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Um sonho recorrente: estou dentro de uma sala grande (talvez mais de uma) com várias instalações de Rivane Neuenschwander e vejo alguém pisando em sua grande área retangular de talco varrido (Lugar-comum é o título desse trabalho). Peço (gentilmente) para a pessoa recuar e prestar mais atenção. De repente, atentados pipocam por todos os lados: indivíduos se apóiam na parede que exibe fitas adesivas horizontais; tropeços acabam dispersando os montículos de pimenta-do-reino que pontuavam o espaço (Attachment); bacias e copos sofrem esbarros, derramando seus líquidos (Continente). Dirijo-me a cada pessoa, explicando a natureza da obra e exigindo mais cautela. Ninguém me dá ouvidos. A situação escapa de meu controle; a exposição desaba. Levo o relato dessa falta de tino do público em relação ao trabalho da artista e eis a resposta que me chega: “É assim mesmo. A vida faz parte. Esta é a medida do trabalho”. E Rivane continua conversando tranqüilamente com seus convidados.
Analisar o conjunto de imagens acima evocado me serve para tratar das diferentes participações, colaborações e parcerias que estão na base da produção criativa da artista. Para uma primeira camada de interpretação daquele sonho, conservo a sensação de que os visitantes da exposição estão presentes no recinto, mas que esse comparecimento é também sinônimo de ausência de clareza. Já não é novidade emitir qualquer observação relativa à tênue visibilidade das pesquisas contínuas de Rivane. É preciso avançar agora e dizer que fazemos parte da ressonância dessa “obra”, do aumento de suas capacidades, venha ela a desabar ou não, e que somos integrados em seu cálculo.
O sonho se desenvolve sob a égide de um encontro mundano, mas mostra tipos de comportamentos diferenciados. Há aqueles que desmancham a forma de um trabalho, passando longe da sutileza de sua existência; e há também aqueles que, ao trazerem e levarem sujeira para dentro e para fora da sala, ignoram o quanto essa ação é bem-vinda. É o caso da instalação (Andando em círculos), de assombrosa simplicidade: a percepção que temos dela cresce à medida que andamos pelo chão e que partículas vêm se acumular sobre inusitadas circunferências de substância adesiva, enegrecendo o pavimento da galeria. O problema é que quando o desenho dessa borra vem à tona, surge a dúvida se esse novo corpo “faz parte”;se uma manifestação tão irrelevante “pertence ou não pertence” a uma vontade artística. [1] Rivane raciocina em termos de conjuntos e os ordena obtendo uma intersecção, seja ela aposto ou complemento. A exigência semântica está sempre presente, como atestou a organização espacial da mostra no Palais de Tokyo, onde divisas amarelas abriam fronteiras virtuais tal qual um livro com páginas alçadas à escala arquitetônica (Capítulos). É como se, para ela, as coisas fossem mudas ou transparentes – até o momento em que nossas ações sobre elas as extraíssem do fluxo do indeterminado. Nesse cômputo, a menor quantidade, ainda que seja pó, é de enorme valia para a redefinição da riqueza. E por onde passa a teoria do valor na economia artística?
A questão do valor, quando transposta para o comércio da arte, sempre esteve fora de dois critérios de grandeza fundamentais para o tratamento conceitual da mercadoria: seja o custo dos materiais utilizados, seja o tempo dedicado para a fatura da obra. No entanto, é comum ouvir que a arte carrega em si um certo grau de “humanidade”. E agora que um “outro”, muitos até, são chamados a cooperar, essa absorção de uma força de colaboração não indicaria o uso de um capital subjetivo, imaterial digamos? O outro dá suporte para que as proposições de Rivane possam se desenvolver, mesmo que não mobilizem diretamente uma ação social ou a transformação existencial do indivíduo. Nesse modo de produção, a participação nem sempre se manifesta como voluntária, o que não a impede de ser ativa, conforme atesta a emergência de Andando em círculos. Um programa que teria uma finalidade sem fim, talvez esta seja a medida da presente prática artística: alterar percepções e costumes efetuando giros de baixa intensidade, de poucos artifícios. O outro entra com sua competência particular, uma prática da ordem do drive, sem que isso o torne um artista. Ao artista, efetivamente, continua cabendo a responsabilidade da forma, ou da “edição”, do material bruto.
