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PARTE 1
O crescente desenvolvimento daquilo que hoje se conhece por genômica, o estudo do genoma dos organismos, lançou mão de uma série de simplificações para trazer para o debate público noções necessárias a esse desenvolvimento. Talvez a mais difundida seja a de que o DNA serviria como uma receita para a determinação unívoca dos seres vivos, ou seja, que, a partir de nada além do DNA, seria possível reconstruir o organismo do qual ele proveio. Chega a ser comum a ideia de que, por exemplo, poderíamos preservar espécies inteiras da extinção pela simples descrição (ou manutenção) de seus genomas, algo como uma biblioteca para gerações futuras.
Uma quantidade considerável de experimentos mostra que não é bem esse o caso e que, em geral, o genoma não é suficiente para reconstruir um determinado organismo. Em experiências com moscas de fruta, material genético de uma determinada espécie foi substituído em ovos de uma outra, mas, ao contrário do que se esperaria, eclodiram indivíduos que não eram semelhantes aos de nenhuma das duas espécies. [1] Uma analogia possível para o inacreditável resultado seria dizer que implantar DNA de avestruz num ovo de galinha resultaria em um ser que não pode ser identificado nem como um filhote de avestruz nem como um de galinha!
O fenômeno conhecido como fenocópia é ainda mais intrigante. Ocorre quando um mesmo genoma produz organismos diferentes do resultado esperado, em função apenas de variações em condições do ambiente. Os coelhos do Himalaia, por exemplo, quando criados em temperaturas moderadas, tornam-se indistinguíveis de coelhos de outra espécie (a não ser pela comparação direta dos seus genomas). Outro exemplo são novamente as moscas de frutas que, dependendo da dieta recebida durante a fase larval, apresentam características que só são encontradas em exemplares da mesma espécie que têm genoma mutante. [2]
Já no século 19, Gregor Mendel, um dos precursores da genética moderna, arriscava que pelo menos algumas características de alguns seres vivos devessem ser atribuídas a fatores hereditários, algum tipo de informação que deveria estar contida nos organismos. Hoje sabemos que toda a informação genética de todos os seres vivos está codificada em sequências de nucleotídeos de ácidos nucleicos presentes nas suas células (sequências conhecidas como DNA e RNA). Atentar para o fato de que há algum tipo de código (chamado código genético) por meio do qual a informação genética está codificada nas moléculas de DNA e RNA ajuda a entender a irredutibilidade de sua existência – ou seja, o quão inseparáveis eles são de uma série de outros elementos –, bastando traçar uma breve analogia com o funcionamento dos programas de computador.
Os programas que executamos em nossos computadores também são escritos em “códigos”, as linguagens de programação. Essas linguagens são utilizadas pelos programadores para construir os chamados código-fonte dos programas, ou seja, a sequência de instruções que pode levar ao resultado desejado, o funcionamento do programa. Uma vez que o código-fonte foi escrito numa determinada linguagem, ele passa por um processo conhecido como compilação para resultar num programa, que só então pode ser executado pelo computador. Ora, fica claro que manter apenas o código-fonte é insuficiente para garantir a existência de algo que funcione exatamente como o programa que ele descreve. Em primeiro lugar, é necessário manter também as ferramentas que sejam capazes de transformar o código-fonte em programa (os compiladores). Além disso, é necessário manter computadores que possam executar corretamente o programa gerado. Se seguirmos essa linha de raciocínio, veremos que muitos outros elementos podem ser adicionados à lista, desde o conhecimento de um modo de iniciar o programa até a eletricidade com a qual funciona o computador no qual ele é executado. É claro que, como toda analogia, essa última tem defeitos, mas ajuda a dar uma ideia do quão grosseiramente simplificador é acreditar que manter somente um genoma é garantia de que se possa reconstruir exatamente o ser do qual ele proveio. [3]
Dentro das células vivas, a interação entre proteínas e ácidos nucleicos estimula mutuamente a produção de ambos. As proteínas são produzidas a partir da expressão genética, isto é, a tradução de sequências de nucleotídeos de RNA pelo ribossomo em sequências lineares de aminoácidos que, então, são colocadas em formatos específicos num processo chamado conformação. A conformação é a estruturação de um polímero orgânico linear em uma proteína propriamente dita, com uma determinada forma que lhe confere um determinado funcionamento químico. Uma mesma sequência de aminoácidos pode dar origem a duas proteínas diferentes, dependendo de como acontece o processo de conformação, que pode ocorrer espontaneamente ou ser determinado por fatores externos, como, por exemplo, temperatura, radiação ou a presença de outras proteínas catalisadoras (as enzimas).
