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“…o mais importante é inventar o Brasil que nós queremos…”
Darcy Ribeiro
O ponto de partida do ensaio Como a arte global transforma a arte étnica (2009), de Laymert Garcia dos Santos, é a interseção entre o conceito de “arte global” (das relações entre arte contemporânea e arte étnica) de Hans Belting e Andrea Buddensieg, e sua institucionalização – particularmente no que tange aos museus e exposições na Europa nos últimos anos. A exposição Die Tropen (Os Trópicos. Visões do Meio do Globo), com curadoria de Alfons Hug, Peter Junge e Viola Konig, realizada no Martin-Gropius Bau em Berlim no segundo semestre de 2008, é problematizada através de uma lente tropical, um “olhar brasileiro” impactado pelo estopim da crise financeira e as consequentes reconfigurações na geopolítica mundial. Garcia dos Santos apresentou este ensaio na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, em novembro de 2009, no âmbito do Seminário Internacional Depois do Muro: a geopolítica das artes, cuja primeira versão fora publicada na Alemanha no livro The Global Art World – Audiences, Markets and Museums, editado por Hans Belting e Andrea Buddensieg (ZKM/Hatje Cantz, 2009). Ambas as versões foram disponibilizadas no website do fórum internacional geopolítica da cultura e da tecnologia, com curadoria dele e de Gilberto Gil, realizado em novembro de 2010 na Cinemateca Brasileira em São Paulo com apoio do Ministério da Cultura. As instâncias de publicização deste ensaio, junto a seus principais argumentos, nos apresentam indícios importantes dos atuais diagramas e forças em jogo, i.e., do momento de transformação intensa e acelerada que estamos passando no país e no mundo, e suas implicações para a “crítica de arte” no Brasil, a partir da internacionalização das produções artísticas feitas aqui, assim como de sua capacidade de apontar nossas contradições e desafios internos.
Para o autor, a exposição Die Tropen se inscreve num movimento que começou com a exposição Magiciens de la Terre no Centre George Pompidou em 1986, passou pela abertura do Musée des Arts Premiers,Quai Brainly em Paris em 2006, no qual perdura pressupostos conceituais que reificam as convicções convencionais sobre o “ocidente” e seu “outro”. O principal problema conceitual em Die Tropen estaria nos modos de aproximação entre arte étnica e arte contemporânea: ambas são consideradas a partir de um denominador comum inscrito no paradigma da linguagem da representação (um “visualistic approach”) e do caráter atemporal da arte, e igualmente consideradas metáforas de uma natureza que lhes seria comum. Esses pressupostos, ao invés de serem tomados como dados, deveriam ser a própria problemática a ser tratada, caso efetivamente se quisesse confrontar as obras de modo produtivo e discutir as diferentes perspectivas sobre os Trópicos. Como assinala o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, somente o “homem ocidental” consideraria que temos uma natureza comum e múltiplas culturas; na perspectiva ameríndia, existem múltiplas naturezas e uma única cultura. A especificidade do olhar para as artes indígenas implica em não tomar como referência nenhuma definição de arte previamente dada, seja ela estética, interpretativa ou institucional. Como ressalta a antropóloga Els Lagrou, “o lugar que os objetos poderiam ocupar na escala valorativa instaurada pelo mercado das artes e pelos museus não, necessariamente, pertence ao universo das intenções e valores nativos que podem visar a objetivos muito diferentes dos ligados à conquista de visibilidade ou afirmação de identidade e ‘autenticidade’”. [1]
O feixe de ambiguidades se desdobra em “como ver, por exemplo, a aproximação da tela Sampa, de Beatriz Milhazes, de um cocar do povo indígena Rigbatsa, do Brasil, ou de um Bark Painting, de Papua-Nova Guiné? (…) É “como se [a arte étnica] servisse de pano de fundo, de ambientação e décor para o display das obras dos artistas contemporâneos”. A artista brasileira “desperta interesse por ser “glocal”, isto é, alguém que ancora seu trabalho na linguagem internacional do modernismo e ao mesmo tempo finca suas raízes em seu tempo e sua cultura”. Laymert situa, de maneira instigante, que na ponta oposta àquela ocupada por Milhazes – entre o contemporâneo e o étnico nesse espectro global – estariam os artistas aborígenes.
O que nos interessa neste ensaio é atentar para a busca de novos modos de aproximação, para a urgência de se inventar e articular novas matrizes e entendimentos para a arte no/do Brasil: “o que deveria ser levado em conta é que a arte moderna e contemporânea brasileira nunca tentou levar a sério sua não relação com a arte étnica que era e ainda é produzida, porque ela nunca sequer se colocou a questão se os povos indígenas e tradicionais costumavam produzir arte e ainda continuam a fazê-lo”. O autor aposta que “no âmbito do que Belting entende por arte global, o Brasil emerge como um lugar privilegiado para se acompanhar as transformações do que se entende por arte contemporânea e por arte étnica, e a fecundação, ou não, de uma pela outra”.