O sonho fala de dois tipos de demolição, uma advinda de fora, súbita e avassaladora, e outra, na boca da artista, mais lenta e fosca, entrópica. Vejo-me na condição de sentinela, cuidando para impedir os “estragos” causados por essas duas forças, enquanto a autora da obra demonstra o mais completo desapego. Uma vez que não acredito numa suposta insignificância do fazer artístico, devo estabelecer uma correspondência entre os signos desse sonho e o plano da realidade.
Sabe-se que uma exposição de arte (de objetos, de sentimentos, de ideias) requer o zelo de um vigilante. Rivane intui, além dos conceitos de frágil e perecível, tantas vezes mencionados em textos anteriores sobre ela, que a responsabilidade abarca outros compromissos que a forma. O problema do público passa por uma necessidade de cuidados. Sem manutenção, a produção do homem desmorona. [2] A montagem de Chove chuva só é exeqüível se houver um gerenciamento da instalação, isto é, alguém, com disponibilidade, a quem é transferida a tarefa de passar a água dos baldes inferiores para os baldes suspensos a fim de que o processo de gotejamento possa cumprir seu ciclo. A tentativa de “proteger” o trabalho de uma ruína, material e moral, não deixa de ser uma espécie de dispêndio ou de doação. Por isso, sustento que essa modalidade de participação há de ser inserida numa “política da amizade”.
A afirmação “a vida faz parte do trabalho” anuncia a chance de minar a mercantilização que rege as trocas da sociedade. Rivane explora um regime refratário ao sistema monetário e à chancela da assinatura do artista bem-sucedido. Cooperamos para que ela exista e exiba uma coletividade (Eu desejo seu desejo). Foi assim com Ici là-bas aqui acolá e com Imprópria paisagem, dois trabalhos que literalmente não poderiam ter acontecido não fosse o empenho de muitos participantes. Dessa maneira, a artista põe em prática uma sentença conhecida da cultura brasileira: “Só me interessa o que não é meu”. [3] Para a autoria ser múltipla, sem ostentar um nome próprio, foi preciso induzir o trabalho alheio (recolher do bar, dar festas); alguns itens foram comprados pelo preço de uma bagatela corroborando o sentido de valor agregado.
A discussão do circuito e do mercado de arte – que nos lembra, sem dúvida, os dispositivos acionados por Cildo Meireles nos anos 70 – conta com instruções e inserções dirigidas. Mas, para Rivane, tirar partido da pluralidade desse “fora” significa absorver também sua subjetividade. Ici là-bas aqui acolá consiste em desenhar de memória um monumento ausente (a Torre Eiffel). Cada um nutre “sua” torre e devolve uma imagem; esta, para participar da mostra, foi selecionada sem indultos em meio a um certame de representações imprevisíveis. Ponto de vista trata de uma questão vizinha: aventa a possibilidade de estar entre quatro paredes e apagar uma construção situada na parte externa mediante um ajuste muito fino da posição do espectador (Ponto de vista – St. Mark’s Episcopal Cathedral, Minneapolis); Esculturas involuntárias são speech acts de contribuintes entregues a suas manias manuais, que percebem que o inconsciente acaba vazando e que o menor monólogo pode ser socializado – Esculturas involuntárias (atos de fala) –; em Sob medida, dispositivo inteligente que inventou uma parede inexistente no espaço do museu a partir de uma rampa de acesso ao mezanino, as pessoas tiveram a experiência de testar sua escala na exposição realizada no Museu de Arte da Pampulha, Belo Horizonte.
E qual a reciprocidade, o troco, para essa gente toda que participa? As “esculturas involuntárias” foram uma vez expostas com suas respectivas autorias (ArtPace Foundation, San Antonio); as marinhas de Imprópria paisagem são devolvidas a seus pintores “amadores” com o carimbo de participação na exposição de alguém que conquistou o trânsito institucional. Caberia lembrar o quanto a marinha pode emblematizar a ocupação sem compromisso do “pintor de domingo” que pinta por hobby, enquanto o nome Rivane Neuenschwander já é em si um capital, pelo calor simbólico conferido ao prestígio de sua carreira. Outro “passatempo” é a limpeza da casa que inspirou O trabalho dos dias. Esse “trabalho”, entendido aqui na dupla acepção da palavra (de atividade e de obra), foi construído a partir de uma coleta de poeira de sua residência em Londres. Módulos de plástico auto-adesivo aspiraram nesse caminho toda sorte de dejetos que ganharam uma configuração espacial em São Paulo, na Bienal de 1998. Decerto, sem alguém passando o mundo a limpo e sem um outro valorando-o, sem o propalado processo civilizatório e sem freqüentes temporadas no estrangeiro, não haveria circulação de linguagem. Isto se evidencia em Palavras cruzadas, quando pessoas andam entre caixas de papelão desdobradas (de transporte), pegando laranjas e toranjas com letras cavadas a fim de formar vocábulos em duas línguas (alemão e português). Rivane encarna muito mais a figura de Ulisses (um “apátrida” com residências em vários lugares) do que a de Penélope: o estorvo da exterioridade lhe serve para sua auto-constituição como sujeito.