As proteínas geradas podem ter um papel estrutural, conferindo sustentação a uma estrutura celular.Ou servir como eficientes máquinas químicas, catalisadoras de algumas reações dentro da célula (como as enzimas mencionadas acima). E algumas outras podem ainda servir como algum tipo de sinalizador, permitindo que as células se comuniquem ao realizarem o transporte (envio e recebimento) e representação de informações (mensagens) que induzem reações nas células, mudanças no seu funcionamento. Essas mensagens podem circular não só entre as células, mas também dentro delas. Por meio dessas mensagens internas, uma determinada proteína pode, entre outras coisas, sinalizar a duplicação de uma porção de DNA (ou todo ele) e regular a expressão de determinadas sequências de DNA, levando assim à produção de uma segunda proteína (que pode sinalizar a produção ou conformação de uma terceira, num processo em cascata que até pode ser interrompido pela eventual sintetização de uma proteína que inibe a produção da primeira e termina o processo). [4]
O que é realmente fascinante nas interações entre as proteínas e os ácidos nucleicos é que seus funcionamentos básicos independentes são relativamente simples, mas é só em decorrência dos modos que se relacionam – se comunicando e determinando entre si – que levam ao aparecimento de atividades, respostas e comportamentos incrivelmente complexos, que garantem mutuamente sua manutenção e existência.
Reduções da compreensão da complexidade do funcionamento dos sistemas biológicos introduzem uma hierarquização que não condiz com a dificuldade e rigor necessários para a descrição de processos vitais. O genoma, por exemplo, não pode ser desconectado de uma vasta gama de elementos cujo funcionamento ele determina (e determinam-no), e por isso não pode ser inequivocamente classificado quanto à importância perante esses elementos. [5] A própria biologia e seus modos de estudo e compreensão se viram obrigados a uma reestruturação/adaptação a essa realidade para seguir o projeto de tentativa de compreensão e descrição dos organismos. O início da década de 1990 viu a emergência de uma nova área, a biologia de sistemas, que cresceu e ganhou importância nos últimos anos justamente por pretender uma visão holística dos sistemas biológicos, por meio da qual é capaz de apresentar descrições mais completas e permitir a obtenção de novos e importantes resultados. [6]
Assim, percebe-se que a realidade natural quase que se opõe a uma tendência redutiva e hierarquizante segundo a qual a coleção de descrições autônomas de partes prescindiria a existência do todo como tal. Em alguma medida, é como se a própria realidade não permitisse a possibilidadede entendermos a descrição de algo como substituto da coisa mesma separada dessa realidade.
É apenas com as participações e interações extremamente complexas e interdependentes de proteínas, fatores do meio, DNA e RNA que, num contínuo processo de retroalimentação, se mantém a organização celular, a vida.
PARTE 2
Esta frase é mentira.
Em meados de maio de 1901, ao considerar um complexo problema matemático, Bertrand Russell se confrontou pela primeira vez com uma dificílima contradição. Àquela altura, Russell estava envolvido na monumental tarefa de “criar bases sólidas” para a matemática, por meio do livro que publicaria anos depois, o Principia Mathematica (livro que, em última análise, abriu o caminho que levou à demonstração de que a tarefa não só era monumental, mas impossível). [7] Russell não sabia que sua contradição se tratava de um paradoxo, muito menos um que passaria a ser conhecido por seu nome, o Paradoxo de Russell.
Uma das formulações análogas simplificadas mais populares desse paradoxo é conhecida como Paradoxo do Barbeiro: em Sevilha há uma lei que diz que todos os homens devem sempre estar com suas barbas feitas e que obriga os barbeiros a fazer a barba de todos os homens que não se barbearem a si mesmos, mas a lei só permite que os barbeiros façam a barba dos homens que não se barbearem a si mesmos. Mas em Sevilha só há um barbeiro: ele faz a sua própria barba? Ele só faz sua barba se não a fizer. E não faz se fizer.
Quando começou a pensar no problema (que na formulação de Russell era muito mais complicado do que o do barbeiro), Russell imaginou que poderia resolver a contradição muito facilmente, que deveria haver algum erro trivial em seu pensamento. Mas, gradualmente, ele se deu conta de que não era esse o caso. Logo percebeu que havia uma afinidade entre sua ‘contradição’ e outras já descobertas, como o paradoxo formulado por Eubúlides de Mileto no século 4o a.C., no qual Epimênides de Creta diz que todos os cretenses são mentirosos.
