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Imagem1: No tempo que se chama presente a personagem 1 reencontra uma caixa de madeira que contém uma carta e um diário.
Imagem2: Da primeira leitura da carta e do diário ao tempo q u e se chama presente passaram-se 48 anos.
Imagem3: A carta e o diário foram escritos pela personagem 2.
Imagem4: O diário discorre sobre momentos que a personagem 2 viveu com a personagem 3.
Imagem5: Na mesma época da primeira leitura, a personagem 1 escreve uma carta para a personagem 2.
Imagem6: A personagem 2 dá suas últimas notícias através de um bilhete trazido por um personagem 4.
O tempo sem esquinas
Cinquenta anos depois, reexperimentou os acontecimentos guardados numa pequena caixa de madeira muito simples. Era grande o suficiente para abrigar uma carta de uma página e um diário de bolso. A carta trazia a presença de quem havia sumido, sem deixar rastros; a não ser aqueles feitos das próprias lágrimas. Ela foi embora de súbito, sem aviso. Em poucas palavras, a amiga mandava notícias de onde estava num tom de serenidade. No diário, entre outras muitas anotações, discorria sobre a experiência de seus últimos dias no Brasil, especificamente em São Paulo.
Não era de estranhar que ela tivesse resolvido lhe escrever à beira de uma nova Bienal. Continuava preocupada em alertar o quanto a vida contemporânea – à despeito da vontade de uns poucos – acontecia por um sistema perverso que opera na esfera cultural (re)produzindo toda espécie de transe. Já não lhe interessava o embate, mas se resguardar daquilo que compreendia ser uma completa desfortuna da vida política. Por excesso de zelo com o trabalho da amiga que havia deixado em sua rotina pacífica, e sobretudo por amizade, colocou-a a par de suas reflexões sobre o assunto durante os anos nos quais esteve ausente.
Embora a carta tivesse postagem da Colômbia, mencionou rapidamente que estava em trânsito constante. Nesse sentido, que não se preocupasse em respondê-la, mas que ponderasse naquilo que resolveu contar em confidência.
Descaminhos
Dizia ela: há muito se fala de uma crítica de arte em crise, mas a ideia de crise parece não corresponder a esse excesso de texto produzido para catálogos, revistas especializadas, jornais, etc. O lugar da crítica não está em perigo. Hoje, encontra um espaço muito confortável dentro da maquinaria neoliberal produtivista.
Dessa forma, a maioria das tentativas independentes que tentam alterar o eixo de rotação em torno das necessidades de mercado não sobrevive, nem mesmo como alteridade pouco eloquente. O que se esmera já não são os gestos contraculturais, mas os graus de complacência nos quais o agente (artista ou crítico de arte) é capaz de desenvolver para se deixar absorver pela engrenagem.
Os gestos não são mais políticos, porém parte de jogos perversos de administração dos velamentos de atos dentro do sistema. Assim, se cria uma inadequação quanto ao lugar de atuação da crítica e sua própria constituição semântica.
A crítica de arte, pelo menos aí no Brasil, passa por um momento que, para fins de justificação das atuações em cima do muro, se diz opaco. Em sua maioria os textos sobre arte que lemos não podem ser tidos como críticos na dimensão que se tinha antes. É possível perceber que a escrita sobre arte está sendo ativada mais por uma demanda institucional-mercadológica e menos por um exercício crítico independente.
Isso não quer dizer que a demanda institucional e de mercado configure um mal em si mesmo. Não se trata aqui de inscrever moralismos – a ideia de bem e mal numa configuração neoliberal é completamente demente. Mas de reconhecer que este tipo de escrita quase sempre a priori altera a rota desse ato inadequadamente chamado de crítica. De outro modo, cumpre uma função que não de pensamento reflexivo sobre o trabalho de arte, mas de afirmação de procedimentos, discursos e visualidades. Por se tratar de uma demanda de legitimação, isso interessa a quem? Eis a questão. Há aí um paroxismo semântico ao guardarmos todos os textos sobre arte, ou a partir dela, no bojo da crítica de arte.
Clivagem
“Má-fé e hipocrisia são atos de fala cujo sucesso depende de uma operação de mascaramento, já que pressupõem que o Outro não é capaz de desvelar a clivagem entre o valor ao qual o enunciado aspira e o interesse que anima a enunciação. Nesse sentido, a máfé quanto hipocrisia devem aparecer como casos típicos de insinceridade. Elas são figura de um falar e de um agir que se organizam como arte da camuflagem de clivagens. A exposição da clivagem anula a força perlocutória do ato.”