Ainda no âmbito do sonho, há uma mensagem camuflada que interessa amplificar: de que a prática artística hospeda potências chamadas de “afeto”. [4] A maioria das obras depende da implicação pessoal de colaboradores que Rivane consegue mobilizar sem nenhum outro capital que a motivação gerada por seu trabalho. Na realidade, seria mais exato compreendê-los como uma divisão de sua empresa, embora não sejam qualificados como artesãos ou operários (para evitar a longínqua referência das oficinas do Renascimento). Parte do serviço dela consiste em coordenar indivíduos que lhe emprestam de sua energia vital, um eufemismo da ciência biológica para não nomear diretamente o desejo. Subordinados a suas instruções, os cooperantes colocam suas competências à disposição e assim o trabalho de um vai nutrindo o de outro. [5] Transplantada na organização política e econômica da sociedade, Rivane Neuenschwander encarnaria a figura exemplar do novo trabalhador. O que isso significa?
Quando convergem a atividade pessoal e a produção de subjetividade, faculdades expressivas e afetivas, será ainda lícito usar a palavra “trabalho”? na origem dessa trajetória, ainda era possível localizar resquícios do romantismo, em querer pôr diretamente a mão na massa e em, graças a um saber-fazer, dar as costas aos efeitos da alienação. Como na cozinha oriental em que tudo é confeccionado um a um, eram inicialmente gestos pequenos e precisos: queimar com incenso tipos diversos de materiais (raiz chinesa, papel-arroz, organza de nylon); fixar formigas com durex; descascar cabeças de alho; aspirar a sujeira ambiental; raspar pratos de porcelana cobertos de polpa de tomate; amaciar sabão de coco e bacia com óleo de girassol; reunir e colar ora flores secas, ora sementes naturais, ora xaxim e cocô de lesmas; inventar um alfabeto de temperos; varrer muito chão…
Se, na acepção marxista, o sujeito que governa suas ações automaticamente salva a dignidade de sua consciência, o que dizer quando essa ação se torna repetição? Como pensar o trabalho livre no limite da neurose? Nas instalações de Rivane, a figura do “um” não existe sem o conceito de “diferença”. Uma letra, uma bola, um país ou uma lesma, nada se basta isoladamente. Há, portanto, um coletivo de saída, um pensamento de espécie, que invalida a terminologia de “série”. Enxergar funções (descascar, colar, amaciar, comprar, reunir, apagar, pintar), ou estabelecer classificações por materiais (orgânicos, industriais), é um julgamento sem erro. Ora, ao contrário do colecionismo, que marca boa parte das estratégias artísticas e onde cada unidade se cristaliza em fetiche, aqui a instabilidade do resultado é determinante para permitir um acesso a uma noção de valor conjugado à temporalidade da vida. Explica-se: não é a espera do colecionar, mas é um trabalhar catando, e catar significa tempo para a observação, a procura e o encontro – catar jabuticaba, cogumelo, morangos, piolho, arroz, feijão, amoras, siri. Qualquer preço para essa alegria seria exorbitante, e então, como ficamos?
Talvez o melhor trabalho para responder a essa pergunta seja _ _ _ _ _ _ _ _ _ (Product of). Rivane escolhe um objeto que prima por seu conteúdo mercadológico, as sacas que transportam grãos de bens alimentícios em geral, e desloca a riqueza material para a imaterial. O exemplo é agudo para falar de vida (a fome) e de política (má distribuição de alimentos e cultivo de transgênicos). Matérias-primas saem de um lugar para outro e passam pela metamorfose do capital. Essas sacolas de mercado (provenientes de Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo) foram convertidas em economia artística: apagar com solvente toda informação impressa, preservando apenas a logomarca ou estampa; pintar com pincel e tinta especial por cima de cada estampa, respeitando as cores originais e o campo onde ficava o texto. É possível aproximar esse trabalho ao procedimento usado para fazer as bandeiras de Globos, em que cada bola virou uma representação nacional por meio de uma interferência em pintura vinílica e fita adesiva.