Desfazer a contradição provo-.se um desafio tão grande que, ao final de 1901, Russell já havia desistido de persegui-lo. Foi só nos verões de 1903 e 1904 que ele voltou à tarefa: todas as manhãs, sentava-se frente a uma folha em branco e tentava durante todo o dia, com uma breve pausa para o almoço, resolver o problema; apenas para terminar o dia com a folha ainda em branco. Russell começava a ficar com a impressão de que o resto de sua vida seria consumida olhando uma folha de papel em branco. E se irritava com a aparente trivialidade da contradição e com o tempo gasto com algo que lhe parecia não merecer tanta atenção, mas mesmo assim não conseguia achar uma solução. [8]
Como se trata de um paradoxo, não existe uma solução possível. É claro que podemos apelar para subterfúgios e sugerir que o barbeiro poderia ter sua barba feita, por exemplo, por sua mulher, ou que esse barbeiro não existe, ou não pode existir, ou até que essa história sobre Sevilha não é real. A última opção nos serve, até porque é mesmo verdade, a anedota sobre Sevilha de fato é fictícia, já que foi criada apenas para ilustrar o paradoxo, mas infelizmente não é esse o caso com o problema original de Russell, que é tão real quanto a frase que abre esta seção.
Entre todas as tentativas de “resolver” o paradoxo proposto por Russell, a mais instigante é a última proposição do TractatusLogico.Philosophicus escrito por Ludwig Wittgenstein praticamente ainda nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial e publicado em 1919, ele diz:
“7. Sobre aquilo que não se pode falar, deve.se calar”. [9]
Logo após conhecê-lo em 1911, Russell imaginou que Wittgenstein seria seu sucessor, a pessoa que levaria adiante os problemas filosóficos que ele mesmo já estava cansado de perseguir. Além de ter sido seu professor, Russell foi membro da banca de defesa para obtenção do título de doutor na Universidade de Cambridge em 1929, para a qual Wittgenstein apresentou o próprio Tractatus. Russell era um grande admirador de Wittgenstein, chegando até a considerá-lo um “verdadeiro gênio”, mas quando sua tese de doutorado foi aprovada, ele comentou que sabia que os examinadores nunca entenderiam o livro. Era um desentendimento que já vinha desde a publicação da versão inglesa do livro em 1922, cuja introdução escrita por Russell não era vista com bons olhos por Wittgenstein, mas que, ao contrário, foi muito bem recebida pelos editores que publicariam o livro (que só se comprometeram a fazê-lo após Russell ter garantido que escreveria tal introdução). [10]
Essa reação adversa é similar à que Wittgenstein teve em relação ao modo como os membros do Círculo de Viena se apropriaram somente das proposições iniciais de seu livro para direcionar as doutrinas do Positivismo Lógico: justificaram descartar as proposições finais por serem “confusas”, o que Wittgenstein tacharia de completa incapacidade de “entender as últimas frases e, portanto, a concepção fundamental de todo o livro”, conforme comenta numa carta enviada a Moritz Schlick em agosto de 1932. [11] É justamente numa dessas proposições finais, mais exatamente na penúltima, que se encontra a afirmação de que as elucidações do livro servem a quem as entender apenas como degraus de uma escada que, após ter sido escalada, deve ser jogada fora. [12]
No prefácio do Tractatus, Wittgenstein afirma que o livro trata de problemas filosóficos e que “a formulação desses problemas repousa sobre o mau entendimento da lógica de nossa linguagem”. Ao longo do livro (e principalmente das muitas interpretações a que foi submetido) torna-se mais e mais complexa a tarefa de extrair um sentido único, uma leitura coesa ou consensual das proposições. De qualquer forma, o que importa aqui é a possibilidade de ler em Wittgenstein a oposição à insistência em usar uma linguagem para tratar de algo que ela não pode tratar, ou que ela não foi concebida para tratar – a começar por tratar dela mesma.
Assim, o Paradoxo de Russell só se torna um problema pelo “mau uso” que Russell faz da linguagem que estuda; ao virá-la sobre ela mesma, ele cria o seu próprio problema, e mais, limitado por essa linguagem (sua formulação), ele não tem alternativa senão calar-se (o que é o mesmo que admitir que seu problema é um paradoxo). E mais, o problema se resolve com a compreensão de que basta enunciá-lo e, por meio dessa enunciação, perceber que não é um problema (ainda que se torne um).