Vladimir Safatle, em Cinismo e falência da crítica
Para ela, a verdadeira atuação crítica seria a de conseguir instaurar justamente a crise real: o lugar de transição entre uma realidade e outra. Dizia que mesmo os textos que se ocupavam em discutir as desventuras da relação arte-e-mercado já não eram capazes de provocar qualquer tipo de fissura. Hoje está criado um filão de ávidos pseudo-leitores-fruidores desse tipo de (má) literatura.
Assim, propôs um diagnóstico muito interessante. Essas já não tão atuais formas de pseudocrítica começaram a, no fundo, contribuir para o desserviço de tirar o foco das próprias investigações artísticas. Voltaram-se para uma análise quase sempre superficial do mercado, sendo impossível, absolutamente, gerar qualquer tipo de novas formas de pensar e agir diferentes do que já está posto.
A crítica de arte transitava em dois polos: 1. o de investir-se ingenuamente em uma escrita · 92 · · 93 · de rancor e re-sentimento em relação ao sistema de arte, que leva à impossibilidade de transformação em relação às alienações produzidas pelo modelo mercantil já entranhado; 2. o do texto, também superficial, engendrado para funcionar como legitimador de processos e visualidades que alimentam justamente esse mercado; afirmou inclusive que era urgente se pensar em um novo nome para este tipo de construção textual. Ambos os modos de “crítica”, ainda que feitos com intenções distintas, acabam por ser dispositivos que alimentam a grande máquina de produzir dinheiro. Dinheiro esse com fim em si mesmo.
Intempéries
“, como naquela noite em que perdi a fé em quem mentia ao falar de seus princípios, invocando textos cujo o sentido profundo estava esquecido.”
Alejo Carpentier, em Os passos perdidos
Entre uma página e outra daquele audacioso diário, algumas inquietações ganharam arquitetura dentro daquela amiga-leitora, que – mais pelo cansaço, menos por desesperança – havia se pacificado em sua rotina. Tanto que escreveu de volta uma longa carta sobre as inquietudes que conseguiu transformar em pensamento compartilhável.
Disse assim: o certo é que, ao meu ver, o constante ataque às relações mediadas pelo mercado, que engolfam também as relações pessoais, já não produzem efeito ativo. Tendo a crítica de arte paulatinamente se movido do lugar de reflexão sobre a produção artística, sobretudo dentro do caldeirão social, político e histórico no qual tem sido construída, fica um vácuo sem precedentes para uma escrita inócua. Tanto quanto, parece-me inevitável o deparar-se com projetos artísticos que, precocemente caducos em seus discursos, já não se importam em dar uma satisfação acerca dos seus joelhos dobrados perante a ordem mundial, que não incita outra coisa senão o mergulho, cada vez mais cego, nos modos mercadológicos de pensar e agir.
Hoje já se tem por razoável o deixar domar-se pela engrenagem que faz os agentes do campo da arte trabalharem por demanda, numa lógica aturdida de fluxos de pensamentos – e com um excesso de citações de pensadores europeus, notadamente, franceses. Tais pensamentos não se consolidam enquanto ideias-hipóteses, conceitos, conhecimentos. Isso acontece porque não há inflexão nos debates. Os que se autopromovem são uníssonos, poucos preocupados em deixar as arestas e contradições permanecerem enquanto tais, assim como não há uma construção sistêmica (seminários, revistas de arte e congressos que sejam perenes) que dê conta de criar respiros entre uma discussão e outra. Sem fôlego, as construções de um pensar esfacelam-se junto aos seus autores.
Por exemplo, não é possível identificar um debate comum no qual todos tomem parte. Houve o esboço disso em torno das políticas públicas, mas acabou-se dissolvendo em ataques a ministra da Cultura. E mais uma vez, uníssonos nesse ataque sub-existem as verdadeiras agendas como repensar a lei Rouanet e afins. O que há é uma esquizofrênica produção de discursos que interessa menos à comunidade pensante e mais à necessidade de legitimação de processos e visualidades que pouco têm a ver com discussões de fato interessantes à arte como conhecimento humano. Servem, porém, a uma arte usada enquanto commodity. São os textos, parte de uma linha de produção marqueteira, que atuam na ordem do convencimento de determinado público de que aquele produto é arte, é bom, “político” e socialmente correto, por isso mesmo serve como investimento econômico garantido. Ora, não é coisa recente o investimento do neoliberalismo na retomada da moralidade cristã. O retorno ao bom-mocismo.
O problema que não salta aos olhos já não é essa simpática forma de lidar com a arte, mas a construção muito sutil de um discurso por trás do discurso. Por exemplo, os projetos empreendedores que visam incorporar jovens artistas ao sistema. Em princípio, parece absolutamente saudável a tentativa de abrir espaço para a produção de arte feita por artistas no início de sua trajetória. O problema, contudo, está no modo da recepção desses trabalhos. Enquanto obra, já nasce pronta para o sucesso no mercado, enquanto arte, é natimorta.