Onde começaria o território do outro? Um primeiro redige a missiva; um segundo responde; um terceiro desconstrói e embaralha os papéis de remetente e destinatário, origem e fim. Depois, passa-se para outros corpos. No filme Love Lettering, a função de conduzir a seqüência desses fragmentos de correspondência foi delegada a peixes dentro de um aquário. É um recarregamento de sentido, uma vez que seu vai-e-vem havia sido interrompido e que a câmera acompanha o andar desse novo fluxo. Os peixes, com isso, não são meros suportes, mas agentes de fato; eles têm uma competência clara, a capacidade de introduzir uma aleatoriedade externa à vontade artística de Rivane. Esses pequenos animais aquáticos emprestam suas nadadeiras para serviços de comunicação. No final, o espectador assiste a uma troca fictícia, que ninguém descreveu, à qual mensageiros autônomos, mesmo que inconscientes de sua missão, devolveram uma sintaxe possível. Um pouco dessa tática será encontrado mais adiante com as Traduções gastronômicas.
Rivane pegou no ar uma necessidade de participação, traduzida por outros protagonistas da cena em coletivos de artistas. Como atender à demanda do não-artista de escapar de sua condição de homem comum? Como fazê-lo sentir-se parte integrante de uma troca, como mobilizar seu imaginário e tantos desejos não-formulados? A luta contra a contemplação pura e simples do espectador, assim como a utopia de dissolver a distância entre a vida e a arte, encontram agora uma formulação tangível: as práticas, sendo disseminadas entre muitos colaboradores, permitem que o conhecimento dos indivíduos em relação ao funcionamento da arte se amplie e se des-idealize. Não há nada mais retroativo nesse sentido que as “receitas” secretas, as técnicas não abertas à comunidade.
Em suma, por que a servidão voluntária funciona nesse tipo de proposição? Qual a remuneração para o fascínio de integrar o trabalho do outro? Como pagar aqueles que emprestam um pouco de sua subjetividade para desenhar uma Torre Eiffel ou pintar uma marinha, atraídos pelo sonho do outro? O que significa, no mesmo registro de encomenda ou de despacho, um chef (um Exu?) interpretar uma lista de supermercado? Para a realização de Traduções gastronômicas, a lista foi escrita num país, os ingredientes comprados em outro continente, e comeu-se um trivial versado em outra língua. Como as lesmas de Carta faminta, os comensais são agentes formais do trabalho. Sobretudo, passam a constituir-comunidade. Não importa sua escala, pois ela não tem hierarquia, não importa seu poder, mas sua potência, é a comunidade dos “lado a lado”, dos que partilham os mesmos mantimentos, numa composição sempre diferente. Assim como em Oliveira, encomenda específica em torno da árvore do jardim, para um amigo, o cunhado e a irmã. Eles usufruíram de sua sombra para escrever desejos em tiras de papel e foram adornando-a. A moeda não faz mais a troca e a digestão será de cada um. Talvez isso nos garanta alguns anos de vivência num espaço simultaneamente público e estético…
[1] — Extraída da linguagem matemática, a expressão “pertence / não pertence” dá título a fotografias de besouros presos entre bolhas (2000). Esse trabalho com círculos cheios e transparentes questiona a existência do conjunto vazio.
[2] — Este eco nos vem de Paul Ricoeur: “Onde há poder, há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade. Quanto a mim, tenderia mesmo a dizer que o objeto da responsabilidade é o frágil, o perecível que nos requer, porque o frágil está, de algum modo, confiado a nossa guarda, entregue ao nosso cuidado”.
[3] — “… lei do homem, lei do antropófago.” Cf. Oswald de Andrade em: Manifesto Antropófago (1928).
[4] — O conteúdo latente desse sonho tornou-se mais claro para mim com o auxílio do texto “Valor e afeto” de Toni Negri, publicado em Exílio (São Paulo: Iluminuras, 2001). Cito o seguinte trecho: “A vida afetiva se torna, portanto, uma das expressões da ferramenta de trabalho encarnada dentro do corpo. Isso significa que o trabalho, da maneira pela qual se exprime hoje, não é apenas produtor de riquezas, mas também, e sobretudo, de linguagens que produzem essas riquezas, as interpretam e delas desfrutam. Essas linguagens são tão racionais quanto afetivas. E tudo isso tem importantes conseqüências na definição dos sujeitos” (p. 28).
[5] — Entre as palavras “cooperador” e “cooperante”, escolhi esta última para acrescentar ao texto o sentido do estrangeiro que prestava auxílio com seu trabalho nas ex-colônias, após sua independência.