humanidade? Por sua vez, o animal documentado pela câmera fotográfica não imporia ao animal mítico da máscara a sua “verdadeira” animalidade “natural” como substrato último de seu modo de ser?
Os artistas contemporâneos, ocidentais ou não-ocidentais, comparecem na exposição com suas obras; os outros são criadores anônimos, individuais ou coletivos, desconhecidos. Só isso já deveria ser objeto de discussão, se pensarmos no que pode implicar a própria condição de artista na criação e na difusão de trabalhos de culturas tão díspares. Basta olhar o folder que acompanha Die Tropen. Ali estão listados todos os artistas contemporâneos convidados, com os quais os outros devem “contracenar”. Não é à toa que muito rapidamente, no decorrer de seu percurso na exposição, o olhar do espectador acaba sendo como que levado a passar superficialmente pelas obras etnológicas para concentrar-se nos vídeos, nas instalações, nas pinturas, nas fotografias contemporâneas. Tal atitude, impensada, mas de certo modo induzida, revela quão pouco problematizadas são as relações entre a arte contemporânea e a arte étnica. Como se esta última servisse de pano de fundo, de ambientação décor para o display das obras dos artistas contemporâneos (por sinal, tanto faz que estes sejam ocidentais ou originários dessa região do mundo, porque se encontram irmanados no mesmo registro, que é o de efetuarem uma “leitura” do universo tropical, enquanto os artistas étnicos supostamente estão ali por “serem” dos Trópicos). Por todas estas razões, o espectador comum talvez saia da exposição confirmado em suas convicções convencionais sobre o Ocidente e seu “outro”. De todo modo, do ponto de vista desenvolvido aqui, a exposição é importante – Die Tropen é um sintoma da dificuldade da nova situação, da necessidade de se explorar novas articulações e da exigência de se pensar novos critérios para a arte. Nesse sentido, mesmo problemática, a exposição ajuda a reflexão.
[1] — Este texto é uma versão modificada do ensaio “How global art transforms ethnic art” do livro “The Global Art World – Audiences, Markets and Museums” editado por Hans Belting e Andrea Buddensieg, publicado por ZKM/Hatje Cantz em 2009
[2] — Disponível em: http://globalartmuseum.de/site/conf_lecture1.
[3] — Parzinger, Hermann. « Words of Welcome ». Hug, Alfons ; Junge, Peter & König, Viola (eds) The Tropics – Views from the Middle of the Globe. Goethe-Institut, Ethnologisches Museum, Staatliche Museen zu Berlin, Bielefeld/Leipzig : Kerber Art Verlag, 2008, p. 8.
[4] — Obrist, H.U. Arte agora! Em 5 Entrevistas, São Paulo: Alameda Editorial, 2006. Tradução de Marcelo Rezende, p. 37.
[5] — HUG, Alfons. The Tropics… Op. cit. p. 15.