PARTE 3
É notável na bibliografia recente da arte contemporânea o crescente interesse pela discussão sobre a situação da crítica de arte. [13] No extenso necrológio dito pós-moderno, parece que se prepara o terreno para a soma de um “fim da crítica” aos já declarados (e tão refutados) “fim da história”, “fim da arte”, “fim das utopias” e tantos outros “fins”.
Nas tentativas de gerar alguma reação a esse prospecto sombrio (e mórbido), a operação usual é colocar a própria crítica sub judice, e assim tentar encontrar nela mesma e por ela mesma os motivos de seu fracasso aparente.
No entanto, essa autorreflexividade da crítica acaba por gerar critérios que não encontram aplicação. São perfeitamente válidos, muitas vezes claros e bem enunciados, mas ninguém sabe exatamente “o que fazer com eles”. [14] Signos se amontoam sobre signos, e a distância crescente de um referencial causa uma imobilidade, que se tenta tratar com a produção de ainda mais signos, e assim sucessivamente.
Nessas tentativas, muitas vezes se supõe implicitamente que as relações existentes (ou que talvez tenham existido) entre crítica de arte e a arte propriamente dita foram superadas. Assim, a complexidade da interdependência característica e determinante – se não necessária – dessa relação é descartada. As partes se separam e são separadas como se autonomamente pudessem garantir o todo (ou, pelo menos, suas respectivas inteligibilidades e razões de ser).
De qualquer modo, talvez pelo ensimesmamento da crítica, detecta-se que a perda da capacidade de propor critérios e a impossibilidade de permitir a criação de julgamentos levaram à proeminência de pelo menos três modos despolitizantes de interação não só da crítica com a arte, mas também dos sujeitos entre si e com o mundo.
O primeiro modo pode ser classificado genericamente como ignorar. Tendo em vista a potência do pensamento publicitário, já não parece existir escapatória da máxima “falem mal, mas falem de mim”, que pode servir como emblema do ignorar. É a partir desse mote que é possível determinar por que o ignorar – entendido como a reação mais criticamente negativa (ou ‘eficaz’) que se pode assumir, ou seja, que implica que criticar resume-se a simplesmente não mencionar, não falar nada a respeito, fingir que não existe, não emitir absolutamente nenhuma opinião (pública), relegar ao silêncio. Pode ainda ser associado com a generalizada (e um pouco inexplicável quando analisada friamente, a menos que se invoque a questionável lógica da produtividade) “falta de tempo” a que se costuma recorrer como justificativa para ignorar. Nessa mesma chave, um modo mais agressivo de ignorar é o que se acopla com a “falta de tempo”, e rotula como “chato” ou “enfadonho” aquilo que só pode, nesse entendimento, ser uma “perda de tempo”. Ignorar também é uma maneira de não encarar, não enfrentar, não se colocar diante. Por isso, ignorar ocorre de modo ainda mais potente, ainda que talvez não à primeira vista, quando há total falta de posicionamento, a completa indefinição ou impossibilidade de acessar uma postura. Em geral motivada pela procura por evitar deparar-se com algo (problemático), escolhe-se impossibilitar esse confronto: “depois falamos”, “amanhã respondo”, “agora estou ocupado”, e assim por diante. Por vezes, tudo ocorre como se não houvesse problema, mas na medida em que decisões são tomadas, nota-se implicitamente que se tratava de uma estratégia deliberada para “evitar desgastes” (e, claro, a “perda de tempo”).
O segundo modo também é bastante agressivo, mas já no sentido verdadeiramente bélico, pois nele toma-se como partido para a ação a hostilização propriamente. Isso é dizer que o confronto não é evitado como tal, mas sim encaminhado para uma luta, um combate, um choque, uma briga; designaremos esse modo conflito. É curioso notar que esse procedimento mostra similaridades com o primeiro, já que costuma ocorrer de forma que o assunto original se dissolve à medida que crescem as hostilidades envolvidas, o que não se pode separar de uma estratégia implícita, ou seja, a dissolução como suposta forma de superar o confronto inicial. Esse modo se manifesta, por exemplo, sob a denominação de “polêmica”, que tanto tem conferido à mídia e à crítica cultural jornalística sua visibilidade (e, claro, seu tão desejado rendimento), levando a que seja ativamente desejada por alguns escritores (o objetivo torna.se, de antemão, a produção da “polêmica”, por mais artificial que possa ser). Sob essa ótica, “a polêmica” é então uma forma de transformar uma determinada interação, que poderia ocorrer no plano do confronto de ideias, em uma briga pública onde argumentos se embaralham, novamente perdem sua origem e, não raro, voltam-se para aspectos privados dos envolvidos. Outra vez, é notável a conexão com o modo anterior, mas aqui na medida em que “a polêmica” pode ser desejável aos envolvidos ao conferir-lhes visibilidade (daí a impressão de “maior eficácia” do modo ignorar perante o conflito).