Para além de sua dimensão objetual, nesse ponto é preciso entender arte como uma construção complexa de síntese do conhecimento. Como síntese e não como hipótese, não é possível submeter-lhe imediatamente à análise minuciosa, sem recair em erro, ou em superficialidade, porque ainda recém posta no mundo. E como coisa nova precisa ainda se afastar, e se aproximar, restabelecer condições de troca, rearticulações de parâmetros. Desse modo, toda a tentativa de justificar, organizar, delimitar o “lugar” de atuação conceitual da obra recém-nascida se presta muito mais ao convencimento daquele que se aproxima interessado em seu “valor” do que aquele que se aventura no embate nem sempre generoso com a obra de arte. Muitos subestimam o embate com a obra, pressupondo que aquele que não consegue articular em palavras os meandros daquele trabalho é um deseducado formal. Longe disso: há trabalhos de arte que não se dão às articulações sistematizadas de pensamento, porque contemporâneos das construções teóricas que futuramente darão conta da sistematização dos conhecimentos elaborados nesse tempo de formação de ambos: obra de arte e conceito.
Uma espécie de demência instalou-se entre nós com essa absorção pacífica do fim das coisas. É certo que os modos de pensar e agir do capital nos engoliram de um modo que, de fato, parecemos viver numa espécie de fim prorrogado ad infinitum. Vivemos num tempo sem esquinas. Todas as criações que eventualmente poderiam nos dar um vislumbre de novidade, logo são cooptadas pelo grande sistema, precocemente seladas como parte desse todo – só aparentemente heterogêneo. Mundializados, somos mais iguais do que diferentes frente à ventura que é existir. As instâncias mais subjetivas estão desgraçadamente mediadas pelo capital. Assim, quando não estamos usando os mesmos jeans em qualquer parte do planeta, estamos programados a pensar que temos necessidades desnecessárias, que vão desde a última geração de computadores e celulares ao café “orgânico” pró-mãe natureza.
Dessa forma, já não adianta investir-se em “críticas” tão somente aos modelos aí postos (como exemplo do modelo bienal). Mas se dedicar a uma ampliação de atuação que incorpore, no modus vivendi, valores como generosidade, amor, alegria. Porque o político, como tem sido apresentado, por certo que se perdeu na nossa impossibilidade de exercitarmos o experimentalismo da nossa liberdade.
Terminou a carta agradecendo por todas aquelas considerações compartilhadas que a ajudaram a retomar posturas cujo passar do tempo tornaram-nas rarefeitas. Aproveitou para dar notícias de que em breve deixaria a edição de livros para dedicar-se apenas à escrita. A ideia de um livro sobre “o ridículo” acabara de surgir. Despediu-se com um beijo e o desejo do perto. Ainda que soubesse que o perto, naquele caso, seria sempre uma engenharia do sentir.
Político
Ao fim daquelas considerações, havia uma transcrição das palavras de Hannah Arendt, em seu livro “O que é Política?”:
“Essa liberdade de movimento, seja a liberdade de ir em frente e começar algo novo e inaudito, ou seja a liberdade de se relacionar com muitos conversando e tomar conhecimento de muitas coisas que, em sua totalidade, são o mundo em dado momento, não era nem é, de maneira alguma, o objetivo da política – aquilo que seria alcançável por meios políticos; é muito mais o conteúdo e sentido original da própria coisa política. Nesse sentido, política e liberdade são idênticas e sempre onde não existe essa espécie de liberdade, tampouco existe o espaço político no verdadeiro sentido.”
O diário termina contando sobre sua última caminhada pelo centro de São Paulo, na companhia de uma outra querida amiga, artista, uma espécie de Professor Pardal. “Era preciso ser poeta, ou criança, para conseguir transmutar em palavras aquela sensação de ter visto uma árvore cantante em pleno burburinho da cidade. Além do beijo cálido do sol – que naquele momento havia-se avermelhado –, irradiava toda sorte de cantigas de passarinhos. Parecia-lhe uma realidade-mágica na qual tudo, sem a regência de uma batuta, concordasse em estabelecer um campo harmônico”.
Contava também que fez sua última refeição no mercado público, que andou pelos bairros de Campos Elíseos, Santa Cecília, e passou pela Cracolândia. O vento era frio, mas o sol fazia seu olhar se iluminar de outras possibilidades de estar no mundo.