Nas últimas três décadas, a pintura aborígene contemporânea na Austrália passou a ter boa aceitação no mercado ocidental e nas instituições museológicas, assim como manteve o diálogo com suas tradições ancestrais, acumulando várias camadas de significado. Esta expressão cultural congrega diversos agenciamentos e interesses, às vezes conflitantes, entre os diversos artistas, centros de artes, galeristas, museus, curadores e colecionadores. A antropóloga Ilana Seltzer Goldstein aponta o paradoxo de que o “mesmo país cuja política colonial foi extremamente racista e violenta dê tanto espaço às culturas aborígenes nos museus, crie políticas de fomento às artes indígenas”. (E que este apoio público) “Talvez seja uma tentativa de resposta e compensação por este passado obscuro não tão distante. Ao mesmo tempo, encaixa-se perfeitamente no projeto nacional de construção de uma identidade própria para a Austrália, que a diferencie da Inglaterra”. [2] E questiona por que no Brasil praticamente não existe reconhecimento das artes indígenas, e se seria possível e desejável uma política semelhante se desenvolver entre nós. Noutro sentido, nos países andinos é muito presente o debate sobre estética decolonial [3] – como a proposta por Anibal Quijano, Walter Mignolo, dentre outros – a partir das culturas tradicionais e ancestrais, como condição de crítica e contraposição às modernidades coloniais desde fins do século 15 até a globalização atual.
No Brasil, Garcia dos Santos nos lembra que “arte e cultura brasileiras já haviam tentado elaborar, dentro da matriz moderna ocidental, a sua diferença específica como tropicalidade, através da Antropofagia de Oswald de Andrade, nos anos 20, do tropicalismo, nos anos 60, e do trabalho revolucionário e complexo de Hélio Oiticica, que soube romper com as persistentes oposições arte erudita/arte popular; arte europeia/arte não europeia, arte internacional/ambiente local, etc.” Se a crítica de arte no Brasil teve uma função histórica importante nas construções de “identidades brasileiras” ao longo do século 20, embebida nessa matriz moderna ocidental como modernidade ex-cêntrica [4] , ainda reproduzimos um colonialismo interno (que reproduz o pressuposto do ‘ocidental’ e seu ‘outro’) que assola o país desde o modernismo, com uma suposta centralidade entre Rio de Janeiro e São Paulo.
O discurso da “arte global” e sua institucionalização em museus e mercado são intrínsecos à matriz ocidental, ainda predominante mundialmente, mas desde 2008, com a crise financeira e novas configurações geopolíticas, ocorre uma crise desses paradigmas. Esta crise abre brechas para novas articulações e entendimentos, particularmente para o Brasil? Temos uma grande reunião de repertórios, vivências, observações, ao mesmo tempo em que existe a transformação em algo novo… Essas novas forças externas nos ajudam a rever ou reificam os paradoxos, confusões e deslizes semânticos no Brasil? Nosso modelo de desenvolvimentismo e de progresso a qualquer custo tem solapado as comunidades tradicionais e ancestrais e nossa natureza. É possível um discurso da arte brasileira capaz de formular os problemas e de explicitar as forças atuais em jogo? Que discursos estão presentes? Quais mecanismos estão operando? Quais aparatos críticos nós utilizamos? Que diagramas de alteridade são capazes de enfrentar o mercado? Como articular, aproximar outras matrizes? Como inverter as relações cognitivas?
Em maio de 2011, um jornal paulistano apresentou a primeira e única banda de rap indígena no Brasil, Brô MC’s [5] , do Mato Grosso do Sul. A banda nos ensina, com sua inversão cognitiva, que “esta possibilidade de coexistência e sobreposição de diferentes mundos que não se excluem mutuamente é a lição ainda a ser aprendida com a arte dos ameríndios” [6] , a arte como uma arte de construir mundos.
[1] — LAGROU, Els. Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação, Belo Horizonte: C/Arte, 2009.
[2] — GOLDSTEIN, Ilana Seltzer, Pintura aborígene contemporânea: do sagrado ao mercado, apresentado na 27ª Reunião Brasileira de Antropologia, agosto 2010, Belém, Pará.
[3] — Vide Walter Mignolo, Desobediencia Epistémica, Buenos Aires, Ediciones del Signo. 2010; ed. Walter Mignolo & Árturo Escobar Globalization and the Decolonial Option, Routledge, London & New York 2010; dentre outros.
[4] — Termo de Beatriz Sarlo. In: Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, Buenos Aires: Ariel, 1988
[5] — Ver http://periferiaemmovimento.wordpress.com/2011/05/25/no-estadao-os-pioneiros-do-rap-indigena/
[6] — LAGROU, Els. Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação, Belo Horizonte: C/Arte, 2009.