O terceiro modo, se é que a essa altura ainda possamos assinalar uma distinção tão clara entre eles, é o mais sutil e também maquiavélico dos três e ocorre simplesmente por meio da incorporação irrestrita, acrítica.
Na maneira como se entende hoje, trata-se de “tolerar” qualquer coisa, é o vale-tudo. Não só se permite tudo, mas cobra-se que se permita a igual validade de tudo (pelo menos explicitamente). [15] É uma atitude que pode ser facilmente associada com a classificação de algo como “interessante” e nada mais, sendo esse o adjetivo característico da (suposta) neutralidade crítica. Mais uma vez, há conexões com os dois primeiros modos: é impossível incorporar tudo sem ignorar algo, mesmo que num ato involuntário de coerência; só é possível aceitar quaisquer coisas se o sentido essencial de cada uma delas for dissolvido e, por vezes, a atenção se deslocar para um desentendimento pessoal, um conflito, uma briga (afinal, como vimos, “a polêmica” confere visibilidade e assim também incorpora).É importante notar naquele que incorpora a sua própria recusa a uma posição (que certamente dificultaria a incorporação generalizada), mas que nem sempre isso é sinal de que ela
não exista, mas sim que ela não se explicita ou não pode se explicitar. O incorporador é amorfo, indefinível, sem identidade ou sem projeto; por isso é capaz de aceitar para si qualquer definição, incorporar qualquer forma, qualquer identidade ou projeto, sem correr o risco de criar antagonismos. Essa incorporação generalizada pode ser ligada a compreensões paradoxais de algumas categorias de atividades socioeconômicas contemporâneas. Um exemplo seria a condição de individualidade massificada que experienciamos ao desempenhar simultaneamente os papeis de consumidores e produtores (quando consumir é uma forma de produzir e vice-versa); uma experiência levada às consequências mais drásticas pelas redes sociais na internet, onde cada um dos usuários se percebe e é percebido como único, mas ao mesmo tempo todos atuam como uma grande massa indistinta sob a mesma estrutura supostamente invisível; todos mostrados diferentes entre si, mas das mesmas formas, todos “igualmente diferentes”. Outro exemplo é a noção trivial de liberdade, que se refere muito mais à possibilidade objetiva e dada de “se fazer qualquer coisa” (ou melhor, “ter qualquer coisa”), em vez da manutenção da tentativa de garantir que se dê de um modo inteligível o exercício daquilo que se concebe de modo subjetivo que se quer exercer. Assim, é como se as entidades sociais fossem descategorizadas, igualadas para que não exista nem mesmo a possibilidade semântica de hostilizá-lo ou (pior!) embate de ideias divergentes – daí o incômodo causado pela tirania do “politicamente correto”, mais uma manifestação de tentativas de incorporar, que opera nas próprias bases da comunicação.
Agora, não cabe aqui buscar uma genealogia desses três modos de interação. Ainda assim, mais do que (e por meio de) uma tipologia deles, coloca-se uma reflexão sobre o papel da autocrítica na determinação da crítica de arte como tal. Quais reduções, hierarquizações e contradições estão implicadas nos procedimentos autorreferentes característicos dessas autoavaliações? De que modo esses processos de feedback realmente retroalimentam a crítica de arte, inclusive para a constituição dela? Ou ainda: como operam os enunciados autocríticos no (re)desenho das relações – uns com os outros e em si mesmos – de campos como crítica, arte, inteligibilidade, subjetividade e assim por diante?
[1] — Como exemplo sugere-se a descrição de uma dessas experiências que se encontra no artigo P. Santamaria, “Transplantation of Nuclei between Eggs of Different Species of Drosophila”, Wilhelm Rouxs Arch. Dev. Biol. 178, 1975, pp. 89-98.