Enquanto caminhavam, a professora pardal lhe falava sobre a sociologia do tempo a partir dos prédios daqueles bairros e de como, ali pertinho, havia uma comunidade de africanos, cuja existência poucos sabiam. E lembrou dos japoneses, chineses, coreanos, moradores e fundadores do que hoje se chama Brasil e nem por isso se sabe ao certo do que de fato se trata. Como somos Brasil? Ainda que não possamos colocar em dúvida o fato de sermos brasileiros; pensou.
Nela, despertou a necessidade da liberdade, do diálogo; isso deveria se dar em que termos? Ora, para que houvesse uma real estrutura para à boa política, haveria que se estabelecer condições de liberdade. E a ideia de liberdade, de alguma forma talvez romanticamente natural, parecia existir dentro dessas comunidades, nas quais, “ex-patriados” se sabiam pares. Acredita-se que por isso mesmo resolveu ex-patriar-se.
As últimas notícias que teve sobre a amiga que tinha partido eram antigas (quarenta e oito anos atrás). Através de um bilhete mandado por um amigo em comum, falou que tinha recebido com amor a sua carta. Daquele momento em diante, perambularia pela América Latina no afã de entender as semelhanças e dessemelhanças sociais, políticas e históricas, que nos faziam latino-americanos tão distantes, num apartheid velado. A última coisa que disse foi: se sem pares não há liberdade, sem liberdade não há boa política; não será a arte, nos termos que se estabeleceram como um conjunto de bulas e engrenagens, que abrirá espaço para emancipação.
Dedicar-se-ia à generosidade que, para ela, significava um modo de estar no mundo: afetável, movediço, dialógico, acolhedor. Parecia-lhe absurdo continuar replicando o modelo sistêmico da arte naquele momento: o (auto) empoderamento de alguns críticos de arte e curadores, a inabilidade dos artistas, de escritores e aqueles que pensam curadorias de se moverem para fora desses termos.
Passou a investir na alegria, ainda que sentisse constantemente as dores de quem fazia parte de uma pequena multidão de grávidos do novo mundo por vir – citando Galeano.
A alegria, como disse a minha amiga Daniela, é sempre política.
Epílogo
– Ao despertar do sonho viu-se encurralada numa realidade na qual já não cabia. Era difícil redimensionar o que nela ainda ficou da vida anterior – que pensou ter conseguido guardar tudo num número razoável de caixas de papelão quando foi embora às pressas.
– Em cima do criado-mudo, o radinho à pilha gritava: “Legalidade”. Não sabia que um pouco daquele positivismo poderia ter poupado muitas vidas.
– Sentou-se. Endireitou-se no encosto da cama. Estendeu a mão e pegou uma carta que parecia ser recém-chegada. Releu, agora sem calma, a epígrafe: “A esperança tem duas filhas lindas: a raiva e a coragem. A raiva do estado das coisas e a coragem para mudá-lo. (Santo Agostinho)”.
– Uma voz chegava rouca de algum lugar que parecia ser o fim da rua. Alguém, tirado à força de um cativeiro do qual parecia ter-se acostumado, repetia como mantra: – O passado nunca mais.
“A amizade é a condivisão que precede toda divisão, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir, a própria vida. E é essa partilha sem objeto, esse com-sentir originário que constitui a política.” (Giorgio Agamben, em O amigo.)
Em julho de 2010, quando finalmente conheci a autora dos textos que haviam me inquietado – como há muito não tinha sido possível acontecer nesse pequeno campo equivocado das artes visuais – entendi que as palavras têm muito mais força quando encarnadas.
Aquilo que, em mim, era intuição, começava a ganhar corpo naquele diálogo construído num diariamente comum (passamos 21 dias numa residência editorial promovida pela revista Tatuí, em Olinda-PE). Com Daniela Castro, desde então, tenho condividido minha existência entre emails trocados, encontros ao acaso, refeições compartilhadas, sonhos instituídos, cumplicidades ancoradas.
Investir-me numa escrita fluida me pareceu mais próximo daquilo que eu penso ser, junto com Mário Pedrosa, o “exercício experimental da liberdade” de Daniela. Assim, resolvi construir algo que presentificasse ideias que o texto-base escolhido traz, tanto quanto, vontades e desejos delineados nesse exercício de amor e amizade.
Isso porque, nesse pouco tempo de com-sentir, entendi que para além das experimentações formais nas construções textuais e projetos curatoriais, é no seu modus vivendi, sobretudo, que Daniela edifica seu criticismo.
Por entender que é imprescindível conectar as construções políticas nas práticas da vida – das mais simples às mais complexas – é que a generosidade, o amor e a alegria foram incorporados como valores e dispositivos de uma prática emancipatória. Suas palavras ecoam em mim e produzem vida: “a alegria é sempre política”.