[2] — Para uma introdução à fenocópia, ver a discussão apresentada em http://8e.devbio.com/article.php?id=213 (em inglês).
[3] — Mesmo sendo uma analogia com falhas, um fato concreto é adequado a este contexto: a grande dificuldade de preservação da arte eletrônica, relatada em Augusto Paim, “Um lugar para as velhas novas mídias”, em Continuum, março/abril 2009 (São Paulo: Itaú Cultural, 2009). Disponível em http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2720&cd_materia=857.
[4] — Uma explicação detalhada dos processos celulares encontra-se em Bruce Alberts et al., “Molecular BiologyoftheCell” (Nova York: Garland Science, 1994).
[5] — Esse e outros problemas correlatos são abordados com mais profundidade em Richard Lewontin, “The Triple Helix: Gene, Organism, and Environment” (Londres: Harvard UniversityPress, 2000).
[6] — Ver, por exemplo, a descrição resumida do que se entende por biologia de sistemas em http://www.systemsbiology.org/Intro_to_ISB_and_Systems_Biology/Systems_Biology_.._the_21st_Century_Science (em inglês).
[7] — Sobre qual era a tarefa e como os três volumes do Principia Mathematica, que Russell escreveu com Alfred North Whitehead, possibilitaram os resultados obtidos por Kurt Godel, ver a explicação desses resultados em Ernest Nagel e James R. Newman, A prova de Godel (São Paulo: Editora Perspectiva, 2001). Para uma introdução ao problema do reducionismo na matemática, ver os dois primeiros parágrafos – ainda que eles levem seu autor a conclusões duvidosas – do ensaio de Freeman Dyson, “The Scientist as Rebel”, The American Mathematical Monthly, vol. 103, no. 9, 1996, pp. 800-805.
[8] — Um breve histórico do Paradoxo de Russell, formulações análogas alternativas e uma vasta seleção de outros paradoxos encontram-se em Patrick Hughes e George Brecht, Vicious Circles and Infinity – An Anthology of Paradoxes (Grã-Bretanha: Penguin, 1979). Um histórico mais detalhado e técnico está em http://plato.stanford.edu/entries/russell.paradox/ (em inglês) e nas referências que cita.
[9] — Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico. Philosophicus, tradução, notas e ensaio introdutório de Luiz Henrique L. Santos, introdução de Bertrand Russell (São Paulo: Edusp, 2001).
[10] — A relação de Russell e Wittgenstein é tratada com detalhes em Nicholas Griffin (ed.), The Cambridge Companion to Bertrand Russell (Cambridge: Cambridge University Press, 2003). E também, ainda que panoramicamente, em http://en.wikipedia.org/wiki/Ludwig_Wittgenstein (em inglês).
[11] — Sobre a recepção do Círculo de Viena ao livro de Wittgenstein e à carta citada, ver a discussão e referências mencionadas em Roger Foster, Adorno – The Recovery of Experience (Nova York: State University of New York Press, 2007), p. 35.
[12] — Discussões sobre essa passagem podem ser encontradas em diferentes referências, como em Nikolay Milkov, “The Method
of the Tractatus”, em Pre-Proceedings of the 26thInternational Wittgenstein Symposium. Austrian Ludwig Wittgenstein Society, Kirchberg am Wechsel, 2003, pp. 239-241, que problematiza as posições expostas em J. Conant, “The Method of the Tractatus”, em Erich H. Reck (ed.), From Frege to Wittgenstein: Perspectives on Early Analytic Philosophy (Oxford: Oxford University Press, 2002), pp. 374-462.
[13] — Ver a introdução e referências em Michael Schreyach, “The Recovery of Criticism”, em James Elkins e Michael Newman (eds.), The State of Art Criticism (Nova York: Routledge, 2008).
[14] — Conforme colocado em Mark Bauerlein, “A Commentary on the First Roundtable”, em Elkins, op. cit.
[15] — Algumas conexões entre tolerância, “vale-tudo” e incorporação acrítica e apolítica são exploradas por Slavoj Zizek na palestra “Fear Thy Neighbour as Thyself: Antinomies of Tolerant Reason”, proferida no The Institute for Human Sciences at Boston University em 26 de novembro de 2007, cujo registro em vídeo está disponível em http://www.bu.edu/buniverse/buniverse1/?id=141 (em inglês) e também em http://www.youtube.com/watch?v=K5WNcRoCXCM (em inglês).